sexta-feira, 22 de junho de 2012

RUY BARBOSA: REFORMA DO ENSINO SECUNDÁRIO E SUPERIOR

1 história da Educação Educação Brasileira no Império1 Tirsa Regazzini Peres2 Resumo: O texto inicia-se com a análise e discussão dos debates havidos sobre educação, por meio dos projetos apresentados por ocasião da instalação da Assembleia Constituinte e Legislativa, instalada logo após o rompimento dos laços políticos com Portugal. Nesse sentido, a autora percorre o seguinte itinerário: Projeto Constitucional de 1823; Liberdade de ensino; Constituição de 1824; Educação na legislatura 1826-1829; Lei de outubro de 1827; Ensino mútuo e seus resultados no Brasil; Quadro Escolar 1822-1834; O Ato Adicional de 1834; Surgimento de Liceus e Colégios; Colégio Pedro II; A função preparatória do Ensino Secundário; Reforma Couto Ferraz (1854); Escolas Normais e Ensino Profissional; Estatísticas educacionais: a distância entre a elite e o povo; O caminho da desoficialização do ensino; Reformas Leôncio de Carvalho (1878 e 1879); Pareceres de Rui Barbosa e encerra a exposição com uma breve discussão sobre as ideias pedagógicas. Palavra-Chave: Educação durante a monarquia brasileira. Ato Adicional de 1834. Ideias Pedagógicas. Política Educação durante o Império (1822-1889). Após a Independência (1822), com o advento da monarquia constitucional e sob a influência das ideias liberais há muito infiltradas no Brasil, a educação, anteriormente concebida como um dever do súdito, passou a ser compreendida como um direito do cidadão e um dever do Estado. Desde então, Tornava-se necessário dotar o país com um sistema escolar de ensino que correspondesse satisfatoriamente às exigências da nova ordem política, habilitando o povo para o exercício do voto, para o cumprimento dos mandatos eleitorais, enfim, para assumir plenamente as responsabilidades que o novo regime lhe atribuía. Esta aspiração liberal, embora não consignada explicitamente na letra da lei, conquistou os espíritos esclarecidos e converteu-se na motivação principal dos grandes projetos de reforma do ensino no decorrer do Império (CARVALHO, 1972, p. 2). Por suas características liberais, a educação brasileira no Império se insere no quadro mais amplo da História da Educação Pública como educação nacional. Conforme periodização estabelecida por Luzuriaga, a educação pública nacional originou-se no final do século XVIII, com a Revolução Francesa (1789), efetivando-se no século XIX. Seu princípio fundamental é a educação como “[...] um direito do homem e do cidadão” (LUZURIAGA, 1959, p. 40). 2. Doutora em Educação. Professora Aposentada FCL – UNESP de Araraquara. 1. Este texto foi originariamente publicado em PALMA FILHO, J. C. Pedagogia Cidadã – Cadernos de Formação – História da Educação – 3. ed. São Paulo: PROGRAD/UNESP/Santa Clara Editora, 2005, p. 29-47. 2 história da Educação Caracterizando-se como educação nacional, a educação no Império, por suas peculiaridades, integra o segundo período da História da Educação Brasileira, que se inicia em 1759 e que finda com a República em 1889. Embora permaneçam unidos Igreja e Estado, nesse vasto período se desenvolve “[...] um processo de secularização do ensino, assumindo o Estado a responsabilidade de cuidar da Instrução Pública” (CARVALHO, 1972, p. 2). Projetos e Debates na Assembleia Constituinte e Legislativa Antes de 1824, data em que se inaugurou o regime constitucional no Brasil, a Assembleia Constituinte e Legislativa, reunida em 1823, cuidou da instrução pública. Na Fala do Trono, por ocasião da abertura da Assembleia, em três de maio, o Imperador D. Pedro I declarou: “Tenho promovido os estudos públicos quanto é possível, porém, necessita-se para isto de uma legislação particular”. Concluindo, fez um apelo à Assembleia: “Todas estas coisas [do ensino] devem merecer-vos suma consideração” (MOACYR, 1936, p. 31). Encarregada da elaboração dessa “legislação particular”, a Comissão de Instrução Pública da Assembleia apresentou dois projetos de lei: Tratado de Educação para Mocidade Brasileira e Criação de Universidades. Muito se discutiu sobre o número de Universidades, se uma, duas ou três, e também, sobre a respectiva localização. Finalmente aprovado, o projeto determinava a criação de duas Universidades, uma na cidade de São Paulo e outra na cidade de Olinda; de imediato, porém, haveria apenas dois cursos jurídicos. Nos debates a respeito da educação popular, houve denúncias sobre o atraso em que esta se encontrava, quer pela falta de mestres de primeiras letras e de Latim, quer pelos ordenados minguados que recebiam. Segundo convicção geral e em caráter de urgência, reivindicava-se a instrução popular em nome dos princípios liberais e democráticos que, associados ao movimento da independência, fundamentavam o novo regime então proclamado. Retomava-se, em verdade, a ideia de José Bonifácio, apresentada às Cortes Portuguesas, em 1821, sobre a inviabilidade de governo constitucional sem a instrução do povo (LEMBRANÇAS E APONTAMENTOS ...1821). Conforme projeto em discussão, mas não aprovado, seria condecorado o cidadão que melhor apresentasse um trabalho de educação física, moral e intelectual para a mocidade brasileira (MOACYR, 1936). A Comissão de Instrução Pública aprovou, sem resultado, a publicação da Memória de Martim Francisco Ribeiro D’Andrada Machado, acerca “[...] da necessidade de instrução geral, e mais conforme com os deveres do homem em sociedade” (MOACYR, 1936, p. 118-147). 3 história da Educação Educação como dever do Estado e graduação do processo educativo eram as ideias principais desse documento. Nele, a instrução pública, dirigida e fiscalizada por um Diretor de Estudos, apresentava-se organizada em três graus sucessivos, acessíveis a todos os cidadãos na medida de suas capacidades naturais. Para os graus iniciais, havia orientações sobre estudos, métodos pedagógicos, compêndios e mestres. Compreendendo um curso de três anos, dos 9 aos 12 anos de idade, o primeiro grau, de instrução comum, deveria ser amplamente difundido. Inspirada em Condorcet (1791), teórico da pedagogia revolucionária francesa, a Memória de Martim Francisco, adaptada ao Brasil, já havia sido apresentada à administração joanina, a propósito da reforma dos estudos da Capitania de São Paulo, certamente com as devidas concessões ao regime absolutista (RIBEIRO, 1943). O projeto de Stockler era dessa mesma época [1812], com a proposta de escolas de quatro graus articulados, também baseado em Condorcet (SILVA, 1977). No âmbito da Comissão de Instrução Pública (1823), não teve êxito a ideia de um sistema nacional de educação. A Memória de Martim Francisco se perdeu e, conforme projetos apresentados e discutidos, o ensino superior e a educação popular foram tratados como estruturas paralelas, refletindo preocupações e interesses distintos: de um lado, a formação de elite; de outro, a educação popular. Por sua vez, a Comissão Constituinte, no tratamento da educação como matéria constitucional, acatou a ideia de um sistema de ensino para o Brasil, já defendida por José Bonifácio, conforme projeto encaminhado às Cortes Portuguesas em 1821. Propunha-se, então, em âmbito nacional, uma organização sistemática de educação, desde as escolas de primeiras letras às universidades (LEMBRANÇAS E APONTAMENTOS ... 1821). Projeto Constitucional de 1823 Assim, a primeiro de setembro de 1823, a Comissão Constituinte apresentou à Assembleia o projeto de Constituição que, prevendo a difusão da instrução pública de todos os níveis, no Art. 250 dispunha: “Haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásio em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais”. Baseado no dispositivo análogo da Constituição Francesa de 1791, esse texto incorporava a ideia de uma organização sistemática da educação, “[...] no seu duplo aspecto de graduação das escolas e de sua distribuição racional por todo o território nacional” (SILVA, 1969, p. 192). O Art. 251 do projeto constitucional referia-se à responsabilidade do governo em instituir leis e decretos sobre “[...] o número de estabelecimentos úteis e sua constituição”. O Art. 252 instituía, de modo genérico, a liberdade de ensino, consignada nestes termos: “É livre a cada cidadão abrir aulas para o ensino público, contanto que responda pelos abusos”. 4 história da Educação De acordo com o projeto constitucional de 1823, para os brancos ou supostamente brancos haveria educação escolar formal, conforme o disposto no Art. 250. Para os índios, haveria catequese e civilização e, para os negros, emancipados lentamente, haveria educação religiosa e industrial, nos termos do Art. 254. De sentido amplamente social, esse último artigo procedia diretamente das Instruções dadas, em 1821, aos deputados paulistas, para serem seguidas junto às Cortes de Lisboa. Quando tivessem de tratar de código civil e criminal, deveriam atender “[...] à diversidade de circunstâncias do clima e estado da Povoação, composta no Brasil de classes de diversas cores, e pessoas umas livres e outras escravas” (LEMBRANÇAS E APONTAMENTOS ... 1821, p. 99). Liberdade de Ensino Dissolvida a Constituinte pelo golpe de Estado de 12 de novembro de 1823, o projeto de Constituição foi anulado, perdendo-se igualmente importantes resoluções sobre instrução pública. Todavia, além da aprovação do projeto sobre duas universidades, projeto não sancionado, dos trabalhos da Assembleia Constituinte e Legislativa restou somente a Lei de 20 de outubro de 1823. Esta declarava em vigor, entre outros atos das Cortes Portuguesas, o Decreto de 30 de junho de 1821, permitindo “[...] a qualquer cidadão o ensino, e a abertura de escolas de primeiras letras, independente de exame ou licença”. A colaboração da iniciativa privada, solicitada de maneira hábil, tivera como justificativa, além da falta de recursos públicos, a necessidade de “[...] facilitar por todos os meios a instrução da mocidade no indispensável estudo das primeiras letras”. Tivera ainda a intenção de “assegurar a liberdade que todo o Cidadão tem de fazer o devido uso de seus talentos”, sem prejuízos públicos. C onstituição de 1824 Ao dissolver a Constituinte, D. Pedro I prometera uma Constituição “duplicadamente mais liberal”. O regime constitucional efetivado na Carta de 1824 representou, inegavelmente, uma conquista. Todavia, ficou muito aquém das aspirações liberais e democráticas da elite culta. O poder moderador confiado ao Soberano e a religião oficial “[...] não se compatibilizavam com o ideal de igualdade de todos os cidadãos perante a lei” (HAIDAR, 1972b , p.4). Ainda que não claramente expressa na letra da Constituição, a ideia da educação como um direito do cidadão e como um dever do Estado saiu vitoriosa. Referente aos direitos e garantias civis, o Art. 179 postulava que a instrução primária fosse gratuita para todos os 5 história da Educação cidadãos (item 32) e que em colégios e universidades se ensinassem os elementos das ciências, belas-letras e artes (item 33). Nesse último dispositivo, a ideia de sistema nacional de educação aparece de modo bem vago. A liberdade de ensino ou permissão para abrir escolas ficou implícita no item 24, relativo à liberdade profissional: “Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria ou comércio pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos costumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos”. Educação na Legislatura de 1826 - 1829 O estado da educação popular pouco se alterou entre 1823 e 1826. Iniciados os trabalhos da primeira legislatura, em seis de maio de 1826, logo vieram as reclamações, os depoimentos e as propostas. Houve denúncias sobre a escassez de recursos e a precariedade do ensino nas diversas províncias do Império. Ainda em 1826, na tentativa de realizar algo mais amplo do que o previsto na Carta de 1824, a Comissão de Instrução Pública da Assembleia Legislativa cuidou da elaboração de um plano integral de ensino público. Geralmente considerado de autoria do deputado cônego Januário da Cunha Barbosa, esse plano abrangia todos os graus escolares e todos os aspectos de sua organização e administração. Nesse projeto de 1826, a educação nacional seria estruturada como um conjunto articulado de escolas, envolvendo estes quatro graus: pedagogias, liceus, ginásios e academias, sendo que o ensino dos liceus poderia, em vez de se articular com o dos ginásios, ser apenas prolongado em escolas subsidiárias. O ensino no 1º grau (pedagogias) compreenderia os conhecimentos necessários a todos, qualquer que fosse o seu estado ou profissão: arte de escrever e de ler, princípios fundamentais de aritmética, conhecimentos morais, físicos e econômicos. As meninas seriam igualmente admitidas nas escolas de 1º grau e a sua instrução seria a mesma e simultânea. Os mestres procurariam aproximar-se o mais possível do método lancasteriano, repartindo o ensino por decúrias, a fim de que os mais adiantados discípulos se exercitassem no ensino dos menos adiantados, na metade do tempo de aula, e depois recebessem eles mesmos as instruções do mestre no resto do tempo. Em cada capital de província seria criada uma escola lancasteriana, para iniciação dos professores no método. Esse minucioso plano não passou, entretanto, de um projeto da Comissão de Instrução Pública. Apresentado à Assembleia, não chegou a ser aprovado (MOACYR, 1936, p. 148-179). Em 1827, um outro projeto, limitado ao ensino das “primeiras letras”, deu origem à Lei de 15 de outubro, a seguir especificada. Também em 1827, por Lei de 11 de agosto, foram 6 história da Educação criados os cursos jurídicos de São Paulo e Olinda, os quais seriam instalados, no ano seguinte, no Convento São Francisco e no Mosteiro de São Bento, respectivamente. Dando continuidade aos esforços de 1823, essas “leis gerais” de 1827, enquanto reveladoras de aspirações nacionais, tendiam a consagrar a estruturação de um sistema educacional muito mais favorável à formação de uma elite do que à educação popular (AZEVEDO, 1958; VILLALOBOS, 1960). Lei de 15 de Outubro de 1827 A prescrição de gratuidade do ensino primário era uma “ousadia liberal” da Constituição de 1824, que provocava a maior admiração dos estrangeiros que nos visitavam (TORRES, 1957, apud SILVA, 1977, p.10). Segundo Silva (1977, p.10-11), “De fato, ensino gratuito para todos, custeado com dinheiros públicos, ainda era uma promessa ousada, no início do século XIX e algum tempo depois”. Os legisladores de 1826-1829 deram resposta a essa “ousadia liberal”, chegando à Lei de 15 de outubro de 1827, decorrente, sem dúvida, do projeto Cunha Barbosa (1826), no que dizia respeito ao 1º grau de instrução. Determinava essa lei que: em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos deveriam existir, desde que necessárias, escolas de primeiras letras; além das escolas para meninos, deveriam existir também escolas para meninas; os professores fossem vitalícios, ingressando no magistério por concurso público. Prometida pelo governo a todos os cidadãos, a escola elementar teria este currículo: escrever, ler e contar (quatro operações, decimais e proporções), geometria prática, gramática da língua nacional, moral e doutrina da religião católica. Como livros de leitura teriam preferência a Constituição do Império e a História do Brasil. Nas escolas para meninas, haveria uma variante curricular: quanto à aritmética nada mais que as quatro operações; nenhuma geometria e, em vez disso, as prendas que servem à economia doméstica. O método deveria ser o do ensino mútuo. Ensino Mútuo e seus Resultados no Brasil Já adotado no projeto Cunha Barbosa (1826), o ensino mútuo ou método lancasteriano não era uma invenção brasileira. Em Portugal, em 1815, e, no Brasil, desde 1820, já se tomava providência a respeito de sua aplicação dadas as vantagens que poderia trazer para a rápida e pouco onerosa difusão do ensino. Também chamado monitorial, o ensino mútuo surgiu na Inglaterra com Bell e Lancaster, nos fins do século XVIII, expandindo-se, depois, para numerosos países, sobretudo, França e Estados Unidos, com êxito até meados do século XIX. Foi principalmente Lancaster quem deu um caráter sistemático à velha prática escolar de utilizar monitores, isto é, alunos mais adiantados como auxiliares do professor. O método 7 história da Educação foi incorporado a um sistema racionalizado de organização da escola, envolvendo técnicas didáticas, arranjo de sala de aula com dimensões adequadas para cem ou mais alunos, uso de materiais de ensino apropriados e graduação cuidadosa de conteúdos a serem aprendidos. Teoricamente o efeito multiplicador dos monitores poderia realizar-se “ao infinito” (SILVA, 1977; LARROYO, 1970; PEIXOTO, 1926). No Brasil, os resultados do ensino mútuo não seriam os esperados pelos seus propugnadores. Conforme denúncias e reclamações constantes dos relatórios ministeriais de 1831 a 1836 (MOACYR, 1936, p. 192-200), além do mau estado em que, geralmente, se encontravam as escolas lancasterianas, faltavam prédios adequados, material didático e de professores. O ano de 1838 marcaria o fim da história do ensino mútuo na capital do Império. Em muitas províncias ele continuaria a ser aplicado até cerca de duas décadas depois de 1838 (SILVA, 1977). Quadro Escolar 1822 - 1834 Algumas escolas primárias e médias de iniciativa eclesiástica e os seminários episcopais, procedentes da primeira fase do período colonial, mais as escolas menores e as aulas régias originárias da reforma pombalina, e as recentes criações de D. João VI, compunham, quanto ao ensino militar e civil, profissional e artístico, o quadro geral da instrução pública no início do Império (BITTENCOURT, 1953). Da Independência, em 1822, à reforma constitucional de 1834, esse quadro escolar não se alterou significativamente, embora enriquecido com a criação dos cursos jurídicos (1827) e com a estruturação dos cursos médico-cirúrgicos da Bahia e do Rio de Janeiro em Faculdades (1832). Quanto aos estudos primários e médios, abriram-se algumas escolas de primeiras letras e, também, aulas avulsas ainda no estilo das antigas aulas régias. A Lei de 11 de novembro de 1831 havia determinado a criação de cadeiras de ensino secundário na capital e na vila mais populosa das comarcas das províncias do Brasil. O Seminário de Olinda, instituição criada, em 1800, pelo bispo Azeredo Coutinho, já decaído de seu prestígio antigo, foi transformado, em 1832, em Colégio Preparatório das Artes do curso jurídico. A Lei Geral de 15 de outubro de 1827 fracassava em sua aplicação por motivos econômicos, técnicos e políticos. Pelo método lancasteriano ou de ensino mútuo que quase dispensava o professor, foram criadas poucas escolas, sobretudo, as destinadas às meninas; em 1832, estas não passavam de 20 em todo o território, conforme o testemunho de Lino Coutinho, Ministro do Império (AZEVEDO, 1958). O governo central, com os encargos decorrentes de uma centralização excessiva, mostrava-se incapaz de cuidar da educação popular e de organizar toda a instrução pública. Era chegado o momento de o governo central dividir com as províncias as responsabilidades do ensino. 8 história da Educação 1834 Ato Adicional Ao tempo da Regência (1831-1840), o Ato Adicional à Constituição do Império, de 12 de agosto de 1834, foi o acontecimento que determinou efeitos mais duradouros e amplos na política educacional brasileira. Pela estrutura unitária do regime político-administrativo, segundo o Art. 15, n. 8, da Carta de 1824, cabia à Assembleia Geral “[...] fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, sem qualquer restrição. Os Conselhos Provinciais só podiam formular projetos de lei que eram remetidos ao exame da Assembleia Geral. Desse modo, quanto à legislação do ensino, não havia nenhuma divisão de competências entre o governo do Império e os poderes regionais. Como resultado da vitória das tendências descentralizadoras dominantes na época, o Ato Adicional, reformando a Constituição, transformou os Conselhos em Assembleias Legislativas Provinciais, cujas decisões teriam força de lei, se sancionadas pelo Presidente das Províncias. O Art. 10 estabelecia os casos de competência das Assembleias Provinciais para legislar. No intuito de aliar o concurso mais direto das províncias à atuação dos poderes gerais no cumprimento da missão de instruir o povo e, assim, afastar as dificuldades que a centralização opunha à expansão do ensino nas províncias, o Ato Adicional, pelo § 2º do Art. 10, conferiu às Assembleias Legislativas provinciais o direito de legislar “[...] sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la”. Excluía, porém, de sua competência “[...] as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que para o futuro forem criados por lei geral”. Assim, por esse dispositivo descentralizador (§ 2º, Art.10), ficava instituída “[...] a competência concorrente dos poderes gerais e provinciais no campo da instrução pública, o que vinha possibilitar a criação de sistemas paralelos de ensino em cada província: o geral e o local” (HAIDAR, 1998, p. 63). Mas, não foi essa interpretação que predominou. A prática acabou consagrando partilha diversa das atribuições. De fato, após a reforma da Constituição, a atuação direta do Poder Central, no campo dos estudos primários e secundários, limitou-se ao Município da Corte; não se criaram por leis gerais quaisquer estabelecimentos desses níveis nas províncias. Por outro lado, abstiveram-se as províncias de criar estabelecimentos superiores, conservando o poder central, de fato, o monopólio dos estudos maiores (HAIDAR, 1998, p. 64). Em benefício da instrução popular, as províncias pouco puderam fazer, pois inteiramente entregues a si mesmas, não contavam com o amparo financeiro do governo central. Além disso, havia os problemas decorrentes da descontinuidade administrativa, já que os Presidentes de Província, nomeados pelo Governo Central, sucediam-se rapidamente no po9 história da Educação der. Consequentemente, as reformas provinciais do ensino, uma após outra, acabavam ficando no papel. Quanto ao ensino público secundário, o poder central supervisionaria diretamente as aulas avulsas da Corte, extintas em fins de 1857, o Colégio de Pedro II, as aulas preparatórias anexas aos cursos jurídicos de São Paulo e Olinda e, até certo ponto, o ensino ministrado nos seminários episcopais. Tendo o monopólio do ensino superior, o poder central exerceria indiretamente o controle do ensino secundário de todo o Império, por meio dos chamados “exames de preparatórios”. Tais exames habilitavam para a matrícula nos cursos superiores aqueles que não cursavam o Pedro II (HAIDAR, 1972a). S urgimento de Liceus e Colégios Por volta de 1834, o ensino público secundário encontrava-se fragmentado em aulas avulsas de latim, retórica, filosofia, geometria, francês e comércio, espalhadas por todo o Império. Na Corte e nas províncias, as aulas públicas providas somavam uma centena ou pouco mais. A organização dos estudos secundários havia somente em poucos seminários, de tradição jesuítica, e no Colégio criado, em 1820, pelos Lazaristas na Serra do Caraça, Minas Gerais. A partir do Ato Adicional (1834), o panorama de educação secundária começou a modificar-se, surgindo os primeiros liceus provinciais graças à reunião de disciplinas avulsas existentes nas capitais das províncias: o Ateneu do Rio Grande do Norte, em 1835, o Liceu da Bahia e o da Paraíba em 1836. Outros liceus provinciais foram se instalando, porém, não chegavam a alcançar o mesmo desenvolvimento dos colégios particulares de ensino secundário que floresceram como consequência do Ato Adicional. C olégio de Pedro IIII O antigo Seminário de S. Joaquim, que se fundara no Rio de Janeiro, com o nome de S. Pedro, em 1739, transformou-se, por Decreto de dois de dezembro de 1837, em estabelecimento imperial de instrução secundária, para constituir o Colégio de Pedro II. A exemplo dos colégios franceses, o Regulamento, de 31 de janeiro de 1838, introduziu os estudos simultâneos e seriados no Pedro II, organizados em um curso regular de seis a oito anos de duração. O currículo do novo colégio compunha-se de: línguas latina, francesa, grega e inglesa, a gramática nacional e a retórica, a geografia e a história, as ciências naturais, as matemáticas, a música vocal e o desenho. 10 história da Educação O governo central propunha o Colégio de Pedro II como estabelecimento-modelo dos estudos secundários, tendo em vista nortear a iniciativa provincial que, pelo Ato Adicional de 1834, ficara com a mais completa autonomia administrativa e didática no campo do ensino primário e médio. Todavia, a nota dominante do ensino secundário brasileiro no Império seria, certamente, seu caráter fragmentário e inarticulado. Função Preparatória do Ensino Secundário Com efeito, o Pedro II, os liceus provinciais e alguns colégios particulares de projeção ou seminários não foram “[...] os acidentes mais característicos da paisagem do ensino secundário brasileiro”. O que deu “[...] autêntico colorido a essa paisagem” foi a “[...] preparação aos cursos profissionais superiores”. Como o ensino superior era essencialmente profissional e o ensino secundário ainda não tinha objetivo formativo bem claro, “[...] somente a mais estrita e imediatista preparação ao ensino profissional superior” é que dava “[...] sentido e função” ao ensino secundário (SILVA, 1969, p. 200). Exames de Preparatórios e Ensino Parcelado Com essa função preparatória, os estudos secundários ficaram reduzidos às exigências dos exames de preparatórios, estabelecidos pelo governo central para a matrícula nas Faculdades. “Consubstanciando os requisitos mínimos necessários ao ingresso nos estudos maiores, os conhecimentos requeridos nos exames de preparatórios constituíam o padrão ao qual procuraram ajustar-se os estabelecimentos comerciais e particulares de ensino secundário” (HAIDAR, 1972a, p. 47). Em tais circunstâncias, o ensino secundário seriado, desenvolvido em curso de duração regular, foi cedendo lugar a um ensino secundário parcelado, irregular e de curta duração. A desorganização dos estudos secundários, em razão dos exames de preparatórios, atingindo os liceus provinciais e os colégios particulares, alcançaria o Pedro II e os demais estabelecimentos de responsabilidade do governo central. R eformas Couto Ferraz Na década de 1850, na opinião de muitos, a unidade nacional estava a exigir a uniformização do ensino em todo o país. Na euforia progressista da época, reconhecia-se que a instrução carecia de “centro” e de “unidade” para que pudesse “[...] tomar o caráter de uma instituição nacional”, conforme testemunho de Paranhos (1851 apud HAIDAR, 1972a, p. 27). As primeiras medidas de organização administrativa da instrução pública e o início de um processo de uniformização do ensino vieram com as reformas realizadas pelo Ministro Couto Ferraz, a partir de 1854. A ação reformadora atingiu as Faculdades de Medicina e os cursos jurídicos, que passaram a se denominar Faculdades de Direito. 11 história da Educação O regulamento de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, baixado com o Decreto 1.331A, de 17 de fevereiro de 1854, pelo Ministro do Império do Gabinete Paraná, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, entre outras importantes providências, criou a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, órgão ligado ao Ministério do Império e destinado a fiscalizar e orientar o ensino público e particular dos níveis primário e médio na cidade do Rio de Janeiro, e estruturou em dois níveis – o elementar e o superior – a instrução primária gratuita, constitucionalmente prometida a todos. Além disso, previu um sistema de preparação do professor primário e estabeleceu normas para o exercício da liberdade de ensinar. De aplicação restrita ao Município da Corte, o Decreto 1.331A de 1854 teve uma repercussão nacional. Atendendo ao desejo expresso do governo, então vivamente empenhado em promover a uniformização do ensino em todo o Império, procuraram os presidentes de províncias, delegados do poder central, voltar as atenções das assembleias locais para as reformas realizadas na Corte. Graças a tais esforços, as principais medidas propostas pela reforma Couto Ferraz reproduziram-se na legislação de quase todas as províncias no decorrer dos anos 1850 e 1860 (HAIDAR, 1998, p. 67). A administração geral do ensino primário e secundário na Corte, de acordo com o regulamento de 1854, seria regida por um Inspetor Geral, com a colaboração do Conselho Diretor, composto de sete membros e de Delegados de distrito. Medidas rigorosas foram estabelecidas para o exercício do magistério público e particular. O ensino particular só poderia exercer-se com prévia autorização do Inspetor Geral, proibida a coeducação, e com relatórios trimestrais dos estabelecimentos aos respectivos Delegados. Os diretores e professores dos estabelecimentos particulares ficariam igualmente obrigados a habilitar-se perante a Inspetoria da Instrução Pública, mediante a apresentação de provas de capacidade profissional e de moralidade. Pelo Regulamento de 1854, o ensino primário na Corte seria obrigatório, com matrícula entre cinco e 15 anos, vedada aos escravos. Nas escolas do 1º grau, de instrução elementar, o currículo compreenderia: instrução moral e religiosa, leitura e escrita, noções essenciais da geometria, princípios elementares da aritmética, sistema de pesos e medidas do município. A coeducação foi proibida nas escolas para o sexo feminino, haveria ainda o ensino de bordados e de trabalhos de agulha mais necessários. Nas escolas do 2º grau, de instrução superior, o currículo abrangeria também: desenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas, leitura explicada dos Evangelhos e notícia de História Sagrada, os princípios das Ciências Físicas e da História Natural aplicáveis aos usos da vida, geometria elementar, agrimensura, desenho linear, noções de música e exercícios de canto, ginástica, e estudo mais desenvolvido do sistema de pesos e medidas. Tanto na Corte como nas províncias, as escolas primárias do 2º grau, de instrução superior, não chegaram a ser criadas, ficando apenas na intenção da lei. Algumas escolas 12 história da Educação particulares em número reduzido, sediadas na Corte e nas grandes cidades, chegaram a oferecer um ensino primário mais rico. A falta de pessoal docente devidamente habilitado, entre outras causas, impedia a ampliação e o enriquecimento do ensino elementar. Escolas Normais Após o Ato Adicional de 1834, além da tarefa de prover à instrução elementar, as províncias ficaram com a difícil tarefa de preparar pessoal docente para as escolas que se criassem. A primeira iniciativa foi da Província do Rio de Janeiro que, em 1835, fundou a Escola Normal de Niterói. A ela, seguiram-se, em 1836, as escolas normais da Bahia, em 1845, as do Ceará, e em 1846, as de São Paulo. Instituições semelhantes foram sendo criadas em outras Províncias, com existência efêmera e funcionamento irregular. Sua organização era rudimentar e seu currículo mal ultrapassava o nível de modestas escolas primárias (BAUAB, 1972). À época da reforma Couto Ferraz (1854), as poucas escolas normais existentes no país, destinadas à formação de professores, encontravam-se em situação deplorável. Considerando o baixo nível do ensino normal provincial e atribuindo tal resultado à inexistência de pessoal devidamente capacitado para manter estabelecimentos dessa natureza, Couto Ferraz não criou Escola Normal na capital do país, preferiu “[...] formar em exercício, sob a supervisão de mestres experientes, o professorado para as escolas elementares da Corte” (HAIDAR, 1998, p. 67). Somente em 1880, a capital do Império teria sua Escola Normal mantida e administrada pelos poderes públicos. Ensino Profissional Em torno de 1860, o ensino técnico – agrícola, comercial e industrial – ainda não passava de meras tentativas e ensaios. O Liceu de Artes e Ofícios, de iniciativa privada, fundado por Bettencourt da Silva em 1856, desenvolvia-se “[...] como uma instituição artificial, transplantada para meio estranho e hostil, e mal compreendida de quase todos” (AZEVEDO, 1958, p. 83). Não havia outra escola de ensino industrial, existiam somente duas de comércio, o Instituto Comercial do Rio de Janeiro, no qual, em 1864, se matricularam 53 alunos, e o curso comercial de Pernambuco que, na mesma data, não excedia a 25 alunos. Quanto às escolas agrícolas, além de uma ainda em projeto, a ser criada no Rio de Janeiro, existiam duas outras, respectivamente, com 24 e 14 alunos, em 1864, nas províncias do Pará e do Maranhão. Essas escolas e outras, que depois se criaram no período imperial, não prosperaram no país por falta de recursos, de alunos e por deficiências de organização. O Imperial Instituto Fluminense de Agricultura e os outros institutos similares, fundados na Bahia, em Pernambuco, em Sergipe, no Rio Grande, eram associações que tinham como objetivo “[...] propagar teórica e praticamente os melhores sistemas de lavoura e de exploração agrá13 história da Educação ria”. Entretanto, permaneciam estagnadas, “[...] sob governos apáticos e quase indiferentes” (AZEVEDO, 1956, p. 83). Pelo Regulamento 1.331A de 1854, Couto Ferraz tentou ampliar a função dos estudos secundários, colocando-os na base de especializações técnicas. O curso do Colégio de Pedro II ficaria dividido em estudos de 1ª e 2ª classes: os primeiros forneceriam a cultura geral básica para as especializações técnicas, articulando-se com os cursos do Instituto Comercial e da Academia de Belas-Artes; os segundos, montados sobre os anteriores, preparariam para o ingresso nos cursos superiores. Inspirada no modelo prussiano das Realschulen, a medida não teve êxito, pois não havia no país desenvolvimento comercial e industrial que a sustentasse, como no caso dos Estados Unidos. Em 1882, Rui Barbosa retomaria essa medida, propondo para o Colégio de Pedro II, ao lado do curso de ciências e letras, a instalação de seis cursos técnicos de nível médio – finanças, comércio, agrimensura e direção de trabalhos agrícolas, maquinistas, industrial, e de relojoaria e instrumentos de precisão –, sobrepostos a uma escola primária média. Essa proposta teria “[...] um caráter excessivamente antecipatório em face das nossas condições de país agrário, monocultor e ainda escravocrata” (SILVA, 1969, p. 213). Estatísticas Escolares: D istância entre a Elite e o Povo No Império, dadas as características econômicas, sociais e culturais da sociedade, o trabalho manual e mecânico era desprestigiado, sendo exercido por humildes artesãos e por escravos. Daí, o número reduzido de alunos – um pouco mais de uma centena em 1864 –, esparsos por pequenas escolas comerciais e agrícolas. Em um significativo contraste revelado pelas estatísticas, naquele mesmo ano, havia 8.600 alunos matriculados em aulas e estabelecimentos de instrução secundária, pretendendo acesso às escolas superiores e, por conseguinte, às profissões liberais (AZEVEDO, 1958, p. 82). Essa clientela procedia do patriciado rural e da pequena burguesia que procurava ascender às camadas superiores. O ideal aristocrático de educação, sendo o título de doutor um critério decisivo de classificação social, respondia pelas matrículas nos cursos superiores (AZEVEDO, 1958, p. 86-87): no decênio de 1855-64, nas duas Faculdades de Direito, a matrícula chegava a 8.036 alunos; nas duas Faculdades de Medicina, havia um total de 2.682 alunos matriculados (fora os 533 dos cursos farmacêuticos). Em 1864, a matrícula no ensino superior apresentava a seguinte quantidade de alunos: 826 nas Faculdades de Direito; 294 nas de Medicina; 154 na Escola Central; 109 na Escola Militar e de Aplicação. (A Escola Militar, novo nome da antiga Real Academia Militar, desdobrara-se nestas duas últimas escolas). Os estabelecimentos particulares eram os que mais contribuíam para a realização dos estudos secundários necessários aos exames de preparatórios, então, exigidos para o ingres14 história da Educação so nos cursos superiores. Principalmente depois do Ato Adicional de 1834, o ensino privado tomou grande impulso, suplantando em muito o ensino público, tanto em número de estabelecimentos, quanto em relação à matrícula. Em 1865, nas províncias do Ceará, Pernambuco e Bahia, havia, respectivamente, 283, 536 e 860 alunos matriculados no ensino privado, para 156, 99 e 337, no ensino público. No Município Neutro, o índice de matrículas no ensino privado subiu para 2.223, enquanto no ensino público, Colégio de Pedro II, ficou em 327. Apenas na Província de Minas Gerais, a matrícula no ensino particular era equivalente ou inferior às 638 do ensino público (AZEVEDO, 1958, p. 96-97). Os dados relativos ao ensino secundário e superior, de um lado, e o ensino profissional, de outro, revelam a enorme distância, social, econômica e cultural que havia entre a elite e o povo, e entre as profissões liberais e o trabalho manual e mecânico. De uma outra perspectiva, as estatísticas referentes à instrução primária evidenciam a distância que diferenciava a elite e o povo, os poucos letrados e eruditos e o enorme contingente de analfabetos. Em 1867, segundo os cálculos de Liberato Barroso, cerca de 107.500 era o total de matrícula geral nas escolas primárias em todas as províncias, para uma população livre de 8.830.000. Aproximadamente, dos 1.200.000 indivíduos em idade escolar, apenas 120 mil recebiam instrução primária, ou seja, a décima parte da população, ou ainda um indivíduo por 80 habitantes (AZEVEDO, 1958, p. 82). A Caminho da Desoficialização do Ensino Em relatório de 1856, Couto Ferraz, o organizador, referia-se com otimismo à ação uniformizadora das províncias. Todavia, a instabilidade dos presidentes, a incapacidade e o despreparo de muitos deles, as preocupações políticas das assembleias locais, acima de seu compromisso social, e a insuficiência de recursos financeiros foram criando um clima desfavorável à instrução pública provincial. Em verdade, paulatinamente, tais fatores acabaram abrindo o caminho para a desoficialização do ensino. A expansão quantitativa da iniciativa privada também movia as províncias a liberar totalmente o ensino primário e médio. Nesses níveis, a liberdade de ensino era entendida como “[...] liberdade de abrir escolas independentemente das provas prévias de moralidade e capacidade previstas pela Reforma Couto Ferraz e igualmente consagradas nas legislações provinciais” (HAIDAR, 1972b, p. 5). Em 1868, foi apresentado à Assembleia Geral o primeiro projeto de liberdade de ensino, assinado por Felício dos Santos, com apenas dois artigos: o primeiro instituía a mais ampla e incondicional liberdade de ensino; o segundo revogava as disposições em contrário. Como condição básica da expansão e renovação do ensino primário e médio, a liberdade de ensino apresentava-se, também, como providência capaz de vivificar o ensino superior. Ao mesmo tempo em que se reivindicava a liberdade de ensino, condenava-se a omissão do 15 história da Educação Centro em relação ao ensino provincial. As despesas com a educação já começavam a ser vistas como o mais produtivo dos investimentos. Assim, os principais projetos de reforma da instrução pública, apresentados nas décadas de 1870 e 1880, postulavam a participação do governo central no desenvolvimento do ensino em todo o país, na forma de criação nas províncias de estabelecimentos custeados por todo ou em parte pelo governo central e concessão de auxílio financeiro a escolas criadas pelos poderes provinciais, e pela iniciativa particular. A partir de 1870, a liberdade de ensino, cuja reivindicação englobava posições diversas, converteu-se em aspiração comum a liberais e conservadores (ALMEIDA JÚNIOR, 1956). Paulino de Souza, Ministro do Império, conservador, acatava a liberdade de ensino no caso dos estudos superiores. Não apoiava, entretanto, o movimento favorável à eliminação das condições fixadas pela Reforma Couto Ferraz para a abertura de escolas primárias e secundárias por particulares. Já seu sucessor, João Alfredo Correia de Oliveira, também conservador, confiante na força da iniciativa privada, aderiu fervorosamente ao movimento que reclamava maior abertura para as atividades dos particulares no ensino. Pelo projeto de 1874, de sua autoria, isentava os pretendentes ao magistério particular das provas de capacidade profissional, exigindo, como única condição para abertura de escolas, a apresentação de folha corrida de professores e diretores. Os estabelecimentos particulares, entretanto, ficariam sujeitos à fiscalização quanto à moralidade e higiene, devendo prestar às autoridades competentes as informações quando solicitadas. R eformas Leôncio de Carvalho Ministro do Império, Carlos Leôncio de Carvalho, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, com suas reformas de 1878 e 1879, não só modificou o ensino primário e secundário da Corte, mas, ainda, estabeleceu normas para o ensino secundário e superior, em todo o país. O Decreto, de 20 de abril de 1878, alterou a estrutura curricular do Colégio de Pedro II, introduziu a frequência livre e os exames vagos (parcelados) de preparatórios aos cursos superiores e, também, isentou os alunos acatólicos do estudo da religião, modificando o juramento exigido para a concessão do bacharelado em letras, a fim de torná-lo acessível aos bacharelandos acatólicos. O Decreto, de 19 de abril de 1879, instituiu a mais ampla liberdade para abrir escolas e cursos de todos os tipos e níveis, “[...] salvo a inspeção necessária para garantir as condições de moralidade e higiene”. Qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, poderia lecionar o que quisesse, sem passar por provas de capacidade. 16 história da Educação Dispondo a respeito do ensino em todos os seus graus, do elementar ao superior, o Decreto de 1879, segundo a síntese de Almeida Júnior (1956, p. 87): [...] acenou com subvenções; prometeu caixas, bibliotecas e museus escolares; plantou a semente dos ginásios equiparados e das escolas normais livres. [...] Algumas de suas inovações tinham sentido realmente liberal, como a obrigatoriedade da educação primária, o auxílio em vestuário e livros aos alunos pobres, a dispensa aos acatólicos de assistirem às aulas de religião, a autorização, outorgada aos professores, de jurarem segundo a crença de cada um. Para Almeida Júnior (1956, p. 87-88), a reforma continha “[...] novidades copiadas dos livros estrangeiros, - o ambiente social não as reclamava, ou o poder público não dispunha, na época, de forças para efetivá-las”. Muito pouco, todavia, do que constou do Decreto de 1879, foi executado. Com referência ao curso superior, como princípio vital da reforma, vingou o “ensino livre”. Como a matrícula era facultativa, poderiam ser admitidos a exame todos aqueles que o requeressem. De acordo com o seu Art. 20, §6, não seriam marcadas faltas aos alunos, nem eles seriam chamados a lições e sabatinas. De acordo com o Decreto de 1879, o ensino primário na cidade do Rio de Janeiro, município neutro, abrangeria escolas primárias de primeiro e segundo graus. Com a duração de seis anos, de frequência obrigatória para meninos e meninas dos sete aos quatorze anos, as escolas do primeiro grau introduziriam em seu currículo “noções de coisas” e, também, ginástica. A instrução religiosa seria facultativa. Quanto à coeducação: os meninos poderiam ser matriculados nas escolas femininas. Em todas as escolas do primeiro grau do sexo masculino haveria cursos noturnos. Com professores particulares contratados, haveria ensino primário ambulante (rudimentos). Com a duração de dois anos, as escolas do segundo grau dariam continuidade às disciplinas do primeiro grau, introduzindo, além de outros conteúdos, noções gerais dos deveres do homem e do cidadão, noções de lavoura e horticultura, noções de economia social e de economia doméstica (meninas) e prática manual de ofícios (meninos). Pelo Decreto de 1879, as Escolas Normais teriam prática do Ensino Intuitivo ou “lições de coisas”, além de prática do ensino primário geral. Pareceres de Rui Barbosa Ao Parlamento brasileiro, Rui Barbosa apresentou dois Pareceres em 1882: um sobre a reforma do ensino secundário e superior e outro sobre o ensino primário. Este foi publicado apenas em 1883. Os Pareceres foram elaborados para servirem de subsídio à discussão do 17 história da Educação projeto de Reforma do Ensino Primário e Secundário do Município da Corte e Superior em todo o Império, em substituição à reforma instituída por Leôncio de Carvalho, em 1879. Esses Pareceres podem ser considerados um projeto de reforma global da educação brasileira. Como um verdadeiro tratado, compreendeu praticamente todos os aspectos da educação: filosofia, política, administração, didática, psicologia, educação comparada (LOURENÇO FILHO, 1954). Rui Barbosa fundamentou seu trabalho na análise quase exaustiva das deficiências do ensino no país e, também, no estudo da história das teorias e práticas educacionais das nações mais adiantadas, e ainda, nas contribuições teóricas dos mais eminentes educadores da época. Sua estratégia de reformador partiu de contundente desqualificação das escolas e das práticas vigentes para afirmação do novo (SOUZA, 2000). Influenciado pelas ideias correntes no século XIX, que atribuíam fundamental importância à educação dentro da sociedade, Rui Barbosa preconizou a reforma social pela reforma da educação. Acreditava no poder da educação como meio para promover o progresso do homem e do país. Como acontecia em alguns países europeus e nos Estados Unidos, também no Brasil, no final do século XIX, a escola popular, compreendida como instrumento de modernização por excelência, foi elevada à condição de redentora da nação. A favor de um ensino primário obrigatório, dos sete aos catorze anos, gratuito e laico, Rui Barbosa apregoava a substituição da inócua escola de primeiras letras, voltada para o passado, pela escola primária moderna, com um ensino renovado e um programa enciclopédico, voltada para o progresso do país. A reforma do ensino primário deveria fundar, assim, uma nova realidade educacional (SOUZA, 2000). Com oito anos de duração, a nova escola primária ficaria dividida em três graus: o elementar e o médio, cada um com dois anos, e o superior com quatro. O dia escolar teria duração de aproximadamente seis horas, das quais eram destinadas cerca de quatro horas e trinta minutos para atividades de classe, se aí fossem incluídos os exercícios ginásticos. O elemento mais importante de toda a reforma era o método intuitivo, conhecido também como lições de coisas. Fundamentado especialmente nas ideias de Pestalozzi e Froebel, baseava-se num tratamento indutivo pelo qual o ensino deveria ir do particular para o geral, do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato. Tomar as lições de coisas como disciplina foi um equívoco da Reforma Leôncio de Carvalho. Trata-se, na concepção de Rui Barbosa, de um método intuitivo a atravessar todos os programas de ensino (MOREIRA, 1955). A tradução, datada de 1886, da obra de Calkins sobre Primeiras lições de coisas, escrita em 1861 e refundida em 1870, foi de Rui Barbosa. 18 história da Educação A reorganização do programa escolar seria uma decorrência imperiosa da adoção do método intuitivo. De acordo com as ideias predominantes na época, a ampliação do programa escolar teria como princípio a educação integral: educação física, intelectual e moral. Indissociáveis corpo e espírito, a educação integral deveria seguir as leis da natureza e a ciência seria o melhor meio para a disciplina intelectual e moral. Essa concepção de educação integral, defendida por Spencer (1861) e compartilhada por Rui Barbosa, tornou-se a referência pedagógica norteadora da seleção dos conteúdos para a escola primária. Fundamentada em justificativas filosóficas e pedagógicas, a educação integral, acenando com uma nova cultura escolar para o povo, ampararia projeto de fundo político e social (SOUZA, 2000). Na organização do ensino primário brasileiro, em vários Estados, se verificaria a influência de Rui Barbosa ainda depois de 1910. D ifusão das Ideias Pedagógicas As duas últimas décadas do Império constituíram um período de grande efervescência de ideias, de difusão de filosofias cientificistas e liberais e, sobretudo, de valorização da educação e preocupação com a sua problemática. Entre 1873 e 1888, realizaram-se no Rio de Janeiro as Conferências Pedagógicas, de iniciativa do Senador Manuel Francisco Correia. Na Escola da Glória, no Largo do Machado, estiveram conferencistas ilustres, educadores, parlamentares, ministros que trataram, diante de um público interessado, dos problemas da educação, ao longo de dezoito anos. Até 1888, registraram-se um total de 50 conferências (BITTENCOURT, 1953). Previsto para 1883, também no Rio de Janeiro, o Congresso de Instrução deveria examinar as necessidades nacionais e formular planos de ensino para o Brasil, em todos os graus. Conforme arquivo da Mesa Organizadora, Atas e Pareceres, resultantes de sessões preparatórias, foram publicados em 1884. As teses sobre ensino primário, propostas e recebidas pela Comissão do Congresso, referiam-se a temas como: classificação das escolas primárias, medidas de inspeção, disciplinas a serem ensinadas, método e programas de ensino, liberdade de ensino, coeducação, obrigatoriedade do ensino primário, educação de adultos, educação de cegos e surdos-mudos, ensino primário nos municípios rurais. Houve oportunidade de pareceres sobre Jardim da Infância (COLLICHIO, 1976). O Congresso de Instrução não chegou a se realizar, mas a Exposição Pedagógica, prevista como parte integrante dele, ocorreu a partir de 1º de junho de 1883. Conferências efetuadas nesse evento foram publicadas em 1884. C olégios e Educadores de Renome O ensino secundário particular, no Brasil, atingiu seu apogeu nos anos de 1860 a 1890, 19 história da Educação multiplicando-se pelo país escolas privadas elementares, profissionais e, sobretudo, secundárias. Além dos estabelecimentos com fins comerciais, muitas foram as iniciativas de associações beneficentes ou de entidades e cidadãos desinteressados que, gratuitamente, ofereciam ensino primário e secundário. Assim, o Colégio do Caraça, no seu segundo período de funcionamento, a partir de 1862, entrou em pleno desenvolvimento, alcançando sua “idade de ouro” entre 1867 e 1885, sob a reitoria do Pe. Júlio Clavelin. Os jesuítas, de volta ao Brasil em 1842, abriram colégios em Santa Catarina, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, de 1845 a 1886. O Colégio S. Luís era, de início, um internato, fundado em 1867, na cidade de Itú, pelo Pe José de Campos Lara. Nesse município, prosperou até 1917, data em que foi transferido para a capital de São Paulo. Chegaram ao Brasil, em 1883, os salesianos, de D. Bosco, desenvolvendo atividades fecundas no âmbito da educação secundária e técnico-profissional. Como educadores laicos, cujos colégios ganharam grande projeção, distinguiram-se: Abílio Cesar Borges, Barão de Macaúbas, Joaquim José Meneses de Vieira, João Pedro de Aquino, João Estanislau da Silva Lisboa e Ernesto Carneiro Ribeiro. Fundado em 1874, na cidade de Campinas, o Colégio Culto à Ciência logo se tornou famoso em todo o Império. Em São Paulo, inspirada nas ideias positivistas de seus idealizadores, João Köpke e Silva Jardim, a Escola Primária Neutralidade, para crianças de sete a quatorze anos, consagrou o ensino laico, de caráter enciclopédico. Os estabelecimentos de ensino secundário para o sexo feminino alcançaram êxito a partir de 1878. Nesse ano, Miss Eleonor Leslie Hentz fundou na Corte um colégio para meninas, reconhecido, nos primeiros anos de 1880, como um dos melhores estabelecimentos de ensino do Rio de Janeiro. O Colégio Progresso, também no Rio, transferido de Santa Tereza para o Engenho Velho, em 1888, ofereceu às meninas uma instrução completa, organizada em três graus, segundo o modelo americano: curso primário de primeiro e segundo graus, curso secundário e curso superior, incluindo pedagogia para as interessadas no magistério. Pelos seus modernos métodos didáticos, esse colégio foi uma das principais fontes de inspiração da reforma do ensino público proposta, em 1882, por Rui Barbosa. Por iniciativa de missionários presbiterianos norte-americanos, foi criada, em 1870, em São Paulo, a Escola Americana, de nível elementar e frequência mista, antecessora do Mackenzie College. Graças a Horácio Lane, quando diretor da Escola, foi inaugurado, em 1880, um curso de grau médio comum aos dois sexos, no qual havia uma cadeira especial de pedagogia para os que quisessem lecionar. 20 história da Educação Da igreja metodista americana, Miss Marta Watts fundou, em 1881, o Colégio Piracicabano (São Paulo) para meninas, oferecendo-lhes curso secundário. Em 1885, foi fundado o Colégio Americano (Porto Alegre). Últimas Iniciativas Com João Alfredo, Ministro do Império, em 1874, a Escola Central do Rio de Janeiro transformou-se em Escola Politécnica. E, em 1875, foi criada a escola de Minas de Ouro Preto. Ficava organizado, assim, “[...] o ensino técnico de nível superior, como D. João VI já o fizera para o ensino médico e o artístico e D. Pedro I quanto à formação jurídica” (BITTENCOURT, 1953, p. 51). Como última criação da Monarquia, em 1889, inaugurou-se o Colégio Militar. Em 1876, ao todo, 102 alunos receberam o grau de doutor; 78, o grau de bacharel; 58, o diploma de engenheiro (AZEVEDO, 1958, p. 87). Constituindo o centro mais importante da vida profissional e intelectual da nação, o conjunto de escolas superiores no Império preparou toda uma elite de médicos, bacharéis e engenheiros. Porém, a herança cultural e pedagógica do Império, do ponto de vista quantitativo, era pouco significativa. Em 1889, para uma população de quase 14 milhões, a matrícula geral nas escolas primárias era efetuada por pouco mais de 250 mil alunos. O número de inscritos não chegava a 300 mil ou a menos da sétima parte da população em idade escolar o número de estudantes matriculados em todas as escolas dos diversos tipos e graus existentes no país (AZEVEDO, 1958, p. 111). Fala do Trono 1889 Na Fala do Trono de três de maio de 1889, na sessão solene de abertura da última sessão do Parlamento do segundo Império, concentraram-se as aspirações em matéria educacional. Na oportunidade, o Imperador, D. Pedro II, sugeriu a criação de um Ministério da Instrução Pública, a fundação de escolas técnicas, a instituição de duas universidades, bem como de faculdades de ciências e letras, em algumas províncias, e vinculadas ao sistema universitário. Todo esse sistema proposto pelo Imperador se assentaria “[...] livre e firmemente na instrução primária e secundária”, difundida largamente pelo território nacional (AZEVEDO, 1958, p. 110). As amplas e ambiciosas aspirações, presentes nos Pareceres de Rui Barbosa (1882) e na última Fala do Trono (1889), “[...] não tinham para apoiá-las nenhuma mentalidade nova nem uma realidade social, maleável e plástica, nenhum surto econômico que favorecesse profundas transformações no sistema educativo” (AZEVEDO, 1958, p. 110). 21 história da Educação Com o pronunciamento de D. Pedro II, em 1889, fechava-se o círculo das aspirações educacionais, inaugurado por D. Pedro I em 1823. Com efeito, completava-se a fase nacional da História da Educação Pública no Brasil, abrindo caminho ao período republicano que se caracterizaria pelos seguintes traços: regime de separação do Estado e igreja; • laicismo e neutralismo escolar em matéria confessional: um passo adiante na senda • da secularização do ensino; descentralização educacional nos quadros do federalismo republicano; • vitória do ensino livre e esforços posteriores no sentido da organização de um sis• tema escolar nacional (CARVALHO, 1972, p. 3). A República herdaria do Império a tarefa de estruturar em bases democráticas a escola pública, de estabelecer a escola primária como escola comum, aberta a todos, e de transformar a escola secundária, de escola de elite e preparatória ao ensino superior, em escola formativa, articulada à primária. 22 história da Educação eferências ALMEIDA JÚNIOR, A. Problemas do ensino superior. São Paulo: Nacional, 1956. AZEVEDO, Fernando de. 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