sexta-feira, 22 de junho de 2012
HISTÓRIA DAS UNIVERSIDADES NO BRASIL
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 131
Traçar uma visão panorâmica da história do ensino
superior no Brasil, com um mínimo de consistência e
organicidade, impôs a necessidade de se estabelecer um
recorte na abordagem do tema, bem como de se definir
um eixo que orientasse a análise desenvolvida.
Foi esta a razão que me levou a fazer algumas opções
iniciais que gostaria de deixar claras e que já se
fazem presentes no próprio título escolhido para este
artigo.
Em primeiro lugar, o foco da nossa análise não será
o ensino superior simplesmente. Mas irei privilegiar uma
determinada forma que esse ensino assume historicamente,
que é a instituição universitária, mesmo que comece
o texto afirmando que a universidade, no sentido aqui
atribuído a esse termo, instala-se tardiamente no Brasil.
Para justificar essa escolha, gostaria de fazer minhas
as palavras com que Christophe Charles e Jacques
Verger introduzem o seu clássico trabalho sobre a história
das universidades. Afirmam os dois autores:
As universidades sempre representaram apenas uma
parte do que poderíamos denominar, de modo amplo, ensino
superior. [...] Ao decidirmos partir das universidades propriamente
ditas – sem por isso limitarmo-nos estritamente a elas –,
adotamos uma perspectiva particular. Se aceitarmos atribuir à
palavra universidade o sentido preciso de “comunidade (mais
ou menos) autônoma de mestres e alunos reunidos para assegurar
o ensino de um determinado número de disciplinas em
um nível superior”, parece claro que tal instituição é uma criação
específica da civilização ocidental, nascida na Itália, na
França e na Inglaterra no início do século XIII. Esse modelo,
pelas vicissitudes múltiplas, perdurou até hoje (apesar da persistência,
não menos duradoura, de formas de ensino superior
diferentes ou alternativas) e disseminou-se mesmo por toda a
Europa e, a partir do século XVI, sobretudo dos séculos XIX e
XX, por todos os continentes. Ele tornou-se o elemento central
dos sistemas de ensino superior e mesmo as instituições nãouniversitárias
situam-se, em certa medida, em relação a ele,
em situação de complementaridade ou de concorrência mais
ou menos notória. (Charles e Verger, 1996, p. 7-8)
Destacaria dessa afirmativa duas idéias que se constituem
em pressupostos do meu trabalho. A primeira delas
é a de que a instituição universitária é uma criação específica
da civilização ocidental, que teve, nas suas origens,
um importante papel unificador da cultura medie-
A universidade no Brasil
Ana Waleska P.C. Mendonça
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Ana Waleska P.C. Mendonça
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val e que, posteriormente, ao longo do século XIX,
redefinida em suas atribuições e em seu escopo, exerceu,
também, um papel significativo no processo de consolidação
dos Estados nacionais. É desta instituição que
estarei falando.
Em segundo lugar, assumo com os autores que por
ser a universidade o elemento central do ensino superior
(mesmo que, no nosso caso específico, ela tenha se constituído,
durante muito tempo, mais em uma aspiração do
que em uma instituição concreta), as demais instituições
não-universitárias posicionam-se sempre, em certa medida,
com relação a ela e podem, portanto, ser estudadas
tomando-a como referência. É a esta tarefa que me proponho.
Pretendo, também, na análise, privilegiar um determinado
período da história da universidade no Brasil.
Trata-se do período que vai de 1920 a 1968, anos
críticos para a história dessa instituição entre nós, ao
longo dos quais, a universidade efetivamente se institucionaliza
enquanto tal e vai assumindo a sua configuração
atual.
A universidade: uma instituição
tardia no Brasil
O Brasil constitui uma exceção na América Latina: enquanto
a Espanha espalhou universidades pelas suas colônias
– eram 26 ou 27 ao tempo da independência –, Portugal,
fora dos colégios reais dos jesuítas, nos deixou limitados às
universidades da Metrópole: Coimbra e Évora. (Teixeira,
1999, p. 29)
Não havia, pois, na Colônia estudos superiores universitários,
a não ser para o clero regular ou secular [...] para os que
não se destinavam ao sacerdócio, mas a outras carreiras, abriase,
nesse ponto de bifurcação, o único, longo e penoso caminho
que levava às universidades ultramarinas, à de Coimbra [...] e à
de Montpellier [...]. (Azevedo, 1971, p. 532)
A afirmação da inexistência da universidade no
Brasil, durante o período colonial, usando-se freqüentemente
a comparação com a situação diferenciada da
América espanhola, tem sido recorrente entre os diferentes
autores que em distintas épocas e contextos vêm
se debruçando sobre a história do ensino superior entre
nós. O significado dessa inexistência, suas implicações
e suas causas têm sido, entretanto, objeto de interpretações
divergentes.
Cunha, particularmente, em seu A Universidade
Temporã (1980), discute essa própria afirmação. Questiona,
por um lado, a idéia implícita em alguns autores
de que a universidade seria a forma ideal ou natural de
organização do ensino superior, e que, portanto, desse
ponto de vista, sua ausência significaria no fundo uma
carência a ser superada. Por outro, pergunta-se se esta
questão não seria apenas de nome, e se os colégios jesuítas
e os seminários não se constituiriam em instituições
equivalentes às universidades hispano-americanas.
Na perspectiva adotada, não me parece que tenha
muito sentido aprofundar nesse tipo de discussão. Não
há dúvida de que, se considerarmos a universidade como
uma instituição específica da civilização ocidental, na
forma em que se constituiu historicamente no contexto
europeu, essa instituição não foi, ao longo do período
colonial, implantada em nossas terras. Algumas tentativas
sistematicamente frustradas de estender aos colégios
jesuítas as prerrogativas universitárias nos dão conta
da intencionalidade da coroa portuguesa de manter a dependência
com relação à Universidade de Coimbra, a
rigor, a única universidade existente em Portugal (já que
a outra universidade existente no Reino, a de Évora,
nunca teve as mesmas prerrogativas que Coimbra).
Azevedo (1971) relata a tentativa malsucedida da
Câmara da Bahia, em 1671, de conseguir a equiparação
do colégio local ao de Évora, de que resultou a provisão
de 16 de julho de 1675, por meio da qual se autorizava
levar em conta em Coimbra e em Évora, um ano de artes,
para os estudantes de retórica e filosofia que tivessem
cursado as aulas dos jesuítas na Bahia. Com esta
medida, no dizer desse autor, “se fecharam todas as perspectivas
para a criação no Brasil colonial, de cursos superiores
destinados à preparação para as profissões liberais.”
(p. 532-533)
Também Villalta (1997), em obra mais recente, afirma
explicitamente que “el-rei procurou manter a dependência
em relação à universidade de Coimbra, considerada
um aspecto nevrálgico do pacto colonial”, e
justifica essa afirmativa acrescentando que Portugal recusou-
se, até 1689, a conceder todos os graus e priviléA
universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 133
gios universitários aos alunos dos colégios jesuítas. Para
reforçar essa posição, Villalta relata ainda que, já em
1768, a Corte rejeitou um pedido da Câmara de Sabará
para que se criasse uma aula de cirurgia. É a esta última
medida que também se refere Lacombe (1969), transcrevendo
do documento do Conselho Ultramarino, um
trecho extremamente ilustrativo da política oficial portuguesa,
que transcrevo a seguir:
Que poderia ser questão política, se convinham estas
aulas de artes e ciências em colônias..., que podia relaxar a
dependência que as colônias deviam ter do reino; que um dos
mais fortes vínculos que sustentava a dependência das nossas
colônias era a necessidade de vir estudar a Portugal; que este
vínculo não se devia relaxar;... que [o precedente] poderia talvez,
com alguma conjuntura para o futuro, facilitar o estabelecimento
de alguma aula de jurisprudência... até chegar ao ponto
de cortar este vínculo de dependência. (op. cit., p. 361)
Para esse autor, igualmente, este laço de dependência
não era neutro nem indiferente, servindo, num primeiro
momento, aos próprios jesuítas que, desde 1555,
detinham o controle da Universidade de Coimbra, e constituindo-
se, depois, em um dos mais úteis instrumentos
de difusão do pombalismo e do espírito nacionalista. É
interessante, aliás, a interpretação que Lacombe, ao traçar
as origens do ensino jurídico no Brasil, dá ao fato do
seu aparecimento tardio (os cursos jurídicos não se incluíram
entre aqueles criados por D. João VI, quando da
instalação da Corte portuguesa no Brasil). Referindo-se
às instituições de ensino superior criadas por D. João,
destaca que estas “resultaram quase sempre de uma necessidade
premente de técnicos, e que a formação de juristas
não era urgente” (idem, ibidem), já que havia bacharéis
em número suficiente formados em Coimbra,
prolongando-se, nesta área, durante o Império, a influência
dessa universidade. Segundo ele, a intelligentzia do
Império foi praticamente toda ela ainda constituída pelos
bacharéis formados nessa instituição.
Teixeira (op. cit.) chega a afirmar, referindo-se a
essa dependência da universidade de Coimbra, que, até
o início do século XIX, esta foi a universidade brasileira,
nela se graduando mais de 2.500 jovens nascidos no
Brasil. Aliás, esse autor chama atenção para a ambigüidade
do estatuto de brasileiro, até a Independência, lembrando
que não se podia distinguir, quando membros da
classe dominante, os brasileiros dos portugueses, e acentuando
que, por essa razão, “o brasileiro da Universidade
de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português
nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer
professor da universidade” (op. cit., p. 65). Cita especificamente
os casos de Francisco de Lemos de Faria Pereira
Coutinho – membro da Junta de Providência Literária
constituída para estudar e projetar a Reforma
Pombalina dos estudos superiores, e depois o executor
da Reforma e reitor da Universidade de Coimbra por
cerca de 30 anos –, e José Bonifácio de Andrade, o patriarca
da Independência, que foi antes professor da
mesma universidade, como, aliás, vários outros portugueses
nascidos no Brasil.
Essa centralidade da Universidade de Coimbra na
formação das elites brasileiras é que leva também Azevedo
a afirmar, remetendo-se à Reforma Pombalina, que
esta atingiu o Brasil, principalmente, através daquela
universidade. No seu espírito renovado, sob o impacto
do ideário iluminista, formaram-se não só alguns dos
nossos cientistas pioneiros (da geração de brasileiros que
estudou em Coimbra após a Reforma Pombalina, foi
proporcionalmente grande o número dos que seguiram
cursos de matemática, ciências naturais e medicina1),
bem como, contraditoriamente – dado o caráter regalista
do pombalismo – as principais lideranças dos movimentos
insurrecionais de independência política. Entre os
primeiros, a figura singular do bispo José Joaquim Cunha
de Azeredo Coutinho, parente do reformador de
Coimbra, fundador do Seminário de Olinda, unanimemente
considerada aquela instituição que, no Brasil, mais
claramente expressou os princípios que nortearam a
Reforma Pombalina.2
Não foi entretanto essa tradição universitária que
informou as iniciativas tomadas por D. João VI, quando
da instalação da Corte no Brasil. Nas palavras de Paim
(1982):
1 A esse respeito, ver especialmente Mello e Souza, Antonio
Candido de, (1968).
2 Sobre a experiência do Seminário de Olinda e, particularmente,
sobre o pensamento do bispo Azeredo Coutinho, ver Alves, Gilberto
Luiz (1993).
Ana Waleska P.C. Mendonça
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Essa opção por institutos isolados, de inegável cunho
superior, não deixa de ser algo de inusitado, porquanto a tradição
européia consistia em reunir em torno do Colégio das Artes,
que preparava os estudantes para a matrícula nas faculdades
e, supunha-se, assegurava a unidade da instituição. A estruturação
destas, isoladamente, criou a necessidade do vestibular,
então inexistente, e, ao longo da prática ulterior, os chamados
cursos anexos. (p. 20)
Mesmo que se possa relativizar a afirmativa de que
este seria o único modelo de universidade, Paim afirma
a ruptura com uma tradição universitária e a identifica
como uma das justificativas da situação de desarticulação
entre o ensino secundário e superior, que estaria na
origem dos chamados exames vestibulares.
Teixeira (op. cit.) relata, a esse mesmo respeito,
um episódio extremamente ilustrativo. Quando, em 1808,
a família real aportou, num primeiro momento, na Bahia,
o comércio local se reuniu e deliberou solicitar ao Príncipe
Regente a fundação de uma universidade literária,
provendo para a construção do palácio real e o custeio
da universidade importante soma de dinheiro. Essa solicitação,
entretanto, não foi atendida e, por outro lado, o
Príncipe decidiu criar um Curso de Cirurgia, Anatomia
e Obstetrícia, em fevereiro desse ano, atendendo ao pedido
do cirurgião-mor do Reino, José Correa Picanço,
um dos portugueses brasileiros formados em Coimbra.
Transferida a Corte para o Rio de Janeiro, as instituições
criadas por D. João VI, no âmbito do que se
pode chamar de ensino superior, estavam, na sua grande
maioria, diretamente articuladas à preocupação com a
defesa militar da colônia, tornada a sede do governo
português. Ainda no ano de 1808, cria-se, no Rio de
Janeiro, a Academia de Marinha, e, em 1810, a Academia
Real Militar, para a formação de oficiais e de engenheiros
civis e militares. Também em 1808, criaram-se
os cursos de anatomia e cirurgia, para a formação de
cirurgiões militares, que se instalaram, significativamente,
no Hospital Militar (como também era o caso do curso
da Bahia, citado anteriormente). A esses cursos, de
início simples aulas ou cadeiras, acrescentaram-se, em
1809, os de medicina e, em 1813, constituiu-se, a partir
desse cursos, a Academia de Medicina e Cirurgia do Rio
de Janeiro.
Outros cursos foram ainda criados, na Bahia e no
Rio de Janeiro, todos eles marcados pela mesma preocupação
pragmática de criar uma infra-estrutura que
garantisse a sobrevivência da Corte na colônia, tornada
Reino-Unido. Na Bahia, a cadeira de economia (1808),
e os cursos de agricultura (1812), de química (1817) e
de desenho técnico (1817). No Rio, o laboratório de
química (1812) e o curso de agricultura (1814).
Alguns cursos avulsos foram ainda criados em Pernambuco,
em 1809 (matemática superior), em Vila Rica,
em 1817 (desenho e história), e em Paracatu, Minas
Gerais, em 1821 (retórica e filosofia), visando suprir
lacunas do ensino ministrado nas aulas régias.
A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, criada
em 1816, no seu plano original também estava marcada
pela preocupação com a formação técnica. Essa escola,
entretanto, teve uma história atribulada e apenas irá funcionar
como Academia das Artes, bastante modificada
nos seus objetivos iniciais, em 1826, já no primeiro Império.
Além do caráter pragmático que marcava a quase
totalidade dessas iniciativas, cumpre destacar também o
seu caráter laico e estatal. De fato, essas instituições
foram criadas por iniciativa da Corte portuguesa, e foram
por ela mantidas, continuando a sê-lo pelos governos
imperiais, após a nossa independência política.
Por sucessivas reorganizações, fragmentações e
aglutinações, esses cursos criados por D. João VI dariam
origem às escolas e faculdades profissionalizantes
que vão constituir o conjunto das nossas instituições de
ensino superior até a República. A esse conjunto, viriam
se agregar os cursos jurídicos, criados apenas após a
Independência, originariamente em São Paulo e Olinda,
no ano de 1827. Cunha (op. cit.) refere-se ao acirrado
debate que se travou no Parlamento a respeito da localização
desses cursos, destacando que, ao final, prevaleceu
“a corrente que defendia a localização das academias
fora do Rio de Janeiro e naquelas províncias onde foi
mais forte o movimento pela independência” (p. 112). O
critério nacionalista teria sido, portanto, determinante
no que se refere à localização desses cursos.
Foram poucas, entretanto, as iniciativas concretas
dos governos imperiais no campo do ensino superior, limitando-
se à manutenção das instituições existentes e à
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 135
sua regulamentação. Além dos cursos jurídicos, instituídos
por D. Pedro I, uma outra iniciativa importante seria
a instalação, já no final do segundo Império, em 1875 –
um ano depois da separação do curso de engenharia da
Escola Militar, com a constituição da Escola Politécnica
–, da Escola de Minas em Ouro Preto,3 à época capital
da província de Minas Gerais. Essa escola, que se originou
de um ambicioso projeto elaborado pelo engenheiro
francês Claude Henri Gorceix, nasceu de um empenho
pessoal do próprio Imperador D. Pedro II, que talvez tivesse
em mente, como assinala Cunha (op. cit.), acelerar
o surto econômico produzido pela Guerra do Paraguai.
No entanto, sofreu uma forte oposição dos professores da
Politécnica, e seus resultados, por uma série de circunstâncias
que tinham a ver com as próprias condições econômicas
do país, ficaram muito aquém do esperado.
No entanto, ao longo do primeiro e do segundo Impérios,
a demanda pela constituição de uma universidade
no país não desapareceu, sofrendo, porém, uma
constante resistência por parte de distintos grupos, especialmente
dos positivistas. Teixeira (op. cit.) referese
a que nada menos de 42 projetos de universidade
são apresentados a essa época, do de José Bonifácio ao
de Rui Barbosa, sendo, entretanto, sistematicamente recusados
pelo governo e pelo parlamento (p. 83). Esse
autor transcreve trecho do depoimento do Conselheiro
A. de Almeida Oliveira, registrado nos Anais do Congresso
de Educação que se realizou no Brasil em 1882,
sob a presidência do Conde D’Eu, que investia violentamente
contra a própria idéia de universidade, afirmando
constituir-se esta numa instituição obsoleta.
Parece-me interessante determo-nos um pouco sobre
as concepções subjacentes a algumas propostas encaminhadas
contra ou a favor de uma universidade no
país, pois a meu ver elas apontam para uma questão que
é central para a própria sobrevivência dessa instituição
e que hoje mais do que nunca se faz presente no âmbito
do debate pedagógico.
Cunha (op. cit.) refere-se a um projeto encaminhado
por Justiniano José da Rocha à Assembléia Geral,
que propunha a criação de uma universidade “para controlar
todo o sistema de ensino, tanto o setor público
quanto o privado, conforme o paradigma da Universidade
de Paris, durante o governo de Napoleão” (p. 89).
Desta maneira o que parecia justificar a proposta de criação
dessa instituição era, primordialmente, a sua potencialidade
como um instrumento de controle por parte do
Estado sobre todo o ensino superior (além do seu caráter
de universalidade, que também aparece na fala de
Justiniano). Paim (1982), particularmente, defende essa
posição, afirmando explicitamente que “o interesse que
volta e meia se dedicava à universidade”, ao longo do
Império, “tinha evidentes intuitos centralizadores” (op.
cit., p. 21). E evoca também o testemunho de vários dos
intelectuais do Império.
Parece-me também sugestivo que a resistência colocada
pelos positivistas à idéia da criação de uma universidade
no Brasil se fizesse justamente em nome da
liberdade de ensino, princípio utilizado para advogar
não só a retirada dos entraves legais que impediriam
uma maior expansão da iniciativa privada no campo da
educação (que, especialmente após 1870, começou a
expandir-se no campo do ensino superior), mas também
uma ciência livre de privilégios e da proteção do
Estado, proteção esta que só serviria para profaná-la,
nas palavras de Teixeira Mendes (apud Cunha, op. cit.,
p. 99).
É significativo que, ao criar, em 1937, a Universidade
do Brasil, Capanema viria a atribuir-lhe justamente
a finalidade, talvez primordial, de controle e padronização
do ensino superior no país. Tal questão remete,
por um lado, à discussão sobre as finalidades dessa instituição
e, por outro, para a complicada relação entre a
universidade e o Estado, tendo em vista que uma das
suas demandas essenciais, como instituição historicamente
constituída, tem sido a de autonomia, particularmente
acadêmica, com relação às demais instituições
da sociedade e especificamente com relação ao Estado.
Esta será uma questão central no debate que se travará
sobre a universidade no Brasil ao longo dos anos 20 a
40, momento da sua institucionalização efetiva entre nós,
de que tratarei a seguir.
3 A origem desta escola remonta a uma lei aprovada em 1832,
pela Assembléia Legislativa de Minas, que criava um Curso de Estudos
Mineralógicos. Essa lei, sancionada pela Regência, não teve, no
entanto, nenhum efeito prático. A esse respeito, ver Cunha (op. cit.).
Ana Waleska P.C. Mendonça
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Na última fala do trono de D. Pedro II, em que este
faz, a meu ver, um balanço pelo avesso da atuação dos
governos imperiais no campo da educação, o Imperador,
entre outras reivindicações, solicitava ao Parlamento
a criação de duas universidades no país, uma ao norte,
outra ao sul, bem como de faculdades de ciências e letras,
vinculadas ao sistema universitário, em algumas
províncias (apud Azevedo, op. cit., p. 610). Essas demandas
apontam, igualmente, para as questões que irão
perpassar o debate sobre a universidade, ao longo do
nosso primeiro período republicano.
A institucionalização da
universidade no Brasil (1920- 1940)4
São as universidades que fazem, hoje, com efeito, a vida
marchar. Nada as substitui. Nada as dispensa. Nenhuma outra
instituição é tão assombrosamente útil. (Teixeira, 1988)
Os anos de instalação do novo regime viriam a propiciar
um intenso debate sobre a questão da educação,
no bojo da Constituinte, que, no entanto, arrefeceu-se
rapidamente com a promulgação da Constituição outorgada
e a consolidação de uma ordem política e social
que se sustentava nas mesmas oligarquias regionais
hegemônicas durante o Império, através da chamada
política dos governadores. Apenas após 1920, quando
essa ordem começaria a sofrer uma forte contestação
por parte de distintos grupos e movimentos, nucleados
em torno da bandeira da republicanização da República,
esse debate seria retomado com força, num novo contexto,
marcado pela ampliação decorrente do esforço de
mobilização da opinião pública e pelo confronto entre
diferentes projetos de construção/reconstrução da nacionalidade,
de que falarei a seguir.
Anteriormente a essa época, a adoção do sistema
federativo propiciou algumas iniciativas de criação de
universidades em alguns estados. Essas universidades,
entretanto, tiveram uma vida efêmera e, de fato, a primeira
instituição que assumiu, entre nós, de forma duradoura,
essa denominação foi a Universidade do Rio de
Janeiro, criada em 1920, pelo governo federal (embora
desde 1915 essa criação já estivesse autorizada), através
da agregação de algumas escolas profissionais
preexistentes, a saber, a Escola Politécnica, a Escola de
Medicina e a Faculdade de Direito que resultou da junção
de duas escolas livres já anteriormente constituídas.
A reunião em universidade dessas instituições, entretanto,
não teve um maior significado e elas continuaram
a funcionar de maneira isolada, como um mero conglomerado
de escolas, sem nenhuma articulação entre si (a
não ser a disputa pelo poder que se estabelece entre elas,
a partir daí) e sem qualquer alteração nos seus currículos,
bem como nas práticas desenvolvidas no seu interior.
Esse foi o modelo seguido posteriormente pela Universidade
de Minas Gerais, criada em 1927, por iniciativa
do governo do estado.
Por esses anos, entretanto, o debate em torno da
questão universitária voltara a se intensificar, extrapolando,
inclusive, o âmbito do Congresso. De acordo com
Nagle (1976), diferentes tarefas eram atribuídas à universidade
pelos grupos que, no âmbito da sociedade civil,
lideravam essa discussão.
O preparo das classes dirigentes – ponto de honra dos
sistemas democráticos –, a formação do professorado secundário
e superior – problema importante dado o autodidatismo
reinante – e o desenvolvimento de uma obra nacionalizadora
da mocidade – núcleo para o qual convergem os problemas da
universidade e da sociedade. (op. cit., p. 134)
Essas preocupações refletem, sem dúvida, as mudanças
que ocorriam, no período, nos planos econômico,
político e social.
O período que vai de meados dos anos 20 até a
chamada redemocratização em 1945 constitui um momento
extremamente complexo da vida brasileira, marcado,
principalmente, como já disse anteriormente, pela
crise do sistema oligárquico tradicional, o que acaba por
resultar na transferência do foco de poder dos governos
estaduais para o âmbito nacional. Esse período se caracteriza,
igualmente, pela emergência, na cena política,
das massas urbanas, que se expandem e se diferen-
4 Esta parte do artigo está fundamentada, principalmente, na
minha tese de doutorado, intitulada Universidade e Formação de
Professores: uma perspectiva integradora. A Universidade de Educação,
de Anísio Teixeira (1935-1939) (Mendonça, 1993).
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 137
ciam de forma acelerada como resultado do processo de
industrialização e urbanização – produto indireto, nesse
momento, da própria dinâmica da economia exportadora
– e do processo de burocratização, decorrência, por
um lado, da própria ampliação das funções do Estado,
e, por outro, da incipiente industrialização do país.
Esse contexto condiciona tanto o estabelecimento
de um sistema de educação de massa – vide a crescente
expansão da rede pública de ensino primário, a partir
daí – quanto o surgimento de diferentes projetos de educação
das elites que deveriam dirigir o processo global
de transformação da sociedade brasileira, via a reorganização
da escola secundária e do ensino superior.
Dois documentos expressam de forma significativa
as discussões que se desenvolveram nos últimos anos da
década de 1920, particularmente sobre os rumos a serem
atribuídos ao ensino superior. São eles os dois inquéritos
promovidos, respectivamente, pelo jornal O Estado
de S. Paulo, em 1926, e pela Associação Brasileira
de Educação (ABE), em 1928.
Esses dois inquéritos são substantivamente diferentes
entre si. O primeiro, conduzido por Fernando de
Azevedo, acabava por referendar um determinado projeto
de universidade (que se concretizou, em 1934, com
a criação da Universidade de São Paulo). O segundo,
embora também se propusesse à construção de um consenso
em torno da questão da universidade, era muito
mais representativo das diferentes concepções que atravessavam
o debate em torno dessa questão e que se confrontavam
no interior da própria associação.
Essas diferenças se evidenciam claramente na análise
que Carvalho (1998) desenvolve sobre os vários
grupos que, no interior do Departamento carioca da ABE,
ao final dos anos 20, lutavam pela hegemonia. Para a
autora, enquanto a principal bandeira do grupo sediado
na Seção de Ensino Secundário era a proposta de instalação
de uma Escola Normal Superior que garantisse a
formação especializada (e sua padronização) dos professores
do ensino secundário e normal, o grupo instalado
na Seção de Ensino Técnico e Superior lutava pela
criação de verdadeiras universidades no Brasil, voltadas
para o desenvolvimento da pesquisa científica e dos
altos estudos desinteressados, instituições indispensáveis
ao progresso do país. Segundo Carvalho, ambas as
tendências expressavam uma preocupação com a formação
das elites dentro de projetos de teor nacionalista,
representando, entretanto, diferentes concepções dessa
educação das elites.
O primeiro grupo, liderado pelos católicos, valorizava
especialmente o papel da escola secundária, como
agência de homogeneização de uma cultura média, dentro
de um projeto de recuperação do país de caráter
moralizante que passava pelo resgate da tradição católica
na formação da alma nacional.
Para o segundo grupo, constituído basicamente por
professores egressos da Escola Politécnica,5 a ênfase estava
posta nas universidades que deveriam se constituir
em verdadeiras usinas mentais, onde se formariam as
elites para pensar o Brasil (equacionar os problemas
magnos da nacionalidade) e produzir o conhecimento
indispensável ao progresso técnico e científico. Para esse
grupo não era a tradição o cimento da unidade nacional,
mas todo um conjunto de medidas de integração nacional,
decorrentes da expansão do progresso. Dessa perspectiva,
esse grupo defendia a criação de Faculdades de
Ciências voltadas para a pesquisa científica pura ou desinteressada.
Particularmente este segundo grupo não se sentiu
atendido com a Reforma Campos de 1931. Essa reforma,
aliás, como afirmam Schwartzman (1979) e Paim
(1982), constituiu-se em uma frustração para os grupos
sediados na ABE, que tinham uma expectativa de
intervir na definição da política educacional a ser estabelecida
pelo governo revolucionário, inclusive pelos
vínculos com a entidade por parte de Francisco Campos,
primeiro ocupante do Ministério de Educação criado
em 1930.
A reforma que se consubstanciou no chamado Estatuto
das Universidades Brasileiras traz a marca da
ambigüidade, decorrência do caráter conciliatório do
5 Segundo Paim (op. cit.), esse era o grupo que, no interior da
Politécnica, liderava a reação contra o positivismo ainda dominante
no âmbito dessa escola, e que foi responsável pela introdução de um
novo conceito de ciência (a ciência experimental) no Brasil. Foram
também integrantes desse grupo que, anteriormente, em 1916, fundaram
a Academia Brasileira de Ciências.
Ana Waleska P.C. Mendonça
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projeto governamental. É o próprio Campos, aliás, quem
afirma que o seu projeto “representa um estado de equilíbrio
entre tendências opostas, de todas consubstanciando
os elementos de possível assimilação pelo meio
nacional” (Lobo, apud Schartzman, 1979). Para
Schartzman (op. cit.), o que se pretendia de fato com o
Estatuto era “obter legitimidade junto a várias correntes
de opinião num momento de transição” (op. cit., p. 171),
em que o próprio governo que se instalava não tinha um
projeto educacional claramente delineado.
A principal inovação prevista no Estatuto era a possibilidade
(e não a obrigatoriedade) de incluir entre as
escolas que iriam compor a universidade uma Faculdade
de Educação, Ciências e Letras, instituição meio híbrida,
que deveria se constituir, por um lado, em um órgão
de alta cultura ou de ciência pura e desinteressada,
e, por outro, ser, antes de tudo e eminentemente, um
Instituto de Educação, destinado a formar professores
especialmente para o ensino normal e secundário. A justificativa
para esse caráter híbrido estava em que era
preciso ter cautela e, ao se instalar pela primeira vez no
país um Instituto de Alta Cultura, essa instituição não
poderia ser organizada de uma vez e de forma exclusiva
(apud Fávero, 1980, anexo I, p. 132-133). Esse mesmo
argumento era usado para justificar a tutela que se
estabelecia, por parte do governo federal, sobre as instituições
de ensino superior.
O Estatuto desagradou a gregos e troianos. O grupo
dos engenheiros da ABE criticava não só a excessiva
ingerência oficial na universidade (esse grupo defendia
fortemente a autonomia universitária, como condição
para que se fizesse ciência desinteressada), bem como o
caráter pragmático da Faculdade de Ciências, Educação
e Letras. Os católicos acusavam o projeto de
laicizante e, com base nesse argumento, criticavam tanto
o seu caráter centralizador quanto a sua feição pragmática.
De fato, a Reforma Campos não se tornou um
elemento catalisador dos grupos envolvidos com a discussão
sobre a questão da universidade. O próprio governo
federal, aliás, não se empenhou na implementação
da nova instituição.
No entanto, no interior da ABE, travava-se uma
luta pelo controle da entidade entre os católicos e um
novo grupo que acabaria por assumir a sua direção, constituído
pelos intelectuais que vieram a ser conhecidos
como os Pioneiros da Educação Nova e que, em 1932,
lançaram o seu Manifesto ao Povo e ao Governo, onde
explicitavam o seu programa de reforma da educação,
que incluía a criação de verdadeiras universidades.
Esse Manifesto endossa uma concepção de universidade
bastante próxima àquela defendida pelos engenheiros
da Seção de Ensino Técnico e Superior. A universidade
é concebida numa tríplice função de “criadora
de ciências (investigação), docente ou transmissora de
conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou
popularizadora, pelas instituições de extensão universitária,
das ciências e das artes” (Azevedo, 1958, p. 74-
75). Defende-se a centralidade da pesquisa, como “sistema
nervoso da Universidade, que estimula e domina
qualquer outra função” (idem, ibidem, p. 75), assumindo
a crítica às instituições de ensino superior existentes
no Brasil, que nunca teriam ultrapassado os limites e as
ambições da formação profissional. À universidade assim
concebida competiria o “estudo científico dos grandes
problemas nacionais”, gerando um “estado de ânimo
nacional” capaz de dar “força, eficácia e coerência
à ação dos homens”, independentemente das suas divergências
e diversidades de ponto de vista. Nessa instituição
seriam formadas as elites de pensadores, sábios, cientistas,
técnicos e os educadores – aí entendidos os
professores para todos os graus de ensino.
Em linhas gerais, essa foi a concepção que informou
as duas experiências universitárias desenvolvidas
ao longo desses anos por iniciativa de educadores vinculados
ao grupo dos renovadores, a saber, a Universidade
de São Paulo (USP), criada em 1934, pelo grupo
de intelectuais que se articulava em torno ao jornal O
Estado de S. Paulo, entre os quais Fernando de Azevedo,
e a Universidade do Distrito Federal (UDF), criada
por Anísio Teixeira em 1935, no bojo da reforma de ensino
por ele empreendida, como secretário de Educação,
no Rio de Janeiro.
Para Cardoso (1982), a criação da USP teve como
objetivo explícito a reconquista da hegemonia paulista
na vida política do país, o que se faria pela ciência em
vez das armas, conforme as próprias palavras de Júlio
de Mesquita Filho, presidente da Comissão Organizadora
da Universidade, não sendo, portanto, uma simples exA
universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 139
pressão do surto inspirador produzido pelo Manifesto
de 32. Para a autora, mesmo que nesse projeto, Azevedo
estivesse com o grupo do Estado, mantinha uma relativa
autonomia desse grupo, o que iria, inclusive, condicionar
alguns conflitos de ordem interna.
A UDF é, sem dúvida, um projeto de Anísio
Teixeira, embora viesse a mobilizar, particularmente, os
remanescentes do grupo sediado na Seção de Ensino
Técnico e Superior da ABE (quase todo vitimado num
trágico acidente de aviação, em 1928), que se incorporaram
à universidade, especialmente à sua Escola de
Ciências. A meu ver, esse caráter voluntarista da experiência
da UDF, em contraposição a um caráter mais
orgânico da experiência da USP, explicaria em grande
parte a sua originalidade, mas, por outro lado, seria uma
das razões da sua fragilidade e iria condicionar a relativamente
fácil destruição da universidade.
Tanto no caso da USP, quanto no da UDF, a preocupação
com o desenvolvimento da pesquisa e dos altos
estudos é central.
No caso da USP, esse objetivo aparece concentrado
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, eixo
integrador da universidade, em torno do qual deveriam
gravitar as demais escolas. Na prática, a USP foi criada,
como as demais universidades existentes no país,
através da incorporação de um conjunto de escolas profissionalizantes
já existentes. A única instituição efetivamente
nova era a Faculdade de Filosofia, de quem se
esperava, como afirma Schartzman (op. cit.), que contaminasse
favoravelmente as demais, modificando-lhes
o espírito tradicional e bacharelesco. Para Antunha
(1974):
É a peculiar concepção dos objetivos e das funções integradoras
da Faculdade de Filosofia que dá ao modelo paulista
a sua característica própria e inconfundível. (op. cit., p. 86-87)
Já é outra a situação da UDF. A sua estrutura é
radicalmente diferente das universidades até então criadas
no país e a própria denominação das escolas é indicativa
da ruptura com o modelo de agregação de escolas
profissionalizantes. São cinco as escolas que a constituem,
a saber: as Escolas de Ciências, Educação, Economia
e Direito, Filosofia e o Instituto de Artes. Todas
elas se propõem a desenvolver de forma integrada o ensino,
a pesquisa e a extensão universitária (entendida
prioritariamente na perspectiva da divulgação científica)
nas suas respectivas áreas de conhecimento.
De qualquer forma, ambas as universidades possuem
uma base comum, como expressões – mesmo que
diferenciadas – do ideário do Movimento da Escola
Nova, consubstanciado no Manifesto de 32. Outras, entretanto,
seriam as fontes de que se originaria o projeto
da Universidade do Brasil (UB), criada em 1937, por
iniciativa de Gustavo Capanema, ministro da Educação
de 1934 a 1945, como universidade-padrão, a cujo modelo
se deveriam adequar todas as instituições similares
existentes ou a serem criadas no país.
Há um consenso entre os diferentes autores que vêm
trabalhando sobre o tema, de que o chamado modelo
federal de organização da universidade, que se consubstanciou
com a criação da UB, teve os seus delineamentos
já dados com o Estatuto das Universidades Brasileiras
a que se fez referência anteriormente. Particularmente,
Capanema viria a resgatar o modelo ambíguo da Faculdade
de Educação, Ciências e Letras do Estatuto de 31
para a organização da Faculdade Nacional de Filosofia,
que se instalaria no Rio de Janeiro em 1939, absorvendo
parte do acervo da UDF, que foi extinta.
O embate que se deu, aliás, entre essas duas experiências
universitárias é ilustrativo da concepção de universidade
que, a partir daí, se tornaria hegemônica.6
A esse respeito, o trabalho de Martins (1987) sobre
a constituição de uma intelligentsia7 no Brasil, ao
longo dos anos 20 a 40, parece fornecer uma significativa
chave de leitura. Para esse autor, as condições específicas
do país ao longo desses anos propiciaram o surgimento
de uma intelligentsia brasileira, à qual se
integrava o grupo dos chamados renovadores da educação.
Essa intelligentsia iria empreender, especialmente
no período anterior ao Estado Novo, uma tentativa de
6 Ver a esse respeito a minha tese de doutorado anteriormente
citada (Mendonça, 1993).
7 Para Martins (1987), o conceito de intelligentsia refere-se a
um tipo específico de intelectual cujo atributo principal é a sua condição
de ator político e cuja emergência, como sujeito coletivo, está
ligada a certas condições sociais, políticas e culturais.
Ana Waleska P.C. Mendonça
140 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
estruturação do campo cultural, através da criação de
instituições modernas, que se constituiriam nos “‘locii’”
para a fundação, o reconhecimento e a expansão de sua
identidade social, e mesmo de sua ‘missão’ na sociedade”
(op. cit., p. 79). Especificamente, a USP e a UDF
seriam a expressão mais acabada dessa tentativa. Ora,
para Martins, o Estado viria a intervir nesse campo cultural,
antes mesmo que ele se estruturasse. Desse ponto
de vista, a Reforma Campos teria armado o Estado para
exercer sua tutela sobre o ensino e, com a criação da
UB, essa tutela, especificamente sobre o ensino superior,
acabaria finalmente por se impor. Com isso, a autonomia
do campo cultural tornar-se-ia letra morta, sendo
esse campo invadido primeiro pelo autoritarismo e depois
pelo paternalismo do Estado.
De fato, há uma intenção explícita do governo federal,
principalmente após 37, de assumir o controle das
iniciativas no campo cultural. A idéia comum aos projetos
da USP e da UDF, de formar na universidade as elites
que, com base na autoridade do saber, iriam orientar
a nação (colocando-se, de certa forma, acima do Estado),
seria, no contexto do Estado Novo, considerada
perigosa. Ao governo federal interessava ter o monopólio
de formação dessas elites e por isso impunha sua tutela
sobre a universidade.
A centralização imposta com a instituição da UB
como universidade-padrão atingiu diferentemente as duas
instituições universitárias. A UDF acabou por ser extinta,
apesar do eufemismo legal, pelo qual era incorporada
à Faculdade Nacional de Filosofia.8 Essa universidade,
aliás, teve vida curta e conturbada. Desde o início,
Capanema posicionara-se contra a sua criação. Inaugurada
em junho de 1935 por Anísio Teixeira, este se demitiria
em novembro da Secretaria de Educação, no que
seria seguido pelo primeiro reitor da universidade, Afrânio
Peixoto, e por vários dos colaboradores diretos de
Anísio que integravam o seu quadro docente, no contexto
de caça às bruxas que se seguiu ao malfadado levante
de 1935. A universidade ainda conseguiu sobreviver até
1939, graças, principalmente, ao grupo de cientistas
nucleados na Faculdade de Ciências. O Estado Novo,
entretanto, forneceria a Capanema os instrumentos políticos
de que necessitava para destruir a UDF. A esse
respeito, aliás, é significativo constatar que Capanema
oscilou entre uma posição inicial de eliminar pura e simplesmente
a universidade e a atitude mais pragmática,
que acabou sendo adotada, de incorporá-la à UB, feitos
os devidos e necessários expurgos. Cumpre destacar que
nesse processo a Igreja Católica, por intermédio especialmente
de Alceu de Amorosa Lima, teve um papel
decisivo9.
A USP conseguiu opor uma maior resistência à interferência
do governo federal. Para Martins (op. cit.),
esse fato se explicaria principalmente pela forte presença
de professores estrangeiros no seu quadro docente
(mais de dois terços desse quadro). A meu ver, é o caráter
orgânico dessa experiência (enquanto se articulava
ao grupo do Estado e possuía respaldo financeiro do
governo estadual) que justificaria a sua maior autonomia
do governo federal. De qualquer forma, foi também
atingida no seu coração – a Faculdade de Filosofia (que,
por outro lado, sofria uma forte oposição das escolas
profissionalizantes) – e teve excluído do seu bojo o Instituto
de Educação (também a Escola de Educação é
excluída no processo de incorporação da UDF à Faculdade
Nacional de Filosofia).
Que modelo é esse que se padronizava por meio
da UB?
É mais uma vez o modelo de universidade como
8 A esse respeito, cumpre ressaltar que o impacto da extinção
da UDF foi diferenciado para as suas diferentes escolas. No caso da
Faculdade de Ciências, conseguiu-se garantir de alguma forma a continuidade
do seu trabalho, com a absorção de um número significativo
de professores e alunos pela Faculdade Nacional de Filosofia. Com
isso, ao menos no que se refere às áreas das ciências naturais e exatas,
não se perdeu totalmente a idéia de uma atividade científica centrada
na pesquisa e desinteressada. Até porque nessas áreas a triagem
ideológica se fez sentir com menos intensidade.
9 A Igreja Católica, à época, tinha também um projeto de formação
das elites que passava pela universidade. Esse projeto foi
gestado especialmente no interior do Centro D. Vital, instituição que
congregava as principais lideranças católicas leigas, tendo à frente
Alceu de Amoroso Lima. Esse projeto viria a encontrar a sua
concretização final com a criação da Universidade Católica, em 1946.
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 141
um conglomerado de escolas profissionalizantes. A própria
Faculdade de Filosofia se constituía em mais uma
delas, pois tinha o objetivo primordial de formar os professores
da escola secundária. Dessa perspectiva, embora
se estabeleça entre os objetivos da Faculdade Nacional
de Filosofia o de realizar pesquisas nos vários
domínios da cultura (alínea c do art. 1 do cap. 1 do
Decreto-lei no 1.190/39), esta instituição se propunha,
prioritariamente, a formar trabalhadores intelectuais
para os quadros técnicos da burocracia estatal, nas áreas
de educação e cultura, e, particularmente, professores
para o ensino secundário. A pesquisa aparecia claramente
com um objetivo secundário, subordinado.
A essa instituição também não cabia o papel de
integração das demais escolas, como no caso da instituição
congênere da USP. De fato, a preocupação básica
de Capanema não era com a integração mas com a
abrangência da universidade, que deveria no caso da UB
abarcar a totalidade dos cursos superiores oferecidos no
país, o que era especialmente importante por se constituir
em universidade-padrão, modelo. Dessa última perspectiva,
Capanema enfatizava o papel orientador e
disciplinador que a Faculdade de Filosofia deveria exercer
em todos os domínios da cultura intelectual pura.
Este, de fato, o objetivo fundamental da UB, como
instrumento do processo de unificação e homogeneização
cultural, que se constituía em pilar central do grande
projeto de Capanema de constituição da nacionalidade
(objeto de toda a sua ação à frente do Ministério da
Educação, no dizer de Schartzman et al., 1984).
Desse ponto de vista, também internamente era necessário
garantir a unidade de pensamento, o que implicava
restringir a liberdade de cátedra, o que se faria através
do controle exercido por uma burocracia rigidamente
centralizada.
A esse respeito é extremamente significativo o depoimento
de Raul Leitão da Cunha, primeiro reitor da
UB, em extenso relatório encaminhado ao ministro
Capanema, em fevereiro de 1945. Nesse relatório, Leitão
da Cunha elencava uma série de causas da estagnação
do ambiente universitário, a começar pela ausência
de organização verdadeiramente universitária, já que,
na sua perspectiva, a lei não fora capaz de unir os institutos
isolados, por não prever os recursos adequados. E
apontava, ainda, várias outras questões, entre elas a subordinação
dos institutos de ensino às normas vigentes
nas repartições burocráticas, que tinha efeitos altamente
negativos sobre o funcionamento da universidade
emperrando o seu trabalho, e a falta de autonomia didática
e administrativa da universidade, autonomia esta que
“antes de ser devidamente posta em prova, foi a pouco e
pouco sofrendo restrições que a tornaram praticamente
nula” (apud Mendonça, 1993, p. 257-258).
Com efeito, na prática, o papel modelar da UB acabou
por se constituir muito menos em um estímulo para
a melhoria da qualidade do ensino superior do que em
um instrumento efetivo de controle e padronização dos
cursos e instituições. O modelo universitário mais uma
vez não se impôs e as próprias Faculdades de Filosofia,
pensadas originariamente como um centro de produção
de conhecimento e como o órgão integrador e articulador
da universidade, expandiram-se como instituições isoladas
que se propunham, freqüentemente de forma precária,
a formar professores para a escola secundária.
Anos 50/60: a universidade em questão
Ao revés de Paulo Prado, eu diria: numa terra radiosa,
vive um povo alegre em eterna servidão. A reforma universitária
não nos libertará dessa servidão. Mas nos poderá ensinar
os caminhos intelectuais e políticos que permitirão conquistar
a própria liberdade intelectual e política, condição moral para
extinguir todas as formas de servidão, internas e externas, que
metamorfoseiam uma terra radiosa e um povo alegre numa
realidade triste. (Fernandes, 1975)
Ao longo dos anos 50/ 60, o ensino superior no Brasil
sofreria o impacto das duas ideologias que se constituíram
na base de sustentação dos governos que se sucederam
até 1964, e que iriam condicionar tendências
diferentes e algumas vezes contraditórias que marcaram
a forma como o ensino superior se desenvolveu durante
esse período.
Sob o impacto do populismo, o ensino superior passou
por um primeiro surto de expansão no país. Cunha
(1983) aponta algumas características desse processo
de expansão. O número de universidades existentes no
país cresceu de 5, em 1945, para 37, em 1964. Nesse
Ana Waleska P.C. Mendonça
142 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
mesmo período, as instituições isoladas aumentaram de
293 para 564. Independentemente dos valores absolutos,
Cunha chama atenção para o fato de que enquanto o
número de universidades foi multiplicado por 7, o de
escolas isoladas não chegou a dobrar. Essas universidades
continuavam a nascer do processo de agregação de
escolas profissionalizantes, como é o caso das nove universidades
católicas que se constituíram. Na sua maioria,
entretanto, eram universidades federais, criadas através
do processo de federalização de faculdades estaduais
ou particulares.10 A maioria das atuais universidades federais
existentes hoje tem nesse processo a sua origem.
Do ponto de vista do número de estudantes matriculados,
a taxa de crescimento no ensino superior, nesse
mesmo período, foi de 236,7%, o que indica uma intensificação
do ritmo de crescimento bastante significativa
em comparação com os períodos anteriores (2,4%, a taxa
média anual, entre 1932 e 1945, e 12,5%, entre 1945 e
1964).
Cunha (op. cit.) explica essa expansão como uma
resposta ao aumento da demanda ocasionado pelo deslocamento
dos canais de ascensão social das camadas
médias e pela própria ampliação do ensino médio público,
bem como pelo alargamento do ingresso na universidade
decorrente do processo de equivalência dos cursos
técnicos ao curso secundário, que se iniciou nos anos 50
e culminou com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961.
Esse aumento da demanda estaria na origem do problema
dos excedentes, posteriormente invocado como móvel
imediato da Reforma Universitária de 1968.
Por outro lado, o paradigma até então vigente para
o ensino superior começava a ser posto em questão, sob
o influxo do desenvolvimentismo que viria a alimentar
as propostas de modernização desse nível de ensino, visando
adequá-lo às necessidades do desenvolvimento
econômico e social do país. Este é o contexto em que se
vai desenvolver o debate sobre a Reforma Universitária
ao longo desses anos e que informa, por outro lado, algumas
experiências universitárias concretas. As diferentes
formas de se conceber o processo de desenvolvimento
do país iriam condicionar as distintas estratégias propostas
para se encaminhar a reforma da universidade.
Vários foram os grupos que se envolveram com esse
debate e que assumiram iniciativas bastante diversificadas:
o Estado – e, no interior do aparelho do Estado,
grupos distintos assumiram a liderança de iniciativas
algumas vezes até contraditórias entre si – e dois novos
atores coletivos que imprimiram a sua marca na orientação
que será dada a esse debate bem como a posteriores
encaminhamentos da questão: a comunidade científica
organizada e o movimento estudantil.
O primeiro passo desse processo de modernização
do ensino superior foi dado pelo setor militar, com a criação,
em 1947, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA). Essa instituição foi criada no momento em que se
constituía o Ministério da Aeronáutica e este assumia a
coordenação do sistema de transportes aéreos de todo o
país. Embora criado para atender às necessidades de
formação de pessoal de alto nível para um setor específico,
sua estrutura rompia com a forma como estavam
organizadas até então as instituições de ensino superior,
particularmente com a estrutura da cátedra vitalícia. Seus
professores eram contratados sob normas trabalhistas,
sendo o contrato sujeito a rescisão de acordo com o desempenho
do docente. A seleção de professores era responsabilidade
da comunidade acadêmica que se constituía
em um corpo governativo próprio. Havia uma
carreira estruturada em quatro níveis, sendo condição
para ingresso na mesma estar cursando a pós-graduação.
Alunos e professores dedicavam-se exclusivamente
ao ensino e à pesquisa, inclusive residindo no câmpus
universitário. As cátedras foram substituídas pelos departamentos
e adotou-se o sistema de créditos, nos moldes
das universidades americanas.11 O curso oferecido
era estruturado em um ciclo básico e um terminal e rapidamente
passaram a funcionar também cursos de pósgraduação
voltados para a formação de professores e
10 A esse respeito, ver, por exemplo, a tese de Lola Yazbeck
sobre as origens da Universidade Federal de Juiz de Fora, recentemente
lançada em livro (Yazbeck, 2000).
11 Cumpre destacar, a esse respeito, que a criação do ITA foi
proposta no Relatório Smith, elaborado por uma comissão presidida
pelo brigadeiro Casimiro Monteiro e assessorada pelo professor
Richard H. Smith, do Massachussets Institute of Technology (MIT).
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 143
pesquisadores. Essa instituição acabou exercendo um
papel meio exemplar do que deveria ser uma universidade
moderna e seu impacto sobre a própria burocracia
governamental foi grande.
A esse respeito, parece-me interessante a observação
de Gusso, Córdova e Luno (1985), quando, ao se
referirem às tensões que marcaram o desenvolvimento
do ensino superior ao final dos anos 50, apontam como
fatores dificultadores da sua modernização o conservantismo
dos catedráticos e das congregações das universidades
públicas, ampliadas com o processo das federalizações,
que penetrava também os setores hegemônicos
da burocracia educacional. Segundo esses autores, os
postos de maior poder, na universidade e no âmbito governamental,
continuavam nas mãos dos mesmos grupos
que haviam concebido e executado as políticas educacionais
do Estado Novo. Por essa razão, “os órgãos
centrais do governo se colocariam sistematicamente contra
mudanças mais profundas nas estruturas do ensino
superior” (op. cit., p. 125), contando com o respaldo do
próprio Congresso, onde inclusive vários dos parlamentares
eram oriundos das congregações tradicionais. A
longa e acidentada tramitação do projeto da Lei de Diretrizes
e Bases (LDB) seria a expressão da força dessa
resistência. Para os autores, essa força seria a justificativa
para o fato de que, apesar das críticas e pressões
provindas de diferentes setores sociais, não se tivesse
conseguido encaminhar até meados da década de 1960
nenhum projeto mais abrangente de reforma universitária.
A própria LDB é, a esse respeito, excessivamente
tímida, praticamente nada incorporando do debate que
então se travava sobre os rumos da universidade.
De qualquer maneira, as mudanças principiavam a
acontecer. De acordo com os autores acima referidos,
ainda no segundo governo Vargas, com o avanço do processo
de industrialização do país, a cúpula governamental
começava a mostrar-se sensível à questão da necessidade
de formação de pessoal técnico de alto nível para
atender ao Plano de Reequipamento Nacional, dentro de
uma perspectiva que Gusso, Córdova e Luna (op. cit.)
caracterizam como utilitária ou imediatista. Paralelamente,
membros influentes da comunidade científica continuavam
demandando uma reforma global da universidade,
de forma a ampliar suas condições de trabalho,
tendo em vista um desenvolvimento científico mais sólido
e mais autônomo, a médio e longo prazos. A controvérsia
entre essas duas tendências, que se prolongaria
pela década de 1960, condicionava as políticas específicas
praticadas por diferentes órgãos do governo, cada
qual atuando sobre diferentes segmentos do ensino superior.
O Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), criado
em 1951 pelo almirante Álvaro Alberto da Mota e
Silva com o objetivo específico de promover a pesquisa
científica e tecnológica nuclear no Brasil, desenvolvia
atividades orientadas à promoção da área das chamadas
ciências exatas e biológicas, fornecendo bolsas e auxílios
para a aquisição de equipamentos para pesquisa,
bem como criava e mantinha institutos especializados; a
Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior
(CAPES), instituída, como Comissão, no mesmo
ano que o CNPq, tendo à sua frente o educador Anísio
Teixeira, investia na formação dos quadros universitários,
através também da concessão de bolsas no país e
no exterior; outros órgãos dos vários ministérios atuavam
de forma isolada sobre as suas áreas respectivas.
Para os autores com os quais estou trabalhando, a
controvérsia acima referida se manifestou no próprio
processo de organização da CAPES, cujas diretrizes
nasceram de um compromisso entre essas duas tendências,
exercendo Anísio Teixeira um importante papel
mediador. Aliás, a meu ver, o papel desempenhado por
esse educador por meio da CAPES foi fundamental no
processo de institucionalização da pós-graduação no
Brasil e garantiu que a pesquisa científica se desenvolvesse
entre nós no interior da universidade, particularmente
no âmbito dos programas de pós-graduação.12
Cumpre destacar, igualmente, que, a essa época, a
comunidade científica crescera e desenvolvera a sua organização,
adquirindo maior articulação política, principalmente
com a criação da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, e do Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949. No
12 Este tema é objeto da pesquisa que venho coordenando e que
se intitula A Formação dos Mestres: a contribuição de Anísio Teixeira
para a institucionalização da pós-graduação no Brasil. Essa pesquisa
vem sendo desenvolvida com apoio da FAPERJ e do CNPq.
Ana Waleska P.C. Mendonça
144 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
âmbito da SBPC, desenvolvera-se uma vertente de pensamento
mais politizada e até, sob certos aspectos, nacionalista,
no seio da comunidade científica brasileira.
Era essa vertente que empunhava a bandeira da reforma
global da universidade e foi esse grupo que se articulou
junto a Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira em torno ao
projeto da Universidade de Brasília.
É significativo que a SBPC tenha-se posicionado
contra a criação pelo MEC, em 1958, da Comissão
Supervisora dos Institutos (COSUPI), órgão destinado
a renovar o ensino de engenharia, através principalmente
da criação de institutos específicos nas universidades,
alegando não só a dispersão de recursos provocada
pelo programa, mas o seu especialismo e a tendência a
concentrar nos institutos as atividades de pesquisa,
desestimulando os núcleos já consolidados nas faculdades
(especialmente as de Filosofia) e em outros organismos
científicos mais apropriados. Essa Comissão, após
1964, seria incorporada à CAPES. Aliás, cabe destacar
que, no bojo do debate sobre a reforma universitária, a
questão do papel das faculdades de filosofia, seja como
instituições de pesquisa, seja como órgão integrador e
articulador das diferentes unidades, assumia uma nova
centralidade.13 Significativamente, a Reforma Universitária
de 1968 viria determinar o encerramento dessa
experiência, particularmente no âmbito da universidade,
com a sua fragmentação em diferentes escolas ou
institutos, entre elas a Faculdade de Educação.
Ao longo do final dos anos 50, início dos 60, outras
experiências isoladas vão começando a ensaiar mudanças
na estrutura pedagógico-administrativa do ensino
superior, algumas das quais serão posteriormente incorporadas
à Reforma de 68. Entre elas, a Universidade
Federal do Ceará, criada em 1955, na qual se retomava
a concepção nucleadora da Faculdade de Filosofia; a
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, articulada à
USP, criada entre 1957 e 1962; a Universidade Rural de
Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa, instalada
em 1958; as Escolas Superiores de Agricultura
de Piracicaba e Rio Grande do Sul, em 1963. Na culminância
desse processo se situaria a Universidade de
Brasília, instituída em dezembro de 1961, em regime de
fundação de direito público, não só pela sua posição de
universidade da nova capital mas pela originalidade da
sua proposta, endossada por setores de ponta da comunidade
científica.
O projeto original da Universidade de Brasília teve,
sem dúvida, uma de suas fontes de inspiração na experiência
da UDF. Aliás, Anísio Teixeira foi um de seus
mentores, embora de início tenha resistido à idéia da
criação de uma universidade na nova capital. Entretanto,
sua vinculação com o ideário nacional-desenvolvimentista
ficava já expressa na própria formulação dos seus
objetivos, tendo como primeira das suas finalidades:
Formar cidadãos empenhados na busca de soluções democráticas
para os problemas com que se defronta o povo brasileiro
na luta por seu desenvolvimento econômico e social.
(apud Cunha, 1983, p. 171)
Sua organização pedagógico-administrativa ia na
linha das mudanças que já vinham sendo ensaiadas em
experiências anteriores, aprofundando-as. Sua estrutura
era composta por institutos centrais e faculdades, organizados,
por sua vez, em departamentos. Os institutos
forneciam um ensino introdutório de dois ou três anos,
completado pelo ensino especializado das faculdades.
Além disso, eram responsáveis pelos cursos de formação
de pesquisadores e de pós-graduação. Os professores
eram todos contratados pela legislação trabalhista e
a cátedra transformava-se de cargo em grau universitário.
Havia os estudantes regulares e os especiais, que
apenas assistiam aos cursos sem pretensão de obtenção
de graus ou certificados e para os quais se reservavam
10% das vagas disponíveis (com isso, retomava-se, curiosamente,
a concepção de extensão universitária dos
anos 30). A instituição de uma Fundação mantenedora,
com sólido patrimônio, seria a garantia da sua autonomia
em todas as dimensões e o governo da universidade
seria exercido pelos órgãos colegiados nos seus diversos
níveis. Por meio desse órgãos, a participação dos
estudantes era sensivelmente maior do que nas demais
instituições de ensino superior.
A Universidade de Brasília foi implantada com uma
enorme rapidez e seus professores foram recrutados entre
o que havia de melhor no país. Esses professores eram
13 A esse respeito, ver, por exemplo, os artigos de Florestan
Fernandes incluídos na parte II do livro Educação e Sociedade no
Brasil (Fernandes, 1966).
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 145
atraídos, em grande parte, pela mística que se constituiu
em torno da nova universidade.
É significativo que mesmo os intelectuais que faziam
algumas restrições a esse projeto, como é o caso,
por exemplo, de Florestan Fernandes, defensor da retomada
do modelo paulista da Faculdade de Filosofia e
crítico da utilização política que se fazia da iniciativa,
reconheciam o caráter inovador da proposta, bem como
o mérito da associação que se estabelecia entre a universidade
e as exigências dinâmicas do desenvolvimento
socioeconômico do Brasil. A esse respeito, Florestan
Fernandes afirmava:
Os homens cultos e de boa vontade não poderão negarlhe
(à Universidade de Brasília) sua simpatia e colaboração,
pois estão em jogo interesses e valores fundamentais seja para
o bom funcionamento de Brasília como capital do país, seja
para a revisão e o aperfeiçoamento dos padrões de trabalho
intelectual, que temos explorado ao longo de nossa curta experiência
universitária. (Fernandes, 1966, p. 342)
Por outro lado, os anos 60 assistiram a uma crescente
radicalização do debate sobre a reforma da universidade,
liderado, sem dúvida, pelo movimento estudantil.
Esse movimento iria encabeçar uma luta pela
reforma universitária articulada às mobilizações populares
em torno das reformas de base, num contexto político
em que a aliança populista que sustentava o governo
pendia para a centro-esquerda, retomava as
tendências nacionalistas e lançava-se em várias frentes
para promover reformas sociais e políticas que permitissem
redirecionar o processo de desenvolvimento nacional
(as chamadas reformas de base).
Em 1961, a União Nacional dos Estudantes (UNE)
promovia, em Salvador, o I Seminário Nacional de Reforma
Universitária. Desse Seminário resultou a chamada
Carta da Bahia, que recolhia as conclusões do
evento. De uma forma geral, a discussão avançava em
direção a propostas concretas de reestruturação da universidade,
baseadas em análises abrangentes da realidade
nacional. O Seminário apontava como diretrizes
básicas da reforma universitária os seguintes pontos: a
democratização da educação em todos os níveis; a abertura
da universidade ao povo, através da extensão universitária
e dos serviços comunitários; a articulação com
os órgãos governamentais, especialmente no interior: a
colocação da universidade a serviço das classes desvalidas,
prestando-lhes assistência e serviços; a transformação
da universidade em “uma trincheira em defesa
das reivindicações populares e em gestões junto aos poderes
públicos” (apud Gusso, Córdova e Luna, op. cit.,
p. 137-138). Do ponto de vista das mudanças propostas
na estrutura da universidade, estas iam, sem dúvida, na
direção das experiências desenvolvidas na perspectiva
da sua modernização. Os estudantes propunham a suspensão
imediata do sistema de cátedras vitalícias, a adoção
do regime departamental e do tempo integral para
os professores, aliado à melhoria salarial e das condições
de trabalho, a criação de um sistema eficiente de
assistência ao estudante. Quanto ao governo da universidade,
preconizava-se uma ampla autonomia, a ser exercida
com uma intensa participação dos estudantes, professores
e também de entidades profissionais. Essa estrutura
de governo é que permitiria construir a autonomia da universidade,
tanto administrativa quanto didática.
No II Seminário, realizado em Curitiba, procediamse
a algumas revisões nas recomendações anteriores. Surgia,
agora, uma preocupação com o próprio conteúdo do
ensino superior, criticando-se o tecnicismo pragmático
e preconizando um humanismo total. Propunham-se, entre
outras medidas, a reorganização dos currículos e programas,
visando adequá-los ao “pleno conhecimento da
realidade nacional e do seu sentido histórico”, bem como
a introdução nos cursos técnicos das ciências humanas
e sociais (apud Gusso, Córdova e Luna, op. cit., p. 140).
Cunha (1983) identifica nas proposições encaminhadas
por esse segundo seminário uma maior consistência interna,
a seu ver decorrente da influência das idéias de
Álvaro Vieira Pinto, intelectual vinculado ao Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que tivera o seu
livro A questão da universidade recentemente publicado
pela própria UNE. O impacto desse livro sobre a maneira
como o movimento estudantil passaria a encarar a
reforma da universidade não pode, sem dúvida, ser menosprezado.
Nele, o autor resume, de forma sintética, a
percepção hegemônica no seio das lideranças estudantis
sobre o lugar da reforma universitária:
A reforma universitária constituindo, como dissemos, um
dos aspectos da transformação geral da sociedade brasileira,
Ana Waleska P.C. Mendonça
146 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
tem de ser simultânea e harmônica com as demais reformas
exigidas pelo resto da sociedade, neste momento. Não pode
ser desvinculada da reforma agrária, da reforma bancária, administrativa,
urbana, etc., pois é o movimento geral de um mesmo
processo histórico, são as mesmas forças contidas na totalidade
da sociedade que as irão realizar todas em conjunto.
Não existe, por conseguinte, o problema da reforma universitária,
mas o da reforma da sociedade, a qual se manifestará,
num dos seus aspectos como a reforma da universidade. (Pinto,
1986, p. 97)
Num terceiro seminário, ainda, os estudantes se
deteriam, principalmente, na estratégia de condução do
seu movimento.
As reações oficiais se fizeram sentir mas foram
cuidadosas. Por um lado não interessava uma contraposição
aberta, já que o movimento estudantil participava
do suporte político do próprio governo federal; por outro
lado, não era possível acatar na sua totalidade as
propostas estudantis, pois isto criaria mais um foco de
desestabilização das forças políticas dirigentes, num
contexto de crescente instabilidade.
Ainda em 1961, seis meses depois da realização do
I Seminário promovido pela UNE, o MEC convocava e
presidia uma reunião com todos os reitores de universidades,
para debater o tema da reforma. Ao fim do
simpósio, os reitores encaminharam uma série de sugestões,
propondo a criação de comissões seccionais de
reforma nas diferentes instituições e a criação de uma
Comissão Nacional sob a liderança do próprio Ministério,
além da constituição de um Fórum de Reitores, que
incorporaria representantes da UNE, e que deveria aprovar
os planos elaborados pelas comissões.
No entanto, com a criação do Conselho Federal de
Educação (CFE), pela Lei de Diretrizes e Bases de 1961,
seria esse órgão quem viria a assumir a direção da política
oficial de ensino superior, estratégia que seria reforçada
após 1964.
Para Gusso, Córdova e Luna (op. cit.), essa situação
se efetivava à medida que o governo se enfraquecia
e o Ministério da Educação perdia espaço político. Para
esses autores, desta perspectiva, a Universidade de
Brasília teria sido uma derradeira tentativa de reforma
prática da universidade, levada a cabo por setores do
próprio governo, com o apoio da comunidade científica.
Com o golpe de 64, entretanto, a Universidade de
Brasília foi fortemente atingida, culminando com a invasão
do seu câmpus em 65 e a intervenção governamental
que viria a descaracterizar totalmente o seu projeto
original.
De qualquer forma, parece-me importante recuperar
as experiências desenvolvidas ao longo desses anos,
para, como afirma Cunha (1983), desmitificar a idéia
de que o processo de modernização da universidade brasileira
teria se iniciado apenas após 1964, sob a influência
direta dos acordos MEC-USAID. Tanto Cunha
(1983), quanto Gusso, Córdova e Luna (opus cit.), embora
trabalhando a partir de referenciais distintos, chamam
a atenção para essa questão. Para Cunha:
Na verdade, quando esses convênios foram integrados,
no âmbito do ensino superior, a modernização da universidade
já era um objetivo aceito por diversas correntes de opinião,
de esquerda e de direita. Assim, quando os assessores norteamericanos
vieram, em 1967, para compor a Equipe de Assessoria
ao Planejamento do Ensino Superior, não precisaram de
muitos esforços para despertar o consenso que tinha sido produzido
entre os universitários, pelos porta-vozes do desenvolvimentismo.
(Cunha, op. cit., p. 204-205)
Para Gusso, Córdova e Luna (op. cit.), o processo
de mudança da universidade brasileira estava desencadeado,
“não obstante o estiolamento das mobilizações e
projetos” desenvolvidos ao longo dos anos 50/60, e tornar-
se-ia “irreversível em seus eixos fundamentais de
desenvolvimento”. Por essa razão, para os autores, o novo
regime implantado em 1964, após uma primeira fase
repressiva e obscurantista, ver-se-ia “compelido a retomar
o dinamismo das políticas de desenvolvimento científico-
tecnológico, ainda que sob limitações políticas
evidentes” (p. 143).
A esse respeito, a posição de Anísio Teixeira é bastante
mais cética. Ao analisar os decretos-leis de 1966 e
1967, que reestruturaram as universidades federais, prenunciando
as medidas propostas na Reforma de 1968, este
manifestava claramente o seu descrédito com relação às
mudanças que se anunciavam (Teixeira, 1989). Mesmo
atendo-se à dimensão mais técnica dessas mudanças, que
lhe pareciam insuficientes, por se limitarem apenas a uma
“reestruturação da maquinaria organizacional e adminisA
universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 147
trativa da universidade”, Anísio fazia algumas observações
que me parece importante transcrever. Partindo da
afirmação de que foi para o modelo da Universidade de
Brasília que, “agravando-se a crise universitária e tornando-
se inevitável a reforma de sua maquinaria administrativa
e didática, a universidade tradicional” se voltou,
nas suas “veleidades de reforma”, Anísio destacava
o fato de que aquela universidade nascera “de um projeto
em que colaborara a elite do magistério nacional e o seu
modelo refletia condições a que chegara a consciência
crítica desse magistério, no que tinha de mais novo, o seu
corpo de cientistas físicos e sociais” (Teixeira, op. cit.,
p. 125). Para ele, a situação, no momento, era inteiramente
outra, e a reforma proposta não se fazia “de dentro
da universidade, pelo debate e resultante consenso do magistério,
mas por atos legislativos a princípio permissivos
e depois coercitivos que impuseram a reestruturação dentro
das grandes linhas do modelo da Universidade de
Brasília” (idem, ibidem).
A meu ver, não se pode negar que, mesmo considerando
que várias das soluções pedagógico-administrativas
incorporadas à Reforma de 1968 tenham emergido
do momento anterior a 1964, há um evidente deslocamento
do eixo em torno do qual se articula a reforma da
universidade. Este se transfere do âmbito da reflexão
sobre a sua responsabilidade social e política num projeto
global de desenvolvimento, para o âmbito da racionalidade
administrativa e econômica, num contexto
marcadamente repressivo.
Da universidade reformada
à nova reforma
Hoje não é fácil, da mesma maneira que no passado,
falar da universidade...
Torres e Rivas, 1998, p. 58
Não pretendo aqui me aprofundar na análise da
Reforma Universitária de 1968, consubstanciada na Lei
no 5.540/68 e legislação complementar, até por que já
existe um número bastante significativo de trabalhos a
esse respeito. Meu objetivo é fazer uma espécie de balanço
do impacto efetivo dessa reforma sobre o ensino
superior em geral e particularmente sobre a instituição
universitária, bem como da política desenvolvida pelo
governo federal a esse respeito, que nem sempre foi na
direção das propostas incorporadas ao texto legal.
Um primeiro impacto do golpe militar de 1964 sobre
os rumos da universidade brasileira foi, sem dúvida,
o de conter o debate que se travava no momento anterior
e isso se fez através da intervenção violenta nos campi
universitários, do expurgo no interior dos seus quadros
docentes, da repressão e da desarticulação do movimento
estudantil.
Por outro lado, não era mais possível ao governo
segurar o processo de transformação da universidade,
seja pela pressão exercida pelas classes médias no sentido
da ampliação da oferta, que se traduzia na complicada
questão dos excedentes, seja pelas próprias necessidades
do projeto de modernização econômica que se
pretendia implementar no país.
Não é, portanto, de forma alguma gratuito o fato de
que o governo militar tenha, desde o início, empenhadose
na reorganização do ensino superior, assumindo a liderança
do seu processo de modernização. Já em 1966
seriam emitidos os dois decretos-lei que encaminhavam
a reestruturação das universidades federais, incorporando
várias das medidas ensaiadas nas experiências universitárias
citadas anteriormente e prenunciando a reforma
global do sistema.
Em 1968, no contexto da crise institucional que
culminou com o AI-5, foi instituído o Grupo de Trabalho
(GT) encarregado de estudar a reforma da Universidade
brasileira, constituído por representantes dos Ministérios
da Educação e Planejamento, do Conselho
Federal de Educação e do Congresso. É significativo
que as razões acima apontadas para a irreversibilidade
do processo de modernização da universidade tenham
sido explicitamente assumidas pelo próprio GT.
No Relatório elaborado pelo GT, a orientação desenvolvimentista
era afirmada, porém no contexto do novo
projeto político em implantação, o que implicava contraditoriamente
esvaziar a proposta da sua dimensão política,
atribuindo ao trabalho uma perspectiva essencialmente
técnica. Cumpre destacar que um outro relatório
antecedera o do GT, com um impacto evidente sobre os
rumos da reforma da universidade – o Relatório Meira
Mattos, produzido por uma outra comissão presidida pelo
general que acabou dando nome ao documento.
Ana Waleska P.C. Mendonça
148 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
Aprovado a toque de caixa, e transformado em lei,
o Relatório do GT forneceria as linhas gerais do paradigma
com base no qual a universidade brasileira se
consolidaria. Desta perspectiva, a lei 5.540 afirmava
explicitamente constituir-se a universidade na forma ideal
de organização do ensino superior, na sua tríplice função
de ensino, pesquisa e extensão, enfatizando-se a
indissolubilidade entre essas funções, particularmente
entre ensino e pesquisa, sendo esta última o próprio distintivo
da universidade.
A partir daí, as universidades, particularmente as
públicas – num primeiro momento, mantidas na sua quase
totalidade pelo governo federal –, entrariam em um processo
de consolidação, mesmo que irregular em seu conjunto,
bastante ajudado, a meu ver, pela institucionalização
da carreira docente e, especialmente, pela
definitiva implantação dos cursos de pós-graduação. Este
último foi, sem dúvida, o principal fator responsável pela
mudança efetiva da universidade brasileira, garantindo,
por um lado, o desenvolvimento da pesquisa no âmbito
da universidade e, por outro, a melhoria da qualificação
dos docentes universitários. Privilegiando, de início, as
áreas das chamadas ciências exatas, as agências de fomento
criadas ao longo dos anos 50 acabaram por garantir
uma surpreendente expansão da pós-graduação no
país, que atingiu, num segundo momento, também as
áreas das ciências humanas e sociais.
Por outro lado, a autonomia da universidade não
teve condições para se efetivar, no contexto do regime
autoritário. Em parte porque o controle centralizado dos
recursos materiais e financeiros pelo governo federal
acabou por atrelar o seu funcionamento às políticas governamentais.
E também porque, internamente, o governo
da universidade estruturou-se por uma espécie de pacto
entre as oligarquias acadêmicas tradicionais e os novos
segmentos da comunidade acadêmica, formando-se, de
acordo com as peculiaridades históricas de cada instituição,
diferentes tipos de composição entre essas partes
que definem uma estrutura de poder nem sempre
orientada pela dimensão propriamente acadêmica.
Um efeito, a meu ver, mais profundo e duradouro
sobre o ensino superior no Brasil teve, entretanto, a contraditória
política desenvolvida pelo governo para atender
à expansão da demanda. Dado que a ampliação das
vagas nas universidades públicas, aliada às medidas de
racionalização econômica e administrativa, tais como a
unificação do vestibular ou a criação de um ciclo básico
de estudos, não era suficiente para atender ao volume da
demanda, o governo passou a estimular o crescimento
da oferta privada. Com o aval do CFE, o ensino superior
no país sofreu, ao longo dos anos 70, um incrível processo
de massificação, através da multiplicação de instituições
isoladas de ensino superior, criadas pela iniciativa
privada. Para se ter uma idéia, apenas entre 1968
e 1974, enquanto as matrículas nas universidades passaram
de 158,1 mil para 392,6 mil, pouco mais do que o
dobro, nas instituições isoladas, das quais ¾ privadas,
esse número cresceu de 120,2 mil para 504,6 mil (apud
Gusso, Córdova e Luna, op. cit.). Dessa forma, constituiu-
se, a meu ver, um sistema dual, formado, por um
lado, pelas universidades, principalmente públicas, e, por
outro, por um sem-número de instituições isoladas que
não se diferenciam das primeiras por um critério de especialização
mas, na prática, pela qualidade do ensino
oferecido. De fato, introduziu-se uma diferenciação interna
no sistema de ensino superior que não atendeu a
uma diversificação de objetivos, constituindo-se as instituições
isoladas, com freqüência, em um mero arremedo
das instituições universitárias. A meu ver, a situação
atual dessas instituições que se transformaram
em grande número em universidades reforça esse ponto
de vista.
Essa diferenciação interna do sistema, nos últimos
anos, acentuou-se, tanto do lado das instituições públicas,
com o crescimento de faculdades e universidades
estaduais e mesmo municipais, quanto do lado das instituições
privadas, com a transformação de um grande
número de escolas isoladas em universidades e o surgimento
das universidades comunitárias ou confessionais
que buscam se distinguir das instituições orientadas por
critérios predominantemente lucrativos, reivindicando
por essa mesma razão o direito ao financiamento público.
Essa foi uma questão bastante polêmica, ao longo de
todo o processo de discussão da Constituição de 1988.
Paralelamente, com o crescente esgotamento do regime
militar, no contexto da chamada redemocratização
do país, o debate sobre os rumos da universidade foi
retomado, sob a direção, principalmente, dos próprios
A universidade no Brasil
Revista Brasileira de Educação 149
docentes universitários, organizados em entidades representativas,
as ADs (associações de docentes universitários),
que se multiplicaram ao longo dos anos 80, articulando-
se, inclusive, em uma associação nacional, a
ANDES (de início, Associação, e, depois, Sindicato
Nacional). Essa entidade teve uma ativa participação
durante todo o processo constituinte.
Constatava-se, à época, um esgotamento de várias
das medidas pedagógico-administrativas propostas pela
Reforma de 1968, além de que, mais uma vez, se levantava
a bandeira da autonomia universitária. Mesmo que
esta discussão estivesse com freqüência atravessada por
questões de ordem corporativa, havia, sem dúvida, uma
retomada da discussão de fundo sobre o papel da universidade,
no contexto do processo de democratização
da sociedade brasileira.
Algumas iniciativas foram também assumidas nessa
direção por parte do próprio governo federal, sem que,
entretanto, tivessem maiores efeitos práticos. Durante o
governo Sarney, chegou a se constituir uma Comissão
Nacional para a Reformulação da Educação Superior,
composta na sua maioria de professores universitários,
que produziu um documento intitulado Uma nova política
para a educação superior, com uma série de recomendações
de mudanças que nunca chegaram a ser efetivamente
implementadas. Essa comissão sofreu uma
forte resistência por parte do movimento dos docentes
universitários, que contestavam a sua legitimidade.
Mudanças substantivas sobre o ensino superior estão
sendo, atualmente, introduzidas pela política educacional
que vem sendo implementada pelo governo
Fernando Henrique Cardoso. Esse governo, desde 1995,
vem conduzindo uma ampla reforma do sistema de ensino.
No caso específico do ensino superior, essa reforma,
que se consubstanciou na nova Lei de Diretrizes
e Bases e em outros documentos legais
complementares, combina-se com uma política de congelamento
de salários dos docentes das universidades
federais, de cortes de verbas para a pesquisa e a pósgraduação,
de redirecionamento do financiamento público,
com efeitos, a meu ver, preocupantes, especialmente
para as universidades públicas. Essas medidas
tiveram um efeito fortemente desmobilizador sobre o
movimento docente universitário.
Embora seja prematuro fazer-se uma avaliação
do impacto dessa política sobre a situação do ensino superior
no Brasil, ela aponta em direções, a meu ver,
contraditórias. Por um lado, há uma série de propostas
orientadas para a flexibilização do sistema, como a possibilidade
de diversificação dos tipos de instituições, dos
cursos e currículos, das formas de ingresso no ensino
superior – com a eliminação da obrigatoriedade do exame
vestibular –, que poderiam levar a uma maior autonomia
didático-pedagógica das universidades. Essas propostas,
entretanto, são, em grande parte, neutralizadas
por um controle centralizado que se exerce através de
uma série de estratégias, como o Exame Nacional de
Cursos, o recredenciamento periódico das instituições,
medidas estas que são justificadas em função da melhoria
qualitativa do ensino. Há, por outro lado, uma compreensão
parcial do que seja a autonomia universitária,
particularmente no que se refere às universidades federais,
excessivamente centrada na dimensão econômica,
coerente com a idéia de Estado mínimo que vem sendo a
base das políticas governamentais, de uma forma geral,
e que se acompanha de um certo descompromisso com
relação ao destino das universidades públicas. Contraditoriamente,
algumas situações vividas recentemente
retratam uma intervenção direta do governo federal nos
processos de indicação de dirigentes para essas instituições.
Mais uma vez se pretende uma mudança de cima
para baixo, sem o indispensável envolvimento dos verdadeiros
atores, alunos e professores universitários.
A esse respeito é que gostaria de concluir o texto
trazendo aqui novamente as reflexões de Anísio Teixeira.
Para esse educador, cujo centenário de nascimento se
comemora este ano, a verdadeira reforma universitária
não se poderia nunca fazer, de fora, pela mera imposição
de atos legislativos. Uma efetiva reforma da universidade
teria que nascer de dentro, pelo debate e resultante
consenso do magistério para que tivesse um impacto
efetivo na mudança das práticas (de gestão e especificamente
educativas) desenvolvidas no seu interior. Não
me parece ser esta a direção que se está imprimindo às
atuais políticas para o ensino superior.
ANA WALESKA P.C. MENDONÇA é professora de História
da Educação Brasileira do Programa de Pós-Graduação em EducaAna
Waleska P.C. Mendonça
150 Mai/Jun/Jul/Ago 2000 Nº 14
ção da PUC-Rio. Tem vários artigos publicados e organizou, juntamente
com Zaia Brandão, o livro: Uma tradição esquecida. Por que
não lemos Anísio Teixeira?, publicado pela RAVIL, em 1997. Sua
tese de doutorado, citada no texto, acha-se em vias de publicação
pela editora da UERJ. E-mail: awm@edu.puc-rio.br
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