sexta-feira, 22 de junho de 2012

HISTÓRIA DAS UNIVERSIDADES NO BRASIL

A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 131 Traçar uma visão panorâmica da história do ensino superior no Brasil, com um mínimo de consistência e organicidade, impôs a necessidade de se estabelecer um recorte na abordagem do tema, bem como de se definir um eixo que orientasse a análise desenvolvida. Foi esta a razão que me levou a fazer algumas opções iniciais que gostaria de deixar claras e que já se fazem presentes no próprio título escolhido para este artigo. Em primeiro lugar, o foco da nossa análise não será o ensino superior simplesmente. Mas irei privilegiar uma determinada forma que esse ensino assume historicamente, que é a instituição universitária, mesmo que comece o texto afirmando que a universidade, no sentido aqui atribuído a esse termo, instala-se tardiamente no Brasil. Para justificar essa escolha, gostaria de fazer minhas as palavras com que Christophe Charles e Jacques Verger introduzem o seu clássico trabalho sobre a história das universidades. Afirmam os dois autores: As universidades sempre representaram apenas uma parte do que poderíamos denominar, de modo amplo, ensino superior. [...] Ao decidirmos partir das universidades propriamente ditas – sem por isso limitarmo-nos estritamente a elas –, adotamos uma perspectiva particular. Se aceitarmos atribuir à palavra universidade o sentido preciso de “comunidade (mais ou menos) autônoma de mestres e alunos reunidos para assegurar o ensino de um determinado número de disciplinas em um nível superior”, parece claro que tal instituição é uma criação específica da civilização ocidental, nascida na Itália, na França e na Inglaterra no início do século XIII. Esse modelo, pelas vicissitudes múltiplas, perdurou até hoje (apesar da persistência, não menos duradoura, de formas de ensino superior diferentes ou alternativas) e disseminou-se mesmo por toda a Europa e, a partir do século XVI, sobretudo dos séculos XIX e XX, por todos os continentes. Ele tornou-se o elemento central dos sistemas de ensino superior e mesmo as instituições nãouniversitárias situam-se, em certa medida, em relação a ele, em situação de complementaridade ou de concorrência mais ou menos notória. (Charles e Verger, 1996, p. 7-8) Destacaria dessa afirmativa duas idéias que se constituem em pressupostos do meu trabalho. A primeira delas é a de que a instituição universitária é uma criação específica da civilização ocidental, que teve, nas suas origens, um importante papel unificador da cultura medie- A universidade no Brasil Ana Waleska P.C. Mendonça Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Ana Waleska P.C. Mendonça 132 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 val e que, posteriormente, ao longo do século XIX, redefinida em suas atribuições e em seu escopo, exerceu, também, um papel significativo no processo de consolidação dos Estados nacionais. É desta instituição que estarei falando. Em segundo lugar, assumo com os autores que por ser a universidade o elemento central do ensino superior (mesmo que, no nosso caso específico, ela tenha se constituído, durante muito tempo, mais em uma aspiração do que em uma instituição concreta), as demais instituições não-universitárias posicionam-se sempre, em certa medida, com relação a ela e podem, portanto, ser estudadas tomando-a como referência. É a esta tarefa que me proponho. Pretendo, também, na análise, privilegiar um determinado período da história da universidade no Brasil. Trata-se do período que vai de 1920 a 1968, anos críticos para a história dessa instituição entre nós, ao longo dos quais, a universidade efetivamente se institucionaliza enquanto tal e vai assumindo a sua configuração atual. A universidade: uma instituição tardia no Brasil O Brasil constitui uma exceção na América Latina: enquanto a Espanha espalhou universidades pelas suas colônias – eram 26 ou 27 ao tempo da independência –, Portugal, fora dos colégios reais dos jesuítas, nos deixou limitados às universidades da Metrópole: Coimbra e Évora. (Teixeira, 1999, p. 29) Não havia, pois, na Colônia estudos superiores universitários, a não ser para o clero regular ou secular [...] para os que não se destinavam ao sacerdócio, mas a outras carreiras, abriase, nesse ponto de bifurcação, o único, longo e penoso caminho que levava às universidades ultramarinas, à de Coimbra [...] e à de Montpellier [...]. (Azevedo, 1971, p. 532) A afirmação da inexistência da universidade no Brasil, durante o período colonial, usando-se freqüentemente a comparação com a situação diferenciada da América espanhola, tem sido recorrente entre os diferentes autores que em distintas épocas e contextos vêm se debruçando sobre a história do ensino superior entre nós. O significado dessa inexistência, suas implicações e suas causas têm sido, entretanto, objeto de interpretações divergentes. Cunha, particularmente, em seu A Universidade Temporã (1980), discute essa própria afirmação. Questiona, por um lado, a idéia implícita em alguns autores de que a universidade seria a forma ideal ou natural de organização do ensino superior, e que, portanto, desse ponto de vista, sua ausência significaria no fundo uma carência a ser superada. Por outro, pergunta-se se esta questão não seria apenas de nome, e se os colégios jesuítas e os seminários não se constituiriam em instituições equivalentes às universidades hispano-americanas. Na perspectiva adotada, não me parece que tenha muito sentido aprofundar nesse tipo de discussão. Não há dúvida de que, se considerarmos a universidade como uma instituição específica da civilização ocidental, na forma em que se constituiu historicamente no contexto europeu, essa instituição não foi, ao longo do período colonial, implantada em nossas terras. Algumas tentativas sistematicamente frustradas de estender aos colégios jesuítas as prerrogativas universitárias nos dão conta da intencionalidade da coroa portuguesa de manter a dependência com relação à Universidade de Coimbra, a rigor, a única universidade existente em Portugal (já que a outra universidade existente no Reino, a de Évora, nunca teve as mesmas prerrogativas que Coimbra). Azevedo (1971) relata a tentativa malsucedida da Câmara da Bahia, em 1671, de conseguir a equiparação do colégio local ao de Évora, de que resultou a provisão de 16 de julho de 1675, por meio da qual se autorizava levar em conta em Coimbra e em Évora, um ano de artes, para os estudantes de retórica e filosofia que tivessem cursado as aulas dos jesuítas na Bahia. Com esta medida, no dizer desse autor, “se fecharam todas as perspectivas para a criação no Brasil colonial, de cursos superiores destinados à preparação para as profissões liberais.” (p. 532-533) Também Villalta (1997), em obra mais recente, afirma explicitamente que “el-rei procurou manter a dependência em relação à universidade de Coimbra, considerada um aspecto nevrálgico do pacto colonial”, e justifica essa afirmativa acrescentando que Portugal recusou- se, até 1689, a conceder todos os graus e priviléA universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 133 gios universitários aos alunos dos colégios jesuítas. Para reforçar essa posição, Villalta relata ainda que, já em 1768, a Corte rejeitou um pedido da Câmara de Sabará para que se criasse uma aula de cirurgia. É a esta última medida que também se refere Lacombe (1969), transcrevendo do documento do Conselho Ultramarino, um trecho extremamente ilustrativo da política oficial portuguesa, que transcrevo a seguir: Que poderia ser questão política, se convinham estas aulas de artes e ciências em colônias..., que podia relaxar a dependência que as colônias deviam ter do reino; que um dos mais fortes vínculos que sustentava a dependência das nossas colônias era a necessidade de vir estudar a Portugal; que este vínculo não se devia relaxar;... que [o precedente] poderia talvez, com alguma conjuntura para o futuro, facilitar o estabelecimento de alguma aula de jurisprudência... até chegar ao ponto de cortar este vínculo de dependência. (op. cit., p. 361) Para esse autor, igualmente, este laço de dependência não era neutro nem indiferente, servindo, num primeiro momento, aos próprios jesuítas que, desde 1555, detinham o controle da Universidade de Coimbra, e constituindo- se, depois, em um dos mais úteis instrumentos de difusão do pombalismo e do espírito nacionalista. É interessante, aliás, a interpretação que Lacombe, ao traçar as origens do ensino jurídico no Brasil, dá ao fato do seu aparecimento tardio (os cursos jurídicos não se incluíram entre aqueles criados por D. João VI, quando da instalação da Corte portuguesa no Brasil). Referindo-se às instituições de ensino superior criadas por D. João, destaca que estas “resultaram quase sempre de uma necessidade premente de técnicos, e que a formação de juristas não era urgente” (idem, ibidem), já que havia bacharéis em número suficiente formados em Coimbra, prolongando-se, nesta área, durante o Império, a influência dessa universidade. Segundo ele, a intelligentzia do Império foi praticamente toda ela ainda constituída pelos bacharéis formados nessa instituição. Teixeira (op. cit.) chega a afirmar, referindo-se a essa dependência da universidade de Coimbra, que, até o início do século XIX, esta foi a universidade brasileira, nela se graduando mais de 2.500 jovens nascidos no Brasil. Aliás, esse autor chama atenção para a ambigüidade do estatuto de brasileiro, até a Independência, lembrando que não se podia distinguir, quando membros da classe dominante, os brasileiros dos portugueses, e acentuando que, por essa razão, “o brasileiro da Universidade de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer professor da universidade” (op. cit., p. 65). Cita especificamente os casos de Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho – membro da Junta de Providência Literária constituída para estudar e projetar a Reforma Pombalina dos estudos superiores, e depois o executor da Reforma e reitor da Universidade de Coimbra por cerca de 30 anos –, e José Bonifácio de Andrade, o patriarca da Independência, que foi antes professor da mesma universidade, como, aliás, vários outros portugueses nascidos no Brasil. Essa centralidade da Universidade de Coimbra na formação das elites brasileiras é que leva também Azevedo a afirmar, remetendo-se à Reforma Pombalina, que esta atingiu o Brasil, principalmente, através daquela universidade. No seu espírito renovado, sob o impacto do ideário iluminista, formaram-se não só alguns dos nossos cientistas pioneiros (da geração de brasileiros que estudou em Coimbra após a Reforma Pombalina, foi proporcionalmente grande o número dos que seguiram cursos de matemática, ciências naturais e medicina1), bem como, contraditoriamente – dado o caráter regalista do pombalismo – as principais lideranças dos movimentos insurrecionais de independência política. Entre os primeiros, a figura singular do bispo José Joaquim Cunha de Azeredo Coutinho, parente do reformador de Coimbra, fundador do Seminário de Olinda, unanimemente considerada aquela instituição que, no Brasil, mais claramente expressou os princípios que nortearam a Reforma Pombalina.2 Não foi entretanto essa tradição universitária que informou as iniciativas tomadas por D. João VI, quando da instalação da Corte no Brasil. Nas palavras de Paim (1982): 1 A esse respeito, ver especialmente Mello e Souza, Antonio Candido de, (1968). 2 Sobre a experiência do Seminário de Olinda e, particularmente, sobre o pensamento do bispo Azeredo Coutinho, ver Alves, Gilberto Luiz (1993). Ana Waleska P.C. Mendonça 134 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 Essa opção por institutos isolados, de inegável cunho superior, não deixa de ser algo de inusitado, porquanto a tradição européia consistia em reunir em torno do Colégio das Artes, que preparava os estudantes para a matrícula nas faculdades e, supunha-se, assegurava a unidade da instituição. A estruturação destas, isoladamente, criou a necessidade do vestibular, então inexistente, e, ao longo da prática ulterior, os chamados cursos anexos. (p. 20) Mesmo que se possa relativizar a afirmativa de que este seria o único modelo de universidade, Paim afirma a ruptura com uma tradição universitária e a identifica como uma das justificativas da situação de desarticulação entre o ensino secundário e superior, que estaria na origem dos chamados exames vestibulares. Teixeira (op. cit.) relata, a esse mesmo respeito, um episódio extremamente ilustrativo. Quando, em 1808, a família real aportou, num primeiro momento, na Bahia, o comércio local se reuniu e deliberou solicitar ao Príncipe Regente a fundação de uma universidade literária, provendo para a construção do palácio real e o custeio da universidade importante soma de dinheiro. Essa solicitação, entretanto, não foi atendida e, por outro lado, o Príncipe decidiu criar um Curso de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia, em fevereiro desse ano, atendendo ao pedido do cirurgião-mor do Reino, José Correa Picanço, um dos portugueses brasileiros formados em Coimbra. Transferida a Corte para o Rio de Janeiro, as instituições criadas por D. João VI, no âmbito do que se pode chamar de ensino superior, estavam, na sua grande maioria, diretamente articuladas à preocupação com a defesa militar da colônia, tornada a sede do governo português. Ainda no ano de 1808, cria-se, no Rio de Janeiro, a Academia de Marinha, e, em 1810, a Academia Real Militar, para a formação de oficiais e de engenheiros civis e militares. Também em 1808, criaram-se os cursos de anatomia e cirurgia, para a formação de cirurgiões militares, que se instalaram, significativamente, no Hospital Militar (como também era o caso do curso da Bahia, citado anteriormente). A esses cursos, de início simples aulas ou cadeiras, acrescentaram-se, em 1809, os de medicina e, em 1813, constituiu-se, a partir desse cursos, a Academia de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Outros cursos foram ainda criados, na Bahia e no Rio de Janeiro, todos eles marcados pela mesma preocupação pragmática de criar uma infra-estrutura que garantisse a sobrevivência da Corte na colônia, tornada Reino-Unido. Na Bahia, a cadeira de economia (1808), e os cursos de agricultura (1812), de química (1817) e de desenho técnico (1817). No Rio, o laboratório de química (1812) e o curso de agricultura (1814). Alguns cursos avulsos foram ainda criados em Pernambuco, em 1809 (matemática superior), em Vila Rica, em 1817 (desenho e história), e em Paracatu, Minas Gerais, em 1821 (retórica e filosofia), visando suprir lacunas do ensino ministrado nas aulas régias. A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, criada em 1816, no seu plano original também estava marcada pela preocupação com a formação técnica. Essa escola, entretanto, teve uma história atribulada e apenas irá funcionar como Academia das Artes, bastante modificada nos seus objetivos iniciais, em 1826, já no primeiro Império. Além do caráter pragmático que marcava a quase totalidade dessas iniciativas, cumpre destacar também o seu caráter laico e estatal. De fato, essas instituições foram criadas por iniciativa da Corte portuguesa, e foram por ela mantidas, continuando a sê-lo pelos governos imperiais, após a nossa independência política. Por sucessivas reorganizações, fragmentações e aglutinações, esses cursos criados por D. João VI dariam origem às escolas e faculdades profissionalizantes que vão constituir o conjunto das nossas instituições de ensino superior até a República. A esse conjunto, viriam se agregar os cursos jurídicos, criados apenas após a Independência, originariamente em São Paulo e Olinda, no ano de 1827. Cunha (op. cit.) refere-se ao acirrado debate que se travou no Parlamento a respeito da localização desses cursos, destacando que, ao final, prevaleceu “a corrente que defendia a localização das academias fora do Rio de Janeiro e naquelas províncias onde foi mais forte o movimento pela independência” (p. 112). O critério nacionalista teria sido, portanto, determinante no que se refere à localização desses cursos. Foram poucas, entretanto, as iniciativas concretas dos governos imperiais no campo do ensino superior, limitando- se à manutenção das instituições existentes e à A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 135 sua regulamentação. Além dos cursos jurídicos, instituídos por D. Pedro I, uma outra iniciativa importante seria a instalação, já no final do segundo Império, em 1875 – um ano depois da separação do curso de engenharia da Escola Militar, com a constituição da Escola Politécnica –, da Escola de Minas em Ouro Preto,3 à época capital da província de Minas Gerais. Essa escola, que se originou de um ambicioso projeto elaborado pelo engenheiro francês Claude Henri Gorceix, nasceu de um empenho pessoal do próprio Imperador D. Pedro II, que talvez tivesse em mente, como assinala Cunha (op. cit.), acelerar o surto econômico produzido pela Guerra do Paraguai. No entanto, sofreu uma forte oposição dos professores da Politécnica, e seus resultados, por uma série de circunstâncias que tinham a ver com as próprias condições econômicas do país, ficaram muito aquém do esperado. No entanto, ao longo do primeiro e do segundo Impérios, a demanda pela constituição de uma universidade no país não desapareceu, sofrendo, porém, uma constante resistência por parte de distintos grupos, especialmente dos positivistas. Teixeira (op. cit.) referese a que nada menos de 42 projetos de universidade são apresentados a essa época, do de José Bonifácio ao de Rui Barbosa, sendo, entretanto, sistematicamente recusados pelo governo e pelo parlamento (p. 83). Esse autor transcreve trecho do depoimento do Conselheiro A. de Almeida Oliveira, registrado nos Anais do Congresso de Educação que se realizou no Brasil em 1882, sob a presidência do Conde D’Eu, que investia violentamente contra a própria idéia de universidade, afirmando constituir-se esta numa instituição obsoleta. Parece-me interessante determo-nos um pouco sobre as concepções subjacentes a algumas propostas encaminhadas contra ou a favor de uma universidade no país, pois a meu ver elas apontam para uma questão que é central para a própria sobrevivência dessa instituição e que hoje mais do que nunca se faz presente no âmbito do debate pedagógico. Cunha (op. cit.) refere-se a um projeto encaminhado por Justiniano José da Rocha à Assembléia Geral, que propunha a criação de uma universidade “para controlar todo o sistema de ensino, tanto o setor público quanto o privado, conforme o paradigma da Universidade de Paris, durante o governo de Napoleão” (p. 89). Desta maneira o que parecia justificar a proposta de criação dessa instituição era, primordialmente, a sua potencialidade como um instrumento de controle por parte do Estado sobre todo o ensino superior (além do seu caráter de universalidade, que também aparece na fala de Justiniano). Paim (1982), particularmente, defende essa posição, afirmando explicitamente que “o interesse que volta e meia se dedicava à universidade”, ao longo do Império, “tinha evidentes intuitos centralizadores” (op. cit., p. 21). E evoca também o testemunho de vários dos intelectuais do Império. Parece-me também sugestivo que a resistência colocada pelos positivistas à idéia da criação de uma universidade no Brasil se fizesse justamente em nome da liberdade de ensino, princípio utilizado para advogar não só a retirada dos entraves legais que impediriam uma maior expansão da iniciativa privada no campo da educação (que, especialmente após 1870, começou a expandir-se no campo do ensino superior), mas também uma ciência livre de privilégios e da proteção do Estado, proteção esta que só serviria para profaná-la, nas palavras de Teixeira Mendes (apud Cunha, op. cit., p. 99). É significativo que, ao criar, em 1937, a Universidade do Brasil, Capanema viria a atribuir-lhe justamente a finalidade, talvez primordial, de controle e padronização do ensino superior no país. Tal questão remete, por um lado, à discussão sobre as finalidades dessa instituição e, por outro, para a complicada relação entre a universidade e o Estado, tendo em vista que uma das suas demandas essenciais, como instituição historicamente constituída, tem sido a de autonomia, particularmente acadêmica, com relação às demais instituições da sociedade e especificamente com relação ao Estado. Esta será uma questão central no debate que se travará sobre a universidade no Brasil ao longo dos anos 20 a 40, momento da sua institucionalização efetiva entre nós, de que tratarei a seguir. 3 A origem desta escola remonta a uma lei aprovada em 1832, pela Assembléia Legislativa de Minas, que criava um Curso de Estudos Mineralógicos. Essa lei, sancionada pela Regência, não teve, no entanto, nenhum efeito prático. A esse respeito, ver Cunha (op. cit.). Ana Waleska P.C. Mendonça 136 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 Na última fala do trono de D. Pedro II, em que este faz, a meu ver, um balanço pelo avesso da atuação dos governos imperiais no campo da educação, o Imperador, entre outras reivindicações, solicitava ao Parlamento a criação de duas universidades no país, uma ao norte, outra ao sul, bem como de faculdades de ciências e letras, vinculadas ao sistema universitário, em algumas províncias (apud Azevedo, op. cit., p. 610). Essas demandas apontam, igualmente, para as questões que irão perpassar o debate sobre a universidade, ao longo do nosso primeiro período republicano. A institucionalização da universidade no Brasil (1920- 1940)4 São as universidades que fazem, hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui. Nada as dispensa. Nenhuma outra instituição é tão assombrosamente útil. (Teixeira, 1988) Os anos de instalação do novo regime viriam a propiciar um intenso debate sobre a questão da educação, no bojo da Constituinte, que, no entanto, arrefeceu-se rapidamente com a promulgação da Constituição outorgada e a consolidação de uma ordem política e social que se sustentava nas mesmas oligarquias regionais hegemônicas durante o Império, através da chamada política dos governadores. Apenas após 1920, quando essa ordem começaria a sofrer uma forte contestação por parte de distintos grupos e movimentos, nucleados em torno da bandeira da republicanização da República, esse debate seria retomado com força, num novo contexto, marcado pela ampliação decorrente do esforço de mobilização da opinião pública e pelo confronto entre diferentes projetos de construção/reconstrução da nacionalidade, de que falarei a seguir. Anteriormente a essa época, a adoção do sistema federativo propiciou algumas iniciativas de criação de universidades em alguns estados. Essas universidades, entretanto, tiveram uma vida efêmera e, de fato, a primeira instituição que assumiu, entre nós, de forma duradoura, essa denominação foi a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, pelo governo federal (embora desde 1915 essa criação já estivesse autorizada), através da agregação de algumas escolas profissionais preexistentes, a saber, a Escola Politécnica, a Escola de Medicina e a Faculdade de Direito que resultou da junção de duas escolas livres já anteriormente constituídas. A reunião em universidade dessas instituições, entretanto, não teve um maior significado e elas continuaram a funcionar de maneira isolada, como um mero conglomerado de escolas, sem nenhuma articulação entre si (a não ser a disputa pelo poder que se estabelece entre elas, a partir daí) e sem qualquer alteração nos seus currículos, bem como nas práticas desenvolvidas no seu interior. Esse foi o modelo seguido posteriormente pela Universidade de Minas Gerais, criada em 1927, por iniciativa do governo do estado. Por esses anos, entretanto, o debate em torno da questão universitária voltara a se intensificar, extrapolando, inclusive, o âmbito do Congresso. De acordo com Nagle (1976), diferentes tarefas eram atribuídas à universidade pelos grupos que, no âmbito da sociedade civil, lideravam essa discussão. O preparo das classes dirigentes – ponto de honra dos sistemas democráticos –, a formação do professorado secundário e superior – problema importante dado o autodidatismo reinante – e o desenvolvimento de uma obra nacionalizadora da mocidade – núcleo para o qual convergem os problemas da universidade e da sociedade. (op. cit., p. 134) Essas preocupações refletem, sem dúvida, as mudanças que ocorriam, no período, nos planos econômico, político e social. O período que vai de meados dos anos 20 até a chamada redemocratização em 1945 constitui um momento extremamente complexo da vida brasileira, marcado, principalmente, como já disse anteriormente, pela crise do sistema oligárquico tradicional, o que acaba por resultar na transferência do foco de poder dos governos estaduais para o âmbito nacional. Esse período se caracteriza, igualmente, pela emergência, na cena política, das massas urbanas, que se expandem e se diferen- 4 Esta parte do artigo está fundamentada, principalmente, na minha tese de doutorado, intitulada Universidade e Formação de Professores: uma perspectiva integradora. A Universidade de Educação, de Anísio Teixeira (1935-1939) (Mendonça, 1993). A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 137 ciam de forma acelerada como resultado do processo de industrialização e urbanização – produto indireto, nesse momento, da própria dinâmica da economia exportadora – e do processo de burocratização, decorrência, por um lado, da própria ampliação das funções do Estado, e, por outro, da incipiente industrialização do país. Esse contexto condiciona tanto o estabelecimento de um sistema de educação de massa – vide a crescente expansão da rede pública de ensino primário, a partir daí – quanto o surgimento de diferentes projetos de educação das elites que deveriam dirigir o processo global de transformação da sociedade brasileira, via a reorganização da escola secundária e do ensino superior. Dois documentos expressam de forma significativa as discussões que se desenvolveram nos últimos anos da década de 1920, particularmente sobre os rumos a serem atribuídos ao ensino superior. São eles os dois inquéritos promovidos, respectivamente, pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 1926, e pela Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1928. Esses dois inquéritos são substantivamente diferentes entre si. O primeiro, conduzido por Fernando de Azevedo, acabava por referendar um determinado projeto de universidade (que se concretizou, em 1934, com a criação da Universidade de São Paulo). O segundo, embora também se propusesse à construção de um consenso em torno da questão da universidade, era muito mais representativo das diferentes concepções que atravessavam o debate em torno dessa questão e que se confrontavam no interior da própria associação. Essas diferenças se evidenciam claramente na análise que Carvalho (1998) desenvolve sobre os vários grupos que, no interior do Departamento carioca da ABE, ao final dos anos 20, lutavam pela hegemonia. Para a autora, enquanto a principal bandeira do grupo sediado na Seção de Ensino Secundário era a proposta de instalação de uma Escola Normal Superior que garantisse a formação especializada (e sua padronização) dos professores do ensino secundário e normal, o grupo instalado na Seção de Ensino Técnico e Superior lutava pela criação de verdadeiras universidades no Brasil, voltadas para o desenvolvimento da pesquisa científica e dos altos estudos desinteressados, instituições indispensáveis ao progresso do país. Segundo Carvalho, ambas as tendências expressavam uma preocupação com a formação das elites dentro de projetos de teor nacionalista, representando, entretanto, diferentes concepções dessa educação das elites. O primeiro grupo, liderado pelos católicos, valorizava especialmente o papel da escola secundária, como agência de homogeneização de uma cultura média, dentro de um projeto de recuperação do país de caráter moralizante que passava pelo resgate da tradição católica na formação da alma nacional. Para o segundo grupo, constituído basicamente por professores egressos da Escola Politécnica,5 a ênfase estava posta nas universidades que deveriam se constituir em verdadeiras usinas mentais, onde se formariam as elites para pensar o Brasil (equacionar os problemas magnos da nacionalidade) e produzir o conhecimento indispensável ao progresso técnico e científico. Para esse grupo não era a tradição o cimento da unidade nacional, mas todo um conjunto de medidas de integração nacional, decorrentes da expansão do progresso. Dessa perspectiva, esse grupo defendia a criação de Faculdades de Ciências voltadas para a pesquisa científica pura ou desinteressada. Particularmente este segundo grupo não se sentiu atendido com a Reforma Campos de 1931. Essa reforma, aliás, como afirmam Schwartzman (1979) e Paim (1982), constituiu-se em uma frustração para os grupos sediados na ABE, que tinham uma expectativa de intervir na definição da política educacional a ser estabelecida pelo governo revolucionário, inclusive pelos vínculos com a entidade por parte de Francisco Campos, primeiro ocupante do Ministério de Educação criado em 1930. A reforma que se consubstanciou no chamado Estatuto das Universidades Brasileiras traz a marca da ambigüidade, decorrência do caráter conciliatório do 5 Segundo Paim (op. cit.), esse era o grupo que, no interior da Politécnica, liderava a reação contra o positivismo ainda dominante no âmbito dessa escola, e que foi responsável pela introdução de um novo conceito de ciência (a ciência experimental) no Brasil. Foram também integrantes desse grupo que, anteriormente, em 1916, fundaram a Academia Brasileira de Ciências. Ana Waleska P.C. Mendonça 138 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 projeto governamental. É o próprio Campos, aliás, quem afirma que o seu projeto “representa um estado de equilíbrio entre tendências opostas, de todas consubstanciando os elementos de possível assimilação pelo meio nacional” (Lobo, apud Schartzman, 1979). Para Schartzman (op. cit.), o que se pretendia de fato com o Estatuto era “obter legitimidade junto a várias correntes de opinião num momento de transição” (op. cit., p. 171), em que o próprio governo que se instalava não tinha um projeto educacional claramente delineado. A principal inovação prevista no Estatuto era a possibilidade (e não a obrigatoriedade) de incluir entre as escolas que iriam compor a universidade uma Faculdade de Educação, Ciências e Letras, instituição meio híbrida, que deveria se constituir, por um lado, em um órgão de alta cultura ou de ciência pura e desinteressada, e, por outro, ser, antes de tudo e eminentemente, um Instituto de Educação, destinado a formar professores especialmente para o ensino normal e secundário. A justificativa para esse caráter híbrido estava em que era preciso ter cautela e, ao se instalar pela primeira vez no país um Instituto de Alta Cultura, essa instituição não poderia ser organizada de uma vez e de forma exclusiva (apud Fávero, 1980, anexo I, p. 132-133). Esse mesmo argumento era usado para justificar a tutela que se estabelecia, por parte do governo federal, sobre as instituições de ensino superior. O Estatuto desagradou a gregos e troianos. O grupo dos engenheiros da ABE criticava não só a excessiva ingerência oficial na universidade (esse grupo defendia fortemente a autonomia universitária, como condição para que se fizesse ciência desinteressada), bem como o caráter pragmático da Faculdade de Ciências, Educação e Letras. Os católicos acusavam o projeto de laicizante e, com base nesse argumento, criticavam tanto o seu caráter centralizador quanto a sua feição pragmática. De fato, a Reforma Campos não se tornou um elemento catalisador dos grupos envolvidos com a discussão sobre a questão da universidade. O próprio governo federal, aliás, não se empenhou na implementação da nova instituição. No entanto, no interior da ABE, travava-se uma luta pelo controle da entidade entre os católicos e um novo grupo que acabaria por assumir a sua direção, constituído pelos intelectuais que vieram a ser conhecidos como os Pioneiros da Educação Nova e que, em 1932, lançaram o seu Manifesto ao Povo e ao Governo, onde explicitavam o seu programa de reforma da educação, que incluía a criação de verdadeiras universidades. Esse Manifesto endossa uma concepção de universidade bastante próxima àquela defendida pelos engenheiros da Seção de Ensino Técnico e Superior. A universidade é concebida numa tríplice função de “criadora de ciências (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão universitária, das ciências e das artes” (Azevedo, 1958, p. 74- 75). Defende-se a centralidade da pesquisa, como “sistema nervoso da Universidade, que estimula e domina qualquer outra função” (idem, ibidem, p. 75), assumindo a crítica às instituições de ensino superior existentes no Brasil, que nunca teriam ultrapassado os limites e as ambições da formação profissional. À universidade assim concebida competiria o “estudo científico dos grandes problemas nacionais”, gerando um “estado de ânimo nacional” capaz de dar “força, eficácia e coerência à ação dos homens”, independentemente das suas divergências e diversidades de ponto de vista. Nessa instituição seriam formadas as elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos e os educadores – aí entendidos os professores para todos os graus de ensino. Em linhas gerais, essa foi a concepção que informou as duas experiências universitárias desenvolvidas ao longo desses anos por iniciativa de educadores vinculados ao grupo dos renovadores, a saber, a Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, pelo grupo de intelectuais que se articulava em torno ao jornal O Estado de S. Paulo, entre os quais Fernando de Azevedo, e a Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por Anísio Teixeira em 1935, no bojo da reforma de ensino por ele empreendida, como secretário de Educação, no Rio de Janeiro. Para Cardoso (1982), a criação da USP teve como objetivo explícito a reconquista da hegemonia paulista na vida política do país, o que se faria pela ciência em vez das armas, conforme as próprias palavras de Júlio de Mesquita Filho, presidente da Comissão Organizadora da Universidade, não sendo, portanto, uma simples exA universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 139 pressão do surto inspirador produzido pelo Manifesto de 32. Para a autora, mesmo que nesse projeto, Azevedo estivesse com o grupo do Estado, mantinha uma relativa autonomia desse grupo, o que iria, inclusive, condicionar alguns conflitos de ordem interna. A UDF é, sem dúvida, um projeto de Anísio Teixeira, embora viesse a mobilizar, particularmente, os remanescentes do grupo sediado na Seção de Ensino Técnico e Superior da ABE (quase todo vitimado num trágico acidente de aviação, em 1928), que se incorporaram à universidade, especialmente à sua Escola de Ciências. A meu ver, esse caráter voluntarista da experiência da UDF, em contraposição a um caráter mais orgânico da experiência da USP, explicaria em grande parte a sua originalidade, mas, por outro lado, seria uma das razões da sua fragilidade e iria condicionar a relativamente fácil destruição da universidade. Tanto no caso da USP, quanto no da UDF, a preocupação com o desenvolvimento da pesquisa e dos altos estudos é central. No caso da USP, esse objetivo aparece concentrado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, eixo integrador da universidade, em torno do qual deveriam gravitar as demais escolas. Na prática, a USP foi criada, como as demais universidades existentes no país, através da incorporação de um conjunto de escolas profissionalizantes já existentes. A única instituição efetivamente nova era a Faculdade de Filosofia, de quem se esperava, como afirma Schartzman (op. cit.), que contaminasse favoravelmente as demais, modificando-lhes o espírito tradicional e bacharelesco. Para Antunha (1974): É a peculiar concepção dos objetivos e das funções integradoras da Faculdade de Filosofia que dá ao modelo paulista a sua característica própria e inconfundível. (op. cit., p. 86-87) Já é outra a situação da UDF. A sua estrutura é radicalmente diferente das universidades até então criadas no país e a própria denominação das escolas é indicativa da ruptura com o modelo de agregação de escolas profissionalizantes. São cinco as escolas que a constituem, a saber: as Escolas de Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia e o Instituto de Artes. Todas elas se propõem a desenvolver de forma integrada o ensino, a pesquisa e a extensão universitária (entendida prioritariamente na perspectiva da divulgação científica) nas suas respectivas áreas de conhecimento. De qualquer forma, ambas as universidades possuem uma base comum, como expressões – mesmo que diferenciadas – do ideário do Movimento da Escola Nova, consubstanciado no Manifesto de 32. Outras, entretanto, seriam as fontes de que se originaria o projeto da Universidade do Brasil (UB), criada em 1937, por iniciativa de Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934 a 1945, como universidade-padrão, a cujo modelo se deveriam adequar todas as instituições similares existentes ou a serem criadas no país. Há um consenso entre os diferentes autores que vêm trabalhando sobre o tema, de que o chamado modelo federal de organização da universidade, que se consubstanciou com a criação da UB, teve os seus delineamentos já dados com o Estatuto das Universidades Brasileiras a que se fez referência anteriormente. Particularmente, Capanema viria a resgatar o modelo ambíguo da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Estatuto de 31 para a organização da Faculdade Nacional de Filosofia, que se instalaria no Rio de Janeiro em 1939, absorvendo parte do acervo da UDF, que foi extinta. O embate que se deu, aliás, entre essas duas experiências universitárias é ilustrativo da concepção de universidade que, a partir daí, se tornaria hegemônica.6 A esse respeito, o trabalho de Martins (1987) sobre a constituição de uma intelligentsia7 no Brasil, ao longo dos anos 20 a 40, parece fornecer uma significativa chave de leitura. Para esse autor, as condições específicas do país ao longo desses anos propiciaram o surgimento de uma intelligentsia brasileira, à qual se integrava o grupo dos chamados renovadores da educação. Essa intelligentsia iria empreender, especialmente no período anterior ao Estado Novo, uma tentativa de 6 Ver a esse respeito a minha tese de doutorado anteriormente citada (Mendonça, 1993). 7 Para Martins (1987), o conceito de intelligentsia refere-se a um tipo específico de intelectual cujo atributo principal é a sua condição de ator político e cuja emergência, como sujeito coletivo, está ligada a certas condições sociais, políticas e culturais. Ana Waleska P.C. Mendonça 140 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 estruturação do campo cultural, através da criação de instituições modernas, que se constituiriam nos “‘locii’” para a fundação, o reconhecimento e a expansão de sua identidade social, e mesmo de sua ‘missão’ na sociedade” (op. cit., p. 79). Especificamente, a USP e a UDF seriam a expressão mais acabada dessa tentativa. Ora, para Martins, o Estado viria a intervir nesse campo cultural, antes mesmo que ele se estruturasse. Desse ponto de vista, a Reforma Campos teria armado o Estado para exercer sua tutela sobre o ensino e, com a criação da UB, essa tutela, especificamente sobre o ensino superior, acabaria finalmente por se impor. Com isso, a autonomia do campo cultural tornar-se-ia letra morta, sendo esse campo invadido primeiro pelo autoritarismo e depois pelo paternalismo do Estado. De fato, há uma intenção explícita do governo federal, principalmente após 37, de assumir o controle das iniciativas no campo cultural. A idéia comum aos projetos da USP e da UDF, de formar na universidade as elites que, com base na autoridade do saber, iriam orientar a nação (colocando-se, de certa forma, acima do Estado), seria, no contexto do Estado Novo, considerada perigosa. Ao governo federal interessava ter o monopólio de formação dessas elites e por isso impunha sua tutela sobre a universidade. A centralização imposta com a instituição da UB como universidade-padrão atingiu diferentemente as duas instituições universitárias. A UDF acabou por ser extinta, apesar do eufemismo legal, pelo qual era incorporada à Faculdade Nacional de Filosofia.8 Essa universidade, aliás, teve vida curta e conturbada. Desde o início, Capanema posicionara-se contra a sua criação. Inaugurada em junho de 1935 por Anísio Teixeira, este se demitiria em novembro da Secretaria de Educação, no que seria seguido pelo primeiro reitor da universidade, Afrânio Peixoto, e por vários dos colaboradores diretos de Anísio que integravam o seu quadro docente, no contexto de caça às bruxas que se seguiu ao malfadado levante de 1935. A universidade ainda conseguiu sobreviver até 1939, graças, principalmente, ao grupo de cientistas nucleados na Faculdade de Ciências. O Estado Novo, entretanto, forneceria a Capanema os instrumentos políticos de que necessitava para destruir a UDF. A esse respeito, aliás, é significativo constatar que Capanema oscilou entre uma posição inicial de eliminar pura e simplesmente a universidade e a atitude mais pragmática, que acabou sendo adotada, de incorporá-la à UB, feitos os devidos e necessários expurgos. Cumpre destacar que nesse processo a Igreja Católica, por intermédio especialmente de Alceu de Amorosa Lima, teve um papel decisivo9. A USP conseguiu opor uma maior resistência à interferência do governo federal. Para Martins (op. cit.), esse fato se explicaria principalmente pela forte presença de professores estrangeiros no seu quadro docente (mais de dois terços desse quadro). A meu ver, é o caráter orgânico dessa experiência (enquanto se articulava ao grupo do Estado e possuía respaldo financeiro do governo estadual) que justificaria a sua maior autonomia do governo federal. De qualquer forma, foi também atingida no seu coração – a Faculdade de Filosofia (que, por outro lado, sofria uma forte oposição das escolas profissionalizantes) – e teve excluído do seu bojo o Instituto de Educação (também a Escola de Educação é excluída no processo de incorporação da UDF à Faculdade Nacional de Filosofia). Que modelo é esse que se padronizava por meio da UB? É mais uma vez o modelo de universidade como 8 A esse respeito, cumpre ressaltar que o impacto da extinção da UDF foi diferenciado para as suas diferentes escolas. No caso da Faculdade de Ciências, conseguiu-se garantir de alguma forma a continuidade do seu trabalho, com a absorção de um número significativo de professores e alunos pela Faculdade Nacional de Filosofia. Com isso, ao menos no que se refere às áreas das ciências naturais e exatas, não se perdeu totalmente a idéia de uma atividade científica centrada na pesquisa e desinteressada. Até porque nessas áreas a triagem ideológica se fez sentir com menos intensidade. 9 A Igreja Católica, à época, tinha também um projeto de formação das elites que passava pela universidade. Esse projeto foi gestado especialmente no interior do Centro D. Vital, instituição que congregava as principais lideranças católicas leigas, tendo à frente Alceu de Amoroso Lima. Esse projeto viria a encontrar a sua concretização final com a criação da Universidade Católica, em 1946. A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 141 um conglomerado de escolas profissionalizantes. A própria Faculdade de Filosofia se constituía em mais uma delas, pois tinha o objetivo primordial de formar os professores da escola secundária. Dessa perspectiva, embora se estabeleça entre os objetivos da Faculdade Nacional de Filosofia o de realizar pesquisas nos vários domínios da cultura (alínea c do art. 1 do cap. 1 do Decreto-lei no 1.190/39), esta instituição se propunha, prioritariamente, a formar trabalhadores intelectuais para os quadros técnicos da burocracia estatal, nas áreas de educação e cultura, e, particularmente, professores para o ensino secundário. A pesquisa aparecia claramente com um objetivo secundário, subordinado. A essa instituição também não cabia o papel de integração das demais escolas, como no caso da instituição congênere da USP. De fato, a preocupação básica de Capanema não era com a integração mas com a abrangência da universidade, que deveria no caso da UB abarcar a totalidade dos cursos superiores oferecidos no país, o que era especialmente importante por se constituir em universidade-padrão, modelo. Dessa última perspectiva, Capanema enfatizava o papel orientador e disciplinador que a Faculdade de Filosofia deveria exercer em todos os domínios da cultura intelectual pura. Este, de fato, o objetivo fundamental da UB, como instrumento do processo de unificação e homogeneização cultural, que se constituía em pilar central do grande projeto de Capanema de constituição da nacionalidade (objeto de toda a sua ação à frente do Ministério da Educação, no dizer de Schartzman et al., 1984). Desse ponto de vista, também internamente era necessário garantir a unidade de pensamento, o que implicava restringir a liberdade de cátedra, o que se faria através do controle exercido por uma burocracia rigidamente centralizada. A esse respeito é extremamente significativo o depoimento de Raul Leitão da Cunha, primeiro reitor da UB, em extenso relatório encaminhado ao ministro Capanema, em fevereiro de 1945. Nesse relatório, Leitão da Cunha elencava uma série de causas da estagnação do ambiente universitário, a começar pela ausência de organização verdadeiramente universitária, já que, na sua perspectiva, a lei não fora capaz de unir os institutos isolados, por não prever os recursos adequados. E apontava, ainda, várias outras questões, entre elas a subordinação dos institutos de ensino às normas vigentes nas repartições burocráticas, que tinha efeitos altamente negativos sobre o funcionamento da universidade emperrando o seu trabalho, e a falta de autonomia didática e administrativa da universidade, autonomia esta que “antes de ser devidamente posta em prova, foi a pouco e pouco sofrendo restrições que a tornaram praticamente nula” (apud Mendonça, 1993, p. 257-258). Com efeito, na prática, o papel modelar da UB acabou por se constituir muito menos em um estímulo para a melhoria da qualidade do ensino superior do que em um instrumento efetivo de controle e padronização dos cursos e instituições. O modelo universitário mais uma vez não se impôs e as próprias Faculdades de Filosofia, pensadas originariamente como um centro de produção de conhecimento e como o órgão integrador e articulador da universidade, expandiram-se como instituições isoladas que se propunham, freqüentemente de forma precária, a formar professores para a escola secundária. Anos 50/60: a universidade em questão Ao revés de Paulo Prado, eu diria: numa terra radiosa, vive um povo alegre em eterna servidão. A reforma universitária não nos libertará dessa servidão. Mas nos poderá ensinar os caminhos intelectuais e políticos que permitirão conquistar a própria liberdade intelectual e política, condição moral para extinguir todas as formas de servidão, internas e externas, que metamorfoseiam uma terra radiosa e um povo alegre numa realidade triste. (Fernandes, 1975) Ao longo dos anos 50/ 60, o ensino superior no Brasil sofreria o impacto das duas ideologias que se constituíram na base de sustentação dos governos que se sucederam até 1964, e que iriam condicionar tendências diferentes e algumas vezes contraditórias que marcaram a forma como o ensino superior se desenvolveu durante esse período. Sob o impacto do populismo, o ensino superior passou por um primeiro surto de expansão no país. Cunha (1983) aponta algumas características desse processo de expansão. O número de universidades existentes no país cresceu de 5, em 1945, para 37, em 1964. Nesse Ana Waleska P.C. Mendonça 142 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 mesmo período, as instituições isoladas aumentaram de 293 para 564. Independentemente dos valores absolutos, Cunha chama atenção para o fato de que enquanto o número de universidades foi multiplicado por 7, o de escolas isoladas não chegou a dobrar. Essas universidades continuavam a nascer do processo de agregação de escolas profissionalizantes, como é o caso das nove universidades católicas que se constituíram. Na sua maioria, entretanto, eram universidades federais, criadas através do processo de federalização de faculdades estaduais ou particulares.10 A maioria das atuais universidades federais existentes hoje tem nesse processo a sua origem. Do ponto de vista do número de estudantes matriculados, a taxa de crescimento no ensino superior, nesse mesmo período, foi de 236,7%, o que indica uma intensificação do ritmo de crescimento bastante significativa em comparação com os períodos anteriores (2,4%, a taxa média anual, entre 1932 e 1945, e 12,5%, entre 1945 e 1964). Cunha (op. cit.) explica essa expansão como uma resposta ao aumento da demanda ocasionado pelo deslocamento dos canais de ascensão social das camadas médias e pela própria ampliação do ensino médio público, bem como pelo alargamento do ingresso na universidade decorrente do processo de equivalência dos cursos técnicos ao curso secundário, que se iniciou nos anos 50 e culminou com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Esse aumento da demanda estaria na origem do problema dos excedentes, posteriormente invocado como móvel imediato da Reforma Universitária de 1968. Por outro lado, o paradigma até então vigente para o ensino superior começava a ser posto em questão, sob o influxo do desenvolvimentismo que viria a alimentar as propostas de modernização desse nível de ensino, visando adequá-lo às necessidades do desenvolvimento econômico e social do país. Este é o contexto em que se vai desenvolver o debate sobre a Reforma Universitária ao longo desses anos e que informa, por outro lado, algumas experiências universitárias concretas. As diferentes formas de se conceber o processo de desenvolvimento do país iriam condicionar as distintas estratégias propostas para se encaminhar a reforma da universidade. Vários foram os grupos que se envolveram com esse debate e que assumiram iniciativas bastante diversificadas: o Estado – e, no interior do aparelho do Estado, grupos distintos assumiram a liderança de iniciativas algumas vezes até contraditórias entre si – e dois novos atores coletivos que imprimiram a sua marca na orientação que será dada a esse debate bem como a posteriores encaminhamentos da questão: a comunidade científica organizada e o movimento estudantil. O primeiro passo desse processo de modernização do ensino superior foi dado pelo setor militar, com a criação, em 1947, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Essa instituição foi criada no momento em que se constituía o Ministério da Aeronáutica e este assumia a coordenação do sistema de transportes aéreos de todo o país. Embora criado para atender às necessidades de formação de pessoal de alto nível para um setor específico, sua estrutura rompia com a forma como estavam organizadas até então as instituições de ensino superior, particularmente com a estrutura da cátedra vitalícia. Seus professores eram contratados sob normas trabalhistas, sendo o contrato sujeito a rescisão de acordo com o desempenho do docente. A seleção de professores era responsabilidade da comunidade acadêmica que se constituía em um corpo governativo próprio. Havia uma carreira estruturada em quatro níveis, sendo condição para ingresso na mesma estar cursando a pós-graduação. Alunos e professores dedicavam-se exclusivamente ao ensino e à pesquisa, inclusive residindo no câmpus universitário. As cátedras foram substituídas pelos departamentos e adotou-se o sistema de créditos, nos moldes das universidades americanas.11 O curso oferecido era estruturado em um ciclo básico e um terminal e rapidamente passaram a funcionar também cursos de pósgraduação voltados para a formação de professores e 10 A esse respeito, ver, por exemplo, a tese de Lola Yazbeck sobre as origens da Universidade Federal de Juiz de Fora, recentemente lançada em livro (Yazbeck, 2000). 11 Cumpre destacar, a esse respeito, que a criação do ITA foi proposta no Relatório Smith, elaborado por uma comissão presidida pelo brigadeiro Casimiro Monteiro e assessorada pelo professor Richard H. Smith, do Massachussets Institute of Technology (MIT). A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 143 pesquisadores. Essa instituição acabou exercendo um papel meio exemplar do que deveria ser uma universidade moderna e seu impacto sobre a própria burocracia governamental foi grande. A esse respeito, parece-me interessante a observação de Gusso, Córdova e Luno (1985), quando, ao se referirem às tensões que marcaram o desenvolvimento do ensino superior ao final dos anos 50, apontam como fatores dificultadores da sua modernização o conservantismo dos catedráticos e das congregações das universidades públicas, ampliadas com o processo das federalizações, que penetrava também os setores hegemônicos da burocracia educacional. Segundo esses autores, os postos de maior poder, na universidade e no âmbito governamental, continuavam nas mãos dos mesmos grupos que haviam concebido e executado as políticas educacionais do Estado Novo. Por essa razão, “os órgãos centrais do governo se colocariam sistematicamente contra mudanças mais profundas nas estruturas do ensino superior” (op. cit., p. 125), contando com o respaldo do próprio Congresso, onde inclusive vários dos parlamentares eram oriundos das congregações tradicionais. A longa e acidentada tramitação do projeto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) seria a expressão da força dessa resistência. Para os autores, essa força seria a justificativa para o fato de que, apesar das críticas e pressões provindas de diferentes setores sociais, não se tivesse conseguido encaminhar até meados da década de 1960 nenhum projeto mais abrangente de reforma universitária. A própria LDB é, a esse respeito, excessivamente tímida, praticamente nada incorporando do debate que então se travava sobre os rumos da universidade. De qualquer maneira, as mudanças principiavam a acontecer. De acordo com os autores acima referidos, ainda no segundo governo Vargas, com o avanço do processo de industrialização do país, a cúpula governamental começava a mostrar-se sensível à questão da necessidade de formação de pessoal técnico de alto nível para atender ao Plano de Reequipamento Nacional, dentro de uma perspectiva que Gusso, Córdova e Luna (op. cit.) caracterizam como utilitária ou imediatista. Paralelamente, membros influentes da comunidade científica continuavam demandando uma reforma global da universidade, de forma a ampliar suas condições de trabalho, tendo em vista um desenvolvimento científico mais sólido e mais autônomo, a médio e longo prazos. A controvérsia entre essas duas tendências, que se prolongaria pela década de 1960, condicionava as políticas específicas praticadas por diferentes órgãos do governo, cada qual atuando sobre diferentes segmentos do ensino superior. O Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), criado em 1951 pelo almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva com o objetivo específico de promover a pesquisa científica e tecnológica nuclear no Brasil, desenvolvia atividades orientadas à promoção da área das chamadas ciências exatas e biológicas, fornecendo bolsas e auxílios para a aquisição de equipamentos para pesquisa, bem como criava e mantinha institutos especializados; a Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES), instituída, como Comissão, no mesmo ano que o CNPq, tendo à sua frente o educador Anísio Teixeira, investia na formação dos quadros universitários, através também da concessão de bolsas no país e no exterior; outros órgãos dos vários ministérios atuavam de forma isolada sobre as suas áreas respectivas. Para os autores com os quais estou trabalhando, a controvérsia acima referida se manifestou no próprio processo de organização da CAPES, cujas diretrizes nasceram de um compromisso entre essas duas tendências, exercendo Anísio Teixeira um importante papel mediador. Aliás, a meu ver, o papel desempenhado por esse educador por meio da CAPES foi fundamental no processo de institucionalização da pós-graduação no Brasil e garantiu que a pesquisa científica se desenvolvesse entre nós no interior da universidade, particularmente no âmbito dos programas de pós-graduação.12 Cumpre destacar, igualmente, que, a essa época, a comunidade científica crescera e desenvolvera a sua organização, adquirindo maior articulação política, principalmente com a criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949. No 12 Este tema é objeto da pesquisa que venho coordenando e que se intitula A Formação dos Mestres: a contribuição de Anísio Teixeira para a institucionalização da pós-graduação no Brasil. Essa pesquisa vem sendo desenvolvida com apoio da FAPERJ e do CNPq. Ana Waleska P.C. Mendonça 144 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 âmbito da SBPC, desenvolvera-se uma vertente de pensamento mais politizada e até, sob certos aspectos, nacionalista, no seio da comunidade científica brasileira. Era essa vertente que empunhava a bandeira da reforma global da universidade e foi esse grupo que se articulou junto a Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira em torno ao projeto da Universidade de Brasília. É significativo que a SBPC tenha-se posicionado contra a criação pelo MEC, em 1958, da Comissão Supervisora dos Institutos (COSUPI), órgão destinado a renovar o ensino de engenharia, através principalmente da criação de institutos específicos nas universidades, alegando não só a dispersão de recursos provocada pelo programa, mas o seu especialismo e a tendência a concentrar nos institutos as atividades de pesquisa, desestimulando os núcleos já consolidados nas faculdades (especialmente as de Filosofia) e em outros organismos científicos mais apropriados. Essa Comissão, após 1964, seria incorporada à CAPES. Aliás, cabe destacar que, no bojo do debate sobre a reforma universitária, a questão do papel das faculdades de filosofia, seja como instituições de pesquisa, seja como órgão integrador e articulador das diferentes unidades, assumia uma nova centralidade.13 Significativamente, a Reforma Universitária de 1968 viria determinar o encerramento dessa experiência, particularmente no âmbito da universidade, com a sua fragmentação em diferentes escolas ou institutos, entre elas a Faculdade de Educação. Ao longo do final dos anos 50, início dos 60, outras experiências isoladas vão começando a ensaiar mudanças na estrutura pedagógico-administrativa do ensino superior, algumas das quais serão posteriormente incorporadas à Reforma de 68. Entre elas, a Universidade Federal do Ceará, criada em 1955, na qual se retomava a concepção nucleadora da Faculdade de Filosofia; a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, articulada à USP, criada entre 1957 e 1962; a Universidade Rural de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa, instalada em 1958; as Escolas Superiores de Agricultura de Piracicaba e Rio Grande do Sul, em 1963. Na culminância desse processo se situaria a Universidade de Brasília, instituída em dezembro de 1961, em regime de fundação de direito público, não só pela sua posição de universidade da nova capital mas pela originalidade da sua proposta, endossada por setores de ponta da comunidade científica. O projeto original da Universidade de Brasília teve, sem dúvida, uma de suas fontes de inspiração na experiência da UDF. Aliás, Anísio Teixeira foi um de seus mentores, embora de início tenha resistido à idéia da criação de uma universidade na nova capital. Entretanto, sua vinculação com o ideário nacional-desenvolvimentista ficava já expressa na própria formulação dos seus objetivos, tendo como primeira das suas finalidades: Formar cidadãos empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas com que se defronta o povo brasileiro na luta por seu desenvolvimento econômico e social. (apud Cunha, 1983, p. 171) Sua organização pedagógico-administrativa ia na linha das mudanças que já vinham sendo ensaiadas em experiências anteriores, aprofundando-as. Sua estrutura era composta por institutos centrais e faculdades, organizados, por sua vez, em departamentos. Os institutos forneciam um ensino introdutório de dois ou três anos, completado pelo ensino especializado das faculdades. Além disso, eram responsáveis pelos cursos de formação de pesquisadores e de pós-graduação. Os professores eram todos contratados pela legislação trabalhista e a cátedra transformava-se de cargo em grau universitário. Havia os estudantes regulares e os especiais, que apenas assistiam aos cursos sem pretensão de obtenção de graus ou certificados e para os quais se reservavam 10% das vagas disponíveis (com isso, retomava-se, curiosamente, a concepção de extensão universitária dos anos 30). A instituição de uma Fundação mantenedora, com sólido patrimônio, seria a garantia da sua autonomia em todas as dimensões e o governo da universidade seria exercido pelos órgãos colegiados nos seus diversos níveis. Por meio desse órgãos, a participação dos estudantes era sensivelmente maior do que nas demais instituições de ensino superior. A Universidade de Brasília foi implantada com uma enorme rapidez e seus professores foram recrutados entre o que havia de melhor no país. Esses professores eram 13 A esse respeito, ver, por exemplo, os artigos de Florestan Fernandes incluídos na parte II do livro Educação e Sociedade no Brasil (Fernandes, 1966). A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 145 atraídos, em grande parte, pela mística que se constituiu em torno da nova universidade. É significativo que mesmo os intelectuais que faziam algumas restrições a esse projeto, como é o caso, por exemplo, de Florestan Fernandes, defensor da retomada do modelo paulista da Faculdade de Filosofia e crítico da utilização política que se fazia da iniciativa, reconheciam o caráter inovador da proposta, bem como o mérito da associação que se estabelecia entre a universidade e as exigências dinâmicas do desenvolvimento socioeconômico do Brasil. A esse respeito, Florestan Fernandes afirmava: Os homens cultos e de boa vontade não poderão negarlhe (à Universidade de Brasília) sua simpatia e colaboração, pois estão em jogo interesses e valores fundamentais seja para o bom funcionamento de Brasília como capital do país, seja para a revisão e o aperfeiçoamento dos padrões de trabalho intelectual, que temos explorado ao longo de nossa curta experiência universitária. (Fernandes, 1966, p. 342) Por outro lado, os anos 60 assistiram a uma crescente radicalização do debate sobre a reforma da universidade, liderado, sem dúvida, pelo movimento estudantil. Esse movimento iria encabeçar uma luta pela reforma universitária articulada às mobilizações populares em torno das reformas de base, num contexto político em que a aliança populista que sustentava o governo pendia para a centro-esquerda, retomava as tendências nacionalistas e lançava-se em várias frentes para promover reformas sociais e políticas que permitissem redirecionar o processo de desenvolvimento nacional (as chamadas reformas de base). Em 1961, a União Nacional dos Estudantes (UNE) promovia, em Salvador, o I Seminário Nacional de Reforma Universitária. Desse Seminário resultou a chamada Carta da Bahia, que recolhia as conclusões do evento. De uma forma geral, a discussão avançava em direção a propostas concretas de reestruturação da universidade, baseadas em análises abrangentes da realidade nacional. O Seminário apontava como diretrizes básicas da reforma universitária os seguintes pontos: a democratização da educação em todos os níveis; a abertura da universidade ao povo, através da extensão universitária e dos serviços comunitários; a articulação com os órgãos governamentais, especialmente no interior: a colocação da universidade a serviço das classes desvalidas, prestando-lhes assistência e serviços; a transformação da universidade em “uma trincheira em defesa das reivindicações populares e em gestões junto aos poderes públicos” (apud Gusso, Córdova e Luna, op. cit., p. 137-138). Do ponto de vista das mudanças propostas na estrutura da universidade, estas iam, sem dúvida, na direção das experiências desenvolvidas na perspectiva da sua modernização. Os estudantes propunham a suspensão imediata do sistema de cátedras vitalícias, a adoção do regime departamental e do tempo integral para os professores, aliado à melhoria salarial e das condições de trabalho, a criação de um sistema eficiente de assistência ao estudante. Quanto ao governo da universidade, preconizava-se uma ampla autonomia, a ser exercida com uma intensa participação dos estudantes, professores e também de entidades profissionais. Essa estrutura de governo é que permitiria construir a autonomia da universidade, tanto administrativa quanto didática. No II Seminário, realizado em Curitiba, procediamse a algumas revisões nas recomendações anteriores. Surgia, agora, uma preocupação com o próprio conteúdo do ensino superior, criticando-se o tecnicismo pragmático e preconizando um humanismo total. Propunham-se, entre outras medidas, a reorganização dos currículos e programas, visando adequá-los ao “pleno conhecimento da realidade nacional e do seu sentido histórico”, bem como a introdução nos cursos técnicos das ciências humanas e sociais (apud Gusso, Córdova e Luna, op. cit., p. 140). Cunha (1983) identifica nas proposições encaminhadas por esse segundo seminário uma maior consistência interna, a seu ver decorrente da influência das idéias de Álvaro Vieira Pinto, intelectual vinculado ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que tivera o seu livro A questão da universidade recentemente publicado pela própria UNE. O impacto desse livro sobre a maneira como o movimento estudantil passaria a encarar a reforma da universidade não pode, sem dúvida, ser menosprezado. Nele, o autor resume, de forma sintética, a percepção hegemônica no seio das lideranças estudantis sobre o lugar da reforma universitária: A reforma universitária constituindo, como dissemos, um dos aspectos da transformação geral da sociedade brasileira, Ana Waleska P.C. Mendonça 146 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 tem de ser simultânea e harmônica com as demais reformas exigidas pelo resto da sociedade, neste momento. Não pode ser desvinculada da reforma agrária, da reforma bancária, administrativa, urbana, etc., pois é o movimento geral de um mesmo processo histórico, são as mesmas forças contidas na totalidade da sociedade que as irão realizar todas em conjunto. Não existe, por conseguinte, o problema da reforma universitária, mas o da reforma da sociedade, a qual se manifestará, num dos seus aspectos como a reforma da universidade. (Pinto, 1986, p. 97) Num terceiro seminário, ainda, os estudantes se deteriam, principalmente, na estratégia de condução do seu movimento. As reações oficiais se fizeram sentir mas foram cuidadosas. Por um lado não interessava uma contraposição aberta, já que o movimento estudantil participava do suporte político do próprio governo federal; por outro lado, não era possível acatar na sua totalidade as propostas estudantis, pois isto criaria mais um foco de desestabilização das forças políticas dirigentes, num contexto de crescente instabilidade. Ainda em 1961, seis meses depois da realização do I Seminário promovido pela UNE, o MEC convocava e presidia uma reunião com todos os reitores de universidades, para debater o tema da reforma. Ao fim do simpósio, os reitores encaminharam uma série de sugestões, propondo a criação de comissões seccionais de reforma nas diferentes instituições e a criação de uma Comissão Nacional sob a liderança do próprio Ministério, além da constituição de um Fórum de Reitores, que incorporaria representantes da UNE, e que deveria aprovar os planos elaborados pelas comissões. No entanto, com a criação do Conselho Federal de Educação (CFE), pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961, seria esse órgão quem viria a assumir a direção da política oficial de ensino superior, estratégia que seria reforçada após 1964. Para Gusso, Córdova e Luna (op. cit.), essa situação se efetivava à medida que o governo se enfraquecia e o Ministério da Educação perdia espaço político. Para esses autores, desta perspectiva, a Universidade de Brasília teria sido uma derradeira tentativa de reforma prática da universidade, levada a cabo por setores do próprio governo, com o apoio da comunidade científica. Com o golpe de 64, entretanto, a Universidade de Brasília foi fortemente atingida, culminando com a invasão do seu câmpus em 65 e a intervenção governamental que viria a descaracterizar totalmente o seu projeto original. De qualquer forma, parece-me importante recuperar as experiências desenvolvidas ao longo desses anos, para, como afirma Cunha (1983), desmitificar a idéia de que o processo de modernização da universidade brasileira teria se iniciado apenas após 1964, sob a influência direta dos acordos MEC-USAID. Tanto Cunha (1983), quanto Gusso, Córdova e Luna (opus cit.), embora trabalhando a partir de referenciais distintos, chamam a atenção para essa questão. Para Cunha: Na verdade, quando esses convênios foram integrados, no âmbito do ensino superior, a modernização da universidade já era um objetivo aceito por diversas correntes de opinião, de esquerda e de direita. Assim, quando os assessores norteamericanos vieram, em 1967, para compor a Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior, não precisaram de muitos esforços para despertar o consenso que tinha sido produzido entre os universitários, pelos porta-vozes do desenvolvimentismo. (Cunha, op. cit., p. 204-205) Para Gusso, Córdova e Luna (op. cit.), o processo de mudança da universidade brasileira estava desencadeado, “não obstante o estiolamento das mobilizações e projetos” desenvolvidos ao longo dos anos 50/60, e tornar- se-ia “irreversível em seus eixos fundamentais de desenvolvimento”. Por essa razão, para os autores, o novo regime implantado em 1964, após uma primeira fase repressiva e obscurantista, ver-se-ia “compelido a retomar o dinamismo das políticas de desenvolvimento científico- tecnológico, ainda que sob limitações políticas evidentes” (p. 143). A esse respeito, a posição de Anísio Teixeira é bastante mais cética. Ao analisar os decretos-leis de 1966 e 1967, que reestruturaram as universidades federais, prenunciando as medidas propostas na Reforma de 1968, este manifestava claramente o seu descrédito com relação às mudanças que se anunciavam (Teixeira, 1989). Mesmo atendo-se à dimensão mais técnica dessas mudanças, que lhe pareciam insuficientes, por se limitarem apenas a uma “reestruturação da maquinaria organizacional e adminisA universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 147 trativa da universidade”, Anísio fazia algumas observações que me parece importante transcrever. Partindo da afirmação de que foi para o modelo da Universidade de Brasília que, “agravando-se a crise universitária e tornando- se inevitável a reforma de sua maquinaria administrativa e didática, a universidade tradicional” se voltou, nas suas “veleidades de reforma”, Anísio destacava o fato de que aquela universidade nascera “de um projeto em que colaborara a elite do magistério nacional e o seu modelo refletia condições a que chegara a consciência crítica desse magistério, no que tinha de mais novo, o seu corpo de cientistas físicos e sociais” (Teixeira, op. cit., p. 125). Para ele, a situação, no momento, era inteiramente outra, e a reforma proposta não se fazia “de dentro da universidade, pelo debate e resultante consenso do magistério, mas por atos legislativos a princípio permissivos e depois coercitivos que impuseram a reestruturação dentro das grandes linhas do modelo da Universidade de Brasília” (idem, ibidem). A meu ver, não se pode negar que, mesmo considerando que várias das soluções pedagógico-administrativas incorporadas à Reforma de 1968 tenham emergido do momento anterior a 1964, há um evidente deslocamento do eixo em torno do qual se articula a reforma da universidade. Este se transfere do âmbito da reflexão sobre a sua responsabilidade social e política num projeto global de desenvolvimento, para o âmbito da racionalidade administrativa e econômica, num contexto marcadamente repressivo. Da universidade reformada à nova reforma Hoje não é fácil, da mesma maneira que no passado, falar da universidade... Torres e Rivas, 1998, p. 58 Não pretendo aqui me aprofundar na análise da Reforma Universitária de 1968, consubstanciada na Lei no 5.540/68 e legislação complementar, até por que já existe um número bastante significativo de trabalhos a esse respeito. Meu objetivo é fazer uma espécie de balanço do impacto efetivo dessa reforma sobre o ensino superior em geral e particularmente sobre a instituição universitária, bem como da política desenvolvida pelo governo federal a esse respeito, que nem sempre foi na direção das propostas incorporadas ao texto legal. Um primeiro impacto do golpe militar de 1964 sobre os rumos da universidade brasileira foi, sem dúvida, o de conter o debate que se travava no momento anterior e isso se fez através da intervenção violenta nos campi universitários, do expurgo no interior dos seus quadros docentes, da repressão e da desarticulação do movimento estudantil. Por outro lado, não era mais possível ao governo segurar o processo de transformação da universidade, seja pela pressão exercida pelas classes médias no sentido da ampliação da oferta, que se traduzia na complicada questão dos excedentes, seja pelas próprias necessidades do projeto de modernização econômica que se pretendia implementar no país. Não é, portanto, de forma alguma gratuito o fato de que o governo militar tenha, desde o início, empenhadose na reorganização do ensino superior, assumindo a liderança do seu processo de modernização. Já em 1966 seriam emitidos os dois decretos-lei que encaminhavam a reestruturação das universidades federais, incorporando várias das medidas ensaiadas nas experiências universitárias citadas anteriormente e prenunciando a reforma global do sistema. Em 1968, no contexto da crise institucional que culminou com o AI-5, foi instituído o Grupo de Trabalho (GT) encarregado de estudar a reforma da Universidade brasileira, constituído por representantes dos Ministérios da Educação e Planejamento, do Conselho Federal de Educação e do Congresso. É significativo que as razões acima apontadas para a irreversibilidade do processo de modernização da universidade tenham sido explicitamente assumidas pelo próprio GT. No Relatório elaborado pelo GT, a orientação desenvolvimentista era afirmada, porém no contexto do novo projeto político em implantação, o que implicava contraditoriamente esvaziar a proposta da sua dimensão política, atribuindo ao trabalho uma perspectiva essencialmente técnica. Cumpre destacar que um outro relatório antecedera o do GT, com um impacto evidente sobre os rumos da reforma da universidade – o Relatório Meira Mattos, produzido por uma outra comissão presidida pelo general que acabou dando nome ao documento. Ana Waleska P.C. Mendonça 148 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 Aprovado a toque de caixa, e transformado em lei, o Relatório do GT forneceria as linhas gerais do paradigma com base no qual a universidade brasileira se consolidaria. Desta perspectiva, a lei 5.540 afirmava explicitamente constituir-se a universidade na forma ideal de organização do ensino superior, na sua tríplice função de ensino, pesquisa e extensão, enfatizando-se a indissolubilidade entre essas funções, particularmente entre ensino e pesquisa, sendo esta última o próprio distintivo da universidade. A partir daí, as universidades, particularmente as públicas – num primeiro momento, mantidas na sua quase totalidade pelo governo federal –, entrariam em um processo de consolidação, mesmo que irregular em seu conjunto, bastante ajudado, a meu ver, pela institucionalização da carreira docente e, especialmente, pela definitiva implantação dos cursos de pós-graduação. Este último foi, sem dúvida, o principal fator responsável pela mudança efetiva da universidade brasileira, garantindo, por um lado, o desenvolvimento da pesquisa no âmbito da universidade e, por outro, a melhoria da qualificação dos docentes universitários. Privilegiando, de início, as áreas das chamadas ciências exatas, as agências de fomento criadas ao longo dos anos 50 acabaram por garantir uma surpreendente expansão da pós-graduação no país, que atingiu, num segundo momento, também as áreas das ciências humanas e sociais. Por outro lado, a autonomia da universidade não teve condições para se efetivar, no contexto do regime autoritário. Em parte porque o controle centralizado dos recursos materiais e financeiros pelo governo federal acabou por atrelar o seu funcionamento às políticas governamentais. E também porque, internamente, o governo da universidade estruturou-se por uma espécie de pacto entre as oligarquias acadêmicas tradicionais e os novos segmentos da comunidade acadêmica, formando-se, de acordo com as peculiaridades históricas de cada instituição, diferentes tipos de composição entre essas partes que definem uma estrutura de poder nem sempre orientada pela dimensão propriamente acadêmica. Um efeito, a meu ver, mais profundo e duradouro sobre o ensino superior no Brasil teve, entretanto, a contraditória política desenvolvida pelo governo para atender à expansão da demanda. Dado que a ampliação das vagas nas universidades públicas, aliada às medidas de racionalização econômica e administrativa, tais como a unificação do vestibular ou a criação de um ciclo básico de estudos, não era suficiente para atender ao volume da demanda, o governo passou a estimular o crescimento da oferta privada. Com o aval do CFE, o ensino superior no país sofreu, ao longo dos anos 70, um incrível processo de massificação, através da multiplicação de instituições isoladas de ensino superior, criadas pela iniciativa privada. Para se ter uma idéia, apenas entre 1968 e 1974, enquanto as matrículas nas universidades passaram de 158,1 mil para 392,6 mil, pouco mais do que o dobro, nas instituições isoladas, das quais ¾ privadas, esse número cresceu de 120,2 mil para 504,6 mil (apud Gusso, Córdova e Luna, op. cit.). Dessa forma, constituiu- se, a meu ver, um sistema dual, formado, por um lado, pelas universidades, principalmente públicas, e, por outro, por um sem-número de instituições isoladas que não se diferenciam das primeiras por um critério de especialização mas, na prática, pela qualidade do ensino oferecido. De fato, introduziu-se uma diferenciação interna no sistema de ensino superior que não atendeu a uma diversificação de objetivos, constituindo-se as instituições isoladas, com freqüência, em um mero arremedo das instituições universitárias. A meu ver, a situação atual dessas instituições que se transformaram em grande número em universidades reforça esse ponto de vista. Essa diferenciação interna do sistema, nos últimos anos, acentuou-se, tanto do lado das instituições públicas, com o crescimento de faculdades e universidades estaduais e mesmo municipais, quanto do lado das instituições privadas, com a transformação de um grande número de escolas isoladas em universidades e o surgimento das universidades comunitárias ou confessionais que buscam se distinguir das instituições orientadas por critérios predominantemente lucrativos, reivindicando por essa mesma razão o direito ao financiamento público. Essa foi uma questão bastante polêmica, ao longo de todo o processo de discussão da Constituição de 1988. Paralelamente, com o crescente esgotamento do regime militar, no contexto da chamada redemocratização do país, o debate sobre os rumos da universidade foi retomado, sob a direção, principalmente, dos próprios A universidade no Brasil Revista Brasileira de Educação 149 docentes universitários, organizados em entidades representativas, as ADs (associações de docentes universitários), que se multiplicaram ao longo dos anos 80, articulando- se, inclusive, em uma associação nacional, a ANDES (de início, Associação, e, depois, Sindicato Nacional). Essa entidade teve uma ativa participação durante todo o processo constituinte. Constatava-se, à época, um esgotamento de várias das medidas pedagógico-administrativas propostas pela Reforma de 1968, além de que, mais uma vez, se levantava a bandeira da autonomia universitária. Mesmo que esta discussão estivesse com freqüência atravessada por questões de ordem corporativa, havia, sem dúvida, uma retomada da discussão de fundo sobre o papel da universidade, no contexto do processo de democratização da sociedade brasileira. Algumas iniciativas foram também assumidas nessa direção por parte do próprio governo federal, sem que, entretanto, tivessem maiores efeitos práticos. Durante o governo Sarney, chegou a se constituir uma Comissão Nacional para a Reformulação da Educação Superior, composta na sua maioria de professores universitários, que produziu um documento intitulado Uma nova política para a educação superior, com uma série de recomendações de mudanças que nunca chegaram a ser efetivamente implementadas. Essa comissão sofreu uma forte resistência por parte do movimento dos docentes universitários, que contestavam a sua legitimidade. Mudanças substantivas sobre o ensino superior estão sendo, atualmente, introduzidas pela política educacional que vem sendo implementada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Esse governo, desde 1995, vem conduzindo uma ampla reforma do sistema de ensino. No caso específico do ensino superior, essa reforma, que se consubstanciou na nova Lei de Diretrizes e Bases e em outros documentos legais complementares, combina-se com uma política de congelamento de salários dos docentes das universidades federais, de cortes de verbas para a pesquisa e a pósgraduação, de redirecionamento do financiamento público, com efeitos, a meu ver, preocupantes, especialmente para as universidades públicas. Essas medidas tiveram um efeito fortemente desmobilizador sobre o movimento docente universitário. Embora seja prematuro fazer-se uma avaliação do impacto dessa política sobre a situação do ensino superior no Brasil, ela aponta em direções, a meu ver, contraditórias. Por um lado, há uma série de propostas orientadas para a flexibilização do sistema, como a possibilidade de diversificação dos tipos de instituições, dos cursos e currículos, das formas de ingresso no ensino superior – com a eliminação da obrigatoriedade do exame vestibular –, que poderiam levar a uma maior autonomia didático-pedagógica das universidades. Essas propostas, entretanto, são, em grande parte, neutralizadas por um controle centralizado que se exerce através de uma série de estratégias, como o Exame Nacional de Cursos, o recredenciamento periódico das instituições, medidas estas que são justificadas em função da melhoria qualitativa do ensino. Há, por outro lado, uma compreensão parcial do que seja a autonomia universitária, particularmente no que se refere às universidades federais, excessivamente centrada na dimensão econômica, coerente com a idéia de Estado mínimo que vem sendo a base das políticas governamentais, de uma forma geral, e que se acompanha de um certo descompromisso com relação ao destino das universidades públicas. Contraditoriamente, algumas situações vividas recentemente retratam uma intervenção direta do governo federal nos processos de indicação de dirigentes para essas instituições. Mais uma vez se pretende uma mudança de cima para baixo, sem o indispensável envolvimento dos verdadeiros atores, alunos e professores universitários. A esse respeito é que gostaria de concluir o texto trazendo aqui novamente as reflexões de Anísio Teixeira. Para esse educador, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, a verdadeira reforma universitária não se poderia nunca fazer, de fora, pela mera imposição de atos legislativos. Uma efetiva reforma da universidade teria que nascer de dentro, pelo debate e resultante consenso do magistério para que tivesse um impacto efetivo na mudança das práticas (de gestão e especificamente educativas) desenvolvidas no seu interior. Não me parece ser esta a direção que se está imprimindo às atuais políticas para o ensino superior. ANA WALESKA P.C. MENDONÇA é professora de História da Educação Brasileira do Programa de Pós-Graduação em EducaAna Waleska P.C. Mendonça 150 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14 ção da PUC-Rio. Tem vários artigos publicados e organizou, juntamente com Zaia Brandão, o livro: Uma tradição esquecida. Por que não lemos Anísio Teixeira?, publicado pela RAVIL, em 1997. Sua tese de doutorado, citada no texto, acha-se em vias de publicação pela editora da UERJ. 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