Revista de Estudos da Religião Nº 4 / 2004 / pp. 96-115
ISSN 1677-1222
Mídia, Religião e História Cultural
Karina Kosicki Bellotti* [karinakbellotti uol.com.br]
Resumo
Esse artigo visa discutir uma abordagem sobre mídia evangélica no Brasil sob o prisma das
questões da História Cultural. Contemplamos reflexões sobre como as religiões são
estudadas pela História Cultural, as relações entre linguagem, mídia e religião, as relações
entre identidade religiosa e mídia, e como articular o conceito de recepção à mídia religiosa.
Mostramos que a História Cultural permite ao pesquisador de mídia evangélica fazer
perguntas sofisticadas e desafiadoras.
Abstract
This article aims to discuss an approach on Evangelical media in Brasil under the perspective
of the questions raised by the Cultural History. We focus on reflections about how religions
are studied by the Cultural History; the relations between language, media, and religion; and
how to articulate the concept of reception to the religious media. We demonstrate that the
Cultural History allows the religious media researcher to ask sophisticated and challenging
questions.
1. Introdução
A História Cultural é um campo dinâmico e controverso de estudos e de proposições
teóricas. Inscrever uma pesquisa nessa área implica em lidar com perguntas sofisticadas e
desafiadoras. Isso faz a História Cultural melhor que outras tendências historiográficas?
Depende do que se quer dizer por "melhor", e depende do tipo de História que se busca.
Michel de Certeau, autor-referência para muitos trabalhos de História Cultural, questionou a
escrita e o estatuto da História na sociedade ocidental, mostrando que a História dos
historiadores é apenas uma História dentre tantas narrativas e explicações históricas que
* Mestre em História Cultural e doutorando am História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Gostaria de agradecer à Profa. Dra. Célia Marinho (IFCH/ UNICAMP) pelas observações e
correções desse texto, originalmente elaborado como trabalho final da disciplina Teorias da História Cultural,
ministrada no primeiro semestre de 2003, na pós-graduação de História Cultural da UNICAMP. Agradecimentos
também à Profa. Dra. Eliane Moura Silva pela revisão crítica do texto.
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esse conjunto tão heterogêneo denominado "sociedade" produz (Poster 1997: 114). Se
lembrarmos que no Brasil, em pleno século XXI, a profissão de historiador ainda não foi
regulamentada por lei, temos de pensar: com base em que uma pessoa ou um grupo
poderia reivindicar autoridade sobre a História?
Por outro lado, Dominick LaCapra (1985: 799-828) defende que, apesar de nossas
limitações enquanto investigadores do passado, não devemos descuidar nem dos
questionamentos teóricos, nem das evidências que ajudam a constituir o relato histórico.
Aliás, a perspectiva dialógica que ele desenvolve contempla as duas coisas, num esforço de
produzir conhecimento histórico crítico e responsável. Ou seja, não se pode escrever
"qualquer coisa" sobre o passado, já que a abordagem do documento como texto não exime
o historiador de uma análise cuidadosa.1
Dessa forma, quais seriam as razões de se optar pela abordagem cultural? Quais as
implicações dessa escolha na configuração de uma pesquisa? Segundo Mark Poster,
"discursos emergem num campo de relações de poder desafiando uns, apoiando outros,
dificilmente vindo ao mundo acadêmico como inocentes buscas pela verdade2" (Poster 1997:
13). Assim, os Estudos Culturais surgiram como uma crítica à História Social marxista dos
anos 60, à História tradicional das idéias ("desencarnada" dos seres humanos e das
relações sociais) e à tendência dos Annales de História quantitativa e sócio-econômica.
Duas grandes inspirações fomentaram esses questionamentos: os estudos lingüísticos e a
Antropologia Cultural, que atentaram para a constituição da narrativa histórica e do papel do
narrador/investigador na escrita da História.
Autores como os supracitados Dominick LaCapra e Michel de Certeau, além de Hayden
White, Roger Chartier, Joan W. Scott, Paul Gilroy, Stuart Hall, Edward Said, Homi Bhabha,
Carlo Ginzburg, além de referências como Michel Foucault e Jacques Derrida, foram
associados à História Cultural. Apesar das grandes diferenças entre eles, Poster identificou
algumas idéias que caracterizariam a História Cultural:
1 "An alternate conception of objectivity would stress the importance of thorough research and accuracy, while
nonetheless recognizing that language helps to constitute its object, historical statements depend on inferences
from textualized traces, and the position of the historian cannot be taken for granted" (LaCapra 1985: 804-805).
2 "(…) discourses emerge in a field of relations of power, defying some, supporting others, hardly coming into the
scholarly world as innocent pursuits of truth" (Poster 1997 : 13).
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1. A crítica a uma suposta agência humana responsável pela História – isto é, o
questionamento da existência de um sujeito racional e consciente que tomaria a
História pelas mãos. É a recusa do sujeito universal iluminista ("personagem" da
História das idéias tradicional/História positivista); e das classes sociais como sujeito
histórico transformador (História Social marxista/História Social da cultura);
2. O papel da linguagem – o reconhecimento de que os documentos históricos não são
uma transparência de dados informativos sobre uma realidade concreta, mas sim
textos a serem lidos – o que faz da História um discurso e, não, um relato de uma
verdade histórica;
3. Recusa de categorias totalizantes e de grandes narrativas – em geral, os historiadores
culturais não tomam como naturais categorias, como gênero, classe social, raça,
etnicidade, identidade, experiência, e sim, buscam questionar como determinados
grupos sociais constroem suas noções de gênero, classe social, raça; qual o sentido
dessa construção, e quais as implicações que essas noções possuem para aqueles
grupos.
Talvez a questão da textualidade e da linguagem seja significativa para se definir "perguntas
sofisticadas e desafiadoras", pois tanto a leitura quanto a escrita do historiador deveriam
estar "sob vigilância" constante do próprio autor. A partir dessa perspectiva, refletiremos
sobre como a mídia evangélica no Brasil poderia ser pensada à luz da História Cultural,
tendo como base textos de Dominick LaCapra, Mark Poster, Michel de Certeau, Joan W.
Scott, Hayden White e Stuart Hall.3
As religiões evangélicas vêm se destacando no campo religioso brasileiro desde a segunda
metade do século XX, em especial desde a década de 80, com o crescimento das igrejas
neopentecostais. Uma das razões fundamentais para esse crescimento está no uso
intensivo da mídia eletrônica e impressa por parte de muitos desses grupos. Visa-se estudar
os usos e os sentidos que essa mídia religiosa vem alcançando na sociedade brasileira, e
qual a sua influência na definição de uma religiosidade mais autônoma e individualista.
3 Essas reflexões decorrem de pesquisas, desenvolvidas por mim desde a 1999, que analisam o uso dos meios
de comunicação de massa feito por diversos grupos evangélicos (protestantes históricos, pentecostais e
neopentecostais) como uma forma de inserção das religiões evangélicas no campo religioso brasileiro. Na
graduação desenvolvi pesquisa financiada pela FAPESP sobre o Centro Áudio Visual Evangélico (1951-1970),
CAVE, um dos pioneiros na comunicação protestante histórica. No mestrado realizei estudo de caso, também
financiado pela FAPESP, sobre a empresa de audiovisual "Luz Para O Caminho", ligada à Igreja Presbiteriana
do Brasil. Atualmente, no doutorado concentro minhas atenções para a cultura midiática evangélica de massa.
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Definimos mídia como um conjunto de meios de comunicação audiovisuais (televisão, rádio,
serviços telefônicos de aconselhamento, música), impressos (livros, revistas, devocionais,
jornais, folhetos), e virtuais (Internet). Também contemplamos a cultura material de massa
(camisetas, adesivos, cadernos, agendas, bibelôs, etc), porque ela vem se destacando nos
últimos anos como estratégias de comunicação audiovisual e impressa.
Portanto, temos dois temas: mídia e religião. Como lidar com eles tendo em vista os
questionamentos teóricos da História Cultural? Meu objetivo é fazer uma reflexão sobre as
perspectivas que esse campo historiográfico tão amplo e diverso da História Cultural (ou
Estudos Culturais) fornece para trabalhar com o tema da mídia evangélica no Brasil. Não
será um trabalho empírico, com análise de fontes e de bibliografia específica do assunto,
mas sim, uma reflexão sobre como trabalhar com fontes, leituras, recortes e, principalmente,
sobre os fundamentos teóricos que embasam todas essas práticas.
2. Religião e História Cultural
Lidar com História das Religiões numa perspectiva cultural significa, em primeiro lugar, abrir
mão de um conceito restrito de religião. Nas sociedades monoteístas, religião significa
acreditar em Deus ou num sagrado, identificado por vários lugares e por vários símbolos:
templos, igrejas, catedrais, sinagogas, mesquitas, cruzes, crucifixos, imagens e esculturas
de santos, Bíblia, Corão e Torá, Virgens Marias, medalhas, fitinhas, festas e cerimônias. São
religiões que, além de possuírem uma origem comum (religiões abrâamicas), possuem
lugares de poder definidos – a Igreja Católica, as lideranças evangélicas, os mulás, aiatolás,
imãs. Porém, para os historiadores das religiões, é necessário adotar um conceito de religião
mais amplo, que possibilite o estudo de diferentes tradições e manifestações religiosas sem
que se projete sobre elas os símbolos e discursos da tradição ocidental judaico-cristã. E nem
que se enxergue uma "essência" primordial que ligaria todas as "religiões" de todos os
tempos e lugares. Além disso, um conceito amplo de religião permitiria o estudo de assuntos
ignorados pela História eclesiástica e pela História das idéias, como as manifestações
populares e as religiosidades de pessoas não filiadas a nenhuma instituição religiosa. Esse
conceito existe e é bastante utilizado pelos historiadores, por influência da Antropologia e da
História Cultural: "religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres
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sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais específicos." (Silva & Karnal 2002:
13-14).
Na nossa sociedade ocidental, tem-se a idéia de que a "essência" da religião estaria
expressa na sistematização teológica (conhecimento acadêmico institucional). Porém, se
pensarmos em religião como um sistema de crenças e práticas, constatamos que religião
não é somente Teologia, pois é necessário compreender as relações de poder que definem
o que é correto e o que é errado dentro de uma tradição institucionalizada. Do mesmo modo
é importante ter em mente que, além desses lugares de poder, há práticas religiosas nãoinstitucionalizadas,
tanto comunitárias quanto individuais – estas, mais conhecidas como
religiosidades.
Não há como desqualificar um elemento em favor de outro – dentro da perspectiva históricocultural,
tanto crenças como práticas conferem os mais variados sentidos religiosos. Tomar
posicionamento de uma ou de outra significa identificar-se com um lugar de poder. O que
devemos fazer é entender como diferentes crenças e práticas fazem sentido para as
pessoas e os grupos que as adotam, em contextos históricos específicos. Assim, a religião,
por essa definição, é concebida dentro da História Cultural como algo construído
historicamente. Não pode ser vista como uma instância à parte da vida social (como
concebia a "velha" História das idéias), ou subordinada a estruturas econômicas (segundo
alguns historiadores e sociólogos marxistas).
A própria idéia do religioso como pertencente à esfera privada (associada também à esfera
emocional e feminina) advém da secularização ocidental no século XIX. Quando deísmos e
ateísmos distanciaram "Deus" da esfera pública4 para dar lugar à ciência, a Teologia Cristã
deixou de ser a explicação soberana sobre a existência das coisas e dos seres. Com isso, a
religião deixou de ser vista por muitos estudiosos como algo divinamente criado para se
tornar algo humanamente construído, constituindo um objeto de pesquisa dentre tantos.
Assim como não existe um significado primordial para "religião", o estudo da religião é
também marcado historicamente (Julia 1978: 106-107).
Uma das maiores contribuições de Michel de Certeau em relação à escrita da História é
mostrar que não escrevemos a História "fora" da História. Isto é, o conhecimento do passado
é textualizado, permeado de intervenções e interdições que configuram o saber histórico. A
4 Há de se questionar essa separação de esferas pública e privada – não seria uma construção do próprio
século XIX?
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ambivalência do termo "História" – disciplina e objeto de estudo – mostra que "enquanto
falam [os discursos históricos] da história, estão sempre situados na história" (Certeau 2000:
32). Compreender religiões sob esse prisma significa enxergar o passado a partir de
questões do presente:
Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do
passado, por mais controlada que seja pela análise de documentos, é sempre
dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se
organizam em função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são
conformadas por premissas, quer dizer, por ‘modelos’ de interpretação ligados a
uma situação presente do cristianismo [no caso do jansenismo e de Lutero]
(Certeau 2000: 33-34).
Isso significa que o estatuto que as religiões possuem no mundo contemporâneo influencia
na forma de se teorizar o campo religioso – como um fenômeno cultural amplo, e não
somente como uma propriedade desta ou daquela instituição. Por outro lado, embates
dentro do campo religioso suscitam preocupação com a questão da tolerância religiosa e do
diálogo inter-religioso. Assim como houve estudos que mostravam o caráter nocivamente
ideológico e alienante da mídia evangélica (Assmann 1986), há estudos (Campos 1997) que
procuram entender a mídia como lugar de representações, cuja compreensão permitiria
entender as lógicas que animam os discursos, os símbolos e as visões de mundo de grupos
evangélicos, a fim de dissipar preconceitos e hostilizações direcionadas a essa parcela
religiosa minoritária no Brasil. Isso não significa tomar os evangélicos nem como charlatães
nem como vítimas, mas sim como um grupo social dinâmico e ambivalente.
Ainda que Dominick LaCapra (1983: 48-57) estivesse se reportando à História intelectual,
sua noção de contextos dialógicos aplica-se à disciplina histórica em geral, já que ele pensa
a produção do conhecimento histórico como um diálogo entre um investigador e seu objeto,
fugindo da dicotomia sujeito/objeto. Tanto o "sujeito" está enredado em debates históricos,
em esquemas de pensamento, em políticas acadêmicas, como o "objeto" é construído pela
teoria que o historiador aplica a sua investigação; os documentos dos quais ele retira sua
História também estão duplamente enredados – tanto às condições de sua produção como à
sua própria configuração interna.
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Esse "enredamento" pode ser encarado como textualidade, isto é, o historiador só conhece
o passado por meio de indícios textualizados do passado. Compreender o passado fora de
práticas significantes, como a linguagem e as artes, seria uma ilusão construída pela História
positivista e pela História Social marxista, que teriam retirado dos textos e dos documentos
somente as informações documentais, ignorando que estas estão dadas dentro de uma
lógica interna, criativa, humana, que também daria sentido ao mero "dado" informativo.
A noção de textualidade, por sua vez, está ligada a um questionamento da noção de
"realidade" histórica:
The notion of textuality serves to render less dogmatic the concept of reality by
pointing to the fact that one is 'always already' implicated in problems of language
use as one attempts to gain critical perspective on these problems, and it raises
the question of both the possibilities and the meaning. For the historian, the very
reconstruction of a ‘context’ or a ‘reality’ takes place on the basis of ‘textualized’
remainders of the past5 (LaCapra 1982: 50).
Ao se trabalhar com mídia – ou seja, com discursos, iconografias, imagens, sons,
representações – numa sociedade em que a legitimação e o reconhecimento de produtos,
pessoas, e eventos passam pela mídia -, não parece ser tão problemático admitir a crítica à
distinção entre texto/contexto, sujeito/objeto, realidade/linguagem. Porém, como devemos
trabalhar com a linguagem nesse campo interdisciplinar que une mídia e religião?
3. Linguagem, Mídia e Religião
Na introdução, mostramos que uma das características da História Cultural é problematizar a
questão da linguagem, entendendo-a não como um meio neutro, mas sim como instância
geradora de sentidos – polissêmica. Porém, isso não quer dizer que há consenso sobre os
problemas envolvendo a linguagem – é o caso da questão das práticas discursivas. Michel
Foucault ficou bastante conhecido por se preocupar com essa questão, ao localizar na
sociedade moderna disciplinar discursos que esquadrinhavam a sociedade, definiam
identidades, normalidades e ilegalidades. Durante muito tempo, seus leitores enxergavam no
5 "A noção de textualidade serve para tornar o conceito de realidade menos dogmático, apontando para o fato
de que se já está sempre envolvido em problemas de uso da linguagem quando se tenta ganhar perspectiva
crítica em relação a esses problemas, e (além disso, esse conceito) levanta a questão das possibilidades e do
sentido. Para o historiador a própria reconstrução de um ‘contexto’ ou uma ‘realidade’ ocorre com base em
resquícios ‘textualizados’ do passado"(LaCapra 1983 : 50 – tradução minha).
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seu trabalho uma História do discurso – isto é, um sistema de possibilidade de conhecimento
formado por regras expressas num conjunto de enunciados que se repetem, e dos quais não
nos damos conta6 (Foucault 1995: 21-85).
Roger Chartier, porém, enxergou no trabalho de Foucault não só uma História do discurso,
mas também uma tentativa de explicar a articulação entre discursos e práticas sociais (não
discursivas, isto é, não definidas pelo discurso). Para ele, existe uma separação entre
discursos e práticas, e é nessa lógica que seu conceito de representação se encaixaria.
Muitos trabalhos atuais em História Cultural usam correntemente o conceito de
representação, desenvolvido por Roger Chartier (1990) como uma categoria analítica
inspirada nos trabalhos sobre representações religiosas de Marcel Mauss e de Émile
Durkheim. A representação coletiva articularia
"três modalidades da relação como mundo social: primeiro, o trabalho de
classificação e de recorte que produz as configurações intelectuais múltiplas
pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos
que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer
reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no
mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas
institucionalizadas e objetivadas graças às quais 'representantes' (instâncias
coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuado a
existência do grupo, da comunidade, da classe" (Chartier 2002: 73).
Temos, então, três elementos que comporiam o conceito de representação, segundo
Chartier:
1. A construção da realidade pelos grupos sociais por meio de classificações e recortes.
Por exemplo, podemos aplicar essa conceituação no nosso trabalho com mídia
evangélica: "nós, os evangélicos, 'a luz do mundo e o sal da terra'" vs. "os outros,
pagãos, infiéis, que precisam conhecer o caminho certo";
2. As práticas que legitimam a identidade social – continuando com o exemplo
evangélico (que não está presente em Chartier): para muitos evangélicos, certas
práticas são fundamentais para reforçar sua identidade perante um grupo – freqüentar
6 Observação feita pela Profa. Dra. Célia Marinho (História/IFCH/UNICAMP) durante curso de Teorias de
História Cultural, ministrado na pós-graduação de História no primeiro semestre de 2003.
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a igreja, matricular os filhos na Escola Dominical, participar de eventos comunitários,
marchas, shows gospel;
3. As instituições que zelam pela continuidade da identidade social – continuando no
caso evangélico, essa instituição é não somente a igreja ao qual os fiéis pertencem,
mas também escolas confessionais, e mesmo pessoas da membresia, como líderes
comunitários, de juventude, da Associação de Mulheres, etc.
O estabelecimento de representações não é pacífico nem consensual, mas conflituoso, pois
se cada grupo ou indivíduo se compreende de uma determinada forma, a legitimação de
uma identidade passa pela desqualificação de outras. Assim, a representação ("melhor do
que o conceito de mentalidade", segundo Chartier 2002: 73, porque este pressuporia uma
separação entre imaginário e mundo material) se reporia e se construiria na vida cotidiana,
nas alianças e nos embates diários. Contudo, para Chartier, a representação, como
categoria analítica, não daria conta de práticas não-discursivas – só daria conta de coisas,
pessoas, grupos devidamente "representados". Haveria uma divisão entre práticas
discursivas e não-discursivas – entre práticas nomeadas, classificadas, regulamentadas, e
práticas não-classificadas; entre uma linguagem que daria sentido às práticas, relações
sociais, pessoas, coisas e grupos, e práticas que ainda não ganharam sentido pela
linguagem. Em suma, nem tudo poderia ser resumido à linguagem.
A irredutibilidade das práticas aos discursos, articulados mas não homólogos,
pode ser considerada como divisão fundadora para toda história cultural, incitada
assim a desconfiar de um uso descontrolado da categoria de 'texto',
excessivamente empregada para designar práticas cujos procedimentos não
obedecem em nada à 'ordem do discurso' (Chartier 2002: 149).
Mas como tomar contato com os objetos que investigamos, se os construímos por meio da
linguagem, já que só podemos conhecê-los a partir dela? LaCapra questiona a oposição
entre atividades lingüísticas e não lingüísticas, sustentada por Chartier na crítica ao livro O
Grande Massacre de Gatos, de Robert Darnton:
What is dubious in the extreme is the Idea that one can make some general
pronouncement about the relation between language (or any signifying practice)
and seemingly nonlinguistic (or nonsignifying) activities, for in making any
pronouncement one is inevitably situated inside language that is in multiple ways
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articulated with activities. To think otherwise is to assume a transcendental
position outside language from which one can then pronounce on the relation
between language and something else7.(LaCapra 1986:100)
Outros autores, porém, usam o conceito de representação sem se reportar a esse debate,
como Stuart Hall, que relacionou representação ao conceito de identidade nacional: "As
culturas nacionais são compostas não somente de instituições culturais, mas de símbolos e
representações. Uma cultura nacional é um discurso – uma maneira de construir significados
que influencia e organiza tanto nossas ações quanto nossas concepções sobre nós
mesmos" (Hall 1998: 39).
O que pode ser tomado como representação? É o símbolo que contém o significado, que
não paira sobre nossas cabeças, mas constitui nossa própria maneira de ser, de pensar e
agir, dentro de contextos variados, definindo identidades não estanques. Lancei mão dessa
discussão (ainda que de forma bastante resumida) para mostrar que não existe um modelo
de História Cultural a ser seguido, e que, antes de optar por esse ou aquele conceito, é
interessante conhecer a natureza da controvérsia. Muito dessa controvérsia levantada por
Chartier vem de sua mudança de opinião ao longo de sua vida acadêmica. Se em "O Mundo
como representação"8 (1989), a questão da diferença entre práticas discursivas e não
discursivas são seu foco central, em "À Beira da Falésia"9 (1998), como o próprio título
sugere, expõe a angústia quanto às indefinições dentro do campo histórico.
Dúvidas vêem sendo lançadas ao relativismo cultural, a que os estudos da linguagem foram
associados, em especial nos movimentos de defesa dos direitos das minorias nos Estados
Unidos, a partir da década de 1960. Tal desconfiança pode ser explicada pelo que alguns
historiadores consideram abusos do relativismo, em que a História teria virado refém dos
7 "O que é dúbio ao extremo é a idéia de que se pode fazer alguns pronunciamentos gerais sobre a relação
entre linguagem (ou qualquer prática significante) e atividades aparentemente não lingüísticas (ou não
significantes), pois ao fazer qualquer pronunciamento se está inevitavelmente situado dentro da linguagem, que
é articulada a atividades em múltiplas formas. Pensar o contrário é assumir uma posição transcendental fora da
linguagem, a partir da qual se pode se pronunciar sobre a relação entre linguagem e uma outra coisa" (LaCapra
1988 : 100 – tradução minha).
8 Texto publicado na revista dos Annales em 1989 - CHARTIER, Roger, "Le monde comme représentation",
dans Annales ESC, 6, 1989, pp. 1505-1521. (fonte: http://www.ehess.fr/centres/grihl/z-BibliosTheses/z-
BiblioDeborah2.htm)
9 Livro de ensaios publicado em 1998 na França, em que O Mundo como Representação aparece reescrito -
CHARTIER, Roger, Au bord de la falaise: l'histoire entre certitudes et inquiétude, Paris, Albin Michel, 1998.
(fonte: http://www.ehess.fr/centres/grihl/z-BibliosTheses/z-BiblioDeborah2.htm)
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interesses do multiculturalismo. Com isso, a História teria sido distorcida por grupos afrodescendentes,
asiáticos, árabes, feministas, a fim de justificar políticas de proteção social e
política (Appleby, Hunt, Jacob 1995:198-237). Talvez essa História devesse ter limites
respeitados pela verdade dos documentos, por uma nova teoria da objetividade (Idem, pp.
254-261).
Mais do que optar por uma posição em detrimento de outra, é importante estar ciente de que
a questão da linguagem ainda está em aberto, e muito longe de ter um consenso. Ao invés
disso optar por esta ou aquela teoria para orientar nossa pesquisa, preferimos utilizar as
teorias para aprimorá-la, num esforço de constante entrelaçamento. Por lidarmos com
produtos de mídia, as reflexões de LaCapra vêm se mostrando mais esclarecedoras quanto
à análise textual, ao atentar para a articulação entre forma, conteúdo, autoria e formação de
sentidos do texto. São estudos reveladores se considerarmos que, na mídia secular e
religiosa, a própria noção de realidade - o "locus" da prática não-discursiva - é questionada.
Na sua defesa ao método tropológico de análise do discurso histórico, Hayden White não
nega (mas também não desenvolve) uma distinção entre entidade extra-discursivas e
discursivas, porém sua principal preocupação é com o papel que a linguagem exerce ao dar
sentido aos fatos históricos, constituindo parte fundamental do conteúdo do discurso
histórico.
A tropologia não nega a existência de entidades extra-discursivas ou nossa
capacidade de nos referirmos a elas ou representá-las na fala. Ela não sugere
que 'tudo' é linguagem, fala, discurso ou texto, mas apenas que a
referencialidade e a representação lingüística são assuntos muito mais
complicados do que as antigas noções literalistas da linguagem e do discurso
entendiam (White 1994: 36-37).
A tropologia não destrói a diferença entre fato e ficção, mas redefine as relações
entre os dois dentro de qualquer discurso [...] Os eventos acontecem, os fatos
são constituídos pela descrição lingüística" (White 1994 : 37). "[...] não existe
uma estória 'real'. As estórias são contadas ou escritas, não encontradas. E
quanto à noção de uma estória 'verdadeira', ela é virtualmente uma contradição
em termos. Todas as histórias são ficções (White 1994: 30).
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Com essa afirmação tão polêmica, que mexe com os brios de quem deveria se ocupar com
a verdade, White procura mostrar que a escrita e a pesquisa histórica não são produzidas
fora da linguagem, fora de estruturas de saber e de expressar "o que de fato ocorre".
Nenhuma história, ainda que tenha sido vivida pelo próprio autor, pode ser conhecida se não
passar pela escrita, pela fala, pela expressão – ela precisa ser contada, e ao se contar a
história, ela ganha sentidos que não são dados pela história em si, mas pela interpretação –
por aquilo que o autor acredita que a história foi.
Na operação historiográfica que transforma fatos em eventos, fontes primárias em
documentos, a linguagem está, ao mesmo tempo, onipresente e invisível. Assim, trabalhos
como os de White e LaCapra permitem atentar para o poder ordenador da linguagem tanto
na escrita da história como na sua pesquisa empírica. Ao produzirmos um discurso sobre o
passado, lidamos com textos (documentos de toda espécie) e com práticas repletas de
significados, como é o caso da mídia em geral, e da mídia evangélica em particular. E ao
trabalharmos com representações presentes na mídia evangélica, estamos lidando com a
afirmação de identidades religiosas.
4. Identidade Religiosa e Mídia
Joan W. Scott (1988) é conhecida por seu trabalho inovador sobre gênero e política, em que
discute como os historiadores devem atentar para os processos de construção de categorias
como gênero, raça e classe social. Isso porque muitos historiadores sociais ocuparam-se
com esses temas tomando essas categorias como dadas naturalmente. Ou seja, as classes
sociais teriam sempre existido na História, e os papéis de gênero seriam biologicamente
concebidos, tal qual as raças, por exemplo.
Numa tentativa de atualização, alguns historiadores sociais teriam incorporado os estudos
sobre linguagem – em especial os estudos sobre vocabulários e o apoio sobre experiências
pessoais. Porém, Scott alerta que a linguagem acabou virando um elemento a mais de
análise da luta de classes e, não, como uma teoria questionadora de categorias apriorísticas.
Treating the emergence of a new identity as a discursive event is (...) to refuse a
separation between 'experience' and language and to insist instead on the
productive quality of discourse. Subjects are constituted discursively, but there
are conflicts among discursive systems, contradictions within any one of them,
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multiple meanings for the concepts they deploy (…) Experience is a subject's
history. Language is the site of history's enactment. Historical explanation cannot,
therefore, separate the two.10 (Scott 1996: 396-397).
Scott demonstra como fazer uma análise de discurso articulando-o a um contexto de
relações de poder e de sistemas de significado cultural. Ao focalizar a questão da identidade
como algo ambivalente – tal qual Certeau (Poster 1997 : 120-121) – a autora nos ajuda a
pensar a identidade religiosa como plástica, dinâmica, não fixa. Tomar a identidade como
construída historicamente, dentro de jogos de poder e de legitimação de uma posição
perante grupos sociais e culturais, implica na reformulação de perguntas no campo da mídia
evangélica.
Se considerássemos as identidades culturais como dados concretos, a mídia evangélica
poderia ser utilizada para responder as questões da seguinte natureza:
• Quais são os grupos produtores de mídia evangélica? Dentre eles, quem seria
genuinamente evangélico? Como traçar um perfil de identidade evangélica autêntica?
• Em que medida os grupos evangélicos usam a mídia como instrumento de alienação
ideológica?
Nessas perguntas temos vários pressupostos:
1. A mídia seria apenas o veículo para uma mensagem – isto é, seria o espelho das
intenções de seus produtores, que perfariam a mensagem por si só;
2. Existiria uma tipologia evangélica que produziria uma mensagem evangélica
autêntica; quem se diferenciasse desse parâmetro (em geral, alguns sociólogos do
protestantismo tomam como referência o protestantismo histórico de missão)
constituiria um desvio, numa distorção, numa falsificação;
3. A mídia seria um meio de dominação ideológica, que ludibriaria a audiência com
falsas promessas de milagres, curas, prosperidade, em troca de doações em dinheiro
– uma extensão religiosa do que a mídia como um todo já seria (conforme teóricos
marxistas da comunicação).
10 "Tratar a emergência de uma nova identidade como um evento discursivo é recusar uma separação entre
‘experiência’ e linguagem, e insistir, ao invés disso, na qualidade produtiva do discurso. Sujeitos são constituídos
discursivamente, mas há conflitos entre sistemas discursivos, contradições dentro de qualquer um deles,
sentidos múltiplos para os conceitos que eles empregam (...) A experiência é uma história do sujeito. A
linguagem é o lugar da encenação da história. A explicação histórica não pode, por isso, separar os dois" (Scott
1996 : 396-397 – tradução minha).
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São perguntas que presumem que os evangélicos fossem um bloco indistinto – e até
"mancomunado" – disposto a usar a mídia com más intenções, tal qual uma religião
alienígena ao campo religioso brasileiro afro-católico-espírita. A crítica maior recai sobre as
igrejas neopentecostais recentes – e mais conhecidas por seu uso extensivo da mídia, como
a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça e a Igreja Renascer em
Cristo, por exemplo.
Entretanto, e se fizéssemos outro tipo de pergunta?
• Como cada grupo evangélico utiliza a mídia para se fazer ouvir numa sociedade nãoevangélica?
Quais os recursos simbólicos que cada um utiliza para legitimar sua
mensagem?
• Como cada grupo evangélico se vê a partir da mídia e como ela constitui um espaço
específico de diálogo com diversos grupos – evangélicos e não-evangélicos?
• Quais os usos e os sentidos dos produtos de mídia evangélica dados pelos seus
receptores?
Os pressupostos modificam-se de uma abordagem para outra:
1. O meio constitui a mensagem – o meio não é espelho das intenções dos autores, nem
pode ser explicado somente por elas. É necessário ler os produtos de mídia como
uma combinação de conteúdo e de forma, em que a forma faz parte da mensagem.
Analisar a especificidade de cada produto de mídia religiosa significa aliar as
limitações e as potencialidades de cada meio de comunicação ("forma") às
representações contidas nesses meios ("conteúdo");
2. As representações expressas nos produtos de mídia estão ligadas à história do grupo
produtor da mensagem, o que implica a construção de uma identidade e de uma
tradição que dá sentido à ação desse grupo no presente, em relação a uma sociedade
não-evangélica, mas majoritariamente cristã, como a brasileira.
3. Considerar a comunicação como a relação bilateral entre um produtor/emissor e um
receptor/produtor. Nem sempre é fácil estabelecer uma pesquisa de recepção
satisfatória (não meramente baseada em estatísticas), mas isso não significa ignorar a
circulação das referências culturais presentes nos produtos de mídia. Falar de "usos e
sentidos" implica considerar dois aspectos:
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a. a mídia não é um instrumento ideológico (no sentido marxista) e nem que a
audiência seja passiva e suscetível à dominação econômica ou religiosa;
b. os produtos de mídia religiosa, ainda que constituídos com objetivos
específicos (evangelização, instrução, diferenciação, etc), podem ganhar outros
sentidos com a recepção de evangélicos das mais diferentes igrejas, e também
de não evangélicos.
Assim, a identidade evangélica não é tida como um dado natural e imutável, caracterizada
por cristãos herdeiros da Reforma, que não acreditam em santos, que não cultuam imagens,
que não aceitam mediação entre o ser humano e Deus, por exemplo. A identidade
evangélica é, sim, tomada como algo que se constitui de forma relacional. O sentimento de
pertença precisa ser renovado todo dia, a cada culto, a cada oração, a cada confronto com
aquele que possui uma crença diferente. No Brasil, ser evangélico significa, muitas vezes,
não ser católico, nem espírita e nem umbandista. Num país de cultura católica, ser
evangélico requer um constante aprendizado, feito, dentre outras coisas, por meio de
produtos de mídia.
Por outro lado, é preciso ter cuidado ao lidar com uma suposta dicotomia entre "evangélicos"
e "não-evangélicos", pois, da mesma forma que o protestantismo é caracterizado pela
diversidade de denominações, a religiosidade dos não evangélicos é múltipla. Com a
pluralidade de crenças, o trânsito religioso faz parte da constituição da identidade religiosa
de muitos brasileiros: "já que as pessoas possuem religiões e não vice-versa, a identidade
religiosa é uma trajetória que pode incluir idas e voltas" (Freston 1993: 28).
Religiosidade é um conceito importante para se analisar os fenômenos religiosos. Entendese
por religiosidade a forma e o sentimento com que cada indivíduo vive suas crenças e
práticas religiosas, independente de ele estar filiado a uma instituição religiosa. Tal qual a
identidade, a religiosidade pode ser inconstante, sujeita a questionamentos existenciais, a
pressões e incentivos de um grupo, a circunstâncias. Por isso, ela é um conceito importante
para se entender a recepção de produtos de mídia evangélica.
5. Recepção e Religião
A recepção de produtos de mídia evangélica articula-se com o conceito de religiosidade, pois
esta pressupõe uma vivência e uma compreensão pessoal de princípios religiosos ou
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espirituais difícil de ser "regulamentada" por instituições religiosas. Atentar para o consumo
dessa mídia evangélica significa realizar uma análise qualitativa, de como os produtos
midiáticos são incorporados ao cotidiano daquele que o consome.
Ao se recusar a análise de recepção pelo viés quantitativo (estatísticas de número de livros
vendidos, medição de audiência de programas de televisão ou de rádio, por exemplo), não
significa que o viés qualitativo seja por si só garantia de uma "boa análise".
O conceito de "sujeito" defendido por Joan Scott fornece uma perspectiva de como se
trabalhar com a recepção como parte de uma experiência, como já visto acima. Contudo,
toda experiência – aquilo que se vive e que se sente num dado momento – para se tornar
conhecida, precisa virar um relato, com as implicações que a textualidade lhe traz. Assim,
como a experiência constitui a identidade de maneira instável, transitória e relacional, a
recepção não pode ser considerada um dado concreto, com a capacidade de oferecer uma
informação exata de como a "fantasia" criada pela mídia foi assimilada no mundo "real".
Dessa forma, a recepção deveria der desconsiderada como categoria analítica? Não, pois
essa não é a única forma de se conceber a recepção, já que ela pode ser vista como um
movimento dinâmico de re-apropriação e de re-criação dos conteúdos oferecidos pela mídia.
Alguns estudos sobre recepção entre adolescentes nos Estados Unidos mostram que a
televisão não influencia negativamente seu caráter, pois eles estão envolvidos em uma rede
muito ampla de fabricação de sentido (meaning-making) e de interações sociais (Clark
2003). Isso reitera o que Scott afirmara sobre a relação não direta e não fixa entre palavras e
coisas – a recepção mostra como idéias, representações, e símbolos podem se transformar
pela ação criativa do receptor.
"Rather it is [reading for ‘literary’] a way of changing the focus and the phliosophy
of our history, from one bent on naturalizing ‘experience’ through a belief in the
unmediated relationship between words and things, to one that takes all
categories of analysis as contextual, contested, and contigent11" (Scott 1996:
399).
11 "Estudar a teoria literária é uma forma de mudar o foco e a filosofia de nossa história, de uma [história]
destinada a naturalizar a ‘experiência’ por meio de uma crença na relação não mediada entre palavras e coisas,
para outra que considera todas as categoriais de análise como contextuais, contestadas e contingentes" (Scott
1996 : 399 – tradução minha).
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Obviamente, todas essas considerações sobre a importância do receptor e da recepção são
inspiradas nos estudos de Michel de Certeau sobre o consumo. Para ele, o sujeito não podia
ser definido como um ser unívoco, consciente, mas como uma "estratificação de momentos
heterogêneos". Segundo ele, tal heterogeneidade levanta a questão do tempo: "O tempo é
precisamente a impossibilidade de uma identidade fixada por um lugar" (Poster 1997: 120).
Por isso, a questão das práticas cotidianas torna-se tão importante para Certeau, pois ela
vem para "contestar a narratividade totalizante do moderno e sua forma de historiografia"
(Poster 1997: 120).
Assim como Certeau refuta o sujeito histórico da tradição liberal e da tradição marxista, o
estudo das práticas não contempla as intenções subjetivas, mas os modos de operação dos
indivíduos. Dessa forma, ele estuda o consumo, considerado pela Escola de Frankfurt
(Adorno, Horkheimer e Benjamim, entre outros) como o espaço da perda de tempo, da
conformação à lógica capitalista e da não-produção. Por outro lado, Certeau vislumbra no
consumo uma ação criativa, em que o indivíduo desenvolve estratégias e táticas para lidar
com as tecnologias de poder. É a "anti-disciplina", a resistência de cada indivíduo em
relação a mecanismos institucionais de poder econômico, político e cultural.
Por essa razão Certeau opõe-se à História quantitativa, sua falsa segurança nos números e
na objetividade, em voga nos anos 1970 (Poster 1997: 115). Tal qual os censos que
quantificam o número de adeptos de uma dada religião, as estatísticas não mostram como
essas pessoas vivem sua religião ou sua religiosidade. Assim sendo, por que estudar as
práticas de recepção? Certeau considerou a resistência como uma impossibilidade de
controle da vida diária por mecanismos de poder, o que seria, segundo Mark Poster, o ponto
de partida para um tipo de estudo cultural que contemplaria o heterogêneo e as minorias
(Poster 1997: 124-125).
No campo de estudos das religiões, isso possibilitaria entender não somente que a
diversidade religiosa existe, mas que ela possui vários sentidos para cada grupo, para cada
pessoa e, por isso (e não apesar disso) é necessário cultivar o respeito perante os "outros" –
pois os "outros" também somos "nós". Por outro lado, o estudo dos sentidos dos produtos de
mídia permitem deter-se sobre o efêmero, o cotidiano, o rotineiro como uma forma de não
trivializar referências culturais que nos cercam sem que percebamos.
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Bastante influenciado por Certeau, David Morgan (1998), no seu estudo sobre piedade visual
e cultura popular religiosa nos Estados Unidos, resume bem algumas razões que animam
seu trabalho, e que de certa forma também inspiram o meu:
"I am often asked why I work on this 'stuff'. My answer is precisely because it is
stuff, the sort of thing that gathers on shelves and coffee tables. Popular culture
is of great interest to me because I am fond of thinking of homes, churches, local
libraries, and municipal buildings as the prosaic side of collective memory (…)
Religious stuff is a particular category of the things that mark the halls and the
walls, and the countertops of everyday life. Why bother to study it? In a nutshell,
because there is something irresistible about the fact that human consciousness
owes so much to cardboard icons and plastic buttons12" (Morgan 1998: XI).
6. Conclusão
Esse texto é uma pequena amostra de como o estudo de mídia evangélica pode se
beneficiar com a História Cultural. Outras questões também podem ser trabalhadas sob essa
perspectiva teórica. O trabalho de Edward Said (1995), por exemplo, demonstra como obras
artísticas podem ser analisadas dentro de um contexto sócio-político amplo. Suas críticas à
separação da esfera artística-cultural das demais esferas sociais são um aviso para não se
considerar a obra de arte (e nesse caso podemos estender para os produtos de mídia)
fechada em si mesma, pertencente a um diálogo meramente estético.
Ao relacionar a análise de romances e óperas produzidas nos século XIX ao contexto do
imperialismo, Said problematiza a questão do multiculturalismo e contesta a tendência de
parte de estudiosos culturais de fazer a História das minorias refém de seus interesses. Mais
que isso, Said mostra que não é necessário ser mulher para se falar de gênero, nem ser
negro para se estudar o racismo – e, no nosso caso, nem ser religioso para se falar de
religião.
12 "Sou sempre perguntado sobre o porquê de trabalhar com esse material (stuff*) [cultura material popular].
Minha resposta é precisamente porque é um material, o tipo de coisa que se coleciona em estantes e mesas de
café. A cultura popular é de grande interesse para mim porque gosto de pensar em casas, igrejas, bibliotecas
locais e prédios municipais como o lado prosaico da memória coletiva (..) o material religioso é uma categoria
particular das coisas que marcam os corredores, as paredes e os balcões da vida cotidiana. Porque me importar
em estudar isso? Em poucas palavras, porque há algo de irresistível sobre o fato de que a consciência humana
deve muito a ícones de papelão e broches (bottons) de plástico" (Morgan 1998 : XI – tradução minha).
* "Stuff" em geral é empregado para designar materiais, idéias, discursos de pouco valor, segundo o Dicionário
Webster Online (www.webster.com - acesso em 29 de junho de 2003).
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Contemplar alguns autores numa discussão teórica, refutando argumentos de outros, pode
deixar a impressão de que a adesão às idéias de um estudioso implicaria uma oposição
automática às idéias dos demais autores envolvidos na corrente historiográfica. Contudo,
ainda que críticas tenham sido feitas a Roger Chartier, por exemplo, não significa que, em se
tratando de História de práticas da leitura, eu vá desprezá-lo nas prateleiras das livrarias.
O mesmo ocorre com a produção da História Social, que muitos teóricos da História Cultural
enxergam como "arquiinimigos". O problema não está naquilo que lemos, mas na maneira
como lemos. Afinal, uma das maiores contribuições da História Cultural versa justamente
sobre questão de leitura e da escrita da História.
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