sexta-feira, 22 de junho de 2012
RUY BARBOSA: A REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO
RUI BARBOSA E A REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO DE 1883:
PRIMÓRDIOS DA EDUCAÇÃO CORPORAL NO BRASIL
SILVA, Daniel Vieira da – UFPR
danielsilvacwb@terra.com.br
Eixo: Educação – História e Políticas
Agência Financiadora: CAPES
Resumo
Apoiados no referencial teórico oferecido pela ciência da história, tomamos o trabalho -
atividade social humana -, como categoria central para a formação e transformação da
consciência humana e, também, como mediadora dos questionamentos relativos à
perspectiva idealista que tem norteado as produções e reflexões relativas ao corpo na
Educação. Segundo esta orientação, o presente artigo analisa as propostas de
intervenção corporal, explicitadas no projeto sistematizado por Rui Barbosa, datado de
1883, relativo à reforma do ensino primário no Brasil, no sentido de apreender suas
conseqüências para o processo formativo do povo brasileiro. Embora restituindo no
indivíduo, um senso primário de unidade psico-orgânica, evidenciamos que as práticas
corporais institucionalizadas e desenvolvidas na e pela escola burguesa novecentista, ao
pretender formar o cidadão, o homem novo, o ser integral, de fato, preparou o campo
para o surgimento, no Brasil, de um novo homem, a saber: o trabalhador coletivo.
Palavras-chave: Psicomotricidade; Trabalho; Consciência; Escola burguesa.
Introdução
Ao pretendermos apreender a inserção da educação do e pelo corpo como
elemento da prática pedagógica, nos propomos a situá-la enquanto elemento de
formação social. Desta forma, adotando uma perspectiva de análise materialista,
histórica e dialética, acolhemos como norteadores para as reflexões que ora iniciamos,
os seguintes pressupostos:
· a apreensão de determinado fenômeno somente pode se dar à luz das
relações que este estabelece com os processos vitais do homem,
constituídos em determinadas condições históricas;
· a escola burguesa vem, desde seus primórdios, respondendo aos
imperativos orientados pelo desenvolvimento das forças produtivas e das
relações de produção;
· a transmissão do saber, tem como principal objetivo colocar o homemindividual
em relação com as apropriações efetivadas pelo homemgenérico,
de todo o sistema de objetivações, historicamente elaborado –
instrumentos, linguagem, ciência, etc;
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· o corpo enquanto elemento constituído pelo e constitutivo do processo de
produção, ocupa um lugar central na formação da infância; não só no que
tange ao desenvolvimento de habilidades motoras, mas, também, no sentido
de favorecer a incorporação de certos conceitos fundamentais e hábitos de
reflexão correspondentes aos imperativos sociais.
Apoiados, portanto, no referencial teórico oferecido pela ciência da história
tomamos o trabalho - atividade social humana -, como categoria central para a formação
e transformação da consciência humana e, também, como mediadora dos
questionamentos relativos à perspectiva idealista que tem norteado as produções e
reflexões relativas ao corpo na Educação.
Isto posto, evidenciamos que este trabalho analisa as propostas de intervenção
corporal, explicitadas no projeto sistematizado por Rui Barbosa, em 1883, relativo à
reforma do ensino primário no Brasil, no sentido de apreender suas conseqüências para
o processo formativo do povo brasileiro.
Os princípios da educação burguesa no Brasil
Nas últimas décadas do século XIX, o adensamento do processo republicano
brasileiro deixou evidente a necessidade de implementação, no Brasil, de uma nova
cultura. Contrapondo-se ao regime escravocrata, à monarquia, ao clero, entre outras
instituições herdeiras do feudalismo, os republicanos aspiravam elevar o país ao nível
das nações ocidentais mais desenvolvidas, respondendo aos imperativos de expansão do
liberalismo, do capitalismo industrial e agrícola, em nossas fronteiras.
Neste sentido, colocou-se como objetivo das elites brasileiras, sedimentar no
país uma ideologia que ratificasse o imperativo da defesa da propriedade privada, da
igualdade de direitos entre os homens, da liberdade individual, da livre iniciativa, da
democracia.
Para dar encaminhamento às contradições evidenciadas entre o ideal liberal e a
dura realidade implementada pelo modo de produção capitalista industrial, o qual,
concretamente, ao invés de expandir a igualdade, acentuou as diferenças, a ciência foi
convocada para, além de implementar o desenvolvimento tecnológico da produção, dar
sua contribuição respaldando argumentações referentes às disparidades do processo
social.
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De acordo com estes princípios, a teoria da seleção natural de Darwin ocupou
lugar central no processo de matrizamento da nova ordem e progresso em nosso país, na
medida em que a burguesia nacional elegeu, ao lado do positivismo comteano, o
spencerismo1 ou darwinismo social, como pilares do modelo para a consolidação da
nova sociedade brasileira.
Se pela via do positivismo, as elites brasileiras enfatizaram a importância da
ordem e da hierarquia para o progresso social, pela via do spencerismo, justificaram a
sua naturalização. Sob o mote - “sobrevivência do mais apto”- e tomando como
referência de grau evolutivo superior, o modo de vida da população mais abastada dos
países ricos, Herbert Spencer advogava a idéia de que as diferenças sociais seriam
resultado natural de um processo evolutivo, oriundo do conflito e da competição entre
os homens. Aplicando a tese darwiniana da seleção natural às sociedades humanas,
Spencer procurou justificar as diferenças de classe, de poder aquisitivo, de habilidades
cognitivas, de valores morais. Pautado no argumento científico positivo, ofereceu um
modelo explicativo, dentre outros fatos, para a ocorrência da expansão da pobreza pósrevolução
industrial, para o imperialismo europeu sobre as nações menos desenvolvidas
bem como, para a idéia de superioridade da raça branca frente às outras raças.
Se, na seleção natural de Darwin, a questão da sobrevivência e da evolução
passava pela adaptação dos seres aos determinantes da natureza, no spencerismo a
superioridade do indivíduo se daria por um processo crescente, de sucessivas adaptações
aos imperativos da nova sociedade, sociedade esta, pautada no conhecimento científico
e na tecnologia. Sendo assim, este modelo filosófico além de buscar justificativas para o
fato, por exemplo, de o capitalista ocupar o topo da cadeia “sócio-evolutiva” - visto que
alcançou o domínio da teoria da ciência e a propriedade dos meios de produção -, ou
justificar o lugar de subordinação ocupado pela maioria trabalhadora - na medida em
que “suas mãos”, tão carentes de evolução quanto sua capacidade de pensamento,
dependiam do planejamento e da propriedade alheia para materializar sua força de
1 Segundo Gomes e Lhullier, “[o] spencerismo procedia das teorias de Herbert Spencer (1820-1903) e se
caracterizava por uma visão evolucionista baseada em um princípio comum e incognoscível, abrangendo
da matéria à vida, da vida à consciência. Era uma teoria que defendia à hereditariedade das qualidades
adquiridas. A psicologia, para Spencer, estaria ao lado da biologia. As capacidades psicológicas seriam
funções adaptativas que levariam o humano a um melhor convívio com o ambiente e consigo mesmo.
Neste sentido, o evolucionismo de Spencer culminaria com o individualismo que seria orientado para uma
perfeição possível, assentada na liberdade, na ética e na moral”. (GOMES,W.B.; LHULLIER, C.
Formação Intelectual de Porto Alegre. s/d. Disponível em: www.ufrgs.br/museupsi/PSI-RS/Chap1.htm.
Acesso em: outubro de 2006.
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trabalho em mercadorias -, também, deixava em aberto a possibilidade do trabalhador,
caso se empenhasse, por gerações seguidas, em adaptar-se aos imperativos da nova
sociedade, de um dia poder conquistar habilidades e propriedades que lhe permitiriam
ascender ao lugar de indivíduo dominante na estrutura social.
Tomando como ponto de partida a orientação burguesa do livre jogo das forças
individuais e depositando no indivíduo a responsabilidade pelos problemas e
contradições sociais, Herbert Spencer, se posicionava contra a intervenção do Estado na
economia e na educação - para ele, tanto as empresas quanto os indivíduos estavam
sujeitos ao princípio da auto-adaptação, imposto pelos desígnios do mercado. Porém, ao
analisar as necessidades da agenda capitalista novecentista, frente às condições de vida
e de formação – sobretudo, moral - da população trabalhadora, este filósofo inglês
defendeu a importância da transmissão de rudimentos científicos para o proletariado. A
defesa tanto de Spencer quanto de Comte ao ensino da ciência - ciência enquanto
conhecimento prático, utilitário -, evidenciava uma clara oposição destes filósofos
contra o ensino religioso, o qual, segundo eles, pouco podia contribuir para uma
sociedade movida pela técnica e pelo paradigma da ordem e progresso.
Tendo em vista, portanto, a necessidade de disciplinar os trabalhadores e tornálos
aptos para o trabalho livre e regular, de prepará-los para a vida política e de criar um
senso coletivo de pertencimento nacional num país de dimensões continentais,
culturalmente muito diverso, a classe dominante brasileira se valeu das contribuições de
filosóficos, políticos e reformadores da sociedade, dentre os quais Spencer e Comte.
Estes, embora não fossem educadores, na acepção da palavra, desenvolveram
teorizações que serviram de alicerces ideológicos sobre os quais ergueu-se a nova nação
brasileira e seus aparelhos de difusão e sustentação, dentre os quais, a escola burguesa
para todos.
No Brasil, dos intelectuais que desempenharam papel fundamental na
instauração da nova ordem social no país e disseminação dos ideários do darwinismo
social e do positivismo, destacamos Rui Barbosa o qual, além de outras contribuições,
sistematizou o projeto Reforma do Ensino Primário e várias instituições
complementares da instrução pública, de 1883.
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Seguindo a tendência dos países industrializados, à nova escola2, como eram
chamados os aparelhos de ensino do movimento brasileiro de escolarização de massa no
século XIX, se colocaram alguns desafios. Destes, destacamos quatro: a) confrontar e
desarticular a estrutura do ensino tradicional; b) distribuir o conhecimento a partir de
uma proposta de ensino-aprendizagem ativa e econômica; c) confrontar e derrotar, como
disse Rui Barbosa, a “chama sinistra das paixões niveladoras”, explicitando uma clara
perspectiva anti-socialista e anti-anarquista; d) implementar a inserção e adequação do
trabalhador ao processo industrial capitalista.( BARBOSA, 1886; SOUZA, 2000;
MONTEIRO, 2000; VALDEMARIM, 2000)
Ao delinear as perspectivas metodológicas para a escola da modernização,
Barbosa atacou veementemente o verbalismo e o anacronismo do ensino tradicional,
propondo um processo escolar “natural”, empírico e enciclopedista, de acesso ao
conhecimento, tendo em vista as necessidades de rápida expansão do ensino entre as
camadas populares e da exigüidade de investimentos para tal.
Além dos aspectos econômicos, o projeto reformista de 1883, no capítulo
intitulado Economia Política, Barbosa explicita com bastante clareza os objetivos
político-pedagógicos de sua proposta. Iniciando pela pergunta – Tereis educado as
classes populares, as camadas operárias e as partes menos afortunadas e mais
duramente laboriosas da nação, se lhes não incutirdes, pela evidência das leis naturais,
a convicção do caráter providencial das desigualdades, em que a riqueza divide os
homens ainda no seio dos Estados mais felizes? -; é o próprio autor quem encaminha a
seguinte argumentação:
Se quereis, pois, cimentar a ordem necessária das sociedades em bases
estáveis, é na escola que as deveis lançar. É antes de experimentar as
primeiras agruras, as primeiras feridas do combate pela existência, que
o futuro trabalhador há de sentir, pela direção da cultura que
receberem as suas faculdades nascentes, o valor supremo, a
inviolabilidade absoluta dos interesses que presidem à distribuição das
categorias socais pela herança, pelo merecimento e pelo trabalho.[...]
Só então o seu espírito disporá da lucidez precisa, para se revestir em
tempo do tríplice bronze do bom-senso contra as loucuras socialistas,
contra os ódios inspiradores de subversão revolucionária, e
compreender que o nível da demolição, preconizado pelos inventores
de organizações sociais em nome da igualdade universal, representa
em si, pelo contrário, a mais tenebrosa de todas as opressões, a mais
2 Importante ressaltar a distinção desta denominação em relação àquela representativa do movimento
educacional brasileiro intitulada, nos anos de 1920, Escola Nova.
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bárbara de todas as desigualdades, a mais delirante de todas as
utopias.[...] Ora, se, para atuar nesse indivíduo, não lhe encontrardes
no espírito certos conhecimentos fundamentais e certos hábitos de
reflexão, que probabilidade haverá de persuadirdes a um faminto de
que o capitalista não é um ladrão privilegiado? [...] é de todas as
matérias de estudo que deve resultar a ação moralizadora: eis a
fórmula de toda educação eficaz.( BRASIL, v.X.; t.II, 1947:361-70)
Partindo destas argumentações, evidenciamos os princípios da educação de
massa inaugurada no final dos anos de 1800, qual sejam: formação de pré-requisitos
para a expansão do processo capitalista na nação, através do ato de inculcar-se
precocemente, certos conhecimentos fundamentais e certos hábitos de reflexão que
confirmassem, justificassem e auxiliassem no processo de universalização da ideologia
burguesa e utilitarista entre a população menos valida.
O corpo no processo formativo do “novo homem” brasileiro
Ao explicitar os elementos básicos da prática pedagógica, o projeto de Rui
Barbosa ressalta a importância de uma metodologia pautada na experimentação direta
da realidade, mais precisamente, na centralidade da experiência sensorial. Seguindo este
propósito, tal abordagem colocou o corpo na centralidade do processo formativo.
Se, no ensino tradicional, o corpo era secundarizado e concebido como fonte de
impurezas perturbadoras da sublimação, devendo ser higienizado pelo suplício, na nova
escola esta dimensão humana foi, também, objeto de higienização/cuidado, porém,
através de exercícios físicos e atividades lúdicas, orientadas pelo pressuposto de uma
íntima ligação entre cerebração e musculação.3
Deste modo, a pratica pedagógica evidenciada pelo referido projeto partiu do
princípio de que aquilo que penetra a mente humana, sobretudo na primeira infância,
pela via dos sentidos, pela experiência corporal, fixa-se na memória de maneira
indelével. Neste sentido, o mentor da reforma de 1883, evidenciando um nítido
3 O período descrito por Le Camus, no qual prevalecem práticas corporais pautadas na relação
cerebração-musculação, ou seja, voltadas a criar um corpo hábil, circunscreve-se entre o final do século
XIX até por volta de 1940. A orientação científica sob a qual se desenvolvem as diversas teorias e
práticas deste período, denominou-se paralelismo psicomotor, o qual, pautado pela evidência de uma
interdependência entre cerebração e musculação, segundo uma ótica localizacionista, mecanicista e
impregnada do dualismo cartesiano mente-corpo, concebia o corpo numa condição passiva, de
“receptáculo da tradição”. Ao apresentarmos, mais adiante os contexto e concepções relativos à
Psicomotricidade, aprofundaremos esta questão. (LE CAMUS, 1986.)
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engajamento ao espírito spenceriano, sintetiza que [não] é outro o segredo do método
intuitivo, senão tratar o menino como criatura, que possui em si mesma o instinto do
saber e todas as faculdades precisas para o adquirir: o seu empenho [dos professores]
está em deixar entregue a si própria a natureza, tanto quanto se possa. (BRASIL, v.X.;
t.II, 1947:361-70)
Orientado por um princípio educacional pautado no utilitarismo, discutindo o
papel da Educação Infantil, Barbosa, ao tomar a proposta norte-americana de ensino
infantil como referência, revela o engajamento deste nível da educação com os
princípios liberais capitalistas, da seguinte forma:
É sob o aspecto industrial que a nossa experiência dos jardins de
crianças promete os mais satisfatórios resultados. Numa idade tenra,
quando o menino, como matéria plástica, se pode amoldar à vontade,
começa uma educação apropriada a infundir-lhe a perícia da mão e a
segurança do olhar. Várias espécies de mimosos trabalhos manuais
formam-lhe a percepção, desenvolvem-lhe o gosto e exercitam-lhe a
habilidade. (Brasil, v. X –1883, t. III., 1947:69).
Pela citação acima, fica evidente que os pré-requisitos a serem desenvolvidos
nos anos de Jardins referem-se ao desenvolvimento de habilidades preparatórias para o
trabalho fabril nos seus aspectos mais primários: amoldar [a] vontade - desenvolver a
obediência, objetivar a atenção e a disposição -, isto quer dizer criar pertinência para as
determinações do processo produtivo; infundir-lhe a perícia da mão e a segurança do
olhar - clara menção ao desenvolvimento da coordenação óculo-manual e viso-motora,
aspectos da motricidade humana importantíssimos para a precisão do movimento. Além
disto, o preparo precoce para a subsunção da força de trabalho pelo capital se dava sob a
aparência de mimosos trabalhos manuais, fato que se contrapunha, veementemente, ao
tratamento recebido pelos indivíduos, uma vez inseridos no processo produtivo.
Embora o texto da proposta de reforma do ensino, de 1883, não se valha do
termo Psicomotricidade, podemos dizer que as intervenções corporais nos kindergartens
tinham como fulcro a intervenção precoce sobre os aspectos do desenvolvimento
psicomotor. Nossas considerações se evidenciam com maior clareza na citação
reproduzida abaixo, de autoria de Willian Harris, superintendente da instrução pública
de S. Louis/Missouri. Diz ele:
…se a escola há de conter alguma preparação especial para as artes e
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ofícios, só o kindergarten se poderá desempenhar desse propósito. A
educação dos músculos – a ser certa a sua necessidade para a destreza
nos trabalhos de manipulação – há de principiar na primeira infância.
À maneira que se adiantam os anos, mais difícil se vai tornando o
adquirir novos gêneros de agilidade manual. A prática habitual de
empunhar os objetos com a mão direita, logo no primeiro ano da vida,
torna dextro para sempre o menino.Os músculos, de uma consistência
ainda branda são mui fáceis de adaptar em todas as direções.
Semelhantemente, a criança educada por um ano no uso das dádivas e
exercícios de Froebel adquirirá uma agilidade de mãos e uma certeza
de medição visual, que lhe dure para a vida inteira. (HARRIS, in
BRASIL, v. X –1883, t. III., 1947:70).
Uma vez que era clara a utilização dos processos (pré) escolares para remediar
a necessidade de aliciar o elemento humano para a atividade manual, fomentando,
precocemente, o gosto pelos ofícios mecânicos, desenvolvendo habilidades motoras,
organizando comportamentos e formas de pensar, podemos inferir que a ênfase dada
pelos educadores para que os jardins fossem lugares agradáveis, tinha como um de seus
princípios norteadores relacionar, no imaginário infantil, a idéia de prazer, à de trabalho
manual, obediência e disciplina.
Neste sentido, a atribuição das instituições de Educação infantil enquanto lugar
de cuidado a infância, voltado a liberar/incentivar a mão de obra adulta para o trabalho
fabril, fica qualitativamente ampliada. A extensão disto, ficará ainda mais clara quando
analisamos os objetivos das práticas corporais propostas no documento de Babosa, para
os jovens e adolescentes, instrução complementar àquela destinada à primeira infância.
Enquanto a prática educativa dos jardins, no projeto reformista de 1883,
orientou uma prática de abordagem corporal suave, envolta numa égide de ludicidade e
criatividade, para além da primeira infância as práticas corporais tomaram um sentido
adicional: partindo de um tipo de ginástica vigorosa, procurou-se estimular a virilidade
e a atitude combativa na juventude nacional. Tais práticas centravam-se, sobretudo, nos
exercícios higienistas/militaristas, na atualidade, implacavelmente combatidos pelos
profissionais da Educação Física. Para se ter uma idéia a respeito da unidade
higienismo/militarismo/nacionalismo, trazemos a seguinte citação, a qual ressalta a
ratificação de Barbosa à opinião de Braun, inspetor das escolas normais da Bélgica:
Seria, portanto, uma lacuna imperdoável omissão dos exercícios
militares num plano de reorganização do ensino popular. Quer como
meio de lançar nos hábitos da mocidade a base da defesa nacional,
quer como escola das virtudes varonis do patriotismo, quer como
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princípio influidor de elevadas qualidades morais, este ramo de
instrução encerra um valor considerável, e representa um papel
essencial. “Além do benefício que deles provem à saúde”, diz o
inspetor das escolas normais belgas, “ao desenvolvimento do vigor e
da destreza, são um precioso elemento de ordem, regularidade e
disciplina”. (BRAUN, in BRASIL, v. X –1883, t. II., 1947:94.)
Vigor e destreza física, ordem, regularidade e disciplina - entendendo-se
disciplina como atenção forte e viva, obediência pronta, império do indivíduo sobre si
mesmo, silêncio, paciência, respeito à autoridade -; não são estes, os elementos básicos
necessários a uma boa força de trabalho?
Adotando o discurso do Dr. T. Gallard, Barbosa vai além em suas
argumentações sobre os benefícios do militarismo-higienismo:
Referindo-se ao uso das armas nos exercícios militares da escola,
pondera um higienista: “Este exercício encerra, entre todos, a enorme
vantagem de permitir a quem o executa a ação simultânea e
perfeitamente coordenada de todas as partes do corpo. A arma tem
certo peso; passa de um ao outro braço; durante esses movimentos as
pernas são alternativamente levadas já para frente, já para a
retaguarda, a fim de estabelecer o equilíbrio. Essa necessidade de
equilibrar-se, maneando um objeto de tal peso, determina nos
músculos do tronco e do colo contrações, que os fazem participar, em
proporções justas, dos movimentos executados pelos membros. Não
há, enfim, nada mais capaz de desenvolver a agilidade, e infundir
precisão aos movimentos, do que esse hábito de manobrarem os
alunos ombro por ombro uns com os outros, sem se embaraçarem
mutuamente. (GALLARD, in BARBOSA, v. X –1883, t. II., 1947:94-
95)
Como podemos observar, a prática corporal na Educação Infantil, seguindo os
pressupostos norte-americanos de industriosidade, funcionava como atividade
preparatória para a atividade produtiva manual e a esses objetivos, nas idades mais
avançadas, também se adicionaram os de segurança nacional.
Por fim, ressaltamos que a preocupação em religar teoria à prática, mente ao
corpo, desenvolver o cérebro através de exercícios corporais, argumento central da
formação do novo homem, tinham seus limites muito bem colocados. Isto se revela,
claramente, pela citação abaixo, adotada de Spencer, por Barbosa. Disse ele:
A primeira condição de felicidade neste mundo, bem reflete um
pensador, é ‘ser um bom animal’, e a primeira condição de
prosperidade nacional é que a nação seja composta de bons animais.
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Não só é freqüente depender o desfecho das guerras da força e
ardimento dos soldados, mas ainda é certo que, nas lutas industriais
também, a vitória é inerente ao vigor físico dos produtores. (Brasil, v.
X –1883, t. II., 1947:75.)
Pelo até aqui exposto, fica explícito que as práticas pedagógicas enaltecidas
pelo projeto de Reforma do Ensino Primário de 1883, pressupondo uma íntima ligação
entre processos cerebrais e processos motores, foram convocadas, desde a Educação
Infantil, a respaldar o ideário liberal constituindo, parafraseando Barbosa, certos
conhecimentos fundamentais, certos hábitos de reflexão e de viver, que pudessem
acolher como natural: as desigualdades materiais; a hierarquia social; a divisão do
trabalho; a exploração do trabalhador como fundamento do progresso e constituição da
nação; a defesa, com a própria vida, da propriedade alienada; a instrução formal como
pressuposto e possibilidade de participação política e mobilidade social.( MONTEIRO,
2000.)
Desta maneira, a formação disponibilizada pela classe dominante aos menos
favorecidos, ao mesmo tempo, que mitigou a ignorância e as condições de vida da
população trabalhadora, o fez na medida de seus interesses. Criando, desde a mais tenra
idade, um senso de estranhamento, para não dizer de oposição, entre o modo de vida
proletário e a promissão liberal, a criança da classe trabalhadora foi conduzida à escola,
mais para subtrair-se de sua própria classe social e adquirir a mentalidade imposta por
seu próprio inimigo, que para apropriar-se das condições de vida e do conhecimento
produzido coletivamente. Além disto, as técnicas de intervenção sobre o corpo,
implementadas na origem da escola burguesa, seguindo a simplificação resultante da
divisão do trabalho sobre a atividade humana, ao abordarem o corpo humano, desde a
primeira infância, numa perspectiva enciclopedista e utilitarista, reduziram as condições
de apropriação e utilização do corpo e, conseqüentemente, de desenvolvimento da
consciência, na perspectiva de Leontiev, ao nível operacional. Deste modo, embora
restituindo no indivíduo, um senso primário de unidade psico-orgânica, podemos dizer
que as práticas corporais institucionalizadas e desenvolvidas na e pela escola burguesa
novecentista, ao pretender formar o cidadão, o homem novo, o ser integral, de fato,
preparou o campo para o surgimento, no Brasil, de um novo homem, a saber: o
trabalhador coletivo.
Se por um lado as contribuições da escola burguesa prepararam os corpos e os
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espíritos para alavancar o projeto capitalista nacional, para a maioria dos brasileiros isto
representou a condição da própria alienação. Eis a origem da educação do e pelo corpo
em nosso país.
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REFERÊNCIAS
BRASIL – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa. v. X –
1883, t. II – Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da
instrução pública. Rio de Janeiro, RJ.: Imprensa Nacional,1947:59-60. (Sic.)
Brasil – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa.. v. X –
1883, t. III. – Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da
instrução pública. Rio de Janeiro, RJ.: Imprensa Nacional, 1947:69.
LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1986.
MONTEIRO, Regina Maria. Civilização e cultura: paradigmas da nacionalidade.
Campinas - SP: Cadernos Cedes, ano XX, n.51, 2000.
SILVA, Daniel Vieira da. A Psicomotricidade como prática social: uma análise de
sua inserção como elemento pedagógico nas creches oficiais de Curitiba (1986-
1994). Curitiba, PR: Universidade Tuiuti do Paraná, Coleção Dissertações, 2007.
SOUZA, Rosa Fátima de. Inovação educacional no século XIX: a construção do
currículo da escola primária no Brasil. Campinas- SP: Cadernos Cedes, ano XX, n.51,
2000. 09-28
VALDEMARIN, Vera Teresa. Lições de coisas: concepção científica e projeto
modernizador para a sociedade. Campinas- SP: Cadernos Cedes, ano XX, n.52, 2000.
74-8.
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