sexta-feira, 22 de junho de 2012
A REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO (RUY BARBOSA)
Biblos, Rio Grande, 16: 145-156, 2004. 145
RUI BARBOSA E A REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO*
LARISSA CAMACHO CARVALHO**
RESUMO
O presente trabalho constitui um estudo da carreira de Rui Barbosa e uma
análise de alguns aspectos do seu projeto sobre a Reforma do Ensino
Primário. Podemos perceber a grande influência de Rui na formação
contemporânea do nosso país, mas, na educação, esquecemos seu
legado, talvez pela falta de memória histórica. Neste trabalho, procuramos
apresentar, de forma resumida, algumas questões levantadas por Rui
Barbosa sobre o ensino primário e, mais especificamente, sobre a reforma
no ensino de História.
PALAVRAS-CHAVE: Rui Barbosa; reforma do ensino primário; ensino de História;
liberdade de ensino.
1 – INTRODUÇÃO
Todos conhecemos a figura de Rui Barbosa, sabemos que era
eminente político brasileiro, grande orador, advogado, erudito. Porém,
poucos sabemos que se preocupava com educação, com instrução
pública e que foi o relator de um projeto sobre a Reforma do Ensino
Primário, bem como de outro a respeito da Reforma do Ensino
Secundário e Superior. Este ensaio irá discorrer sobre partes deste
trabalho de Rui Barbosa. Não serão comentados seus projetos de
reforma por inteiro, mas somente as partes de maior interesse, e que,
por intermédio das quais, poderemos ter uma idéia sobre o ensino no
Brasil à época de Rui Barbosa, e o que ele propunha naquele tempo,
com ênfase no ensino de História.
2 – RUI BARBOSA
Rui Barbosa nasceu no dia 5 de novembro de 1849 na Bahia.
* Trabalho desenvolvido na disciplina de História do Pensamento Político Brasileiro
ministrada pelo Professor Doutor Francisco das Neves Alves – FURG.
** Acadêmica do curso de História – Bacharelado da Fundação Universidade Federal do
Rio Grande.
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Filho de João Barbosa (político liberal) e Maria Adélia. O primeiro
professor de Rui foi Ibirapitanga. Seu João Barbosa, após descobrir que
o filho tinha talento para a oratória e a erudição, fê-lo ensaiar desde os
cinco anos de idade. Rui estudou no colégio "Ginásio Baiano", que tinha
como diretor Abílio Borges – educador flexível –, que abolira da sua
escola o castigo corporal.
Rui viveu, através de seu pai, a catastrófica derrubada de 1868
que substituíra liberais por conservadores. Até este momento, Rui
Barbosa era indiferente à política, não se envolvia, mesmo o pai fazendo
parte dela. Mas, com este acontecimento, o "lutador" Rui acordara.
Deste ânimo de espírito, surgiria Humanidade, primeiro poemeto de Rui
– que nada tinha de monarquista, onde até mesmo afirmava que
os reis eram o flagelo da humanidade –, tentando reproduzir o velho
estilo da moda de Vitor Hugo no que se refere aos ataques políticos. Rui
pronunciou seu primeiro discurso num banquete oferecido ao professor
de direito e deputado José Bonifácio, onde jovens exaltados investiam
contra o imperador. A partir de então, Rui nunca mais sairia da política.
D. Maria Adélia veio a falecer e a renda da família – venda de
doces que a mãe de Rui fazia e dava para os escravos venderem desde
que seu esposo, pai de Rui, não quis ser médico e não queria ter de
trabalhar e sair da vida política – escasseara-se, e o Sr. João não tinha
meios de sustentar os estudos do filho em São Paulo. Mas um amigo
seu lhe estendeu a mão, João Moura, e Rui pôde continuar os estudos.
Foi com enorme gratidão que Rui lhe escreveu uma carta comovente de
agradecimento pela atitude do benfeitor.
Funda – aos moldes do Clube da Reforma, da capital, criado
pelos liberais afetados pela derrubada de 1868 – o Radical Paulistano,
cujo veículo das idéias dessa associação será um jornal que unia Luiz
Gama, Américo de Campos e Bernardino Pamplona, e Rui seria um dos
redatores. A mocidade da época de Rui Barbosa estava alvoroçada
pelos ideais republicanos; mesmo os liberais estavam com medo dessas
idéias, visto terem insuflado algo do qual perdiam o controle. Rui
oscilava entre os ideais de seus colegas e seu pai, que era liberal. Perto
de acabar a Faculdade de Direito, uma doença abateu-se sobre Rui;
misteriosa, não houve diagnóstico definido. Penalizados, os professores
facilitaram-lhe a realização dos exames, e ele termina o curso
regressando para a casa de seu pai.
Nesse ínterim, é fundado o Clube Republicano com Saldanha
Marinho a frente, e, em seguida, Bernardino Pamplona, que, em 1870,
dois dias depois de publicado o Manifesto Republicano, escreve a Rui
pedindo-lhe sua adesão aos ideais republicanos e a publicação do
manifesto na Bahia. Porém, Rui, agora mais próximo de seu pai, está
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"frio" nos novos ideais, e o Manifesto não é publicado na Bahia. João
Barbosa, relegado ao ostracismo, tem que se mudar para Plataforma,
cidade próxima da capital da Bahia, para aí fabricar e vender tijolos,
tendo em vista a situação financeira precária em que se encontrava.
Rui, doente, acompanha o pai, mas nem o ambiente calmo lhe cura.
Mesmo assim, o rapaz decide começar a vida.
Nas suas idas à capital, encontrava-se com antigos
correligionários do pai, e todos o admiravam. Dentre eles estava Manoel
Dantas, renomado político e jurista que convidou Rui para trabalhar com
ele em seu escritório. Dentro em breve Rui já era amigo de toda a
família e, especialmente, de Rodolfo Dantas, um dos filhos de Manoel.
No final de 1872, Plataforma foi vendida e Rui teve de retirar-se,
juntamente com seu pai, do retiro em que, por muito tempo, ficou. Volta
para a cidade e vai residir muito próximo da redação do jornal Diário da
Bahia, propriedade de Manoel Dantas. Para Rui, foi um acontecimento
notável; ia diariamente até à redação e, logo, tornou-se um dos
redatores do jornal. Rui realizava belamente seu trabalho, embora um
pouco vaidoso e sem valorizar muito os trabalhos dos colegas.
Mas a doença novamente abateu suas forças. Embora nunca
houvesse sido curada, agora, o mal era constante. Indicaram-lhe a
Europa e, quando os Dantas retornaram das férias, traziam Rodolfo
doente. Foram todos à Europa, inclusive Rui, convidado pela família.
Não obteve diagnóstico eficaz, indicaram-lhe repouso, até que seu pai,
numa das tantas buscas pela cura do filho, ouve falar de um médico
português que passava pela Bahia, Pedro Alvarenga. Este examina Rui
e diagnostica-lhe fome; era esse seu problema, uma anemia cerebral.
Rui novamente começa a viver.
Em novembro de 1874, João Barbosa morre acometido de uma
inflamação intestinal que lhe confere apenas três dias para despedidas.
Rui, agora, conta somente com sua irmã, mas seu pai, antes de sucumbir,
confere-lhe a ajuda de Manoel Dantas. No ano de 1875, o país é invadido
por idéias ditas inglesas trazidas pelo imperador a respeito do serviço
militar obrigatório; Rui se opôs fortemente. O conselheiro Souto, amigo de
Rui, após a morte da primeira noiva do rapaz, deseja uni-lo a outra dama
para vê-lo menos triste e sofrido com as tantas perdas que tivera de forma
tão rápida. Souto, que reunia em sua casa vários moços, pois era afeito a
"realizar matrimônios", apresenta Rui a Maria Augusta Viana Bandeira,
filha de simples funcionário público – o lado pobre da família Ferreira
Bandeira. Rui apaixona-se e, em 1876, está noivo de "Cota".
João Barbosa, ao morrer, além da herança literária que deixara
aos filhos, legara-lhes uma outra, um tanto dolorosa: dívidas. Rui tomouas
a si e isso, durante muito tempo, foi aguilhão para o rapaz. Foi sua
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noiva, menos idealista que Rui, quem lhe indicou o caminho para o
restabelecimento: mudar-se para a corte. Rui, com a ajuda financeira do
conselheiro Souto, chega no Rio com carta de recomendação
de Manoel Dantas; rapidamente torna-se conhecido na corte, era
corajoso e talentoso. Muitas dificuldades encontra no Rio de Janeiro,
mas as várias cartas de seus amigos da Bahia, principalmente Rodolfo,
enchem-no de persistência. Permanece na Corte e, em 27 de julho de
1876, ganha seu primeiro dinheiro no Rio por serviços prestados na
área da advocacia.
Advém a questão religiosa – que desde 1873 levantava-se no
país – e Rui, novamente em contato com Saldanha Marinho, que era
ferrenho adversário do poder da Igreja, é contaminado com a
repugnância do "pendão negro de Roma"1. Rui tivera uma educação
católica dos seus pais, e até interveio a favor dos prelados por ter-se
afeiçoado ao bispo do Pará pela convivência no colégio do Dr. Abílio,
nos primórdios da questão religiosa. Por isso, agora, estava dividido, e
muito estudou até tornar-se antipapista. Foi convidado por Saldanha
Marinho para traduzir O Papa e o Concílio, atribuído a Doellinger. Era
uma acusação veemente contra o Vaticano. Saldanha bancaria a
empreitada. Antes de publicá-la, Rui casou-se, com medo de a
publicação ser motivo para a não-aceitação de seu casamento na Igreja.
Após o casamento, o livro foi lançado e o que surpreendeu foi a
introdução do livro feita por Rui, que era maior que a própria obra.
O país movimentou-se ou empolgados com Rui ou "irados" contra
ele. Em 1877, Rui regressa à Bahia. Em 1878, o Gabinete conservador
é substituído por um liberal. Rui é eleito deputado na Bahia – a vitória,
agora, parecia sem gosto. Mas uma questão vem colocar à tona os
dotes de Rui Barbosa: uma seca no norte havia espalhado a fome, e a
farinha escasseava na Bahia por causa de sua exportação em
conseqüência dos altos preços. Um projeto de lei proibindo a exportação
foi enviado à Câmara, Rui inflamou-se no combate à exportação da
farinha e, ao mesmo tempo, investiu contra o tio paterno – Luiz Antônio
–, que era dissidente liberal e fora inimigo de seu pai, pela dissidência
partidária, até a morte deste. Outros acontecimentos ocorreram
sucessivamente, até que o gabinete do visconde de Sinimbu cai devido
às mortes provocadas pela polícia, tendo em vista as manifestações
populares contra o aumento das passagens do bonde.
Assume Saraiva, antigo "fiel" conservador, agora liberal. Quando
foi convocado, estava passando suas férias na Bahia e queria retornar
ao Rio com um projeto de lei da eleição direta pronto. Mas, segundo
1 VIANA FILHO, 1941, p. 49.
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contemporâneos, não tinha habilidades para tanto, e, aconselhado por
Dantas – Ministro da Justiça do novo governo –, confia a elaboração do
projeto a Rui.
Corre o ano de 1880 e o projeto "de Saraiva" é iniciado em sua
execução. Em 1882, Saraiva cai e passa o governo para outro liberal –
Martinho Campos. Este escolhe Rodolfo Dantas para o ministério do
Império. Rui não cabe em si de alegria e vê aí a oportunidade de realizar
alguns sonhos recônditos, de arquitetar alguns planos de ação, de,
finalmente, realizar algumas idéias sobre instrução pública. Seu pai lhe
incutiu esse misto de respeito e amor pela educação e instrução pública,
talvez agora pudesse dar a atenção merecida ao assunto.
Daí Rui pôs mãos à obra e, após juntar os materiais necessários,
apresentou à Câmara um grande projeto sobre a "Reforma do ensino
secundário e superior". Firmava as opiniões do projeto em vários
autores conhecidos, apresentava de forma brilhante as justificativas,
mas seus contemporâneos – embora admirassem a erudição e
inteligência do autor – achavam o projeto inadaptável ao país. Rui assim
não pensava, e aproveitar-se-ia de Rodolfo no ministério, por ter carta
branca para agir, para levar o projeto à prática. Rodolfo também
incumbiu Rui de escrever a parte do relatório que deveria apresentar
como ministro sobre a instrução pública, e tudo parecia rosas na vida de
Rui. Mas, um mês após Rui escrever esse relatório, o ministério cai e
ele novamente desconsola-se.
Sobe no ministério o visconde de Paranaguá, com o qual Rui
havia se desentendido, mas por ser do partido liberal, Rui não o poderia
atacar. Manteve-se, por algum tempo, afastado da política. Quando
Lafaiete estava no poder, pediu ao Imperador que obsequiasse a Rui o
título de conselheiro pelos serviços prestados com respeito à instrução
pública, no que D. Pedro II consentiu, mas antes mesmo de assinado o
decreto, cai Lafaiete. Após consultar alguns nomes, o Imperador
escolhe Manoel Dantas para primeiro ministro, que aceita prontamente.
Rui vê-se diante da oportunidade de uma chance no ministério.
Como não é procurado pelo amigo, vai ao seu encontro, e, ao chegar na
casa dos Dantas, escuta Manoel dizer-lhe que estava ministro, se
quisesse. Mas acrescenta à fala uma restrição em voz baixa – tens a
reeleição segura? –, Rui sente que Dantas recua. Realmente Rui não é
indicado para o ministério, e perde a reeleição na sua terra. A esposa de
Dantas diz a Maria Augusta que as dívidas de Rui o atrapalhariam no
ministério. Rui trabalha duro e, num impulso profissional, consegue
quase quitar as dívidas. Ele retorna à Câmara e recebe de Dantas a
liderança parlamentar do gabinete.
Rui era abolicionista, defendendo este ideal junto à imprensa na
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maioria das vezes com pseudônimos. O projeto do governo sobre a
emancipação dos sexagenários, apresentado à Câmara por Rodolfo
Dantas, foi escrito por Rui. O ano de 1888 foi o ano em que a "questão
militar" estava insuflada. Além dela, a abolição andava a passos largos.
Com o imperador ausente, mais um ministério caiu, e a princesa Isabel
tratou, ela mesma, da substituição. Ela objetivava, também, a abolição,
como os republicanos. Para ela, seria a salvação do trono; para os outros,
o enterro da monarquia. E o Imperador deveria concordar com a segunda
opinião, pois foi somente na sua ausência que a princesa pôde assinar a
abolição da escravatura em maio de 1888.
Depois do acontecimento da abolição, os conservadores
enfraqueceram-se. Os liberais já não tinham mais o fôlego de antes,
nem seus líderes eram os mesmos idealistas de anos atrás. Decidiram,
então, se reunir num congresso que traçaria as normas de ação do
partido e que se instalou a 1º de maio de 1889. Nesse, Rui expôs suas
idéias muito contrárias às dos liberais. Nessa época, já escrevia para o
Diário de Notícias, cujo proprietário era Antônio Azeredo – republicano.
Após ter suas causas vitoriosas como a reforma e a abolição, Rui
abraçara, agora, a federação, e este foi um dos pontos da
incompatibilidade surgida com os liberais. Tornava-se ferrenho acusador
do regime, dos partidos, através do jornal. Era o líder dos "federalistas".
Ocorre nova queda do ministério e, depois de consultados os
conservadores para o novo ministério pelo imperador, e a recusa dos
mesmos, o liberal Ouro Preto assume o governo. Dantas aconselha
para um ministério o nome de Rui, e Ouro Preto consente. Rui recebe o
convite, está numa encruzilhada entre a satisfação do tão ambicionado
ministério e os novos ideais abraçados. Diante disto, recusa, abdicando
da ambição e envolvendo-se totalmente no federalismo; disse que não
poderia fazer parte de um ministério que não iria levar a cabo o
federalismo. Continua "chefe" da nova idéia, novo líder.
Cai a Monarquia aos quinze dias de novembro de ano de 1889,
Rui participara dessa "derrubada" e faz-se ministro da fazenda do novo
governo do Brasil. A primeira constituição da República Federativa dos
Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, traz
a marca de Rui nas questões da federação e do sistema
presidencialista. Também participa das primeiras crises da república e
sua política financeira contribui para elas.
Deodoro dá o golpe, dissolvendo o parlamento, mas Rui, embora
amigo do marechal, defende a legalidade. É dado o golpe da legalidade
por Floriano, e Rui vê a normalidade voltar ao país, mas engana-se.
Floriano mostra-se verdadeiro "mão-de-ferro", e, com o episódio da
Revolta da Armada em que Rui é acusado de mentor intelectual, exilaBiblos,
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se na Inglaterra. Retorna do exílio somente em 1895 no governo de
Prudente de Morais. Neste, em pleno final da Revolução Federalista no
Rio Grande do Sul, luta no Senado pela anistia dos federalistas
gaúchos.
Rui foi indicado para a presidência em 1905 pela Bahia, mas ele
abriu mão da candidatura em nome de Afonso Pena. No ano de 1907,
no governo de Afonso Pena, estava por realizar-se a Segunda
Conferência da Paz na cidade de Haia e, por indicação do jornal Correio
da Manhã, representando a opinião do público, escolhe-se Rui para a
tarefa de representar o Brasil na Conferência. Em 1913, Rui funda o
partido liberal e, mais uma vez, é indicado para candidato a presidente
da república. Novamente em 1919, Rui é indicado para candidato e,
desta vez, envolve-se na campanha, mas uma intervenção militar não
lhe permitiu a vitória. Em 1922, Rui pronuncia seu último discurso no
Senado, e morre em 1º de março de 1923.
3 – REFORMA DO ENSINO PRIMÁRIO
Nos idos de 1883, após escrever o projeto da Reforma do Ensino
Secundário e Superior, Rui escreveu um outro projeto sobre a Reforma
do Ensino Primário. Este último foi muito melhor elaborado por seu
autor, pois não teve tanta pressa de apresentá-lo à Câmara. É certo que
ainda não sabia da iminente queda do Gabinete em que seu grande
amigo Rodolfo estava Ministro do Império, mas o certo é que o projeto
da reforma do ensino primário foi mais trabalhado, melhor moldado e
arquitetado por Rui. Talvez isto tivesse ocorrido devido ao amor que Rui
trazia de família pela instrução e o respeito que aprendera a ter com
relação ao ensino público.
Com a morte de Rui Barbosa no ano de 1923, todos seus
contemporâneos ficaram estarrecidos, e muitos lhe prestaram
homenagens. Jacobina, seu primo e muito amigo, juntamente com
outros colaboradores, fundou, em 1930, a Fundação Casa de Rui
Barbosa. Esta possui um riquíssimo acervo sobre Rui, incluindo
correspondências particulares e todo restante de sua produção
intelectual. E foi ela que produziu as Obras Completas de Rui Barbosa,
uma coleção com mais de 100 volumes publicados com o conjunto do
que Rui produziu durante sua vida. Um Decreto-Lei nº 3.668, artigo 4,
de 30 de setembro de 1941, estabeleceu a divisão das obras completas
em cinqüenta volumes, e, a partir de então, o trabalho na Fundação
anteriormente citada aumentou muito, criando-se até um setor
específico para esta atividade.
O volume X das Obras Completas de Rui Barbosa, que
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compreende o ano de 1883, traz a Reforma do Ensino Primário e várias
instituições complementares da instrução pública. Esse volume conta
com, no total, quatro tomos, e isto demonstra o detalhamento da obra
escrita por Rui, até mesmo em comparação com o volume anterior que
é a Reforma do Ensino Secundário e Superior, composta de apenas um
tomo. Isto apenas corrobora o que foi dito anteriormente sobre a maior
atenção dada por Rui à reforma do ensino primário. E é justamente
neste trabalho, para o qual Rui deu maior atenção, que se irá refletir
algumas questões importantes contidas no tomo II. Este tomo contém os
capítulos VI e VII da reforma. O capítulo VI tem o título de Liberdade de
ensino, e o capítulo VII traz os Métodos e programa escolar.
Deste último capítulo, se aprofundará somente o item que trata da
História. Em todas as "reformas", Rui Barbosa utilizou-se de muitas
personalidades estrangeiras para justificar seu trabalho. Essa sua
erudição sempre foi uma característica muito apreciada pelos seus
colegas contemporâneos e reconhecida pelos "inimigos". Essas citações
provêm, geralmente, da França e da Inglaterra. Assim, percebe-se nos
capítulos pesquisados uma grande soma de notas e de referências a
autores dessas nacionalidades. São ministros da educação francesa da
época da primeira e segunda repúblicas, eminentes educadores que
contribuíram para as reformas do ensino de seus países.
Nota-se, no entanto, que as idéias trazidas por Rui, para
apreciação dos leitores, não condizem com a realidade do Brasil.
Realmente chamavam-no de idealista, disseram que o projeto não iria
vingar, que era impraticável para as nossas condições. Observando os
exemplos que Rui dá para justificar a péssima qualidade do ensino no
país, pode-se hoje achar seu projeto e suas idéias aptas para a nossa
realidade do século XXI.
A primeira idéia que Rui Barbosa defende no capítulo sobre a
liberdade do ensino é que esta representa uma das primeiras liberdades
humanas. Rui começa a tecer vários pensamentos sobre a liberdade do
ensino, a necessidade do Estado não intervir no assunto educação, de
não impor condições para a abertura de estabelecimentos de ensino,
demonstra porque o Estado deve ser imparcial, devido ao fato de ele
estar acima de todas as convenções ou idéias que passam de acordo
com os povos e seu desenvolvimento. Importante ressaltar que Rui
Barbosa participa da ala antipapista do cenário nacional, e que defendia
a separação do Estado e da Igreja naqueles tempos da Questão
Religiosa, das crises do Império.
Essa defesa de Rui à liberdade de Ensino mostra-se em
contraposição ao ensino ministrado por religiosos que tinham o
monopólio desse "aparelho do estado", e também deixa ressaltar a sua
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posição como liberal na política. Claro que seus fundamentos são
baseados em renomados pedagogos e educadores franceses e
ingleses, mas isto não impede que Rui também defendesse suas
posições políticas nos argumentos encontrados em favor da liberdade
de ensino.
Rui segue falando da impropriedade do Estado em estabelecer
um culto obrigatório para o ensino, porque isso só perpetua a
intolerância, que, segundo ele, "exercida ontem pela Inquisição em
nome da infalibilidade da Igreja, sê-lo-á amanhã pelo materialismo sob a
invocação da certeza científica"2. Isto quer dizer que o Estado não pode
ter um modelo obrigatório de ensino, pois corre o risco de acompanhar
as intolerâncias praticadas pelos sistemas que ganham maior
credibilidade em cada momento da sociedade, e que ditam os modelos.
Além de defender a liberdade de ensino, Rui também defende, e com a
mesma veemência, o ensino obrigatório. Diz ele que "obrigar à instrução
elementar é necessidade e justiça. Necessidade, porque a sociedade
humana carece imprescindivelmente de que a inteligência dos seus
membros preencha, ao menos, as suas funções rudimentares, as quais
sem certas bases de instrução não podem atingir o estado normal.
Justiça, porque a paternidade não pode justificar a sua soberania, até ao
ponto de condenar a prole indefesa ao estado mentalmente embrionário
da ignorância absoluta"3.
Assim, ainda citando os estrangeiros como Montalembert, ele vai
justificando o porquê que o ensino deve ser obrigatório. Aqui,
juntamente com essa questão, Rui defende que, para ministrar o ensino,
não se tenha que receber o aval do Estado, visto que esse não teria
competência para tal avaliação. Ressalte-se que não havia
universidades de pedagogia no Brasil imperial, e que, pelo que Rui
deixa transparecer, as licenças eram dadas menos por competência do
que por companheirismos. Não se está, com isso, justificando a posição
de Rui sobre a não necessidade das licenças para dar aulas, mas
tentando compreender seus argumentos que, fundados em
pressupostos científicos, devem se basear em alguma realidade
específica, e que deve ser a analisada acima.
Mas Rui também estimula a concorrência entre as escolas do
Estado e os institutos particulares. Esse ponto marca a grande veia
liberal de Rui Barbosa, que não deixa de manifestar-se nessa reforma
do ensino: a livre concorrência. Mais adiante, ele fala sobre a inspeção
de moralidade, e questiona as condições da boa moral escolar. Ele
2 BARBOSA, 1946, p. 6.
3 Idem, ibidem, p. 20.
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defende que criminosos não podem educar, e, com relação à inspeção
de moralidade, diz que se não são criminosos, qual é o parâmetro que o
Estado utiliza para verificar essa qualificação? São questionamentos
muito interessantes, ainda mais porque ele deixa claro que muitas
concessões são dadas por "coleguismos", e outras são deixadas de dar
por "mesquinharias".
No final deste capítulo, Rui fala das condições físicas dos
estabelecimentos de ensino, e sobre a fiscalização que o Estado deve
manter nas escolas, comenta as questões de salubridade. Para justificar
sua posição, ele demonstra como a ausência de fiscalização pode
prejudicar não só os freqüentadores das escolas, mas até a
circunvizinhança da escola. E, ainda nesse tópico, defende que as
escolas mostrem o que e como estão educando, não para serem
cerceadas no seu direito de educar, mas como um imposto a ser pago
pelos estabelecimentos, um imposto apenas estatístico. Rui deixa claro,
até aqui, suas posições quanto à liberdade de ensino e também quanto
ao modelo que utiliza para construir o projeto, e o que quer para o
Brasil: "o nosso modelo é a Inglaterra e a União Americana"4. E também
pelos exemplos que dá, pelas opiniões de personalidades desses
países. Daí vê-se que ele olhava menos para as realidades do nosso
país do que para tipos ideais da Europa. E, talvez, quando os
parlamentares desacreditaram a proposta, dizendo-a impraticável para o
país, eles estivessem sendo mais realistas e olhando mais para o Brasil
do que o próprio Rui.
Entrando no capítulo VII – Métodos e Programa Escolar – Rui
deixa claro a importância que atribui ao método: "reforma dos métodos e
reforma do mestre: eis, numa expressão completa, a reforma escolar
inteira"5. Rui começa propondo a criação de um método, pois o que
tínhamos era o de inabilitar para ensinar, segundo suas próprias
palavras. Rui escreve que a escola atrofia, que os métodos utilizados
pelos educadores não condizem com a capacidade intelectual dos
alunos, que os educadores ensinam o aluno a memorizar, e que isso
não é inteligência, diz que "a educação não se considera como um fato
fisiológico e moral, mas como uma espécie de trabalho de
marchetaria"6.
Rui, para a realização do seu projeto, fez algumas visitas às
escolas da corte, e traz delas alguns exemplos muito interessantes do
modo como as crianças aprendiam, dos livros utilizados, da forma
4 Idem, ibidem, p. 24.
5 Idem, ibidem, p. 33.
6 Idem, ibidem, p. 37.
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decorada com que aprendiam. E Rui sabe da importância da educação
– mesmo porque, não esqueçamos, seu modelo era inglês e americano,
mas os franceses também influenciavam-no muito –, tanto que relaciona
o método de ensino com o modo de absorção do conhecimento pelos
alunos e antevê uma sociedade formada por cidadãos inconscientes,
automáticos e não-perspicazes. Rui propõe uma reforma que não seja
enxerto dos modos já conhecidos, mas que reorganize inteiramente o
programa escolar, repudiando tudo aquilo que existe.
Será que isso era algo realizável em sua época? Embora o
Imperador fosse bastante afeito à educação e que houvesse chamado
Rui pessoalmente para conversar com ele sobre a Reforma, teria ele
condições de algo fazer no sentido dessa transformação radical dos
meios de ensinar? Teriam os parlamentares a mesma sensibilidade de
Rui e do Imperador? Parece que não se deu assim.
Nessa parte do projeto, Rui também traz as disciplinas que
deveriam compor o programa escolar, e desfecha-as minuciosamente
começando pela educação física, depois pela música e canto, o
desenho, as lições de coisas (que é a aplicação do método por intuição,
isolado, abrangeria vários ensinos apreendidos de forma intuitiva), a
língua materna, as ciências físicas e naturais, as matemáticas, a
geografia e a cosmografia, história, os rudimentos de economia política,
a cultura moral e cívica.
Quanto ao programa do ensino de História, Rui principia falando
do modo impróprio como a História é ensinada pelos livros, e diz que a
função dessa disciplina é ser veículo de cultura para os sentimentos e
as faculdades que estão se desenvolvendo nos alunos. Segundo o
relator, a importância do ensino de História deveria fazê-la ocupar os
primeiros anos do ensino, mas a quantidade de nomes e fatos que lhe é
inerente, isso não permite, concedendo-lhe lugar privilegiado apenas no
ensino secundário e superior. Rui diz que é normal o interesse das
crianças ainda mui pequenas pelas narrativas históricas cheias de
encantos, romances, traições, mas que ela apreende apenas pela via da
imaginação, e não pela do discernimento e compreensão. Mas Rui
esclarece que não propõe que se tire a História dos planos de ensino,
nem que a apresente às crianças de forma completa desde os primeiros
estudos, ele propõe o equilíbrio que não afete o desenvolvimento natural
da criança, conforme já havia se referido quando das questões do
método.
Rui ainda propõe que o ensino de História seja iniciado das questões
que circundam a criança, e que não se comece pelos primórdios da
civilização. A criança deve aprender a sua história imediata, de sua família,
de sua "província", de sua pátria, e ir alongando esse tentáculo de
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conhecimentos progressivamente. Em seguida, Rui transcreve um trecho
formulado pela Liga do Ensino Belga, para os preceptores da Escola
Modelo, sobre as condições elementares exigidas pelo estudo da História,
que consiste
1) na sanidade do juízo,
2) na noção de transformação dos costumes,
3) na idéia de continuidade,
4) no sentimento do tempo,
5) no sentimento de que os homens históricos eram homens
como nós,
6) na compreensão do modo como se sabe a História.
E é neste programa belga que Rui inspira-se, sem modificar nada,
para propor a reforma do ensino de História no país. É após expor todo
esse programa modelo que traça as condições as quais terá de estar
subordinado o ensino de História para que seja racional e profícuo, que
são:
1) a renúncia às tradições livrescas e aos hábitos mecânicos,
2) a não-utilização dos "livros inimigos da inteligência"7, que
trazem os questionários, os dados brutos,
3) a distribuição do ensino, ficando em primeiro lugar a
investigação pessoal do aluno, depois a palavra do mestre, e, por fim,
os livros de leitura,
4) o ensino de História unido ao de geografia,
5) a primeira lição ser a de História local,
6) a História contemporânea tomar o primeiro lugar no ensino,
7) as primeiras noções de História serem narrações de vidas
ilustres, mas não biografias,
8) os fatos de glória e paz sobrepujarem as guerras,
9) as lições morais devem ser mais sentidas que aprendidas pelo
aluno,
10) apelar, no ensino de História, para a inteligência e iniciativa
para o pensar do aluno, e
11) evitar as lições "de cor".
Este programa acima, traçado pelo relator do projeto da reforma do
ensino, é uma síntese de seus estudos e de suas leituras para o ensino
de História, segundo ele próprio. Podemos apreender com este programa
que, embora Rui baseie-se naquilo que viveu e via nas escolas do
império, sua visão idealista transportava-se, com muita facilidade, para os
7 Idem, ibidem, p. 352.
Biblos, Rio Grande, 16: 145-156, 2004. 157
países os quais considerava modelos. Com certeza, foi bastante
inovadora e "reformadora" essa proposta de Rui, mas não por isso
chegou a ter grande impacto, visto o idealismo da mesma. É certo que
não era apenas Rui que assim pensava sobre o ensino; pensavam assim
aqueles que admiravam a cultura estrangeira e a estudavam, mais
especificamente aquilo concernente à educação. Mas daí a importarmos o
mesmo sistema estrangeiro para o Brasil, há uma grande diferença.
Quantos, diretamente ligados à educação das crianças, tinham as
mesmas percepções de educação que Rui e outros intelectuais da
época? Qual a possibilidade real de implantar essa reforma no Brasil
imperial para pessoas que não compreendiam outra maneira de educar
diferente daquela de que foram vítimas? Mas, com esta análise, não se
está desmerecendo o projeto, pelo contrário, com certeza ele trouxe
muitas contribuições para a educação no nosso país. Embora não
tivesse sido amplamente colocada em prática, desacreditada mesmo,
com certeza movimentou as inteligências para uma nova forma de
pensar a educação e, talvez mesmo, num desejo de imitar à brasileira
os modelos estrangeiros. Talvez isso nos tenha impedido de criar um
modelo puramente nacional, mas não impossibilitou as cores nacionais
dadas aos modelos estrangeiros desde Rui Barbosa até nossos tempos,
e a final formatação de modelos nacionais.
Nesse processo histórico, continuamos a procurar meios de melhor
educar, formar cidadãos e construir uma identidade nacional, e, por isso,
é interessante verificar o que intelectuais, ainda no Império do Brasil, já
diziam sobre como fazer isso, já se preocupavam com isso e nos legaram
instrumentos para percebermos o quanto ainda deixamos isso de lado e
perdemos muito das contribuições anteriores pela falta de memória
histórica e pelo próprio processo histórico inerente à civilização brasileira.
Possa este ensaio ter colaborado para maiores reflexões sobre a
enorme contribuição de Rui Barbosa para nosso país. Não só como
jurista, advogado, parlamentar, liberal, orador, mas também como
cidadão erudito, preocupado com o futuro do Brasil e,
conseqüentemente, com a formação de suas "almas", propondo uma
reforma do ensino em todos os níveis, embora um tanto idealista, que
possibilitasse futuros cidadãos conscientes que administrarão o legado
das gerações futuras e contemporâneas.
BIBLIOGRAFIA
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Disponível em: .
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário: e várias instituições complementares da
instrução pública. In: OBRAS completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Imprensa
Biblos, Rio Grande, 16: 145-156, 2004. 158
Nacional, 1946. v. 10, t. 2.
CALDEIRA, Jorge; MARCONDES, Cláudio et al. Viagem pela História do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Disponível em:
VIANA FILHO, Luiz. A vida de Rui Barbosa. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1941.
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