quinta-feira, 30 de setembro de 2010

5585 - LITERATURA DO PERU

principalpoesiacardápio de poesiaperfispoetas na redefigura da vezcorda virtualentrevistamídiasdifusoralivros virtuaisvídeosgaleria de fotosresenhasgaleria dos mortaiscolunistasAndré Telles do RosárioCícero BelmarGeórgia AlvesJomard Muniz de BritoLaraMarcelo PereiraMeca MorenoWellington de Melocontextoartigosespeciaisprosaeventosblogsmural
principal | colunistas | André Telles do Rosário

Literatura de viagem e projetos utópicos feministas I
Flora Tristan e o Peru

por André Telles do Rosário



Introdução

Com a expansão européia depois dos “descobrimentos”, e a difusão do livro a partir do século XVI, a curiosidade sobre a existência de outros povos e lugares desconhecidos possibilitou o florescimento, na Europa, de uma literatura relacionada às excursões ao “Novo Mundo”. Desde seu surgimento, tal gênero tem sido utilizado por muitos escritores para, mais ou menos explicitamente, oferecer modelos críticos alternativos aos costumes das metrópoles.

Além de estratégia discursiva, a própria experiência da viagem a lugares tão distintos serviu de estímulo para o surgimento de novas sensibilidades sociais, em alguns casos. Flora Tristan, socialista e feminista, sob a perspectiva que este artigo pretende demonstrar, é um deles. Sua viagem ao Peru, em 1833 e 34, é considerada por vários comentadores como um momento a partir do qual seu ativismo político ganhou força e direção. Neste artigo leremos seu primeiro livro Peregrinações de uma pária, especialmente os diários de sua estadia em Arequipa, para tentar compreender como a viagem ao Peru forneceu subsídios para suas obras de combate às condições das sociedades de seu tempo.



Literatura de viagem e Utopia

A lenda conta que Tomás Morus teve a idéia de Utopia após fascinar-se com a descrição de Fernando de Noronha feita por Américo Vespúcio. O navegador florentino foi o primeiro a descrever o arquipélago, por onde passou em 1503, em sua quarta viagem ao que depois conseguiu provar ser um novo continente.

É justamente como acompanhante de Vespúcio “nas três últimas de suas quatro viagens, cujo relato hoje se lê quase em toda a parte” (Morus 1997: 18), que Raphael Hythlodaeus, o homem que descreve a ilha de Utopia na obra de Morus, pôde conhecer o lugar, depois de permanecer no novo mundo em vez de voltar para Portugal, na última das jornadas (aquela que passou por Noronha).

Sobre o Melhor Estado de uma República e sobre a Nova Ilha de Utopia, o livro que cunhou o termo, se utiliza de pretensos relatos de viagens para imaginar o lugar governado idealmente. Assim, desde o início do conceito Utopia, como se pôde ver, a imaginação utiliza a literatura de viagem para sugerir novos modelos de convívio social, colocando os hábitos europeus em negativo, através do que seria o encontro com outras maneiras de se organizar politicamente um determinado território.

Como bem observa Fernando Ainsa, “o discurso utópico americano surge da dialética entre os arquétipos europeus sobre regiões desconhecidas e inexploradas e a noção de alteridade elaborada a partir do encontro entre dois mundos que, até o momento, se ignoravam reciprocamente” (Ainsa 1998: 131). Ainda segundo Ainsa [1]:

A utopia, diferentemente da ideologia, necessita de um espaço onde se configurar. Fundante de territórios afastados e geralmente inacessíveis, a geografia da utopia acompanha o gênero desde suas origens (Utopia de Tomás Morus, em 1516) e só deixa de ser essencial no discurso do socialismo utópico do século XIX, quando o mundo já está explorado e conhecido. (Ainsa 1998:131)



Daí a paródia através da qual Morus inaugura o Utopismo só ser crível num mundo ainda não ostensivamente conhecido como o do século XVI. Na primeira metade do século XIX, a utopia já havia se movido dos países legendários para espaços concretos da Europa e – principalmente – das Américas.

Com os processos de independência das colônias ibero-americanas, tanto o continente se abriu para viajantes europeus de outras nacionalidades não-ibéricas, quanto os debates sobre os rumos das nações fomentaram a imaginação política de novos modelos sociais. A partir das primeiras décadas do século XIX, o fluxo de idéias e pessoas entre Europa e o que conhecemos hoje como América Latina foi fundamental para a conformação de projetos políticos de diversos tipos nos dois lados do Atlântico. É nesse contexto de agitação pós-independência que Tristan, leitora de Saint Simon e Fourier, pôde observar a escravidão, a corrupção, a injustiça, o obscurantismo religioso e a violenta disputa pelo poder dessa época.



Peru, década de 1830

O Vice-reino do Peru era a caixa forte do Império Espanhol na América do Sul. Durante quase dois séculos centralizou a administração e o comércio desde o Panamá até o Rio da Prata. Mesmo após a criação dos vice-reinos de Nova Granada (1717) e do Rio da Prata e da Capitania Geral da Venezuela (1777), ainda permaneceu como uma das possessões mais importantes da Coroa até o início do Século XIX, e foi o último bastião do domínio espanhol a sucumbir, na América do Sul, depois de longa guerra. Foi necessário o encontro das expedições libertadoras vitoriosas vindas do Sul, com San Martin, e do Norte, com Simón Bolívar, para derrotar as forças realistas, cujo último foco foi debelado apenas em 1826; embora a Capitulação de Ayacucho, em dezembro de 1824, já tinha selado o fim do último vice-reino espanhol.

Acabadas as guerras, começou a luta pelo poder dentro dos países. É neste contexto de agitação histórica dos primeiros anos dos novos Estados que aconteceu a experiência americana de Flora Tristan. Entre 1821, o ano da independência, e agosto de 1833, quando ela chega a Islay, o porto mais próximo de Arequipa, a República de Peru já havia passado por três constituições diferentes e pela mão de quase 20 governantes. A estrutura racial e de classes tinha permanecido intacta, e o colonialismo espanhol ainda era extremamente próximo, a ponto de alguns antigos realistas terem chegado a participar da administração da república. Como no caso do tio de Flora, Pio de Tristán, militar que defendeu a ordem colonial durante a guerra de independência e depois chegou a se tornar governador do Estado Sul-Peruano, durante a breve Confederação Peru-Boliviana (1837-1839).



Flora Tristan

Além do ativismo político de seus últimos anos de vida, Flora Tristan (1803-1844) ficou conhecida em sua época como escritora de memórias de viagens, um romance utópico e variados comentários sociais. Hoje, é lida e relida como uma pensadora que fez a ponte entre o socialismo “utópico” e o “científico” e ajudou a fundar as bases da moderna teoria feminista. Um bom exemplo de sua posição pode ser percebida neste excerto do capítulo “Porquê eu menciono as mulheres”, da União Operária:

Até hoje, a mulher não contou para nada nas sociedades humanas. – O que resultou disto? – Que o padre, o legislador, o filósofo, a têm tratado como uma verdadeira pária. A mulher (que é metade da humanidade) foi colocada fora da Igreja, fora da lei, fora da sociedade [...] Uma condenação terrível assim, e repetida durante seis mil anos, naturalmente abateria a multidão, porque a sanção do tempo tem muita autoridade sobre a multidão. – Entretanto, o que deve nos fazer esperar que possamos apelar deste julgamento, é que também, durante seis mil anos, os sábios dos sábios tiveram um julgamento não menos terrível sobre uma outra raça da humanidade: os PROLETÁRIOS. (Tristan 1844:44-47)



Filha de um casamento não reconhecido entre um general peruano e uma francesa emigrada para a Espanha depois da Revolução de 1789; burguesa que perdeu tudo e virou proletária ainda criança, após a morte do pai, obrigada a trabalhar desde muito cedo; mulher separada de um casamento imposto pela pobreza, impossibilitada de conseguir o divórcio: essas eram algumas de suas condições quando embarcou no navio Le Mexicain, rumo à América do Sul, para buscar sua parte na herança do pai. Quando voltou à França, sem nada do que pensava conseguir, iniciou nas letras e tornou-se peça importante no debate político de seu tempo.

Seu primeiro panfleto, “Da necessidade de se receber bem as mulheres estrangeiras”, foi publicado em 1835, e defendia a força civilizadora que tinha o fato de mulheres européias viajarem, para a aprimoração de países menos “avançados”, claro fruto de sua experiência peruana. Dois anos depois publicou outro, em defesa do divórcio, proibido na França desde a Restauração. Peregrinations d´une paria, seu primeiro livro, saiu em 1838. Nesse mesmo ano, lançou um romance, Méphis ou O Proletário. Em 1839, publicou uma seleção de cartas de Simón Bolívar traduzidas para o francês. Passeios em Londres, seu diário de viagem pela Inglaterra, veio à luz em 1840, e a fez famosa no meio socialista.

Mas a obra que lhe pôs definitivamente na história das lutas sociais surgiu em 1843, L`Union Ouvrière, citado mais acima. Depois de sua publicação, saiu naquela seria sua última viagem, pelo interior da França, para divulgar suas idéias e ter contato com os operários, e em Bordeaux, vítima de febre tifóide, faleceu aos 41 anos de idade. Teve ainda um trabalho publicado postumamente, logo após seu falecimento, chamado A Volta pela França, estado atual da classe operária sob o aspecto moral, intelectual, material, com os diários de sua derradeira jornada.

Na coluna do próximo mês, quando publicarmos a segunda parte deste artigo, procuraremos representações e estratégias presentes ao longo de sua obra Peregrinações de uma Pária, que iluminem a importância da viagem ao Peru, e da publicação dos diários dessa viagem, para a consolidação de sua ação socialista e feminista depois de seu retorno à França.



[1]Este excerto de Fernando Ainsa e todos os textos de Flora Tristan aqui presentes foram traduzidos pelo autor deste artigo (do Espanhol e do Francês, respectivamente).



COLUNA ESCRITA VIAJANTE

ANDRÉ TELLES DO ROSÁRIO
é escritor, tradutor, intérprete e professor

< Anterior Próximo >

Adicione seu comentário
Autor



Voltar à página inicial

Pé nas Encruzilhadas

Literatura de viagem e projetos utópicos feministas II

Literatura de viagem e projetos utópicos feministas I

Sobre muros e pontes

Viagem, literatura e política

Antonio Bivar na corte da contracultura

Escrita viajante























quem somosfale conoscoandarartelinksarquivoshotsiteslogin






COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas