segunda-feira, 25 de junho de 2012
MANAUS-PORTO VELHO
BR-319: A RODOVIA MANAUS-PORTO VELHO E O
IMPACTO POTENCIAL DE CONECTAR O ARCO DE
DESMATAMENTO À AMAZÔNIA CENTRAL
Philip M. Fearnside
Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
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09 de setembro de 2005
12 de setembro de 2005
1
RESUMO
A Rodovia BR-319 unia Manaus (Amazonas) e Porto Velho (Rondônia) até ficar
intransitável em 1988. -O governo agora propõe a reconstrução e pavimentação, que
facilitaria a migração do “Arco de Desmatamento” para novas fronteiras ao norte. O
propósito da rodovia, que é de facilitar transporte da produção das fábricas da Zona Franca de
Manaus para São Paulo, seria mais bem atendido enviando os contêineres para Santos em
navios. A falta de uma ligação terrestre atualmente representa uma barreira significante à
migração para Amazônia central e do norte. O discurso relativo à reconstrução da rodovia
sistematicamente superestima os benefícios da rodovia e subestima seus impactos,
particularmente o efeito de facilitar migração do “Arco de Desmatamento” da parte sul da
região amazônica para novas e mais distantes fronteiras ao norte. Para atenuar estes impactos
potenciais seria necessária uma série de mudanças fundamentais antes de pavimentar a
rodovia. Estas mudanças incluem o zoneamento ecológico-econômico, a criação de reservas,
e o aumento de governância em várias formas, inclusive programas de licenciamento e
controle do desmatamento. Tal iniciativa, também, requer mudanças mais fundamentais,
especialmente o abandono da tradição existente há muito no Brasil de conceder a posse da
terra a posseiros que invadem terras públicas. Organizar a ocupação amazônica, de tal modo
que a construção e melhoria de estradas deixem de conduzir inexoravelmente ao
desmatamento explosivo e descontrolado, deveria ser uma condição prévia para a aprovação
da BR-319 e outras estradas projetadas, para quais são esperados grandes impactos. Estes
projetos poderiam prover o ímpeto necessário para deixar para trás o costume de apropriação
de terras públicas, tanto por pequenos invasores como por grileiros (grandes revindicadores
ilegais de terra). Retardar a reconstrução desta rodovia seria aconselhável até que mudanças
apropriadas pudessem ser efetuadas.
PALAVRAS CHAVE: Amazônia, BR-319, Desmatamento, Rodovias, Manaus, Porto Velho,
Estradas
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I.) A Rodovia BR-319
A.) História da Rodovia
Em 1970 a ditadura militar brasileira iniciou a construção da rodovia Transamazônica,
dividindo ao meio a região amazônica de leste para oeste. Ao mesmo tempo, uma vasta rede
de rodovias adicionais foi anunciada. A rede de estradas planejadas excedeu em muito as
capacidades financeiras do governo, mesmo no período denominado a época do “milagre
econômico”. A enxurrada de estradas planejadas também excedeu em muito aquilo que seria
justificado pelos benefícios econômicos da melhoria de transporte, porque o programa de
construção de estradas estava, em parte, incentivado por questões de controle territorial em
lugar de questões econômicas. Em 1971, um Decreto-Lei (No. 1.164) deu o controle ao
governo federal todas as terras localizadas até 100 km das rodovias planejadas, até mesmo se
a “rodovia” fosse nada mais que uma linha riscada no mapa. O anúncio da rede de estradas
resultou em uma vasta área, somando 2,2 milhões de km2 (quase a metade da Amazônia
Legal) sendo transferida do controle estadual ao federal (Brasil, PIN, 1972). Este foi
revogado em 1987 (Decreto-Lei No. 2.375), e qualquer terra dentro de 100 km de uma
rodovia que não tivesse ainda sido alocada a um propósito específico se tornou “terra
devoluta” sob controle estadual. Isto afetou uma parte significativa das terras ao longo da
BR-319, diferente do caso de outras rodovias, tais como a rodovia Transamazônica e a BR-
163, onde as terras nesta faixa foram reivindicadas por órgãos federais
A rodovia BR-319 possui uma de extensão 877 km de norte ao sul de Manaus a Porto
Velho (Figura 1) e foi construída em 1972 (680 km) e 1973 (197 km). A política
governamental requereu na época que todas as rodovias fossem primeiramente construídas
como estradas sem pavimento, apenas seriam pavimentadas depois de decorrido um período
de anos e se justificado pelo tráfego na estrada . No caso da BR-319, porém, foi aberta uma
exceção especial, e a rodovia foi pavimentada imediatamente na hora da construção. A pressa
era tanta que a estrada foi construída na estação chuvosa com a extraordinária prática de
proteger o asfalto fresco com lonas de plástico.
[Figura 1 aqui]
A alta prioridade dada à pavimentação inicial da rodovia é explicada melhor como
parte de um pacote informal de obras públicas e programas federais que foram concedidos ao
Estado do Amazonas como um tipo de compensação para os investimentos federais mais
pesados no Estado de Pará (por exemplo, Mahar, 1976, p. 360). A sede da Superintendência
do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) foi estabelecida em Belém, e a grande maioria
dos projetos pecuários e outros financiados pela agência estavam localizados no Pará. O
Estado do Pará adquiriu também a maior parte da rodovia Transamazônica, incluindo todas as
suas áreas de colonização, além da construção da rodovia BR-163 e a pavimentação da
rodovia Belém-Brasília (BR-010), seguida logo após pela hidrelétrica de Tucuruí. O
Amazonas é um rival tradicional do Pará, e ainda celebra como feriado estadual o dia 5 de
setembro, o aniversário da sua independência da autoridade de Belém em 1850.
Adicionalmente, o Estado do Amazonas recebeu do governo federal a Zona Franca de
Manaus (SUFRAMA), a hidrelétrica de Balbina e as rodovias BR-174 e BR-319.
3
Nos anos 1970, a BR-319 teve pouco tráfego, já que a produção industrial de
Manaus foi exportada de forma mais barata por meio de navios, e até via aérea. Rondônia
ainda era o destino da maioria dos migrantes do Paraná e de outras áreas fontes que seguiram
a rodovia BR-364 (Cuiabá-Porto Velho). Até que Rondônia estivesse repleta e transbordando
de migrantes, a BR-319 se degradou a ponto que as condições de trafegabilidade inibiram a
migração adicional ao norte. Porém, até que o serviço de transporte por ônibus de Porto
Velho para Manaus estivesse suspenso em 1988, muitos migrantes seguiram rumo a Manaus
e especialmente a Roraima para afetar significativamente o seu crescimento. As más
condições da BR-319 fizeram com que fosse mais fácil para os migrantes que deixavam
Rondônia irem para o Acre ou para a parte sul do Estado do Amazonas do que para Manaus
ou para Roraima. A alternativa ao transporte rodoviário era uma viagem de barco de quatro
dias de Porto Velho para Manaus, o que representou uma barreira significante para os
paranaenses, não acostumados à navegação, que constituíam a maior parte da população de
migrantes de Rondônia. A camada fina de asfalto na BR-319 se tornou uma série quase
contínua de buracos que são, ambos, mais difícil de consertar e mais danoso aos veículos do
que seria o caso de uma estrada sem pavimento. Muito da rota teve que ser desviado para
trilhas temporárias ao lado da estrada, mais do que o próprio leito da rodovia. O trecho da
estrada de Porto Velho até Humaitá permaneceu trafegável desde que a rodovia foi
construída, e os primeiros 200 km ao norte de Humaitá foi colonizado por pequenos
agricultores em lotes de 100 ha distribuídos pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA). A maioria destes lotes já mudou de mãos uma ou mais vezes até
agora, e está consolidada em pequenas fazendas (“fazendolas”) de 500 ha ou mais. A rodovia
permaneceu pelo menos marginalmente transitável nos primeiros 100 km, e em grau menor
nos 100 km seguintes.
Em 2001, os primeiros 58 km da BR-319 depois do entroncamento com a rodovia
Transamazônica, a 30 km ao oeste de Humaitá, foram repavimentados, assim como os 100
km no extremo norte da rodovia, no sentido Manaus-Careiro Castanho. Um trecho de 340 km
no meio da rota permanece intransitável, embora comboios ocasionais de veículos fizessem
este percurso no pico da estação seca em alguns anos. A relutância em gastar recursos
limitados na reconstrução da BR-319 é, indubitavelmente, um resultado combinado da
existência de uma via fluvial (hidrovia) no rio Madeira paralela à rodovia, e o custo muito
alto de manter uma rodovia em uma região aonde a chuva média anual chega até 2.200 mm.
O discurso político na Assembléia Legislativa do Estado do Amazonas focalizou a culpa em
um suposto complô contra o projeto por donos de barcaças que transportam carga entre
Manaus e Porto Velho (Amazonas em Tempo, 2005a), enquanto o governador do Estado
culpou “interesses econômicos poderosos que estão preocupados com o que o Amazonas está
alcançando comparado com o resto do País” (Amazonas em Tempo, 2005b).
B.) Planos para Reconstrução
A reconstrução e a repavimentação da BR-319 foram planejadas e adiadas
repetidamente. O projeto foi incluído inicialmente no programa Brasil em Ação, de 1996-
1999, mas foi retirado pelo coordenador do programa, José Paulo Silveira (apesar de objeções
feitas por políticos do Estado do Amazonas) por causa da baixa justificativa econômica em
comparação com as centenas de outros projetos no programa (J.P. Silveira, declaração
pública, 1999; Brasil, Programa Brasil em Ação, 1999). A proposta de pavimentar a rodovia
foi incluída subseqüentemente no programa “Avança Brasil” de 2000-2003 (Brasil, Programa
Avança Brasil, 1999; Consórcio Brasiliana, 1998), mas somente os 158 km mencionados
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acima foram pavimentados de fato. No Plano Plurianual 2004-2007, ou “PPA”, lançado sob
a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil, MPOG, 2004), o projeto da BR-319
aparece listado como previsto para “depois de 2007”, significando que não seria construído
durante o termo do plano. No entanto, o Ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento (exprefeito
de Manaus) fez do projeto uma alta prioridade, prometendo começar a construção na
estação seca de 2005 (Banega & Simonetti, 2005). O partido político de Nascimento (Partido
Liberal: PL) fez uso extenso das promessas dele sobre a reconstrução da rodovia em anúncios
televisivos em Manaus, em preparação para a sua candidatura na próxima eleição para
governador, de outubro de 2006.
O cronograma anunciado pelo Ministro dos Transportes aproximadamente três meses
antes da data planejada para começar a obra, implica em considerar o Estudo de Impacto
Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) desnecessários. Ao
invés de um EIA/RIMA, feito de acordo com normas federais e que precisa ser completado e
aprovado antes da iniciação das obras, o governo estadual contratou a Universidade Federal
do Amazonas para elaborar um Relatório de Acompanhamento Ambiental, a ser feito
simultaneamente com a execução da obra. O Ministro dos Transportes e o governador do
Estado do Amazonas inauguraram o início da reconstrução em 09 de julho de 2005 (Banega
& Gomes, 2005), mas uma liminar judicial paralisou o projeto em 04 de agosto devido à falta
do EIA/RIMA (Costa, 2005). A Ministra do Meio Ambiente anunciou em 11 de agosto que o
projeto de reconstrução da BR-319 teria que passar pelo processo de licenciamento ambiental
(Amazonas em Tempo, 2005b), mas logo depois, em 01 de setembro, o Tribunal Regional
Federal (TRF) tirou o embargo judicial até que o caso principal seja decidido, e o Ministro
dos Transportes ordenou a continuação imediata das obras de reconstrução (Quaresma,
2005).
A pavimentação da rodovia BR-319 tem grande apelo público em Manaus. Em março
de 2005 todos os 24 deputados estaduais do Amazonas assinaram um “manifesto de apoio”
pedindo ao Governo Federal pavimentar a rodovia imediatamente (Amazonas em Tempo,
2005a). Em Manaus a rodovia é vista, geralmente, como um meio mais barato de exportar
produtos industriais para o São Paulo e outros grandes mercados no centro sul brasileiro, e
como uma rota mais barata para os habitantes da cidade viajar para estas áreas, por exemplo
para visitas de família. O fato da estrada facilitar viagens em ambas as direções, conduzindo
assim a migração exacerbada para Manaus, praticamente não é mencionado.
O dinheiro para reconstruir a BR-319 pode não ser disponibilizado tão depressa
quanto os proponentes do projeto acreditam (Menezes, 2005). No Brasil, orçamentos são
habitualmente aprovados para quantias muito maiores do que os valores que são
desembolsados depois na prática; ao longo do curso de cada ano fiscal, verbas orçadas
freqüentemente sofrem “contingenciamento” (categoria onde o desembolso é bloqueado
pendente à disponibilidade de dinheiro). Apesar do processo contínuo de mudança de despesa
governamental, políticos em Manaus provavelmente continuarão pressionando para a
reconstrução da BR-319 até que alcancem êxito na obtenção de fundos. Qualquer demora no
processo representa uma oportunidade para uma discussão mais completa dos custos
ambientais e sociais do projeto, em comparação com a uma avaliação realística de seus
benefícios. Uma discussão deste tipo ainda não tem acontecido.
II.) Impactos Potenciais
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A.) Impactos ao Longo da Rota da Rodovia
A pavimentação da BR-319 conduziria a transformação da área adjacente da rota da
rodovia. Representantes dos setores de construção industrial e civil em Manaus argumentam
que, como a rodovia existiu durante muito tempo, a reconstrução e a pavimentação da mesma
não teriam praticamente nenhum efeito ambiental porque “o que era para degradar já foi
degradado” (Almeida, 2005). Infelizmente, experiências anteriores de construção e melhoria
de estradas na Amazônia resultaram em um padrão de desmatamento que se espalha para
além das vias de acesso quando estabelecidas, e que se aceleram quando estas são melhoradas
(Laurance et al., 2001, 2002; Nepstad et al., 2000, 2001; Soares-Filho et al., 2004).
O fato de ter ocorrido pouco desmatamento desde a época em que a rodovia BR-319
foi aberta inicialmente às vezes é sugerido como indicativo de que esta região sofreria pouco
impacto se a estrada fosse reconstruída e repavimentada. A falta de desmatamento ao longo
da rota é atribuída por alguns à chuva excessiva que torna a agropecuária menos produtiva
(Schneider et al., 2000) e às desvantagens econômicas da longa distância até os mercados.
Porém, as diferenças físicas não são tão grandes entre a metade sul da BR-319 e as áreas que
se tornaram os principais focos de desmatamento no Amazonas desde 2002, tais como as
áreas entre Humaitá e Lábrea e entre Humaitá e Apuí. A malária é endêmica e debilitante ao
longo da rota da rodovia; porém, isto também não pode explicar o avanço modesto do
desmatamento, desde a construção original, já que a doença afeta outras áreas com taxas de
desmatamento altas.
A agricultura na parte norte do trajeto é pouco promissora por causa de solos menos
férteis. A porção do norte está ocupada por solos hidromórficos, que são menos desejáveis
para agropecuária que o podzólico vermelho-amarelo que ocupa a maior parte dos primeiros
300 km ao norte de Humaitá (Brasil, Projeto RADAMBRASIL, 1973-1982, vols. 17 & 18).
Apesar de limitações agrícolas, a porção do norte da rodovia tem sido o foco de projetos de
assentamento como Panelão e Igarapé Açu, no município de Castanho Careiro. Embora solos
inférteis sirvam para desestimular um pouco o desmatamento, a noção de que isto confere
uma certa imunidade ao desmatamento é errônea como mostrado através de exemplos
freqüentes (e.g., Fearnside, 1986).
Algumas indicações de aumento potencial de desmatamento ao longo da BR-319 são
evidentes. Houve várias aquisições de terra em antecipação à pavimentação, com implantação
de agricultura intensiva de capital (arroz, seguido por soja). Segundo relatos de moradores
locais, uma propriedade a 120 km e várias áreas a 200 km ao norte de Humaitá foram
compradas por investidores maiores provenientes de Mato Grosso. Porém, em 2005 a
rentabilidade agrícola era em um ponto econômico baixo, com quedas significativas nos
preços de arroz, soja e carne bovina que causaram perdas para agricultura e pecuária em toda
a Amazônia. Fatores contribuintes para a queda do preço incluem a mais baixa taxa de
câmbio do Real frente ao dólar americano em três anos (R$2,4 / 1US$), tendo caído em 24%
apenas entre junho de 2004 e junho de 2005, combinado com os equilíbrios econômicos
normais entre oferta e procura para estes produtos. A natureza globalizada dos mercados para
estes produtos agropecuários resultaram em preços baixos para todos os três dos artigos em
2005, embora rendimentos brasileiros de arroz e soja fossem ambos abaixo do normal devido
a chuvas irregulares, especialmente a ocorrência de chuvas na estação de colheita.
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Outro processo que indica um aumento potencial no desmatamento ao longo do eixo
da rodovia caso a estrada seja repavimentada é a chegada de migrantes sem-terras. Isto inclui,
por exemplo, o estabelecimento de um acampamento de sem-terras no Igarapé Realidade
(100 km ao norte de Humaitá: Figura 2). Os migrantes sem terra no acampamento no Igarapé
Realidade estão organizados na forma de comunidade (embora não se identificam como
pertencendo a quaisquer dos movimentos nacionais de sem-terras, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra, ou MST). Dois ônibus de migrantes foram obrigados a
voltar para Rondônia depois de uma confrontação com a polícia, mas aproximadamente 30
famílias permaneceram no acampamento e na área circunvizinha. Residentes a longo prazo
na área reivindicam as áreas com desmatamentos iniciados em várias partes da área
“fundiária” (as terras públicas atrás da faixa de 2 km dos lotes que foram originalmente
distribuídos pelo INCRA ao longo da margem da estrada). Esta área de terra pública já tem
vários pretendentes, inclusive os residentes antigos da área que se ocupam da colheita de
castanha-do-Pará (Bertholetia excelsa), e várias reivindicações maiores por donos individuais
e empresas, de blocos de lotes ao longo da rodovia. Os residentes ao longo da rodovia
acreditam que a propriedade de um lote à margem de estrada confere ao dono o direito a uma
área praticamente ilimitada de terra pública que se encontra atrás da área colonizada. Por sua
vez, o INCRA diz que os colonos não têm nenhum direito desse tipo (David Benedito
Gonçalves, comunicação pessoal, 2005).
[Figura 2 aqui]
Além dos migrantes no Igarapé Realidade, um fluxo de pessoas procurando terra de
forma independente apareceu buscando áreas para estabelecer posses. Alguns destes vêm de
barco, sendo deixados às margens do rio Madeira para então vagar pela floresta em busca de
terra não ocupada. Espera-se que estes agentes individuais de áreas já ocupadas em Rondônia
viajem para todos os pontos ao longo da estrada uma vez que o acesso seja melhorado.
Atualmente existem linhas de ônibus operando até 200 km ao norte de Humaitá.
A reivindicação de grandes áreas por grileiros (grandes pretendentes ilegais) tem
levado a um padrão de violência no qual pistoleiros são contratados para remover quaisquer
pretendentes concorrentes. O delegado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) no Amazonas denunciou a prevalência deste padrão na região (Litaiff,
2005). A visão do governador estadual de que a BR-319 vai se tornar um “corredor de
agricultura familiar” (Amazonas em Tempo, 2005c) pareceria ser um cenário improvável sem
primeiro alcançar o sucesso na implantação de governância na área.
O efeito da BR-319 não é apenas restrito à área diretamente acessada pela rodovia,
mas também por uma série de estradas laterais planejadas que conectarão a BR-319 a sedes
municipais nos rios Madeira e Purus. Estas incluem Manicoré, Borba, Novo Aripuanã e
Tapauá. Os planos para as estradas laterais (vicinais) já estão estimulando os políticos locais
a resistir à criação de reservas de proteção ambiental perto das rotas propostas. Uma reserva
indígena proposta, que limita a estrada planejada AM-465, que dá acesso a Tapauá, é foco de
objeções de vereadores de Tapauá que querem as terras abertas por esta estrada lateral sejam
destinadas à agricultura (Amazonas em Tempo, 2005d).
A existência de áreas protegidas de vários tipos pode reduzir significativamente a
velocidade do avanço de desmatamento, assim reduzindo a probabilidade de que qualquer
determinado hectare sofra uma transformação de floresta para outro uso da terra (Ferreira et
7
al., 2005). Às vezes um mero rumor de que uma reserva será criada pode desencorajar a
invasão. No momento não há quase nenhuma reserva para restringir o desmatamento ao
longo da BR-319, embora a intenção de criar tais reservas seja uma preocupação importante
entre os fazendeiros e pecuaristas maiores em Humaitá e ao longo da porção ocupada da
rodovia. O governo federal já criou uma reserva extrativista (RESEX): Carapanã Grande. O
governo estadual planeja a criação da reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) rio
Amapá. A área entorno da BR-319 é de interesse para criação de reservas por ser um
interflúvio com diversidade biológica particularmente alta (Mario Cohn-Haft, comunicação
pessoal, 2005).
B.) Impactos na Amazônia Central
Manaus hoje é uma ilha de paz que parece estar fora da Amazônia. Ao norte da cidade
está o Distrito Agropecuário da SUFRAMA onde grandes fazendas foram estabelecidas no
início da década 1980 com incentivos fiscais generosos e pacotes de financiamento
subsidiados pelo governo. Quando o fluxo de fundos do governo encolheu em meados dos
anos 1980, a maioria das pastagens foi abandonada. Hoje mais de 80% da área desmatada
está ocupada por vegetação secundária (capoeira). Ainda assim, nenhum migrante sem terra
invade a área; não há nenhuma batalha entre os posseiros e pistoleiros, nenhum barraco
queimado e nenhuma morte. Se as mesmas fazendas abandonadas fossem magicamente
transportadas para o sul do Pará, norte de Mato Grosso ou para Rondônia provavelmente
seriam invadidas dentro de algumas semanas, se não de dias!
O cenário calmo em áreas rurais ao redor de Manaus poderia mudar rapidamente com
a abertura de uma ligação pavimentada para o “Arco de Desmatamento”, área em expansão
localizada ao longo das margens sul e leste da floresta amazônica onde atividade de
desmatamento está concentrada. As incursões relativamente modestas de migrantes de semterras
na BR-319 hoje, como o acampamento do Igarapé Realidade, não revelam a magnitude
do impacto que acontece quando novas fronteiras de migração se tornam disponíveis. O
efeito muito mais forte em áreas de fronteira no sul do Pará oferece uma indicação melhor
deste potencial (Fearnside, 2001). Estimativas do número de famílias rurais sem terras em
todo o Brasil variam de 5 a 10 milhões, excedendo em muito a capacidade da região
amazônica até mesmo se a região fosse completamente distribuída em projetos de
assentamento (por exemplo, Fearnside, 1985).
Pode-se esperar, também, que Manaus receba um fluxo substancialmente crescente de
migrantes urbanos. A migração de áreas rurais para urbanas e de áreas urbanas para urbanas
são tendências poderosas na redistribuição da população brasileira (Brasil, IBGE, 2005;
Browder & Godfrey, 1997). O distrito industrial em Manaus, que se beneficia de isenções de
impostos, empregou 82,7 mil pessoas em abril de 2005 (Brasil, SUFRAMA, 2005a); este foi
o principal ímã de atração de população para a cidade (população aproximadamente 1,6
milhões em 2005).
Muito da migração para Manaus tem sido de populações riberinhas do interior da
Amazônia até agora, mas este fluxo poderia ser tolhido pela vinda de novos migrantes do
resto do Brasil se o acesso fosse facilitado. O desemprego em Manaus é mais baixo do que
em muitas cidades brasileiras, embora a reputação que Manaus desfruta para os níveis altos
de emprego não é completamente merecida. Manaus tem 141 empregos formais por mil
habitantes; das capitais das unidades federativas brasileiras, um terço tem mais desemprego
8
que Manaus enquanto dois terços têm menos (Brasil, IBGE, 2005). Porém, Manaus tem a
melhor razão entre emprego e população de qualquer cidade importante na região Norte.
Renda per capita fornece outro indicador da atratividade de Manaus como destino à
migração. O Estado do Amazonas é muito melhor que os estados circunvizinhos, e tem renda
per capita mais alta que qualquer outro estado no Brasil com a exceção do Distrito Federal,
Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A renda per capita no
Amazonas é até ligeiramente maior do que no Paraná, que é bem conhecido como um estado
rico. A renda per capita do Amazonas é mais que o dobro do Pará, e quatro vezes maior do
que a do Maranhão (Figura 3). De grande importância para a BR-319 é o fato de o Amazonas
ter quase o dobro da renda per capita de Rondônia.
[Figura 3 aqui]
Desnecessário dizer que a chegada massiva de migrantes urbanos em Manaus
degradaria os serviços sociais já precários e aumentaria os problemas urbanos tais como
desemprego, subemprego, invasões urbanas e criminalidade. É de esperar que a taxa de
migração de outras partes do Brasil seja proporcional à disparidade em relação a
oportunidades de emprego e padrões de vida entre os locais fontes e de destino, conduzindo a
uma redução das qualidades atrativas do local de destino até que um equilíbrio seja
estabelecido. A magnitude da disparidade que pode ser mantida em equilíbrio depende da
fricção, ou resistência, à migração representada por impedimentos como a falta de acesso de
estrada para Manaus. Manaus hoje se mantém como uma ilha de riqueza da mesma forma que
uma garrafa térmica mantém seu café quente por meio do impedimento da parede da garrafa à
passagem de calor. Colocando o mesmo café quente em um bule de ferro, ele se esfria logo.
Quando os impedimentos à migração forem afastados, o equilíbrio poderia mudar na
medida em que a taxa elevada de migração abaixasse as características atraentes da área de
destino. Um exemplo é a cidade de Sorriso, em Mato Grosso, que está no centro do “boom”
da soja em Mato Grosso: era o assunto de reportagens freqüentes porque o “boom”
econômico na área resultou no alcance do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais
alto do Brasil. Um ano depois, o prefeito da cidade lamenta que a publicidade sobre o IDH
resultou em um excesso de migrantes. Com cinco ônibus lotados de pessoas chegando por
dia, o prefeito está procurando meios para desencorajar a migração que já aumentou a
população escolar em 36% (A Folha de São Paulo, 2005).
Criar emprego é uma luta interminável para autoridades a todos os níveis em Manaus,
como também é o caso em outros lugares. Esta luta pode facilmente se tornar um trabalho de
Sísifo. Assim como o Sísifo da mitologia grega, que foi condenado a rolar eternamente um
pedregulho pesado para cima de uma colina em Hades, para que a pedra rolasse de volta ao
fundo da colina cada vez que ela se aproximasse ao topo, a luta de Manaus para empregar sua
população seria em vão se para cada posto de trabalho criado, três ou quatro migrantes
desempregados chegassem na cidade.
C.) Impactos em Roraima
É provável que o potencial à migração crescente em direção a Roraima seja um dos
principais impactos em pavimentar a BR-319. Aparte do fluxo de população existente há
muito tempo do Maranhão para o Pará, Rondônia se tornou a principal fonte de migração
9
para outros estados amazônicos, os destinos principais são áreas como Apuí (no sul do
Amazonas), Acre oriental, e um movimento significante para o noroeste de Mato Grosso
(invertendo o fluxo tradicional de Mato Grosso para Rondônia). Roraima também é um
destino, embora a dificuldade de transporte entre Rondônia e Manaus contenha a migração no
momento nesta rota. No início da década 1980, quando a BR-319 era transitável, uma fração
significativa dos migrantes que chegaram em Manaus pela rodovia seguiu diretamente para
Roraima pela BR-174, em lugar de se instalar na Amazônia central. Isto é explicado
parcialmente pela geoquímica, já que Roraima, situada em parte na formação Boa Vista,
possui solos mais jovens e mais férteis do que a área de Manaus. A migração também é
explicada em parte pelo encorajamento ativo do governo de Roraima, na distribuição de
terras em áreas de assentamento, no fornecimento de transporte subsidiado até mercados e
nos outros serviços, e até mesmo programas ativos para transportar migrantes novos ao
estado como parte de estratégias de eleição (veja Fearnside & Barbosa, 1996a). Roraima
ganhou uma reputação como um estado onde o nível de governância ambiental é próximo de
zero (Fearnside & Barbosa, 1996a,b). Uma exceção importante é a barreira ao desmatamento
atribuído pela grande extensão de reservas indígenas e unidades de conservação em Roraima
(em ambos os casos criados por autoridades federais).
III.) Benefícios da Rodovia
Os benefícios de pavimentar a BR-319 são, indubitavelmente, menores do que
aqueles retratados no discurso político que cerca o assunto. A justificação principal
apresentada é a redução de custos de transporte no frete para o centro-sul brasileiro,
aumentando assim a competitividade de produtos industriais de Manaus nos mercados em
São Paulo e em outros centros de população. Porém, os produtos industriais de Manaus,
como televisores e motocicletas, não são artigos perecíveis para os quais a diferença de
alguns dias em tempo de transporte faria uma diferença significante. Remessa de tal frete por
navio para o porto de Santos é muito mais eficiente tanto em termos de uso de energia como
em termos de custos de mão-de-obra, quando comparado com a remessa em milhares de
caminhões, qualquer que seja a rota rodoviária. É notável que os mesmos argumentos usados
como justificativa para a BR-319 estão sendo simultaneamente usados como parte da
justificativa para pavimentar a rodovia BR-163 de Santarém à Cuiabá (por exemplo,
Simonetti, 2005; Brasil, SUFRAMA, 2005b). O frete atualmente levado de Manaus para
Belém em barcaças e transportado em caminhão para São Paulo pela rodovia Belém-Brasília
(BR-010) leva 11 dias, e chegaria em 5 dias se transportado em caminhão a partir de
Santarém (Brasil, BNDES, 1998, p. 68). Desnecessário dizer que contabilizando o mesmo
frete para justificar a BR-319 implica que este benefício evaporaria para a BR-163. A atual
rota multimodal via Porto Velho é mais barato que a rota via Belém, mas só é utilizável
durante uma parte do ano porque o rio Madeira não é navegável durante seu período de água
baixa (o nível de água no rio varia em 15 m ao longo do curso do ano, e a profundidade em
Porto Velho é de apenas 2 m quando a vazão do rio chega no seu mínimo anual).
A rota de transporte por caminhão de Manaus para São Paulo pela rodovia Belém-
Brasília pareceria faltar lógica quando comparada com movimento de frete por cabotagem,
ou navios litorais, entre Manaus e Santos. O Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), que é responsável em promover o desenvolvimento de infraestrutura
de transporte, estimava que uso dos navios reduziria o custo do frete porta a porta
em 50% quando comparado às atuais opções via barcaça e rodovia (Brasil, BNDES, 1998, p.
102). Porém, conforme constatado pelo BNDES, o “transporte de carga geral por cabotagem
10
é praticamente inexistente” (Brasil, BNDES, 1998, p. 64). O BNDES (1998, p. 100)
estabelece que “o maior impedimento para movimento deste frete por cabotagem está na
ineficiência e insegurança dos portos. …. Se taxas e qualidade de serviço estivessem em
acordo com normas internacionais, assim tornando a operação regular de cabotagem viável, o
frete entre Manaus e a região sudeste cairia em aproximadamente R$3 mil [US$2,6 mil na
época][por cada contêiner], ou a metade do custo atual”. Além de custos portuários, o
BNDES também enfatiza preços “abusivos” de serviços auxiliares. Somente as taxas de
praticagem no rio Amazonas custavam R$100 [US$86] por contêiner em 1998, em média, ou
3% do custo total de frete entre Manaus e São Paulo.
A infra-estrutura física dos portos foi melhorada sob os programas Brasil em Ação e
Avança Brasil. No entanto, parte da insegurança dos portos resulta da dependência de
estivadores em Santos para descarregar os navios. O sindicato de estivadores tem fechado
este porto estratégico periodicamente durante as últimas décadas, em decorrência de greves
sobre assuntos trabalhistas. De fato, acredita-se que o objetivo de quebrar o poder de
estrangulamento deste sindicato foi uma das razões para que o governo militar brasileiro
lançasse seu programa maciço de construção de rodovias nos anos 1970. O temor a tais
eventos não deveria ser usado para justificar a manutenção artificial de alternativas de
transportes onerosas e ambientalmente destrutivas, já que esta fonte de incerteza não é maior
para cabotagem do que é para quaisquer das exportações principais do Brasil, tais como a
soja.
O porto de Manaus é o mais ineficiente do Brasil em termos do número de horas
necessárias para carregar e descarregar um navio: 36 horas, ou duas vezes o tempo que leva
em Santos (Ono, 2001, p. 43). Além de ser ineficiente, os portos também são caros. Em um
relatório pela Confederação Nacional do Transporte, uma “ação necessária” identificada para
tornar a cabotagem viável é “reduzir o excedente de mão-de-obra nos portos” (CNT, 2002, p.
148). A modernização reduziu o número de tarefas manuais, assim resultando em
trabalhadores em excesso. A Confederação Nacional do Transporte esboça uma estratégia de
negociação baseado em ofertas de aposentadoria antecipada para estes trabalhadores. Porém,
nós sugeriríamos que no caso de Manaus muito disto pudesse ser desnecessário, já que a
necessidade de expansão do porto deveria permitir que os atuais trabalhadores sejam retidos.
O discurso político relativo aos benefícios de transportar a produção industrial de
Manaus para São Paulo por caminhão pela BR-163 ou pela BR-319 pode ter pouca relação ao
real desdobramento dos fatos, uma vez que as rodovias sejam pavimentadas. Por exemplo, a
pavimentação da rodovia BR-174 em 1997 foi justificada com base de que seriam
transportados em caminhão produtos industriais de Manaus para a Venezuela, de onde seriam
exportados por navio para o porto de Houston, Texas, E.U.A. (Abdala, 1996). Isto foi
planejado para reduzir em 15 dias o tempo do percurso, comparado com a exportação dos
produtos diretamente por navio a partir de Manaus. Depois que a rodovia foi pavimentada,
nenhuma frota de caminhões apareceu para tirar proveito desta nova rota de exportação. A
maior eficiência econômica de exportar diretamente por navio é evidente, a diferença em
custo excede o valor de economizar duas semanas em transporte. Não obstante, o discurso
relativo a uma rota de caminhão para a Venezuela serviu seu propósito, ganhando apoio
político para pavimentar a rodovia. O aumento de desmatamento em Roraima é um dos
custos contínuos da rodovia BR-174.
11
É provável que o benefício principal da BR-319 seja os benefícios políticos para os
que conseguem levar o crédito pela sua reconstrução. Deveria ser notado que a construção
seria feita com fundos federais, não com fundos dos contribuintes do Estado do Amazonas.
Esta diferença de perspectiva pode ser crucial na percepção de que grandes investimentos
valem à pena; a construção da Hidrelétrica de Balbina perto de Manaus é um exemplo claro
(Fearnside, 1989a). Outro grupo influente são as empresas de construção e os provedores
potenciais de bens e serviços ao esforço de construção. Como com qualquer investimento
público de grande porte, cujos custos financeiros vêm de contribuintes esparramados em todo
o País enquanto a atividade comercial e os empregos gerados na fase de construção são
localizados (por exemplo, em Manaus), pode ser esperado que um lobby de apoio local
desenvolva até mesmo se o projeto em questão tem justificativa econômica mínima. Por
exemplo, a Hidrelétrica de Balbina é conhecida como um projeto “faraônico” porque, como
no caso das pirâmides de Egito antigo, ergueu-se uma estrutura enorme a grande custo com
pouco ou nenhum retorno prático (Fearnside, 1989a).
Além do frete industrial que é visto como condutor de aumento de empregos em
Manaus, uma fonte importante de apoio à pavimentação da BR-319 está na imaginação de
residentes de classe média de Manaus que se visualizam fazendo viagens de férias para o
centro-sul brasileiro, embora a maioria das tais viagens provavelmente nunca viesse a
acontecer (pelo menos por estrada). Acabar com o “isolamento” de Manaus demonstra ser um
lema poderoso, mas raramente é lembrado que se trata de uma moeda com dois lados, o outro
sendo a chegada de um fluxo de migrantes para Manaus.
IV.) A BR-319 e o Processo de Tomada de Decisão
O processo de tomada de decisão sobre a reconstrução da BR-319 segue o padrão
evidente em outros projetos de infra-estrutura amazônica de subestimar substancialmente os
impactos e superestimar os benefícios de obras públicas propostas. O mais notável neste caso
é o efeito de não contabilizar o impacto ambiental e social da estrada que é o impacto
potencial do fluxo de população para a Amazônia Central e para Roraima. Os impactos de
construir o leito rodoviário propriamente dito são mínimos quando comparado aos impactos
de alcance mais longo, tais como o fluxo populacional e o aumento da atividade de
desmatamento (e.g., Fearnside, 2005).
A necessidade por um repensar dos planos para reconstruir a BR-319 neste momento
é sugerida pelos altos custos ambientais e sociais e os benefícios modestos quando visto em
uma luz mais realística do que o discurso político atual. Os impactos poderiam ser reduzidos
na rodovia se uma decisão em pavimentar fosse adiada por vários anos e se fosse feito bom
uso do tempo interveniente. Uma alternativa que o governo do Estado do Amazonas faria
bem em explorar é a promoção de um serviço de cabotagem regular entre os portos de
Manaus e Santos. O porto de Manaus é capaz de receber navios oceânicos de todos os
tamanhos, mas o transporte é focalizado principalmente em mercados externos. Uma
resistência a isto pode ser esperada por empresários por questão de interesses financeiros da
atual operação de barcaças para Belém e Porto Velho. No entanto, esses mesmos interesses
também seriam contra o projeto de reconstrução da BR-319. Em 1996, havia 15 empresas
transportando carga geral para Belém e oito empresas para Porto Velho (Brasil, BNDES,
1998, p. 66 & 79).
12
O zoneamento ecológico-econômico do Estado do Amazonas, já foi realizado em
forma preliminar (Estado do Amazonas, 2001), mas precisa ser fortalecido e implementado.
Em Roraima foi concluído um zoneamento, mas foi deixado sem implementação porque o
órgão ambiental estadual não enviou a proposta de zoneamento à Assembléia Legislativa do
estado. Deveria ser enfatizado que a condição prévia necessária para a decisão de pavimentar
uma rodovia não é um plano ou um comitê, mas reais mudanças que sejam implantadas de
fato antes da aprovação ser concedida. Pressupõe-se que as medidas de mitigação que serão
implantadas simultaneamente com pavimentação da rodovia representam uma fórmula para o
desastre ambiental, como amplamente mostrado pela história da rodovia BR-364 (Fearnside,
1989b).
A criação de reservas e a sua implantação (incluindo a contratação de pessoal) ao
longo do eixo rodoviário é uma medida importante que precisa, não só estar no lugar antes da
rodovia ser aberta, mas antes que os efeitos de expectativas de uma futura pavimentação
corroam as possibilidades de criar tais áreas. As reservas podem formar barreiras paralelas à
rodovia para conter a expansão do desmatamento a partir das margens da estrada. No caso de
reservas extrativistas, estas oferecem também a possibilidade de manter a economia atual
baseada na colheita de castanha-do-Pará, uma atividade que é sacrificada onde o
desmatamento avança e onde os residentes locais são substituídos.
A falta de governância é um problema crônico na BR-319, assim como em outros
lugares na Amazônia. Ambos a agência ambiental federal (IBAMA: Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o órgão estadual (IPAAM: Instituto
de Proteção Ambiental do Amazonas) são muito fracos quando comparado aos desafios que
eles enfrentam. A execução de regulamentos ambientais é mínima, tanto para os que exigem
uma reserva legal de 80% em cada propriedade situada na parte da Amazônia onde a
vegetação original é de floresta, assim como para aqueles regulamentos que exigem as áreas
de proteção permanente (APPs) ao longo de cursos de água e em locais acidentados. Uma
combinação de sensoriamento remoto, campanhas de campo, e de cooperação íntima entre os
órgãos de execução e o sistema judiciário se mostrou eficaz em influenciar o comportamento
de desmatamento, a exemplo de Mato Grosso no seu programa de licenciamento e controle
de desmatamento de 1999 a 2001, quer dizer, sob um governo estadual prévio (Fearnside,
2003; Fearnside & Barbosa, 2003). Estes métodos ainda não têm sido aplicados no Amazonas
e nem em Roraima.
Um impedimento básico para uma governância melhor é a falta de um cadastro das
terras, que tornaria possível identificar quem possui qualquer determinado pedaço de terra.
Isto precisa ser feito sem legalizar as reivindicações tanto de grileiros ou dos pequenos
invasores. Embora um cadastro nacional esteja em preparação pelo INCRA, progresso neste
projeto de longo prazo ainda não alcançou a área da BR-319. O Instituto de Terras do
Amazonas (ITERAM) também ainda não teve sucesso em montar um banco de dados
georreferencidado das propriedades nas áreas que o órgão controla.
São necessárias mudanças fundamentais e de longo alcance, além de medidas mais
paliativas para conter o desmatamento por meio de zoneamento, criação de reservas e fazer
cumprir os regulamentos ambientais. A falta de alternativas de emprego precisa ser
endereçada em contextos urbanos e rurais. No contexto rural, fatores que agem para
desencorajar a contratação de trabalho incluem o fardo pesado de “custos sociais”, tais como
a previdência social. O mercado informal (não regulado) de trabalho domina em grande parte
13
do interior amazônico. Abusos como a escravidão por dívida são um resultado comum.
Este é um resultado lógico da governância fraca que arruína a execução de regulamentos de
todos os tipos.
Os tipos de uso de terra escolhidos desencorajam a criação de emprego rural estável.
A exploração madeireira é um empregador significante, mas a falta de sustentabilidade deste
uso da terra, até mesmo quando executado como parte de planos de manejo aprovados,
conduz a um movimento ininterrupto de serrarias e fronteiras de exploração madeireira. O
próprio processo de desmatamento emprega uma mão-de-obra significante na Amazônia, mas
necessariamente é um fenômeno efêmero em qualquer local (e, em longo prazo, na região
como um todo). O uso da terra predominante após o desmatamento é a pastagem, que
também emprega poucas pessoas. Onde o cultivo mecanizado de arroz e soja é lucrativo,
estes usos estão presentes em áreas crescentes. Esta forma de agricultura substitui a mão-deobra
braçal pela maquinaria e os herbicidas. Entre os fatores que desencorajam usos da terra
que empregariam mais pessoas em áreas desmatadas está o medo de que meeiros e/ou
trabalhadores contratados ganhem direitos de posse sobre a terra que eles cultivam.
Estratégias para evitar tais reivindicações de posse pela terra incluem a atual combinação de
usos da terra que exigem pouca mão-de-obra e a periódica expulsão e substituição de
trabalhadores e arrendatários.
O Brasil precisa enfrentar urgentemente o desafio de fazer a transição em deixar de
usar o costume de direitos de posse como uma válvula de escape para desigualdades e
injustiças de todos os tipos, assim como também por fim ao padrão de permitir e legitimar
apropriação de grandes áreas de terra pública por grileiros. Mais cedo ou mais tarde, este
costume fatalmente vai mudar, na medida em que chegam ao limite as áreas de floresta
disponíveis. Os benefícios ambientais e sociais seriam grandes se a transição pudesse ser
alcançada logo, bem antes que o País seja forçado a isto por falta de floresta adicional para
invadir.
Na maioria das partes do mundo esta transição já foi feita há muito tempo: pessoas
desempregadas que faltam os recursos para começar um negócio próprio enfrentam a opção
de buscar alguma forma de emprego, urbano ou rural. Nem ia passar pela cabeça de tais
pessoas a idéia de que elas teriam um direito inato de invadir qualquer terra “não utilizada”,
tal como terra pública na Amazônia, para começar uma propriedade nova. É claro que, em
alguma época no passado distante, os antepassados de praticamente todas as pessoas de hoje
reivindicaram terra por meio de simples ocupação. No Brasil esta forma de transferir terra
pública para o domínio privado persiste até os dias de hoje. Abandonar esta tradição requer
uma mudança na mente da população. É importante entender que tal mudança de atitude pode
acontecer: a tradição de ganhar a posse da terra através da ocupação não é uma parte fixa da
paisagem. Um exemplo é fornecido pelo assentamento da parte ocidental dos Estados Unidos,
cujo “fechamento da fronteira” em 1890 marcou o fim desta forma de assentamento
independente (Turner, 1893). Para este tipo de mudança acontecer no Brasil por algum meio
diferente do simples esgotamento de área de terra, precisa-se de algum marco visível. Se a
vontade política para uma mudança desse tipo vier ocorrer as rodovias BR-163 e BR-319
poderiam ser o momento decisivo para o Brasil.
V.) Conclusões
14
O custo ambiental não contabilizado de conectar a Amazônia Central com o “Arco
de Desmatamento” precisa ser incorporado no processo de decisão antes dela ser tomada
sobre a reconstrução e pavimentação da rodovia BR-319. Embora seja lógico, em uma escala
de tempo de décadas, esperar que a pavimentação desta rodovia se concretize, o custo
ambiental seria alto se isto for realizado sem primeiro preparar as áreas para as quais os
impactos potenciais estendem, inclusive Roraima. Estas preparações incluem zoneamento
ecológico-econômico, estabelecimento de reservas, e aumento do nível de governância, a
ponto que o impacto de um fluxo crescente de migrantes poderia ser contido. Mais
fundamentalmente, o Brasil precisa passar por uma transição de modo que a tradição secular
de conceder a posse da terra a migrantes que invadem áreas de floresta seja encerrada. Isto
significa prover uma válvula de escape para muitos problemas do País que não podem ser
sustentados, e é melhor substituir isto com oportunidades de emprego melhores em áreas
urbanas e rurais antes que esta transição no País seja forçada pela dizimação da floresta.
VI.) Agradecimentos
Ao Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq: Proc.
470765/01-1) e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA: PPI 1-1005) por
fornecer apoio financeiro. E.M. Nogueira ajudou no trabalho de campo e R.I. Barbosa
contribuiu com valiosos comentários. Agradecemos aos colonos e outros ao longo da BR-319
pela paciência e cooperação. Este trabalho é uma tradução de Fearnside & Graça (s/d).
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19
LEGENDAS DAS FIGURAS
Figura 1 – Brasil com locais mencionados no texto.
Figura 2 – A rodovia BR-319.
Figura 3 – Renda per capita nos estados brasileiros em 2002 (fonte de dados: IPIB, 2005).
Valores in Reais em 2002 (US$1 = R$ 2,28). Estados “ricos” tem renda per capita
acima de R$8 mil.
20
Fig. 1
21
Fig. 2
22
Fig. 3
COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO
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