sexta-feira, 22 de junho de 2012

RUY BARBOSA: LIÇÕES DE COISAS

1 DIVULGAÇÃO DO MÉTODO INTUITIVO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS REPUBLICANAS: DISCIPLINA ESCOLAR OU MÉTODO DE ENSINO? Fernanda Mendes Resende Mestranda na Faculdade de Educação da UFMG1 Professora na Faculdade de Educação da UEMG Professora na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Congonhas (UNIPAC) As idéias do método de ensino intuitivo começaram a ser divulgadas no Brasil a partir da década de 1870. Um dos precursores do método foi o Conselheiro do Império Rui Barbosa, que traduziu para o português o manual “Lições de Coisas”, de Norman Allisson Calkins, em 1881, e foi publicado em 1886. Este manual instrumentalizava a pais, mestres e alunos as concepções do método intuitivo. Tentamos, com o estudo da divulgação e apropriação do método intuitivo em Minas Gerais, compreender o processo pelo qual teorizações sobre o conhecimento em geral são convertidas em prescrições metodológicas para ensinar indivíduos específicos, examinando, portanto, as relações entre método de conhecimento e método de ensino. A superioridade do método intuitivo consistia na colocação dos fatos e objetos para serem observados pelos alunos, a partir do que o conhecimento iria emergir no entendimento da criança com os dados fornecidos pelo próprio objeto. Intuição, segundo os pensadores do método, é a capacidade de ver, de observar. O grande argumento estava na defesa do papel ativo do aluno na busca da compreensão dos fatos e conhecimentos. Isso não significava que o professor não desempenhasse um papel importante em sala de aula, e nem que não fosse mais necessária a escola; pelo contrário. O que se tornava mais importante, porém, é que o ensino deveria ser algo concreto, nada de abstrações que tornassem a compreensão do ensino difícil. As coisas que eram aprendidas sem serem vistas, intuídas, passaram a ser consideradas um peso para a criança2. A introdução do método intuitivo e das lições de coisas no Brasil como estratégia para a renovação das práticas pedagógicas pode ser detectada na legislação educacional, no debate e na 1 Este texto faz parte da pesquisa de mestrado, em andamento, intitulada “O domínio das coisas: o método intuitivo em Minas Gerais nas primeiras décadas republicanas”, realizada na Faculdade de Educação da UFMG. 2 Rui Barbosa, “Pareceres”, páginas 209 e 210. 2 circulação de idéias entre os profissionais da educação (educadores, professores, diretores e funcionários), na tradução e importação dos manuais de lições de coisas, e na documentação específica da educação, encontrada, basicamente, no Arquivo Público Mineiro. Entre estes documentos, são os relatórios dos(as) diretores(as) dos Grupos Escolares, relatórios dos(as) professores(as), de funcionários internos da Secretaria do Interior3 e, principalmente, em maior número, relatórios dos inspetores ambulantes. Todas estas fontes permitem dar visibilidade às questões candentes da história da educação no período estudado. Nos Pareceres da Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da Instrução Pública, Rui Barbosa afirma que a reforma escolar se resumiria em duas: reforma dos métodos e reforma do mestre, e que toda a dificuldade para que isso se concretizasse era a rotina pedagógica. Segundo Barbosa, havia a necessidade de se criar um método porque o que existia com este nome era apenas o método de inabilitar para aprender4. Dizia: Estudai os processos da classe de primeiras letras entre nós, e achareis em espírito e ação o mesmo regime educativo, contra o qual, há mais de três séculos, se revolta a inteligência humana: o ensino vão, abstrato, morto, de palavras, palavras e só palavras.5 Afirma, defendendo o estudo do Método Intuitivo, em detrimento dos outros: Esses métodos empectivos e funestissimos incorrem hoje na mais geral condenação: e a experiência dos paises modelos indigita as lições de coisas, o ensino pelo aspecto, pela realidade, pela intuição, pelo exercício reflexivo dos sentidos, pelo cultivo complexo das faculdades de observação, como o destinado a suceder triunfantemente aos processos verbalistas ao absurdo formalismo da escola antiga.6 Cita Lutero, Bacon, Ratke e Comenius, afirmando que estes pensadores valorizavam o ensino pela intuição, através dos sentidos, colocando as coisas em presença do espírito. No início da década de 80 do século XIX, encontramos uma discussão acerca dos métodos que foge da questão de organização da sala de aula e do ensino, passando-se a discutir o método como método de ensino-aprendizagem, ampliando a noção de organização escolar. O método divulgado a partir daquele momento é o Método Intuitivo, amplamente defendido por Rui Barbosa nos Pareceres. Barbosa assim se remete aos outros métodos: 3 As questões da educação ficavam a cargo da Secretaria do Interior, até ser criada, em 1930, a Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. 4 Barbosa, 1882, p. 33. 5 Idem, p. 199. 6 P. 09. 3 O mestre e o compêndio afirmam, o aluno repete com a fidelidade do autômato; e o que hoje aprendeu, sem lhe deixar mossa7 mais que na memória, amanhã dessaberá, sem vestígios, na inteligência, ou no caráter, da mínima impressão educativa.8 Barbosa afirma ainda que sem o mestre, o método é apenas uma concepção ideal. O mestre é o método animado, o método em ação, o método vivo. O inspetor Estevam de Oliveira, em relatório apresentado ao governo mineiro em agosto de 1902, que sugeria uma reforma no ensino público primário e normal de Minas Gerais, referenda estas afirmações de Rui Barbosa, afirmando que a boa formação do professor é tão, ou mais importante que a qualidade do método de ensino. Oliveira cita o axioma: tendo por tecto a copa de uma arvore, e por livro didactico suas proprias folhas, mais faz o mestre conhecedor do seu mister, do que a incompetencia, cercada do mais luxuoso material escolar.9 As lições de coisas, como já citamos, eram a forma como deveria ser instrumentalizado nas escolas o método intuitivo. Através da exposição das coisas, dos objetos, o ensino tornaria-se concreto, objetivo. Observa-se, porém, a transformação do método, da forma, em disciplina, em matéria dos programas. Este fato torna-se perceptível, entre outras, através das fontes encontradas, como o relatório do inspetor Domiciano Ruiz Vieira dizia, ao visitar a escola mista urbana de Sabará, em abril de 1899: Ouvi os alumnos presentes: os mais adeantados apresentavam algum aproveitamento em grammatica e arithmetica; principiavam a dar noções de geographia e historia patria, licções de cousas, instrucção moral e civica; os mais davam leitura, contabilidade e escripta.10 Rui Barbosa, defendendo o método intuitivo, diz que as lições de coisas foram introduzidas como um capítulo à parte do programa, o que poderia torná-la inútil. Barbosa reclama: A lição de coisas não é um assunto especial no plano de estudos: é um método de estudo; não se circunscreve a uma seção do programa: abrange o programa inteiro; não ocupa, na classe, um lugar separado, como a leitura, a geografia, o cálculo, ou as ciências naturais: é o 7 Mossa: 1. Vestígio de pancada ou de pressão. 2. Impressão moral; abalo. In: FERREIRA, 1993. 8 Barbosa, Preâmbulo do tradutor, pag. 08. In: CALKINS, Norman Allisson. Primeiras Lições de Coisas. Manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Vertido da 40a edição e adaptado às condições do nosso idioma e paizes que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1950. Vol XIII. Tomo I. 9 Oliveira, 1902, p. 48. 4 processo geral, a que se devem subordinar todas as disciplinas professadas na instrução elementar. No pensamento do substitutivo11, pois, a lição de coisas não se inscreve no programa; porque constitui o espírito dele; não tem lugar exclusivo no horário: preceitua-se para o ensino de todas as matérias, como o método comum, adaptável e necessário a todas.12 Porém, o próprio inspetor Estevam de Oliveira, no já citado texto de 1902, indigna-se com o ensino de lições de coisas no Brasil, que não estava sendo ministrado como deveria. Depois de exemplificar o que seria uma aula de lições de coisas considerada “ideal”, ministrada pela Mme. Pape Carpentier na Exposição Universal de 1867, em Paris, sobre os benefícios do pão, o inspetor afirma: Cumpre não se tomar o valor da licção isoladamente. O ensino de cousas concretas há de ser logico, racional, coordenado e proporcionado, deduzido de programmas feitos por competentes; jamais, porém, deixado á discreção de professores infamiliariazados com este preciosissimo elemento educativo da intelligencia infantil.13 É interessante observar que no artigo 4o do Decreto 7.247 (19/04/1879), conhecido como Decreto Leôncio de Carvalho, que reformava o ensino em todo o território nacional, encontra-se o seguinte texto: Art. 4º. O ensino nas escolas primarias do 1o gráo do municipio da Côrte constará das seguintes disciplinas: Instrucção moral; Instrucção religiosa; Leitura; Escripta; Noções de Cousas14; Noções essenciaes de grammatica; Principios elementares de arithmetica; Systema legal de pesos e medidas; Noções de historia e geographia do Brazil; Elementos de desenho linear; Rudimentos de musica, com exercicio de solfejo e canto; Gymnastica; Costura simples (para as meninas). O próprio Rui Barbosa utilizou este texto do Decreto Leôncio de Carvalho para justificar a tradução que fez do manual Lições de Coisas, do americano Norman Allisson Calkins. O autor assim o faz através da seguinte passagem: Tenho por mais que cabalmente justificada, portanto, a idéia que de trasladá-lo, e acomodá-lo ao português, me sugeriu a disposição do art. 4o do dec. n. 7.247, de 19 de abril de 10 SI 3958, APM, 1899. 11 Aqui Rui Barbosa está se referindo ao seu próprio texto, o substitutivo da reforma da instrução (o Decreto 7.247, conhecido como Decreto Leôncio de Carvalho). 12 Barbosa, 1882, p. 214-215. 13 Oliveira, 1902, p. 51. 14 Grifos nossos. 5 1879, imitada pelas reformas do ensino em várias províncias, mandando admitir no programa das escolas as lições de coisas.15 Ou seja, o ensino de lições de coisas já estava previsto em lei, no Brasil, 23 anos antes das queixas do inspetor Oliveira. A dificuldade maior, talvez, estava no mau uso do método nas escolas primárias, como podemos observar pelo relatório do inspetor Domiciano Ruiz Vieira, em 1899, quando visitou a cadeira distrital do sexo feminino de Venda Nova: Regida pela dedicadissima, zelozissima professora veterana, effectiva, normalista de soffrivel habilitação, D. Rita Henrique de Castilho, solteira. Tem para mim o defeito de fazer as suas alumnas decorarem ipsis litteris paginas e capitulos inteiros dos livrinhos escolares que ella professora tambem sabe de memoria, repetindo-as como um phonographo! Encontrei a escola organizada. Examinei as alumnas presentes; as mais addeantadas estão decorando grammatica, geographia (rudimentos) historia do brasil (de cór sem entenderem muitas vezes a significação das palavras); decoram Arithmetica, decóram licções de cousas, decóraram o livrinho de educação civica; as mais atrazadas estão lendo escrevendo e contando.16 O método intuitivo estava sendo confundido, assim, com uma disciplina escolar. A inovação proposta por ele não se diluía em todas as matérias do programa das escolas, mas colocava-se como uma matéria à parte, enquanto as outras disciplinas estavam sendo ministradas da mesma forma que vinham sendo feitas há tempos, ou seja, de maneira abstrata, considerando o aluno uma “tabula rasa”, onde se pudessem inscrever novos conhecimentos. Este fato é confuso inclusive entre os próprios pensadores da educação brasileiros. O inspetor Oliveira reclama que a legislação paulistana não prescreve taxativamente “licções de cousas” entre o numero das disciplinas obrigatorias nas escolas preliminares17. Entretanto, na mesma página, afirma: O ensino de cousas deve ser simultaneo com o de primeira aprendizagem de leitura e escripta, a começar pelas noções mais simples, como a forma dos corpos, até terminar nas mais complexas. (...) De que serve estatuir o nosso regulamento que se ensinem cousas em nossas escolas, si não está regimentado similhante ensino, si as escolas continuam desprovidas de material didatico, si o professorado, sem remuneração condigna do elevado sacerdocio, alem de ignorante quasi todo, permanece á testa das escolas á revelia de qualquer fiscalização? 15 Rui Barbosa, Preâmbulo do tradutor, pag.08; In: Calkins, 1886. 16 SI 3958, APM, 1899. Grifos do inspetor. 17 Oliveira, 1902, p. 53. 6 O que observamos, comparando as fontes documentais às quais tivemos acesso, é que a verdadeira aplicação do método de ensino intuitivo tornava-se quase impossível pela falta de materiais que facilitassem este ensino, além da falta de preparo dos(as) professores(as) para tal. O mais interessante de ser observado, porém, é que, em meados da década de 1920, começou-se a discutir os princípios da Escola Nova, movimento considerado marco inaugural da educação no Brasil, que trazia praticamente os mesmos princípios do método intuitivo, sem, entretanto, quase nunca citá-lo. Veiga (2000) mostra que os precursores da Escola Nova apontavam para a inauguração de uma nova era com este movimento no Brasil, que, porém, desqualificava todas as conquistas da educação nas quase quatro décadas republicanas anteriores. Bibliografia BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Ed. fac-similar comemorativa do 1o centenário dos pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882. Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa; Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981. Tomos I a IV. CALKINS, Norman Allisson. Primeiras Lições de Coisas. Manual de ensino elementar para uso de paes e professores. Vertido da 40ª edição e adaptado às condições do nosso idioma e paizes que o falam pelo Conselheiro Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1950. Vol XIII. Tomo I. MINAS GERAIS. Ofícios e rascunhos de ofícios da Secretaria do Interior. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1896 a 1913. OLIVEIRA, Estevam de. Reforma de ensino publico primario e normal em Minas. Relatorio apresentado ao sr. Dr. Secretario do Interior do Estado de Minas Gerais, em 3 de agosto de 1902. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1902. VEIGA, Cynthia Greive. Escola Nova: a invenção de tempos, espaços e sujeitos. In: FARIA FILHO; PEIXOTO (orgs.). Lições de Minas: 70 anos da Secretaria de Educação. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, 2000. Pag. 48-65. COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

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