Revista "MUNDO e MISSÃO"
Religião - Protestantismo
O PROTESTANTISMO E AS IGREJAS DA REFORMA
Sérgio Bradanini
Revisão: Francisco Cézar Fernandes Alves
Origem e significado do termo
O uso do termo "protestante" pode indicar, numa primeira e superficial interpretação, os cristãos que se separaram da Igreja de Roma. Se, por um lado, isso pode sugerir uma conotação negativa, por outro, há todo um embasamento histórico que não pode ser desconsiderado.
Assim, "protestante" deriva de um fato histórico, isto é, da grande manifestação feita por alguns Estados e príncipes alemães, em 1529, em protesto contra decisões de caráter religioso, mas de motivação também política.
O termo ainda foi utilizado em referência aos movimentos reformadores que se seguiram. No entanto, procurando evitar a acentuação crítica contra a Igreja de Roma, muitos preferem empregar o termo "evangélico", certamente menos polêmico e que lembra uma das características positivas de todo o movimento reformador: a volta à mensagem evangélica original.
Muitas Igrejas surgidas desse movimento também se denominaram "Igrejas reformadas", evocando o propósito de uma permanente disponibilidade à conversão e à renovação.
Um pouco de história
O surgimento da Reforma protestante foi e continua sendo considerado um dos mais importantes acontecimentos da história, pois suas conseqüências, ainda hoje, permanecem vivas em nível religioso, político, econômico e cultural. Para entender esse fenômeno, devemos enquadrá-lo no contexto da época e, sobretudo, evidenciar as causas que o determinaram.
Antes de mais nada, é necessário limpar o terreno da interpretação preconcebida, muito difundida no passado entre protestantes e católicos e que ainda encontra seguidores nas obras de divulgação e nos meios de comunicação social e esclarecer que a causa da Reforma protestante não foram apenas os abusos e desordens tão comuns na Igreja de então, sobretudo na cúria romana. O próprio Lutero desmente tal causa: " A vida é má entre nós como entre os papistas, mas nós não os condenamos por sua vida prática. A questão é outra: se eles seguem a verdade".
Causas da Reforma
Causas político-religiosas
A partir do século XIV, a autoridade dos papas sofreu um forte declínio: de um lado, perderam a força política com que, embora em meio a lutas e resistências, nos séculos anteriores conseguiram erigir-se como supremos moderadores nas controvérsias políticas. No século XIV, na Europa, começou a afirmar-se o nacionalismo com os soberanos locais, que se desvinculavam da submissão ao imperador e ao papa.
Do outro lado, o exílio de Avinhão (1309-1376), com a dependência do papa ao rei da França, e o cisma do Ocidente (1378-1417), durante o qual houve até três papas ao mesmo tempo, abalaram muito a autoridade e o prestígio do pontífice romano diante do povo. Nesse contexto, surgiram teorias chamadas conciliaristas, que sustentavam a superioridade do concílio sobre o papa, chegando a propor modelos de Igreja de tipo "democrático". Como conseqüência de tudo isso, afirmou-se a tendência para a formação de Igrejas nacionais (na França, Alemanha e Inglaterra), o que constituiu uma das principais causas da revolução protestante.
Causas culturais
Um vento de novidade percorreu a Europa a partir do século XV: era o Renascimento que, reagindo à fuga do mundo e à subordinação direta de tudo à religião, típicas da Idade Média, reivindicava a necessidade da autonomia das atividades humanas, com o risco, porém, de chegar à separação. Era o início do caminho que levou o homem ocidental ao progressivo afastamento e até negação de Deus, característicos da época moderna e contemporânea.
Ao mesmo tempo, a teologia perdera o contato com a reflexão dos grandes autores medievais (Tomás de Aquino, Boaventura) para reduzir-se a discussões vazias, longe da realidade (nominalismo). Occam, que exerceu grande influência sobre Lutero, reduzia muito a capacidade da mente humana de atingir a realidade, enquanto exacerbava a onipotência divina. Em geral, "a teologia", como dizia o próprio Lutero, "está reduzida a meras opiniões... sem mais certeza alguma".
Wycleff, Hus e Wessel, fundadores de movimentos reformadores nos séculos XIV e XV, contrapunham à Igreja visível uma Igreja espiritual e pobre, sem poderes nem estruturas.
Nesses mesmos séculos, difundiram-se correntes espirituais e místicas, que acentuavam a dimensão íntima e subjetiva na experiência com Deus ou que evidenciavam unilateralmente a onipotência da graça divina, chegando até a considerar inúteis as obras do cristão para sua salvação. Essas idéias terão lugar fundamental na doutrina luterana.
Causas religiosas
Além daquelas que apareceram anteriormente, há uma causa que já lembramos: a corrupção da Igreja. Dissemos que esta não pode ser considerada a causa principal da Reforma protestante, mas é inegável que ela tornou mais fácil a difusão da revolta. Os bispos provinham exclusivamente da nobreza, levavam uma vida mundana, ocupados em ficar cada vez mais ricos, sem preocupar-se com sua responsabilidade pastoral. Os sacerdotes eram numerosos, mas constituíam, sobretudo no campo, o proletariado clerical: pobres, pouco instruídos, em sua grande maioria não observavam o celibato. Também nos conventos, masculinos e femininos, a situação muitas vezes era lamentável.
Isso, porém, não deve fazer esquecer que, já antes de Lutero, havia notáveis iniciativas de reforma em toda a Igreja por parte de religiosos, bispos e leigos.
Causas sociais
Sobretudo na Alemanha, duas classes sofriam com a crise econômica surgida após a descoberta da América: os cavaleiros e os camponeses. Os primeiros tinham perdido seu antigo poder e procuravam o meio para recuperá-lo: assim, a posse dos bens da Igreja poderia oferecer-lhes uma cômoda e fácil oportunidade. Entre os camponeses, ainda na condição de escravos, há muito estava incubado o fermento revolucionário, que já havia explodido com violência em revoltas que, periodicamente, sacudiam a Alemanha, desde o final do século XV. Eles esperavam a hora da própria libertação.
Todo esse conjunto de fatores religiosos, culturais, políticos e sociais constituía um imenso material explosivo. Bastava uma centelha para fazê-lo estourar. Lutero foi o estopim, com sua personalidade forte e inspirada. A data exata do começo desse processo foi estabelecida a partir das 95 teses de Lutero, publicadas em novembro de 1517 (e não fixadas no dia 31 de outubro nas portas da Igreja de Wittenberg, como tradicionalmente se pensava).
Na mesma época,independentemente de Lutero,começaram sua pregação Zwinglio, na Suíça de língua alemã, e João Calvino, na de língua francesa.O movimento reformador, surgido em países diferentes e em determinadas situações históricas, apresenta - dentro de algumas diferenças inevitáveis - uma característica de unidade fundamental.
Antes, porém, de apresentarmos os grandes protagonistas da Reforma e suas idéias, é necessário levarmos em consideração um pouco mais de história.
Os principais acontecimentos
Em primeiro lugar, é preciso lembrar o fato de que o movimento evangélico da Reforma teve seu epicentro na Alemanha, com Lutero, e daí envolveu toda a Europa.
1.º No final de 1517, Lutero interveio contra os abusos relacionados com a venda das indulgências, publicando 95 teses sobre o assunto e que se difundiram rapidamente, suscitando um grande movimento de cunho nacionalista, tendo como alvo principal a cúria romana. A briga com Roma já vinha se arrastando,quando Lutero foi defendido pelo príncipe da Saxônia, Frederico o Sábio,na disputa, sem êxito, com o cardeal Caetano, em Augusta (1518). Após a disputa em Lípsia (1519), com o teólogo João Eck, o mais duro adversário de Lutero, evidenciou-se o abismo intransponível entre as duas posições a respeito da doutrina do papado e da Igreja. A ruptura foi selada em 1521, quando Lutero acabou sendo excomungado por Roma. O imperador Carlos V, que era o mais fiel e decidido defensor da Igreja católica, convidou Lutero a retratar-se diante dos príncipes, na Dieta de Worms(1521), mas ele se recusou. Assim, o movimento evangélico desencadeado ia crescendo e não podia mais ser reprimido. O imperador não pôde intervir, porque estava ocupado em outro lugar, defendendo-se das agressões da França e das invasões dos turcos.
2.º Os anos 1519-1525 representaram o ponto culminante da Reforma, na medida em que o movimento evangélico suscitou também o entusiasmo popular que encontrava nas idéias luteranas a base para sustentar suas reivindicações (revolução dos cavaleiros, dos anabatistas e dos camponeses). Mas o movimento escapou das mãos do reformador e a anarquia e o caos alastraram-se pela Alemanha. Lutero, que inicialmente reconhecera como justas muitas reivindicações dos camponeses, depois exortou os príncipes a sufocar a rebelião em sangue(1525). Essa aliança com os príncipes acarretou-lhe uma grande perda de popularidade. Foi um momento crucial para Lutero que, embora sabendo dos perigos ao encontro dos quais caminhava, acabou reconhecendo no príncipe e no Estado o apoio de que sua reforma tinha necessidade. Com a sujeição do movimento ao poder civil, a renovação interior da Igreja por ele pregada recebia um duro golpe. A partir de 1524, começou a divisão política e confessional da Alemanha, segundo o princípio posteriormente aprovado na Paz de Augusta entre protestantes e católicos (1555): "Cuius regio, eius et religio"("Quem manda na região, manda também na religião", isto é, os súditos devem seguir a religião do príncipe). Nesses anos, foi criada a palavra "protestante", quando um grupo de príncipes e de cidades protestaram contra a decisão do imperador Carlos V de revogar uma decisão anterior (primeira Dieta de Espira em 1526), que dava aos príncipes a liberdade de aderirem ou não ao movimento da Reforma (segunda Dieta de Espira em 1529). Houve também profundas mudanças da liturgia, nas comunidades e nas Igrejas territoriais evangélicas. Muitos conventos ficaram vazios, muitos frades, freiras e padres diocesanos casaram.
3.º Na Dieta de Augusta (1530), os luteranos apresentaram sua profissão de fé (Confissão Augustana), que assumiu para a Igreja luterana o valor de um símbolo de fé. A Igreja católica replicou, mas a conseqüência de tudo foi simplesmente a constatação de que a divisão era um fato consumado e irreversível. Com efeito, os Estados evangélicos formaram, em 1531, a Liga de Esmalcalda, sinal de que a Alemanha setentrional tornara-se quase totalmente luterana. Houve também tentativas de reconciliar algumas divergências doutrinais, que tinham surgido dentro do próprio movimento evangélico, mas sem êxito. O imperador Carlos V conseguiu dominar a oposição protestante, derrotando a Liga de Esmalcalda em Mühlberg (1547), mas essa vitória militar contra um movimento espiritual não deu nenhum resultado.
4.º O Concílio de Trento, convocado pelo papa em 1536 e iniciado só no final de 1545, chegou tarde demais para restabelecer a unidade da Igreja. A Paz de Augusta (1555) não tinha outra alternativa senão a de reconhecer a situação existente naquele momento, sancionando a divisão da Alemanha, segundo a geografia religiosa. A Reforma dividiu-se em duas tendências - luterana e calvinista - que se combateram constantemente e de forma acentuada. O período de 1555 a 1648 representou o ponto culminante do absolutismo confessional. Em resumo, quem tomou conta das Igrejas foi mais uma vez o poder político: na qualidade de "summus episcopus"(bispo supremo), assistido por representantes eclesiásticos, estava o príncipe. Essa função do soberano permaneceu na Alemanha evangélica, até a queda do imperador, em 1918.
5.º Uma reforma marcada pelo humanismo bíblico e fortemente politizada foi introduzida na Suíça por Zwinglio e influenciou as regiões da Alemanha meridional, mas foi logo absorvida pelo calvinismo. Este, muito mais importante, iniciou-se em Genebra, na Suíça de língua francesa, espalhou-se pela França e por outros países europeus (Inglaterra, Escócia, Hungria, Polônia, Holanda e também por muitos territórios e cidades da Alemanha). Calvino deu ao seu movimento de reforma um caráter "presbiteriano-democrático", frisando quatro ministérios eclesiais (pregador, doutor, ancião, diácono) e introduzindo uma rigorosa disciplina eclesiástica. A Igreja "reformada" ou "presbiteriana" acabou se transformando numa poderosa força política. Um pouco mais tarde, tornou-se uma Igreja militante internacional, protagonista no desenvolvimento cultural e econômico nos países onde se instalou.
O resultado final do movimento da Reforma não foi o restabelecimento do cristianismo das origens, mas uma de suas mais dolorosas divisões. Da única Igreja de Cristo surgiram várias Igrejas que combatiam duramente no campo confessional com a Igreja católica e entre si, provocando graves conseqüências ao longo desses últimos séculos. Todas as tentativas de reconciliação não tiveram êxito.
Somente no séc. XX acordou, em todas as Igrejas cristãs, a consciência da pertença comum e a aspiração de todos os cristãos para formar uma autêntica fraternidade na única Igreja de Cristo.
A doutrina essencial do processo da Reforma
Podemos dizer que a doutrina comum e fundamental sustentada pelos três grandes reformadores - Lutero, Zwinglio e Calvino - apresenta resumidamente três dimensões:
a prioridade das Escrituras, a justificação pela fé e o sacerdócio universal dos fiéis.
A prioridade das Escrituras. Para as Igrejas surgidas da Reforma, o conjunto de textos do Antigo e Novo Testamento - as Escrituras - representam a única autoridade em matéria de fé, isto é, toda verdade em que acreditamos deve estar contida neles. A Escritura é uma mensagem de Deus para nós: ela narra o encontro misterioso de Deus com seu povo, o povo escolhido, ou seja, o povo judeu e agora, a Igreja, o novo povo de Deus. Narra também a encarnação de Deus em Jesus Cristo morto e ressuscitado e deixa transparecer a verdade e a justiça do Criador. Se a Escritura é mensagem de Deus, cada um pode e deve se alimentar dessa Palavra.
Para ajudar as pessoas a ler e a entender a Bíblia, o Espírito Santo dá, segundo o pensamento de Lutero, seu testemunho interior, iluminando as mentes e dirigindo os corações dos fiéis, sem a necessidade da interpretação da Igreja: é o princípio do "livre exame" da Palavra de Deus.
É preciso reconhecer que Lutero teve grandes méritos no que se refere à divulgação da Palavra de Deus: de um lado, ele estimulou sua leitura no meio do povo, do outro, os estudos para um conhecimento cada vez mais aprofundado dos textos sagrados.
Uma parte da Bíblia foi escrita em hebraico, outra, em grego e, mais tarde, foi traduzida para o latim. Até a Reforma, ela só podia ser lida nessas línguas e, portanto, poucas pessoas tinham acesso direto à Palavra de Deus. O povo podia conhecê-la apenas através das homilias e da catequese. Assim, a primeira coisa que os reformadores fizeram foi traduzir as Escrituras para torná-las acessíveis a todos visto que, segundo eles, essas não necessitam de intermediários para serem compreendidas.
Com efeito, os reformadores recorrem ao testemunho da Bíblia para interpretar os acontecimentos vividos pelo povo de Deus ao longo do tempo, mas procurando fugir de um perigo: o de pensar que precisamos entender tudo o que está na Bíblia ao pé da letra, como se ela fosse um código definitivamente fixo e imutável. Uma palavra, uma frase e certas comparações podem ter, agora, alguns milhares de anos depois, um significado diferente do que tinham quando foram escritas. É preciso buscar o verdadeiro significado do que se encontra na Bíblia para entender o que o autor quis dizer quando escreveu um determinado texto.
É assim que Lutero entendia que a Bíblia devia ser interpretada, é assim que os católicos pensam também. Algumas seitas, que se chamam cristãs e que vieram muito tempo depois da Reforma, tendem a interpretar cada palavra da Bíblia ao pé da letra: é uma atitude perigosa que pode levar ao fundamentalismo e ao radicalismo.
Por isso, o movimento da Reforma introduziu o princípio do estudo da Palavra de Deus à luz da pesquisa crítica, histórica, lingüística e teológica.
Para a Igreja católica e ortodoxa, a Tradição também é um critério para julgar a veracidade da fé cristã. Quando falamos em Tradição, entendemos as obras dos escritores cristãos da Igreja primitiva (época patrística), as definições dos concílios (reuniões gerais de todos os bispos convocadas pelo papa), o ensinamento oficial da Igreja (Magistério) e a fé do povo. Isso quer dizer que a Igreja católica e a ortodoxa não se baseiam somente na Sagrada Escritura para fundamentar as verdades da fé, mas também nas outras fontes.
Lutero não aceitou a Tradição. Numa atitude polêmica contra a Igreja católica, considerou a Bíblia como único critério sobre o qual se baseia nossa fé. Por exemplo, analisando os sete sacramentos a partir das bases bíblicas, ele chegou à conclusão de que só o Batismo e a Ceia (Eucaristia) estão em conformidade com a Escritura e que todos os outros foram instituídos pela Igreja.
A justificação pela fé. A doutrina da justificação pela fé, uma das causas da ruptura de Roma com Lutero e de Lutero com Roma, segundo interpretação dos reformadores, decorre essencialmente do pensamento de são Paulo, sobretudo na Carta aos Romanos. Lutero quis realçar o fato de que a salvação não seria fruto da conquista do homem mediante suas obras, mas dom do amor de Deus. Isso poderia levar à conclusão de que não adianta esforçar-se para fazer o bem e conseguir a salvação eterna, pois a sorte de cada um já estaria determinada por Deus, independentemente do fato de a pessoa agir bem ou mal nesta vida.
Basta aceitar, diz Lutero, Cristo como Salvador, isto é, basta crer com confiança que Deus Pai, em vista dos méritos de Jesus, não leva em conta os pecados do indivíduo: assim, a fé confiante faz com que Deus nos recubra com o manto dos méritos de Cristo, declarando-nos justos. A doutrina da justificação pela fé não nega que as boas obras tenham seu valor, mas nega que influam na salvação, pois não passam de sinal da fé e de ato de culto que o homem presta a Deus. Não podemos esquecer o fato de que a intuição reformadora da justificação pela fé surgiu de uma experiência pessoal de Lutero que, em sua crise espiritual, buscava um Deus misericordioso que salva apenas por um ato de sua bondade infinita.
Podemos lembrar também algumas afirmações de Lutero sobre as quais se baseia a doutrina da justificação:
a natureza humana está radicalmente corrompida pelo pecado original;
a vontade humana não pode fazer nada para alcançar a salvação;
a má inclinação e a tendência ao mal, no homem, não podem ser eliminadas;
o processo de salvação está relacionado unicamente com a fé.
Se é Deus quem faz tudo, se a vontade humana nada pode fazer e se as obras do homem não servem para alcançar a salvação, Lutero conclui que não é necessário nenhum sacerdócio, nem conventos nem votos religiosos, pois estes não passam de instituições em que o homem ocupa um lugar que seria de Deus. Tudo isso foi o principal instrumento de luta contra os abusos e as deformações do cristianismo da época e, particularmente, contra a cúria romana e o papado que o reformador identificava com o anticristo. Toda essa polêmica visava a reconduzir a Igreja a uma renovação e a uma reforma que levasse a viver a vida cristã com mais seriedade e profundidade, visto que, muitas vezes, esta se reduzia a meros gestos exteriores e sem vida. Além do mais, Lutero queria dar destaque e importância a Deus e a Jesus Cristo, em oposição às tendências da época - o Renascimento - que valorizava demais as capacidades intelectuais humanas. Tanto Lutero como todos os outros reformadores proclamaram que somente Deus, por uma graça absolutamente gratuita, oferece aos homens a salvação que não pode ser 'comprada' nem 'merecida', em vista do que fizemos de bom na vida, mas que é dada a quem tem fé, isto é, àquele que aceita que somente Deus pode salvar. Em outros termos, não seria necessário que o homem tivesse um bom comportamento para ser amado por Deus, basta que o tenha porque ele é amado por Deus! Portanto, a doutrina da justificação pela fé opõe-se a toda tentativa de obedecer às leis, à moral e de fazer o bem, práticas vistas como meios que garantem a salvação. Devemos fazer isso, sim, mas de maneira desinteressada, como resposta ao amor de Deus por nós.
O sacerdócio universal dos fiéis. As Igrejas da Reforma não se apresentam como uma instituição imutável. Para elas, é natural evoluir, transformar-se e enriquecer-se de novas perspectivas. Com efeito, a Igreja existe em conformidade com a Palavra de Cristo: "Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" (Mt.18, 20). Isso significa que a Igreja - organização humana e, portanto, falível - não pode ser considerada, pelos reformadores, como intermediária entre Deus e os fiéis: ela é simplesmente o espaço e o tempo reservado ao anúncio da Palavra de Deus.
Para o protestante, entre o homem justificado pela fé e Deus, não há sacerdote a não ser Jesus, que está nos céus, e não há outro mestre a não ser o Espírito Santo, que fala nas Escrituras e no coração de cada um.
Os pastores, nas Igrejas da Reforma, não são sacerdotes: eles não possuem nenhum poder especial que os distinga dos leigos. Esses, teoricamente, podem realizar as mesmas funções, todas as vezes que houver necessidade, ou que a autoridade o peça. Lutero, ao falar do sacerdócio de todos os fiéis, afirmou, em 1520, que "todos os cristãos batizados podem gloriar-se de ser padres, bispos e papa", embora nem sempre seja conveniente que isso aconteça. Com isso, Lutero quis mostrar que todos os leigos são chamados a participar ativamente da vida da Igreja.
A Igreja anglicana
O movimento reformador de Lutero não foi o único daquela época. Também na Inglaterra, quase na mesma época, mas por outros motivos, houve uma revolta contra a Igreja católica que levou à separação entre Roma e Cantuária (sé do arcebispo primaz da Igreja anglicana).
É freqüente ver nessa ruptura apenas a conseqüência das paixões de Henrique VIII da Inglaterra. O rei, que havia sido declarado "defensor da fé" pelo papa Leão X, pediu a anulação do seu casamento com Catarina de Aragão, mas o pontífice não a concedeu. Assim, em 1534, Henrique VIII deixou de reconhecer a autoridade papal e separou-se da Igreja católica. Considerar esse como o único ou, praticamente, o mais importante fator da separação da Igreja inglesa de Roma é fruto de uma mentalidade simplista que desconhece a história. Na separação, influiu e muito também o caráter particularista do povo inglês, o seu desejo de independência ou, pelo menos, de grande autonomia.
O Prayer Book (Livro da Oração Comum) da Igreja anglicana afirma que eles se consideram "uma Igreja católica para toda a verdade de Deus e protestante contra todos os erros dos homens". A Igreja anglicana não reconhece a autoridade do papa e distancia-se de Roma a respeito de algumas questões de doutrina. No entanto, conserva vários elementos católicos, como os sacramentos, os ritos litúrgicos e o conceito de hierarquia, baseado nas figuras do padre e do bispo; ao mesmo tempo, introduz alguns elementos característicos da reforma protestante, como a abolição das ordens religiosas, o casamento dos padres e o lugar central da Bíblia nas celebrações religiosas.
Na Igreja anglicana distinguem-se a High Church (literalmente Igreja Alta, "anglo-católica" muito próxima ao catolicismo), e a Low Church, (Igreja Baixa, com muitos elementos protestantes, praticamente "evangelical").
Todavia, trata-se de uma única Igreja. Numa mesma diocese, encontramos paróquias com traços acentuadamente católicos e outras com expressões mais evangélicas, porém, ambas em plena comunhão com o bispo local.
No mundo inteiro, existem 34 províncias ou Igrejas nacionais em plena comunhão com a Sé de Cantuária. Por isso, o arcebispo de Cantuária é o símbolo da unidade Anglicana. As Igrejas da Unidade Anglicana estão interligadas por laços de afeição e lealdade comum. Em cada país, cada província tem um nome próprio. Ex. : em Portugal, Igreja evangélica católica lusitana; na Espanha, Igreja episcopal reformada; na Inglaterra, simplesmente Igreja da Inglaterra e no Brasil, Igreja episcopal anglicana do Brasil.
Atualmente, existe uma comissão de alto nível, nomeada pela Santa Sé e pela Sé de Cantuária, que se reúne periodicamente e que vem produzindo vários documentos, mostrando os pontos de convergência entre as comunhões romana e anglicana.
Desde a década de 60, o arcebispo de Cantuária tem mantido encontros com o papa. Vale lembrar que, quando João Paulo II esteve na Inglaterra, visitou a catedral de Cantuária.
A Igreja metodista
Pela iniciativa de John Wesley (1703-1791), pastor anglicano formado pela Universidade de Oxford, surgiu, nos meados do século XVIII, outro movimento de renovação religiosa. Suas características espirituais marcantes são: estudo metódico da Bíblia (daí o nome de "metodista"); horas fixas reservadas diariamente à oração; participação quotidiana da santa Ceia e prática de obras de caridade.
Quando a Igreja Anglicana proibiu a John Wesley de pregar em seus templos, ele começou sua pregação itinerante ao ar livre, dirigindo-se principalmente às massas proletárias provenientes da incipiente Revolução Industrial. Do ponto de vista espiritual, o movimento metodista exigia conversão e mudança radical de estilo de vida. No aspecto social, organizava "cruzadas" contra a escravidão, o alcoolismo, a prostituição e promovia obras assistenciais em favor das vítimas de calamidades sociais. O movimento não chegou a formar uma Igreja separada da anglicana, embora conservasse, de forma simplificada, a mesma riqueza litúrgica. Mais do que doutrina, o metodismo acentua a vida prática e a experiência religiosa.
Wesley morreu como presbítero, em plena comunhão com a Igreja anglicana. Só anos após sua morte é que seus seguidores romperam com a Igreja da Inglaterra. Hoje, porém, existe um forte movimento trabalhando para a união de metodistas e anglicanos.
O movimento anabatista
Para muitos protestantes do século XVI, a Reforma não pareceu bastante radical. Outro grupo,denominado "anabatista", visava a uma renovação da Igreja até às conseqüências mais extremas.
Queriam seus idealizadores uma Igreja espiritual, sem hierarquia visível e constituída exclusivamente por pessoas cuja adesão à Palavra de Deus fosse plenamente consciente. O batismo, portanto, deveria ser ministrado só aos adultos e não às crianças. Todo fiel que quisesse aderir a esse movimento, deveria ser rebatizado. Daí, o nome de "anabatistas" ou "rebatizadores".
Pregavam eles uma total independência frente às autoridades civis; queriam viver separados do "mundo". Alguns isolaram-se pacificamente para fundar suas comunidades; outros enfrentaram violentamente a autoridade civil, considerada corrupta e perseguidora. Em 1534, um grupo ocupou a cidade de Münster, na Alemanha, matando os adversários do regime político e denominando a cidade "Nova Jerusalém". No ano seguinte, a cidade foi ocupada pelas tropas fiéis ao governo e toda a população masculina foi massacrada.
A partir dessa data, os anabatistas foram sempre perseguidos, contudo, uma parte deles, relacionada com o calvinismo holandês, organizou-se nas comunidades dos menonitas, assim chamados por causa de seu fundador, Menno Simons. Eles também só aceitavam o batismo de adultos, mas eram pacíficos e reconheciam a autoridade civil, desde que não lhes impusesse obrigações em oposição à Palavra de Deus.
A Igreja batista
O pastor anglicano inglês John Smyth (1570-1612) é considerado fundador das primeiras comunidades denominadas "batistas". Também ele queria uma reforma mais radical e não se conformava com a organização hierárquica da Igreja anglicana, isto é, com o fato de bispos e padres ocuparem os lugares de comando. Perseguido por suas idéias, teve que se refugiar na Holanda. Lá encontrou um padeiro menonita que o convenceu da não validade do batismo ministrado às crianças. Ele mesmo se batizou novamente e, voltando à Inglaterra, fundou a Igreja batista que, no século XVIII, estabeleceu-se sobretudo nos Estados Unidos, espalhando-se, em seguida, pelo resto do mundo.
Características típicas dessa religiosidade viva, que constantemente apela para uma decisão e um compromisso pessoal, são:
batismo dos fiéis como testemunho de fé e sinal da graça divina;
sacerdócio universal dos fiéis, sem qualquer distinção entre pastores e leigos;
estrutura eclesial que afirma a autonomia da comunidade local;
negação de todo ritualismo, para deixar espaço à religiosidade espontânea e individual.
A Igreja adventista do sétimo dia (ou sabatistas)
O termo "adventista" decorre de uma doutrina fundamentada sobre a espera da volta de Cristo à terra para proclamar o "fim dos tempos". O movimento surgiu nos Estados Unidos com a pregação de um batista, William Miller (1792-1849), que havia profetizado que Jesus viria em 1844. A profecia não se realizou e os seguidores de Miller dividiram-se em vários grupos, sendo que o mais importante assumiu a denominação de "adventistas do sétimo dia". Além de estabelecer o sábado como "Dia do Senhor", esse movimento pratica o princípio bíblico do dízimo, está relacionado com o movimento milenarista que coloca no centro de seu interesse o retorno de Cristo para os últimos tempos, reconhece a autoridade da Bíblia, o dogma da Trindade, mas tem uma concepção peculiar quanto à ressurreição dos mortos e ao reino de Deus. Proíbe o uso de álcool, cigarro e carne de porco e promove um tipo de vida natural. Essa Igreja possui muitas clínicas e casas de repouso onde seus princípios são aplicados.
Movimentos colaterais à Reforma
Entre as correntes religiosas da época, podemos lembrar a dos antitrinitários, chefiados por Miguel Servet, o qual foi condenado à fogueira em 1553, em Genebra, por Calvino.
Não podem ser consideradas parte integrante do protestantismo os movimentos pseudo-cristãos: mórmons, testemunhas de Jeová, Igreja universal do Reino de Deus, os meninos de Deus.
Conclusão
Os objetivos da Reforma acabaram também sendo instrumentalizados pelo poder político. A tão proclamada liberdade do Evangelho e de seus pregadores, em pouco tempo, foi fechada dentro de um sistema de Igrejas de Estado ou de Igrejas nacionais, sob controle dos príncipes.
A partir da intuição e do desejo de reforma e de renovação do cristianismo e da Igreja, surgiram muitas Igrejas cristãs e novos movimentos religiosos, com diversas e diferentes confissões de fé. O luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo foram as principais Igrejas dentro de um movimento complexo e diversificado.
Para a Igreja católica, tudo isso representou uma das mais amargas experiências de sua história. A Europa setentrional, de cultura germânica, e muitas outras regiões européias separaram-se da antiga Igreja. Nas Igrejas territoriais evangélicas, foi suprimido todo elemento católico. Houve muita desconfiança, luta, incompreensão entre as Igrejas cristãs e só mais tarde, a partir do movimento filosófico chamado Iluminismo, abriu-se o caminho da tolerância recíproca entre elas.
Aos poucos, percebeu-se também que é preciso algo mais que a simples tolerância. Neste século, diante da constatação da existência de várias Igrejas que querem ser cristãs, começou a surgir esta preocupação: como eliminar as barreiras e os preconceitos para chegar a uma convivência pacífica e até a uma verdadeira amizade entre os cristãos? Já no século passado, na Europa, com o movimento de Oxford buscava-se a união das Igrejas. E no começo deste século, as igrejas de tradição evangélica deram início ao movimento ecumênico que as levou, mais tarde, a fundar o Conselho Mundial de Igrejas. O próprio papa João XXIII falou em "encontrar-se para conhecer-se e conhecer-se para amar-se". O movimento ecumênico conseguiu sensibilizar os católicos, especialmente após o Concílio Vaticano II (1963-1965).
Antes, já se falava dos protestantes como irmãos separados, mas se pensava assim: eles, que saíram da Igreja, devem voltar e então, haverá unidade. Agora, pensamos assim: todas as Igrejas cristãs devem fazer uma boa reflexão para ver se são totalmente fiéis ao ensinamento de Cristo e se aceitam todo o Evangelho ou só em parte. Esse exame de consciência, essa conversão a Cristo, que todos os cristãos devem fazer, são condições iniciais e indispensáveis para que se possa continuar o discurso sobre unidade entre os cristãos, eliminando, aos poucos, as barreiras e as incompreensões.
Na Igreja católica, depois do Concílio, houve, com efeito, profundas mudanças na liturgia, no relaçionamneto da Igreja com o mundo, com as outras Igrejas e religiões, com as ideologias não religiosas e até com o ateísmo. A perspectiva atual das Igrejas cristãs não é mais de desconfiança ou de condenação, mas de positiva e recíproca compreensão, na acolhida de novas idéias e experiências.
Questões para sua reflexão
1.º Se fosse possível fazer um julgamento crítico da atuação de Lutero e considerando a situação histórica daquela época, quais outras atitudes você acha que ele poderia ter tomado e que não levassem à separação?
2.º Em sua opinião, quais são os pontos mais significativos que unem e "separam" protestantes, anglicanos e católicos?
3.º Procure descobrir a diferença entre "ecumenismo"e "diálogo inter-religioso" e analise quais as mudanças que ambos poderiam trazer para as relações entre os povos.
Martinho Lutero
O principal articulador da Reforma nasceu na Alemanha, em 1483. Dotado de uma vivaz e crítica inteligência, aos 22 anos já tinha o título acadêmico de "mestre das artes" e iniciava o curso de Direito. Por causa de uma promessa feita, após ter sido salvo de um grave acidente, entrou para o convento dos agostinianos aos 24 anos. Tornou-se sacerdote, doutor em teologia e ocupou cargo importante dentro de sua ordem.
Todas essas atividades não impediram que Lutero entrasse numa profunda crise espiritual, na qual buscava um Deus misericordioso. Fundamentado no texto de são Paulo, desenvolveu a idéia de que Deus salva a quem quiser, visto que, desde sempre, alguns estão predestinados à salvação e outros, à condenação.
Paralelamente, manifestou-se de forma radical contra a questão das indulgências e outros abusos do poder eclesiástico.
O fato de ter sido excomungado não nos impede, hoje, de reconhecer que Lutero tinha uma personalidade bastante religiosa e que, realmente, buscava a verdade da mensagem evangélica.
Se, por um lado, opõs-se ao papado, à celebração da missa, aos sacramentos, ao culto das relíquias e mesmo dos santos, à prática das peregrinações e à reza do terço; por outro, Lutero buscou uma concepção mais esclarecida e sadia de pecado e graça divina, colocando a fé e a caridade em primeiro lugar.
Também foi mérito seu a excelente tradução da Bíblia para o alemão,
o apelo à reforma e à conversão da Igreja que precisava acordar de sua imobilidade e apego a gestos e tradições que a impediam de testemunhar a fé.
Além disso, Lutero percebeu que o modelo imperial não era o mais adequado para a Europa cristã que necessitava modificar as relações entre os Estados, bem como soube utilizar a língua do povo (e não mais apenas o latim) e aproveitar dos benefícios da imprensa que dava seus primeiros passos.
O reformador morreu em 1546, aos 63 anos, repetindo as palavras de Cristo na cruz: "Em tuas mãos entrego o meu espírito."
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