terça-feira, 1 de maio de 2012
EUCLIDES DA CUNHA:DIÁRIO DE UM CORRESPONDENTE DE GUERRA
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Ciclo de Conferências e Mesas Redondas em Comemoração ao Centenário de Morte de Euclides da Cunha
Programação completa
Ciclo Comemorativo do Centenário da Publicação de Os Sertões
O Movimento Euclidianista (19/06/2001)
(Conferência realizada na Academia Brasileira de Letras no dia 19 de junho de 2001, abrindo o Ciclo comemorativo do centenário da publicação de Os sertões.)
Alberto Venancio Filho
Recebi com satisfação o convite para participar do Ciclo sobre Euclides da Cunha no centenário da publicação de Os sertões, discorrendo sobre o Movimento Euclidianista.
Pareceu-me, à primeira vista, que o tema caberia melhor como fecho do Ciclo, após a apreciação da vida e da obra, mas cedi aos argumentos do eminente Secretário-Geral Alberto Costa e Silva com a sugestão de que fizesse a conferência em flash-back, tal como o primoroso discurso de posse por ele proferido na sucessão do saudoso confrade Carlos Chagas Filho.
Escolhi o tema por vários motivos, mas especialmente como mais uma demonstração de um testemunho de acendrada admiração filial. A denominação de Movimento Euclidianista foi dada às atividades do Grêmio Euclides da Cunha criado por um grupo de alunos em 1911 no Colégio Pedro II. Sem embargo da atuação de outros ilustres brasileiros, foi Francisco Venancio Filho, juntamente com Edgar Sussekind de Mendonça, o grande líder desse movimento. Reynaldo Porchat, eminente jurista, amigo de Euclides do tempo de mocidade, que com ele manteve extensa correspondência, primeiro Reitor da Universidade de São Paulo, no velório de Francisco Venancio Filho assim se expressou: “Francisco Venancio Filho foi o pedestal da glória de Euclides da Cunha.”
Disse Roquette-Pinto em sessão da Academia: “Do próprio culto à memória de Euclides da Cunha, grande traço de sua existência, Venancio fez surgir um momento de educação cívica sem paralelo no Brasil, tornando a Cidade de São José do Rio Pardo um lugar de solenidades anuais do maior alcance social”. E Múcio Leão aditava: “Seu culto por Euclides da Cunha foi obsessivo, e acabou sendo a única verdadeira expressão de sua existência. Acredito que Francisco Venancio Filho não chegou a conhecer Euclides pessoalmente. Quando o escritor faleceu, assassinado, num mísero subúrbio carioca, Francisco Venancio Filho era ainda rapazinho e cursava o Colégio Aquino. Teria já, porém, à distância, a fascinação deslumbrada daquele incomparável mestre de estilo. Fui também, na adolescência um fascinado de Euclides da Cunha. Ora, desde que, em 1913, o Grêmio Euclides da Cunha saiu do Pedro II e veio para cá fora não teve servidor mais exato, mais pontual, mais piedoso do que Francisco Venancio Filho. Ele vivia buscando, pedindo, recolhendo, catando qualquer dado novo sobre o seu patrono. A mínima informação inédita sobre Euclides, ele a recebia como uma dádiva real. Qualquer artigo perdido, que de longe interessasse à obra ou à glória do mestre ele o recopiava com amor.” O interesse pela obra de Euclides da Cunha veio de alunos que assistiram às poucas aulas dadas pelo professor de Lógica, entre eles os irmãos Sussekind de Mendonça, Edgar e Carlos, filhos de Lúcio de Mendonça, grande escritor e jurista, fundador da Academia Brasileira de Letras. O episódio final da vida de Euclides foi o concurso para a cadeira de Lógica do Ginásio Nacional; seria o derradeiro, que iria pôr a prova também a amizade dos amigos. A perspectiva da cadeira seria enfim a possibilidade de encontrar uma atividade segura em vida tão tumultuada, e a perspectiva de poder, afinal, consagrar-se aos planos literários que tanto acalentara.
Na vida cultural do país, porém os concursos têm aspecto de lutas primárias, e muitas vezes pesam menos os méritos pessoais do que as considerações personalistas. Lança-se Euclides na preparação do concurso a uma revisão dos conhecimentos, revendo a leitura dos grandes filósofos. O resultado final coloca Farias Brito em primeiro lugar e Euclides da Cunha em segundo. Cabendo ao Governo, segundo a legislação em vigor, a escolha entre os dois primeiros candidatos, ocorreu período de disputa e de intrigas. Nesta ocasião, escreveu Euclides a João Luís Alves, então Senador e seu velho amigo dos tempos de Campanha, solicitando a interferência, e mencionando entre as várias propagações a de ter levado o amigo Carlos Peixoto, poderoso na época, à prova oral com o intuito de atemorizar a Congregação. À afirmação de que Rio Branco teria desde logo intervindo diretamente no caso, recebe o desmentido da carta enviada a seu velho amigo da Academia de São Paulo, Francisco Veiga, pai de Edmundo Veiga, genro do Presidente Afonso Pena:
Petrópolis, 11 de junho de 1909.
Meu caro Veiga
Decide-se agora a escolha do lente de lógica para o Ginásio Nacional.
Não dei até aqui um passo em favor do Euclides da Cunha, por entender que ele não precisava disso. Agora, porém, que sei ter havido uma escandalosa cabala contra ele no seio da Congregação e que outros candidatos recorreram a padrinhos, ou “pistolões”, como diz o povo, sinto-me obrigado, sem pedido algum dele, a queimar o único cartucho em favor deste moço digno e puro, que é uma inteligência de primor.
A tal cabala fez com que o classificassem em segundo lugar, mas para a escolha deve-se ter em vista a qualidade dos que votaram a favor e contra, a prova escrita dos dois classificados e os livros que têm publicado. Peço-lhe que faça pelo Euclides tudo quanto puder junto ao Presidente e ao Dr. Lira. (Tavares de Lira, Ministro da Justiça.)
Afinal veio a nomeação. Escragnolle Dória, ocupante interino da cadeira, descreveria a experiência fugaz do professor improvisado a quem antecedeu e sucedeu.
Regíamos a cadeira pela segunda vez, quando na quarta-feira, 21 de julho de 1909, Euclides apresentou-se para ocupá-la, dando a primeira aula na sala do 5o ano, gabinete de física e química. Nesta sala, apresentamos Euclides aos discípulos do 6o ano. Agradeceu-nos, pedindo-nos para assistir à lição inaugural. Falou toda a hora, pausado, baixo, naturalmente como professor novo, ainda hesitante na presença do assunto e dos alunos, mas sem aquele famoso caroço alojado no fruto de tanta dicção magistral.
Tinha de dar pelo horário três aulas por semana, às segundas, quartas e sextas, das onze ao meio-dia. Deu dez aulas, de 21 de julho a 13 de agosto, sexta-feira que foi a última.
O grupo de estudantes deixa o Ginásio Nacional e resolve dar cunho nacional ao Movimento, chamando para presidente honorário Alberto Rangel, o grande amigo de Euclides, companheiro da Escola Militar, cujo livro Inferno Verde foi por ele prefaciado. Alberto Rangel iniciou formalmente as atividades do Grêmio em 15 de agosto de 1913, na sepultura 3226 do Cemitério São João Batista, onde ficaram os restos mortais de Euclides até serem traslados para São José do Rio Pardo:
Quisestes acreditar nas forças do bem, da razão e da justiça. Afogados no tranquibérnio de uma nação espasmada no vício, na mediocridade e no esquecimento, a vossa juventude e a vossa crença reclamavam um consolo e um punhado de PROTESTOS. Na vossa ADORAÇÃO não afiançais somente uma supervivência. Aproximastes-vos deste túmulo com a cega piedade de peregrinos de Meca e a sede ardente de reclamantes por uma reparação necessária e infalível.
As palavras de ordem Por protesto e adoração seriam o lema que dirigiriam por trinta anos as atividades do Grêmio Euclides da Cunha.
A primeira manifestação de estudo da vida e da obra de Euclides da Cunha foi o discurso de posse de Afrânio Peixoto nesta Casa, na sucessão da Cadeira no 7, dois anos após a morte. Falaria da “bravura improdutiva e arrogante, aquele amor do gesto vistoso e da palavra sonora, aquele desprendimento das utilidades e conveniências, contidos dentro de timidez que antes era suspeição tácita da inferioridade dos outros, de modéstia, que era apenas a consciência segura de um justo orgulho, e que sintetizam a sua vida ruidosa e vazia, gloriosa e desaproveitada, admirada e desquerida”.
Analisando a obra, diz:
Euclides da Cunha, pois que teve caráter, devia ser um estilista. No seu estilo, como naquele caráter, havia, porém, qualidades impetuosas e dominadoras que lhe criariam, desde logo, um círculo enorme de submissões simpáticas e de irrefletidas admirações.
E mais adiante:
Aclamaram-no, sem mais, simultaneamente, geógrafo, geólogo, etnógrafo, sociólogo, filósofo, historiador, estrategista, engenheiro e estilista principalmente, ...mas não perceberam o conteúdo das idéias nem tocaram no valor do seu quilate...
Concluiria, afinal: “Foi o primeiro bandeirante dessa entrada nova pela alma da nacionalidade brasileira. Seu nome ficará até lá onde foi ter o seu arrojo e a sua ambição.”
O Grêmio passa a promover todos os anos no dia 15 de agosto, data da morte, conferências na Biblioteca Nacional de estudo da vida e a obra de Euclides da Cunha. Em 1913 Coelho Neto trataria das “Feições do homem”, relatando episódios reveladores do temperamento esquivo e retraído de Euclides. O primeiro, o encontro em Campinas em 1902, onde então morava o escritor do Rei negro, levado por César Birrenbach para a leitura de páginas de Os sertões, ainda inéditas. Disse Coelho Neto ao chegar o visitante:
Baixei o olhar e dei com um homenzinho seco, mal enjorcado em andaina de brim escuro, sobraçando um rolo; rosto moreno, arestoso como falquejado em vinhático, queixo enérgico, olhar duro, que passara por baixo de meu raio visual, e, diante de mim, militarmente aprumado, como em continência, encarava-me hostil.
Euclides começou a leitura e Coelho Neto logo levantou-se para apanhar um pote de fumo. De repente vê Euclides saindo pela porta afora, e na calçada César Birrenbach dando gostosas risadas; retorna explicando que tinham convencido a Euclides que toda vez que o escritor desejava se livrar de um importuno apanhava um pote de fumo. A muito custo Euclides voltou de noite, já agora com um pequeno maço de páginas que encantaram a Coelho Neto, que descreve a seqüência:
Terminada que foi (a leitura), enrolou as páginas, amarrou-as e, indo e vindo ao longo da sala, pôs-se a falar do sertão e do sertanejo: com largueza de traços ele desenhava a imensidão deserta, ora rasa, em planura amarelenta e seca na qual avultam rochedos nus, disseminados, semelhando, à distância, um rebanho prófugo de elefantes, ora eriçada em alcantis, espigada em penhascos arestosos, vertebrada em muralhas escalonadas, a um só lado ou aos dois, em paralelas, apertando desfiladeiros e tudo, terra e rochas, ardendo a um sol implacável.
Relata como foi salvo o capítulo “Judas Ahsverus” de À margem da História. Parecera a Euclides uma nota dissonante na austeridade daquelas páginas, aquele parênteses doloroso, e comunica que vai eliminá-lo do livro. A Sra. Coelho Neto ouvindo-o, protesta contra a supressão, e só diante de insistências reiteradas Euclides mantém o texto. Anos depois, na residência da Rua do Rocio, rua que hoje tem o nome de Coelho Neto, Euclides se vira para a mulher do escritor, D. Gabi, e pergunta se ela lera trecho da História da literatura inglesa, de Taine, em que o pássaro, fugindo das agruras do inverno e do mau tempo, se refugia temporariamente numa morada, para logo depois voltar ao seu pouso. E Euclides acrescentaria: “Eu sou como o pássaro do livro de Taine.”
Oliveira Lima também daria as suas recordações pessoais. Recebera Os sertões quando veraneava perto do vulcão fumegante do Asamayama, no Japão e comenta:
Li-o, não de um trago, mas de muitos tragos, porque não é muito fácil a absorção daquele licor acre e inebriante. Não sei se influindo a sugestão do meio, achei o livro vulcânico, isto é, impetuoso e explosivo; interessante, porém, e sugestivo ao extremo. Pareceu-me uma pequena revelação literária, a mais notável que eu jamais presenciara em minha terra.
Refere-se à correspondência na qual, “se encontraria ainda melhor desenhada do que nos seus livros mesmo porque ele possuía o talento, raro no Brasil, pela falta de exercício, da epistolografia a sua personalidade curiosa e atraente, enquanto à primeira vista pouco expansiva”. Coube a Roquette-Pinto pela primeira vez analisar os aspectos científicos na conferência “Euclides da Cunha Naturalista”, pronunciada em 1917. Começaria dizendo:
Cada brasileiro que sabe ler, ai! de nós, somos tão poucos ainda, poderia repetir aquela invocação que o Goethe põe nos lábios do sábio remoçado, sempre que, finda a leitura, cerrasse certas páginas de Euclides. Não há, nem houve, e nunca haverá quiçá, quem descreva a natureza do Brasil de maneira tão formidável.
Assim era Euclides da Cunha. Para ele a natureza do Brasil era global; só a via em conjunto.
Entre falhas de Os sertões aponta Roquette-Pinto as teorias do autoctonismo do homem americano, o esmagamento das raças fracas, os males do cruzamento, teorias que na época de Euclides eram as teorias científicas dominantes, só posteriormente superadas e substituídas por outras mais modernas.
Os sertões – não é um volume de literatura; é um livro de ciência e de fé. E são essas as duas molas que faltam para o desencadear da nossa cultura popular, crer e aprender!
E conclui:
E quando o desânimo te infiltrar o coração, procura Euclides, ele se mostrará, com verdade e fulgor, o mundo de que és dono. E tu, meu irmão, como o Fausto da lenda medieval, erguerás de novo o grito da esperança:
– Espírito sublime! Permitistes que eu lesse no seio profundo da minha terra como no peito de um amigo; revelastes as forças secretas da minha própria existência.
Em 15 de agosto de 1919, Afrânio Peixoto pronunciava conferência sobre o “Dom e arte do estilo”, desenvolvendo idéias expostas quando da posse na Academia. Começava dizendo que:
Euclides da Cunha deve ser louvado não com epítetos, mas na sua obra, no seu grande livro, no mérito incisivo dele, pelo qual tocou e prendeu a alma nacional, o estilo com que conseguiu reunir a atenção dispersa e interessar a esquiva curiosidade do Brasil.
Compara Os sertões ao livro de Sarmento Facundo e comenta que, conversando com ele certa vez, quando se comentava a possível designação para Ministro do Brasil no Paraguai, insistiu para que aceitasse a função, porque certamente traria um novo livro, Um Sarmento com estilo, prodigiosa réplica a Os sertões.
Analisa dois estilos, pondo lado a lado a descrição do estouro da boiada, a de Euclides da Cunha em Os sertões, e a de Rui Barbosa em conferência em Juiz de Fora, em 1910, apontando as semelhanças e dessemelhanças. E fazendo o esboço da evolução literária do país, declara:
Nasce, então, o ‘nacionalismo brasileiro’, aponta a independência ou a aspiração de autonomia intelectual. Um livro os concretiza, a propósito de tema nacional, em que entra a terra do Brasil, o coração mesmo profundo deles, o Sertão do Brasil, a mais legítima gente brasileira.
O Grêmio promovia romaria ao túmulo de Euclides, anualmente, cada 15 de agosto com o convite a um orador. Ouçamos o orador de 1937, o grande escritor cujo centenário a Academia comemora, José Lins do Rego:
Desde que se tratava de Euclides da Cunha, não havia doença, perigo de saúde, compromissos para Venancio. Certa vez estávamos em pleno domínio da reação fascista, Venancio Filho me procurou para me dizer que no cemitério de São João Batista haveria uma homenagem a Euclides da Cunha. Queria ele que um escritor da nova geração dissesse alguma coisa, para afirmar o ponto de vista do grande homem diante da opressão. E me disse: “Diga você alguma coisa sobre Euclides da Cunha e a liberdade”. E foi o que fiz. A vida de Euclides, o seu exemplo, o seu inconformismo, obrigavam-me a falar em liberdade numa época em que a palavra liberdade ofendia aos poderosos do dia como uma ofensa grave.
A publicação anual da Revista, a realização das conferências, a edição de “Castro Alves e seu tempo”, conferência pronunciada em 1907 a convite de estudantes do Centro XI de agosto da Faculdade de Direito de São Paulo, e a tentativa malograda de ereção do monumento da Babilônia, foram muitas das atividades a que o Grêmio se dedicou com afinco para perpetuar a memória de Euclides da Cunha.
Em 1920, pelas folhas de um jornal do Rio de Janeiro, um foliculário tentou empanar a atuação do Grêmio, visando principalmente a figura de Francisco Venancio Filho. Com o advogado Humberto Blasi, o Grêmio e seu diretor foram a juízo, e obtiveram, por sentença de 29 de março de 1921, a condenação do articulista.
A atuação de Francisco Venancio Filho nessa matéria está intimamente relacionada à vida do Grêmio Euclides da Cunha, e não se poderá tratar da vida de um sem mencionar as atividades do outro. Embora não tenha sido fundador do Grêmio, nele ingressou em 1914, e no Jornal do Comércio desse ano publicava artigo esclarecendo a data exata do nascimento do escritor, objeto de controvérsia, com a certidão de nascimento.
Em 1915 divulgava o volume “Euclides da Cunha, notas biográficas”, com vinte e duas páginas, cometimento dado pelo Grêmio ao novo membro, representando síntese, com a análise dos principais aspectos da vida do escritor, e roteiro seguro para trabalhos posteriores.
Em 1931, na Coleção de Cultura Nacional da Academia Brasileira de Letras, dirigida por Afrânio Peixoto e que posteriormente ganhou o seu nome, publicaria o volume Euclides da Cunha (Ensaio bibliográfico). A coleção fora inaugurada com o livro do organizador sobre Castro Alves, constituindo o trabalho de Francisco Venancio Filho o segundo volume. O livro é dedicado a Afrânio Peixoto mestre e amigo e embaixo do nome do autor constava a indicação “do Grêmio Euclides da Cunha”. Era trabalho mais amplo, apresentando excelente material iconográfico, capítulo das efemérides euclidianas, bibliografia e capítulo final sobre os juízos e depoimentos.
Posteriormente, em 1940, pela Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, publicava o livro mais substancioso A glória de Euclides da Cunha, dividido em três partes: a primeira, a vida e a obra; a segunda, fontes de estudos; e a terceira, a repercussão da obra.
Anteriormente, também pela Coleção Brasiliana, em 1938, divulgava o volume Euclides da Cunha e seus amigos, compilando a correspondência até então conhecida. O livro continha substancioso prefácio, descrevendo as relações de Euclides com os principais amigos, dizendo ao final que:
Falta ainda a esta coleção muitas mais que devem existir nos arquivos de Rio Branco, Gastão da Cunha, Afonso Arinos, Waldomiro Silveira e outros mais. É de se esperar que aqui possam ainda figurar um dia.
As cartas de Euclides da Cunha a Rio Branco guardadas no Arquivo Histórico do Itamaraty viriam a ser publicadas por Francisco Venancio Filho na plaquete Euclides da Cunha e Rio Branco, como também por seu intermédio foram recolhidas as vinte cartas de João Luís Alves oferecidas pela viúva desse político.
Nesses dois livros encontra-se grande parte do material sobre Euclides da Cunha, em parte reproduzido nesta conferência.
Disse Alberto Rangel a propósito da correspondência:
São linhas íntimas. Na sua intimidade, porém, nada há que lhe diminua o espírito fulgurante e a dolorida sentimentalidade que as ditaram. Não podia ser de outro modo. Homens dessa natureza não têm altos nem baixos, conservando também, no obscuro bastidor das relações comuns, a integridade de suas nobres qualidades reais.
E acrescenta Francisco Venancio Filho:
Estas cartas completam o perfil do gigante de Os sertões. Se falta a elas o tom lírico, também ausentes na sua obra escrita, estão bem presentes os traços de coração e da sua “meiga e profunda afetividade” nestas mensagens de carinho, que nunca suspeitaram à luz da publicidade.
Faltarão cartas de amor, mas para Euclides, mais do que para qualquer outro, estas não deviam passar de dois leitores, conforme a observação justa de Henry Bordeau e ele de certo não as escreveu ...
Mas nestas cartas está todo o Euclides íntimo, no carinho com que pensava nos amigos, no cuidado com que atendia aos seus apelos, na preocupação com seus deveres e no escrúpulo em cumpri-los, nas suas angústias, nas suas mágoas, nas suas amarguras, sempre discreto e pundonoroso, no seu idealismo incurável e até no seu “pessimismo abominável”, como ele próprio dizia.
Fernando de Azevedo, na conferência “O homem Euclides da Cunha”, em homenagem a Francisco Venancio Filho, diria:
Amigo, Euclides da Cunha? Amigos de Euclides? Pois não. Ninguém o foi com mais fidelidade e mais calor; ninguém lhe levou vantagem na capacidade de atraí-los, conquistá-los e prendê-los. “Meiga e profunda afetividade”, era a de Euclides no depoimento de Afrânio Peixoto; “amigo boníssimo”, chamou-lhe Firmo Dutra; “amigo tão seguro e de trato tão suave, na sua singeleza afetuosa”, observa, de sua parte, Domício da Gama; “é agreste”, reconhecia Coelho Neto; “fruto selvagem, de aparência híspida; descascado, porém, no âmago é um favo”. É que Euclides tinha o culto da amizade, colocava acima de tudo, de suas pretensões mais caras e de suas ambições mais legítimas, a dádiva preciosa de um coração aberto. Euclides dava-se a todos com essa aceitação e tolerância que não eram qualidades suas, mas se alimentavam da admiração e do culto da inteligência como do foco interior em que tomava consciência das afinidades eletivas. Gostava, por isto, de substituir a frieza e a troca protocolar por esses contatos, essas conversações espontâneas, de viva voz ou a distância, em que nada se pudesse ocultar a outrem, essas efusões depois das quais não fosse possível duvidar nem de sua nobreza de alma nem de sua sinceridade radical.
Afonso Arinos pai, certa vez, em entrevista a Homero Sena, publicada no livro A república das letras, falou de projeto de estudar as amizades na literatura brasileira, citando Tomas Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa, Alvarenga Peixoto e Basílio da Gama, Porto Alegre e Gonçalves de Magalhães, e mais recentemente Machado e Mário de Alencar, Afonso Arinos e Eduardo Prado, Bilac e Alberto de Oliveira e, contemporaneamente, Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, Antônio Torres e Gastão Cruls, Manuel Bandeira e Ribeiro Couto, Gilberto Freire e José Lins do Rego e poderíamos acrescentar o próprio Afonso Arinos e Pedro Nava, e Guimarães Rosa e o nosso queridíssimo confrade Geraldo França de Lima. Nessa relação, Afonso Arinos pai incluía as figuras de Euclides da Cunha e Alberto Rangel. Companheiros na Escola Militar, Alberto Rangel assistira ao episódio em que Euclides da Cunha, em 1888, se rebela contra o Ministro da Guerra, Senador Tomás Coelho. Alberto Rangel descreveu como testemunha o episódio de rebeldia:
Era no pátio da Escola Militar da Praia Vermelha. Seguíamos em coluna, marchando em continência à suprema autoridade administrativa do exército: – o Senhor Ministro da Guerra. Não me lembro se o velho Pedro, o imperial valetudinário, dormitava em terra pátria ou se ainda sua filha despachava em São Cristóvão. Ao ministro acompanhava Gaspar Martins. Íamos marchando. Na correção dos uniformes e no polido das baionetas, a tropa de escolta seguia numa festa, no passo firme da ordenança. Eu ia no pelotão da cauda.
De repente, um aluno destacou-se da forma, à frente da coluna de marcha. Tentou quebrar ao joelho a carabina e atirou-a por fim aos pés do surpreso ministro. Mas adiante ao toque de alto, a coluna parou; a outro toque, fez-se em linha, a outro, debandou.
Permaneceu mais tempo na vida militar do que Euclides da Cunha e quando a deixa, escreve o livro Fora de forma, editado na Amazônia, hoje praticamente impossível de se encontrar. Félix Pacheco compara o estilo de ambos em Dois egressos da farda. Euclides prefacia o livro de Alberto Rangel Inferno Verde sobre a Amazônia, se interessando pela divulgação do livro, enviando exemplar aos amigos, solicitando-os que escrevam a propósito e comentando em carta a alegria por causa do êxito.
Quando da morte de Euclides da Cunha, Alberto Rangel se encontrava na Europa, mas volta ao Brasil em 1912 e aceita fazer conferência em curso na Biblioteca Nacional, sobre os “Sertões brasileiros”, onde comenta a figura de Euclides da Cunha: “Euclides da Cunha, homem de bem e escritor de pulso, cujo sangue honrosamente derramado ainda não esfriou na saudade do remorso.”
Em 1913, 15 de agosto, se inicia a romaria à sepultura 3.026, onde pronuncia a oração de saudade, e à noite no mesmo dia na Biblioteca Nacional inicia a série de conferências com o título “Um pouco do coração e do caráter” que o Grêmio Euclides da Cunha promoveu e que seriam mais tarde reunidas em 1919 no volume In memoriam – Por protesto e adoração. Em 1915 o Grêmio Euclides da Cunha começa a publicação da revista anual, Por Protesto e Adoração, que durante 25 anos publicou material sobre a vida e obra de Euclides da Cunha, a correspondência, matérias todas visando homenagear o grande escritor.
O Grêmio pretendia erigir, no morro da Babilônia, um busto, cuja maquete de Correa Lima hoje se encontra nesta Casa. A esse respeito, em 1927, Alberto Rangel fala de Euclides da Cunha na Babilônia:
Ao pé da Urca e Babilônia em verdade se consolidou o espírito de Euclides da Cunha, nasceram os remígios de asa possante. Os seus primeiros pensamentos bem formados de poeta desabotoaram entre as penhas lavadas de areia salgada e logo tornaram a forma original, palpitante variada das criações de uma fauna marinha.
Forçado à atividade de engenharia, Euclides estava sempre à espera de poder abandoná-la, para dedicar-se à vida literária, mas seria um profissional competente. Nesse sentido temos o depoimento de nosso confrade Roberto Simonsen:
Conheci Euclides da Cunha em 1899 (aos dez anos). Engenheiro da Diretoria de Obras Públicas de São Paulo, da qual era Superintendente meu avô materno, engenheiro Inácio Wallace da Gama Cochrane, estava ele, nessa época, comissionado para a reconstrução desta ponte, sobre o Rio Pardo. Em suas visitas à nossa capital, almoçava, freqüentemente, na residência de meu avô, que orientava meus primeiros estudos.
Nunca mais me abandonaria a indelével impressão que causaram, aos meus dez anos, sua conversação vigorosa, fecunda e original, seu indicador emoldurado pela pedra de engenharia militar, seu olhar brilhante e penetrante, e sua face de índio ou mameluco, imprimindo-lhe os acentos de uma personalidade inconfundível, completamente diversa daquelas que habitualmente visitavam a casa de meus maiores.
Em carta a Lúcio de Mendonça em 22 de março de 1903, Euclides desabafaria:
A minha engenharia rude, engenharia andante, romanesca e estéril, levando-me em constantes viagens através de dilatado distrito (de Guaratinguetá), destrói a continuidade de quaisquer esforços na atividade dispersiva que impõe. Aí está meu colega e querido amigo Bueno de Andrade, que a conhece bem sob os seus vários aspectos desde o estilo aleijado dos ofícios à alma tortuosa dos empreiteiros. Entretanto, com uma teimosia incoercível, pertinácia de quem não quer desviar-se de um rumo predileto, eu vou alinhando, através da secura dos orçamentos, novas páginas de um livro que será tardio, feito em minutos de folga, e sem a inteireza emocional que a Arte exige.
E a José Veríssimo, em 12 de junho de 1903:
Continuo na minha engenharia fatigada e errante. Felizmente me habituei a estudar nos trens de ferro, nos trolleys, e até a cavalo! É o único meio que tenho de levar por diante esta atividade dupla de chefe de operários e de homem de letras.
E o zelo profissional, na inquietante indagação a Francisco Escobar em 10 de agosto de 1902:
Agora, um grande, um sério, um reservadíssimo favor. Tão reservado que te peço não o boquejes nem mesmo junto ao ouvido da tua filhinha mais nova: Lá vai: contou-me (não preciso dizer quem foi o desalmado) que há no encontro direito, lado do Pompeu, da ponte, uma frincha descendo por todo ele até embaixo. Imagina como fiquei, e quanto cabelo branco vai-me nascendo dentro desta ansiedade... Pensei seguir logo até aí. Infelizmente, não posso agora. Por isso escrevo-te. Quero que, com a tua cautela habitual, sem que ninguém o perceba, observes aquilo, e indiques-me, num esboço qualquer, o lugar, as dimensões aproximadas da coisa, e se é visível e se ameaça aumentar, ou se é um recalque comum nestas obras. Não és engenheiro, mas, que diabo, também estas coisas não são tão transcendentes... De qualquer modo, aguardo a tua resposta contando os dias. Esta chegará aí na segunda ou terça, à tarde. Poderei ter, aqui, a resposta sexta ou sábado. Não faltes.
E quando se encontra desempregado esta página curiosa e irônica de 22 de abril de 1904:
Coelho Neto. – Tens razão. Li a tua carta e, para logo, rompendo com um propósito que me parecia inflexível, procurei o Lauro Müller e pedi um emprego. Aquele velho companheiro, com enorme surpresa minha, – tão destemperados andam os homens e os tempos! – recebeu-me admiravelmente. Não era o ministro, era o antigo companheiro de ideal, o sócio daqueles estupendos sonhos de mocidade (ó República!...) que não sei mais onde existem. Mas antepõe-se um obstáculo grave: a legião inumerável de engenheiros desempregados, que entope as escadas das secretarias. Não imaginas o que eu vi... Vê se concebes, de momento, com o melhor da sua fantasia, o quadro de uma espécie de “Encilhamento da Miséria”. Há em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes dos ministros uma espiral de Dante. Considera agora isto: eu entrei por uma delas; ninguém me conhecia; esquecera-me a preliminar de um cartão, de um empenho; de sorte que, a breve trecho, no apertão dos candidatos afoitos, capazes de pagarem com dois anos de vida cada degrau da subida, me vi frechado de olhares rancorosos... Estaquei, arfando, espetado, em pleno peito, por um cotovelo, rígido e duro, de concorrente indomável; não ouvi o trágico ranger de dentes; ouvi grunhidos. Quis voltar; impossível: não havia romper-se a falange que se unia, em baixo, inteiriça, ombros colados como os dos suíços medievais na hora da batalha. Mas naquele instante alvorou um rosto amigo e desconhecido e, logo após, sacudida por um gesto, que roçou um impertinente cavaignac vizinho, como a asa de um pássaro num capão de mato, uma pergunta: – É o Sr...? O cavaignac contemplou-me curioso, um sujeito gordo e tressuante por sua vez recuou, e na face cheia espalmou-se-lhe um sorriso; um outro, também gordo (a que mais podem aspirar estes homens? Noto que na sua maioria os candidatos são repletos de carnes) fez o milagre de afastar-se um pouco ... e num minuto, nem sei como isso foi, estava lá em cima. E lá em cima empolgou-me a vaidade, porque, em verdade, quem me levara até lá, com tanta felicidade, fora o Euclides da Cunha!
Por ocasião das comemorações do centenário de nascimento do Barão do Rio Branco em 1945, o Itamaraty nomeou uma Comissão encarregada desses festejos, da qual era secretário o discípulo e grande amigo de Francisco Venancio Filho, o hoje embaixador Roberto Assumpção. A Comissão organizou a reedição das Obras completas do Barão, e uma série de monografias sobre a vida do grande chanceler; a primeira delas, editada em 1946, Rio Branco e Euclides da Cunha, de Francisco Venancio Filho, utilizando a correspondência inédita entre os dois ilustres brasileiros. Em 1966, por ocasião do centenário do nascimento de Euclides da Cunha, o Governo do Estado do Amazonas publicou o livro Euclides da Cunha e o paraíso perdido e no prefácio o governador do Estado cometia a incorreção de dar a divulgação dessas cartas como inéditas, quando há mais de vinte anos constaram da publicação oficial do Ministério das Relações Exteriores.
Domício da Gama descreveu o episódio do encontro de Euclides com o Barão:
Segura e dedicada como foi, minha amizade com Euclides da Cunha não terá durado mais de cinco anos. E não foram as letras, foi o serviço do Brasil que nos aproximou. José Veríssimo pedira-me que obtivesse do Barão do Rio Branco para o autor dos Sertões um lugar de auxiliar numa das comissões de exploração do Purus e do Juruá, criadas por acordo entre o Brasil e o Peru em 1904, a fim de definir-se honesta e lealmente o litígio territorial entre os dois países naquela região. Acompanhei Euclides uma noite, depois do jantar, à casa do Barão, em Petrópolis. Deixei-os conversando às nove horas, o Barão sentado à mesa, entre as duas janelas do quartinho que lhe servia de escritório, dando sobre a estrada sossegada da Westfália e o Piabanha rumoroso em baixo; Euclides pousado incomodamente sobre uma cadeira pequena, respeitoso, comovido e tímido, como um estudante em hora de exame. Não é que o Barão o examinasse. O Barão conversava, contente de encontrar quem o entendesse e partilhasse o seu interesse pelos assuntos que lhe eram caros, de fronteiras, de relações internacionais e da história diplomática do Brasil, em que aquele engenheiro militar parecia bacharel senão doutor. Às dez horas, voltando com um papel, encontrei-os na mesma posição discreteando quietamente; o Barão sempre despretensioso e lhano, despreocupado de efeitos, sem veemência nem gestos, apenas uma pena tomada distraidamente e logo deixada cair sobre as rumas de papéis que lhe atulhavam a mesa, ou o cuidadoso acender do cigarro de palha, que se lhe apagava freqüentemente. Euclides parecendo cada vez mais intimidado e mal à vontade, como se o oprimisse o respeito que lhe inspirava desde o primeiro momento aquele grande homem público tão bondoso e simples mas tão pouco familiar. Às onze horas vim lembrar-lhe que a porta da casa de seu primo Urbano de Gouveia, onde devia dormir, fechava-se às dez horas, e ofereci-lhe um quarto para passar a noite na minha casinha ao pé da do Barão.
Conversamos até às duas horas, e não fomos além porque tínhamos de levantar-nos às seis da manhã. Conversamos de literatura, está claro. Euclides sabia tudo. Sabia o que eu sabia em letras e mais toda a sociologia e a economia e a política de um pensador enciclopédico. Era a realização do verdadeiro homem de letras reforçado por um sábio, que Fichte preconizara. Mas sua erudição científica não pesava, não era pedantesca: os fatos positivos eram para ele apenas como o lastro de segurança da sua imaginação ambiciosa, estuante. Foi bom que seu espírito tivesse recebido cultura matemática, a disciplina da prova. Ouvindo-o, tinha a gente a confiança de que ele não arriscaria asserções improváveis e a conversa ganhava com a impressão que dava sua perfeita honestidade mental. Honestidade e respeito são traços gentis do caráter de um pensador com expressão. Às suas qualidades tão humanas, e que nunca serão cultivadas demais no trato entre homens, Euclides juntava o poder de admirar. Admirava conscientemente, criticamente, inteligentemente, e era o seu prazer máximo acompanhar na análise das páginas, que duram, a experiência, interessante sobre todas, dessa química das idéias em presença dos fatos, que entra na criação das obras primas. Era então que era simpático, dessa simpatia juvenil, natural e simples, que atrai afetuosamente e que em tons e graus diversos só encontrei em poucos amigos brasileiros e estrangeiros.
Algumas semanas mais tarde foram publicadas as nomeações do pessoal das comissões de exploração e, em vez de auxiliar, Euclides foi escolhido para chefe da exploração do Purus. O Barão o aprovara com distinção.
É sabido como bem se desempenhou da comissão árdua e penosa, que terminou seus trabalhos antes da do Juruá e que não foi provada pelas febres da região. Euclides mesmo só veio a adoecer em Manaus. Possuí durante alguns anos um exemplar do relatório confidencial dos trabalhos da comissão, apresentado por ele ao Barão do Rio Branco, e que está no arquivo de limites no Itamarati. Por ele se vê que o escritor tumultuoso e ardente era também um técnico notável e, o que é mais, um chefe consciencioso e capaz. O Barão o reteve no Ministério como cartógrafo e auxiliar técnico do seu gabinete. Estava encaminhada e aproveitada da melhor maneira a atividade de Euclides da Cunha. Data desse tempo o seu Peru versus Bolívia, que escrevia-me ele para Lima, ao mandar-me o livro, não somente se inspirava no culto da verdade e do direito, mas era também vagamente a defesa dela contra ele. Euclides era cavalheiroso. Assentava-lhe tomar partido pela causa menos defendida, ainda que lhe sobrassem direitos. E em presença de tanto saber histórico ao serviço de uma arguta e rigorosa dialética que o habilitava para ser um mestre em trabalhos dessa natureza, a gente ainda mais lamenta o drama escuro que o destruiu em pleno vigor e abriu nos serviços nacionais um claro que ainda não foi preenchido.
A consternação expressa no telegrama para a Legação em Buenos Aires em que o Barão me anunciava a morte de Euclides significava talvez o pesar da perda do colaborador precioso, cujos trabalhos enriquecem o arquivo de limites do Itamarati, mas dizia certamente a infinita piedade que lhe inspirava a agonia de uma alma honesta e limpa afogada em vergonha e indignidade. Euclides era um amigo tão seguro e de trato tão suave, na sua singeleza afetuosa! Não tinha rancores, como se fosse superior ao ódio, e essa serenidade do sentimento purificado pelo entendimento, que não reconhece culpas e em tudo só enxerga relações entre causas e efeitos, contrastava com a veemência febril e trepidante das suas admirações.
É assim a psicologia dos santos: adorando o bem, ignorando o mal.
De regresso do Purus, iria ser a Amazônia a fonte principal de suas obras daí por diante. Colaborador de Rio Branco no Itamaraty, escreveu o notável Peru versus Bolívia, trabalho de diplomacia, de geografia histórica, de direito, de tal valor que o representante boliviano junto ao árbitro argentino fê-lo verter para o castelhano. Pesou, na decisão arbitral, a peça monumental do pensador brasileiro, que esclarecia, de vez, os tratados de 1867 entre o Brasil e a Bolívia e o de 1851 entre o Brasil e o Peru.
Ocupa-se, nos anos que passa no Ministério do Exterior, em cartografia, retificando, fazendo ele próprio mapas, num trabalho paciente e probo de verificações penosas e fatigantes. Guardam os arquivos do Itamaraty: mapa da região do Acre; esboço geográfico do Alto Juruá; e o contorno da fronteira com o Peru; a região entre o rio Acre e o Abunã ao norte e o Tehuamano e Orton, ao sul: carta do Alto Acre; Departamento do Alto Juruá; esboço da região litigiosa peru-boliviana; carta de parte da lagoa Mirim.
Nos ensaios publicados na imprensa e que dariam parte de À margem da História revela a Amazônia, como já revelara os sertões aos brasileiros. Neles segue a mesma linha de Os sertões, embora sem a unidade de uma obra de conjunto. A monografia sobre o Purus, em que apresenta a teoria do ciclo vital dos rios de Morris Davis é significativa. Mas não é só nesta parte – “A terra sem história” – do seu livro póstumo que há o geógrafo. Está ele presente na “Viação Sul-Americana”, no “Primado do Pacífico”, em “Martim Garcia” da segunda parte de Estudos vários, como o astrônomo, no último capítulo sobre “Estrelas invisíveis”.
Rio Branco traçou levantamento do perfil de seu inestimável colaborador, em duas manifestações expressivas, a primeira, o telegrama enviado, por ocasião da morte ao pai nos seguintes termos:
Atordoado pela nossa grande desgraça do dia 15, o terrível golpe que feriu seu coração de pai, feriu igualmente o meu coração de amigo e sincero admirador dos grandes dotes intelectuais e morais do seu nobilíssimo filho: sei o quanto perdi de sincero afeto com o falecimento desse bom amigo e companheiro de trabalho; sei o quanto de esperanças fundadas perdeu o Brasil.
E no mesmo ano, como orador oficial do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, se pronunciaria:
Dentre os que a morte privou da nossa companhia, conta-se Euclides da Cunha que tanto prometia enriquecer ainda a nossa literatura, vitimado no vigor da idade numa terrível tragédia, como homem de delicado pundonor que sempre foi, e cuja pureza de sentimentos e alto valor intelectual pude conhecer de perto nos breves anos de convivência, em que me coube a fortuna de o ter como companheiro de estudos, de trabalho e de esperanças patrióticas.
Na vida agitada de Euclides da Cunha muitos foram os planos esboçados e os livros planejados: a “História da Revolta” por ele aludida tantas vezes e de que restaram somente alguns esboços, algumas páginas de Contrastes e confrontos; “O Paraíso Perdido”, que seria, no seu próprio dizer, o seu segundo livro vingador, e a que tantas vezes se referiu após a viagem à Amazônia, e do qual só ficaram alguns capítulos de À margem da História, o projeto revelado em carta a Domício da Gama de livro de conjunto da formação da América, e do qual só ficaram algumas páginas do Peru versus Bolívia e capítulos de À margem da História; “Os Homens Bons”, romance sobre o Rio seiscentista, e do qual nada ficou. Tais obras nunca chegaram a ser completadas, porque faltaram as condições excepcionais que Francisco Escobar ofereceu a Euclides em São José do Rio Pardo e jamais repetidas, que lhe permitiram levar a cabo a redação dos Os sertões. Um companheiro de então, José Honório de Silos, relata que “sem a amizade de Escobar, sem o seu apoio moral e social, em São José do Rio Pardo, nunca brotaria a idéia força da mentalidade brasileira, a obra literária que é considerada a bíblia da brasilidade” e o próprio Euclides, escrevendo a Escobar comenta que, “foste o meu melhor colaborador neste ermo de São José do Rio Pardo”.
Participando das comemorações de São José do Rio Pardo, a convite de Francisco Venancio Filho, Alberto Rangel compareceu em 15 de agosto de 1942 a São José do Rio Pardo, falando sobre “O homem e a cidade”. A conferência é mais uma página da devoção ao amigo, irmão e companheiro, ressaltando a importância das comemorações euclidianas em São José do Rio Pardo. Iniciando a exposição, referir-se-ia ao trabalho do Grêmio Euclides da Cunha para dizer que “o Grêmio forjou-se nas virtudes da dedicação ativa e na prática da circunspecção e modéstia de Venancio Filho”.
Em 1943, também a convite de Francisco Venancio Filho, Afrânio Peixoto pronunciava a conferência oficial sobre “O outro Euclides”, o que sobra de Os sertões.
Começa referindo-se ao grande livro:
Não é demais, mas não é tudo. Há mesmo em Os sertões outro Euclides a ser atendido e consagrado... Euclides é o primeiro, em data, dos nossos sociólogos...
E prossegue:
Mas, além de Os sertões não há mais Euclides? Haveis de convir que sobra muito, mas que inexplicavelmente lhe somos omissos, como se não fora Euclides, e do melhor Euclides ... Propus-me hoje a vô-lo recordar ... Há um Euclides geógrafo, historiados, um ensaísta, no melhor sentido dessa expressão, finalmente um poeta ... Sim, veremos um grande poeta!
Em 1942 a direção da Revista Brasileira da Academia foi confiada a Levi Carneiro, que chama para colaboradores figuras expressivas da cultura brasileira. Vários artigos são publicados sobre Euclides da Cunha: “Euclides e a Amazônia”; “Atualidade de Euclides da Cunha”; “Os sertões”, “Os fundamentos científicos de Os sertões”, todos revelando contribuições originais.
O mais importante intitula-se “Os fundamentos científicos de Os sertões” e representava uma resposta aos comentários que se iam avolumando de que o livro não tinha sólidos fundamentos científicos e era, antes de tudo, uma obra de ficção. Começa discutindo a troca de idéias com José Veríssimo em cartas de 1902 sobre o uso de termos científicos na obra, impugnado por José Veríssimo e que Euclides replicara prontamente. Mostra como Euclides se socorreu de todas as fontes bibliográficas à sua disposição, bem como de vários amigos como Francisco Escobar, Gonzaga de Campos e Teodoro Sampaio, nunca havendo contribuição exclusiva nem dominante de Teodoro Sampaio, como faziam crer alguns comentários. Por isso, conclui: “Os sertões constituem pois obra de gênio, de intuição, mas do que de método ou de escola. É sobretudo livro de arte, informado de cultura e método científico.”
Para o exame dos fundamentos das diversas ciências em que se apoiou, Francisco Venancio Filho traz à colação a opinião de renomados especialistas consultados nos vários ramos científicos, como Glycon de Paiva na geologia; Fernando Rodrigues Silveira na botânica; Lacerda Feio na zoologia; e Leandro Ratisbona na climatologia. Embora em alguns casos apontando incorreções, os especialistas concluíram sempre que Euclides se socorrera do melhor saber científico da época, não podendo lhe ser atribuídos conhecimentos ou idéias que só vieram a ser veiculados muito mais tarde.
Em 1966, centenário do nascimento de Euclides da Cunha, várias comemorações foram realizadas, inclusive nesta Casa em sessão solene com a presença do Presidente Castelo Branco, sendo orador Afonso Arinos pai, que deve ter falado de improviso, pois seu discurso não é localizado:
Mas em conferência em São José do Rio Pardo em 1940 publicada em Homens e temas do Brasil, afirmaria:
Vida obscura, morte espetacular, eis o paradoxo que nos oferece este homem de gênio. Mas nem o sucesso da vida, que correu ignorada do grande público, nem o sucesso da morte, que foi um prato do dia de escândalo, têm ligação essencial com a verdadeira existência de Euclides, existência que dominou a obscuridade da vida e o ruído da morte e que é a sua obra. Por ela, e somente por ela, é que Euclides existe entre nós.
E referindo-se a Os sertões, comentaria:
Esse livro extraordinário tem como principal fundamento da sua grandeza não a beleza da forma, como pode julgar um julgamento superficial, mas a verdade do fundo.
Desejo também referir-me ao curso que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro promoveu nessa data, no qual falaram Olímpio de Souza Andrade, Elmano Cardim, Alberto Venancio Filho e Francisco de Assis Barbosa. É importante o trabalho deste último, “Euclides da Cunha: A marca de um drama”. Comenta, em primeiro lugar, o discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1903, melancólico, deprimido, em que dizia trazer para o Instituto uma qualidade irredutível, a qualidade de brasileiro. Mas este título “não é coisa que se recebe, se não uma posição que se conquista, e acarreta deveres tão sérios, quem a merece”.
Considerava-se como um grego antigo transviado nas ruas de Bisâncio e julgava o Instituto “um esplêndido isolamento e um admirável e consolador exílio, um degredo que lhes permite ligar a vida objetiva transitória à grande vida imortal da pátria, um exílio no tempo”.
Euclides da Cunha escreveria a Coelho Neto em 22 de novembro de 1903:
Não transcreveram o meu discurso; não poderiam arquivá-lo, tão a fundo, tão de frente, embora sob um aspecto geral, eu feri o presente abominável em que estamos. Sem vaidade – tive, por alguns minutos, em torno de mim, a simpatia tocante de alguns trêmulos velhinhos, e aqueles minutos irão consolar a minha vida inteira.
Em carta a Francisco Escobar de 27 de novembro acrescentou:
Já lestes no Jornal de 26 o meu discurso no Instituto? Discurso, não; um desabafo. Lestes a lista dos que ali estavam; era o Brasil, ao Brasil velho e bom.
– Que felicidade, meu amigo! Não te rias; tive os olhos empanados de lágrimas quando, finda a sessão aquelas mãozinhas trêmulas e mirradas se agarraram, num agradecimento mudo, à minha mão nervosa... Tu não calculas como me senti bem, ali, no mundo daquela gente, que não distribui empregos; e como avaliei bem o vigor desta minha belíssima alma sonhadora, tão desprendida das infinitas esquírolas e da poeirada de coisinhas interesseiras que deslumbram tanta gente.
Comenta Francisco de Assis Bastos:
Discurso explosivo e quase brutal de ingresso na velha casa de D. Pedro II, o ressentimento pessoal se dilui num tom pungente de uma declaração de amor à pátria, de um amor que sentia talvez não ser correspondido. Marcava passo na sua modesta carreira de engenheiro de obras públicas, acampado em pequena cidade do interior paulista, preso pelas contingências da vida material à situação medíocre de funcionário, obrigado a exercer uma atividade que não era a da sua vocação nem a do seu destino: a de viver exclusivamente para as letras, estudando e escrevendo os seus livros.
Foi, aliás, esse descompasso que marcou o drama íntimo do escritor-engenheiro, que jamais acertaria os ponteiros entre aquilo que desejava mesmo realizar e o que era forçado a fazer para comer o pão amargo e quase sempre escasso de todos os dias.
Para Francisco Assis Barbosa, “a marca de um drama bem mais terrível que a tragédia passional que pôs fim à sua vida, é o drama de quem assistia, impotente a sua pátria transformar-se pouco a pouco num montão de ruínas. O drama do escritor que via com a lucidez dos dominados ‘o quadro desanimador de nossa existência política’ em meio à ‘indiferença muçulmana quase geral’. O drama, em suma, de um brasileiro título que não se recebe, mas que se conquista unicamente voltado para o seu país, ainda sem rumo, quando não adormecido. Este, sim, foi a marca do drama de Euclides da Cunha. Marca que é, em última análise, a do drama nacional de cada um de nós. Daí a atualidade de Euclides da Cunha e da sua mensagem ainda não encerrada, pois ele foi, na verdade, um criador de história”.
O sucesso de Os sertões abriria a porta da Academia Brasileira de Letras, mas a campanha lhe provocaria dúvidas e inquietações. Explicava a José Veríssimo em 12 de junho de 1903:
A notícia que hoje li, ao voltar de viagem, num Correio da Manhã, sobre vários candidatos à Academia, é antes de tudo uma indiscrição de jornalista. Mas tem o valor de libertar-me da vacilação que me tolhia no concorrer aquele lugar. Não posso mais recuar. Sem temer o insucesso inevitável – porque o simples fato de ser admitido à concorrência basta a enobrecer-me consideravelmente.
Escrevia ao pai:
Infelizmente me obrigaram a ser candidato à Academia de Letras com a infelicidade de ter, entre outros antagonistas, o velho autor dos “Mineiros da Desgraça”, Quintino Bocaiúva, que me derrotará pela certa – porque leva para a ação a própria influência política, e levantou-lhe a candidatura o primus inter pares da nossa gente, o Barão do Rio Branco. Os poucos votos que eu terei, porém, valerão pela qualidade.
Em 4 de julho de 1903 escrevia a José Veríssimo:
Vou agora escrever aos acadêmicos. Peço-lhe porém que se recorde de minha situação de engenheiro errante, preso pelos empreiteiros e absorvidos em orçamentos, quase sem tempo de cuidar dos meus próprios interesses. Os outros candidatos, mais folgados e num outro meio, tem elementos práticos de sucesso que eu não posso ter. Aqui em São Paulo ninguém acredita que eles triunfem, mas estou convencido do contrário se me desamparem os bons amigos com que conto.
E em carta a Machado de Assis em 1o de julho:
Recordando-me das palavras animadoras que me dispensou e que foram para mim uma grande honra e um grande estímulo – venho solicitar o seu voto em prol da minha candidatura.
E novamente para Machado de Assis em 26 de julho, respondendo à carta de apoio: “O sufrágio que vai me dar será para mim uma consagração.”
E em carta a Coelho Neto em 1o de setembro:
De fato, sendo a eleição no dia 15, temo que alguns imortais não votem, distraídos pelos acontecimentos, e como não me ficaria lembrar-lhes, peço-te que escrevas a respeito aos que te forem mais íntimos. – E ainda temeroso: Estou hoje abraços com esta profissão, e a minha candidatura ainda pode sobrar.
Euclides da Cunha foi eleito em 21 de setembro de 1903, tendo 24 votos, sendo quatro votos dados à Domingos Olímpio, dois a Silvino Amaral e um a Xavier Marques.
É curioso verificar como entre os que não se inclinaram pelo seu nome, se tornariam seus grandes amigos, como Domício da Gama, que certamente preferiu o colega de carreira, e que só veio a se aproximar de Euclides, quando o levou ao encontro com o Barão do Rio Branco.
Eleito, escreve jubiloso ao pai no dia seguinte:
Apresso-me em comunicar-lhe que fui eleito para a Academia Brasileira de Letras – para a cadeira desse grande patrício Castro Alves. Assim, o desvio que abri nesta minha engenharia obscura alongou-se mais do que eu julgava. É ao menos um consolo nestes tempos de filhotismo absoluto, verdadeira idade de ouro dos medíocres. Tive eleitores como Rio Branco e Machado de Assis. Mas não tenho vaidades: tudo isso me revela a boa linha reta que o Sr. me ensinou desde pequeno. Hei de continuar nela.
A posse não foi imediata, pois logo em seguida seguia para a Amazônia, no cumprimento da missão conferida pelo Barão do Rio Branco. Consta que Afonso Arinos foi designado para recebê-lo, mas afinal a incumbência coube a Sílvio Romero, em cerimônia em 18 de setembro de 1906 presidida pelo Presidente Afonso Pena. O discurso de Sílvio Romero foi polêmico, atacando fortemente as instituições, para constrangimento do Presidente da República Afonso Pena, presente à sessão. No discurso de posse, Euclides se refere ao patrono Castro Alves, em termos que não foram considerados muito elogiosos, posteriormente retificados em conferência “Castro Alves e seu tempo” pronunciada em 1907 em São Paulo, a convite do Centro Acadêmico XI de agosto da Faculdade de Direito de São Paulo, mas examina a obra do poeta no quadro de sua época. Disserta em seguida em profundidade sobre a vida e a obra de seu antecessor Valentim Magalhães, mas ao final evitando “digressão acidentalíssima” descreve que “apresentamos um quadro de uma desordem intelectual que depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias decoradas, nos impõe na ordem política, a mais funesta dispersão de ideais, levando-nos aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica”.
A sua presença na Academia, após a volta da Amazônia foi intensa, não deixou de se interessar pelos trabalhos, sendo assíduos nas sessões e participando das eleições. Da correspondência verifica-se que se inclina por Souza Bandeira, Heráclito Graça e Jaceguai, tendo envidado esforços pela apresentação de Assis Brasil. Nas eleições para a Presidência a unanimidade de Machado de Assis era apenas quebrada com o voto deste para Euclides.
Escreve a Domício em 15 de agosto de 1907 sobre a reforma ortográfica propugnada por Medeiros e Albuquerque:
Não sei se já aí chegaram notícias da Reforma Ortográfica... (Aí deixo o meu espanto e a minha intransigência etimológica!). Realmente, depois de tantos anos de alarmante silêncio, a Academia fez uma coisa assombrosa: trabalhou! Trabalhou deveras durante uma três dúzias de quintas-feiras agitadas e ao cabo expeliu a sua obra estranhamente mutilada, e penso que abortícia. Há ali coisas inviáveis: a exclusão sistemática do y, tão expressivo na sua forma de âncora a ligar-nos com a civilização antiga e a eliminação completa do k, do hierático k (kapa como dizemos cabalisticamente na Álgebra)... Como poderei um rude engenheiro, entender o quilômetro, sem o k, o empertigado k, com as suas duas pernas de infatigável caminhante, a dominar distâncias? Mas decretou a enormidade; e terei; d’ora avante, de submeter-me aos ditames dos mestres. A importância da Academia cresceu. As suas resoluções estenderam-se ao país inteiro – da rua do Ouvidor à Amazônia, da porta do Garnier ao último seringal do Acre.
Eleito primeiro-secretário em 1908, ascende interinamente à Secretaria Geral e é o presidente da sessão que elege Rui Barbosa sucessor de Machado de Assis. Cabe comentário de que as sessões escasseavam no período, pois falecido Machado de Assis em 28 de agosto de 1908 só em 20 de dezembro foi realizada a eleição.
No dia 10 de agosto de 1909, Euclides visita Coelho Neto e convida-o para um passeio na floresta na companhia do cientista Loefgren. Coelho Neto não pode aceitar o convite e na manhã do dia 15 recebe um telegrama lacônico da estação da Piedade “Euclides gravemente ferido, traga Afrânio”. Imaginou ser um acidente do passeio projetado e não encontrando Afrânio, vai a Piedade em companhia de Martins Fontes.
Coube a Afrânio fazer a autópsia e o corpo foi velado no Silogeu Brasileiro, então sede da Academia.
A comoção foi enorme diante do trágico fato e me valho do depoimento de Artur Guimarães sobre Sílvio Romero, homem considerado áspero e distante:
Fomos ao Silogeu, Sílvio cabisbaixo, concentrado, agoniado; eu fugindo de tocar na tragédia, distraindo-o o mais possível, até que, enfrentando o corpo, o Mestre levantou o lenço e osculou demoradamente a fronte pálida do grande morto.
Rolaram-lhe as lágrimas abundantes, sacudindo-o todo, e eu tive que retirá-lo quase violentamente, para evitar que caísse com uma síncope.
Choravam, ali, o amigo e o brasileiro, encarnando a Pátria, na pessoa de Sílvio.
Na sessão seguinte à morte, apenas referências sumárias às manifestações recebidas pela Academia.
A Academia compra o jazigo onde estava enterrado juntamente com Euclides da Cunha Filho, até serem traslados os restos mortais para São José do Rio Pardo no caminho detendo-se na Academia. Foi cerimônia tocante na Academia, em que falaram os acadêmicos Pedro Calmon e Josué Montello. O cortejo seguiu até a porta do Jornal do Commercio, antes de demandar do Aeroporto Santos Dumont, para homenagear o jornal que defendera o ato de rebeldia em 1888 e do qual se tornara colaborador, a convite de José Carlos Rodrigues.
A esse respeito convém mencionar episódio tocante e pouco conhecido, relatado por Cláudio Ganns: estava ele jovem tomando banho na Praia do Flamengo – quando ainda se tomava banho nessa praia quando se encontrou com um jovem que veio a saber ser o filho mais velho de Euclides e que fora acolhido por José Carlos Rodrigues em sua residência após a morte do pai.
Com o falecimento do grande euclidianista em 12 de agosto de 1946, a caminho de São José do Rio Pardo para participar da Semana Euclidianista, seis dias depois Edgar Sussekind de Mendonça escreve ao presidente do Grêmio de São José do Rio Pardo, afirmando que, em absoluta comunhão com o morto, realiza o desejo de doar aos euclidianos de São José do Rio Pardo as relíquias do Mestre que estavam em sua guarda, por ser aquela cidade o lugar mais adequado para perpetuar a memória e enaltecer a glória do nosso Patrono.
Aqui, portanto, termina o relato do tema dessa conferência. Evidentemente os estudos euclidianos prosseguiram com os livros, entre outros, de Sílvio Rabelo e Humberto Peregrino que muito se beneficiaram do material do Grêmio, e os de Olímpio de Souza Andrade, Walnice Galvão e Roberto Ventura.
A análise da vida e da obra de Euclides da Cunha vista através das atividades do Grêmio Euclides só oferece uma visão tópica de alguns episódios mas permite visualizar a grande figura do homem e do escritor. Não me escuso dessa abordagem pois sei que uma visão completa e abrangente será exposta na sessão de encerramento pelo acadêmico Celso Furtado.
Escrevendo a Machado de Assis em 22 de setembro de 1903, um dia após a eleição, diria Euclides: “Não sei de nenhum outro posto mais elevado neste país.”
A Academia até hoje faz jus a esse conceito ao reverenciar os grandes vultos que por ela passaram, como neste instante homenageando a figura de Euclides da Cunha.
* Conferência realizada na Academia Brasileira de Letras no dia 19 de junho de 2001, abrindo o Ciclo comemorativo do centenário da publicação de Os sertões.
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