AS NARRATIVAS DOS VIAJANTES E A PRODUÇÃO DOS POVOS
INDÍGENAS
JOSÉ VICENTE DE SOUZA AGUIAR (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO
SUL).
Resumo
Este trabalho visa produzir um entendimento a respeito da forma como os povos
indígenas foram inseridos na História principalmente pelas narrativas de dois
viajantes estrangeiros LA CONDAMINE. Viagem pelo Amazonas. 1735–1745 e
WALLACE, Viagens pelos rios Amazonas e Negro 1865–1866. Em suas narrativas,
os povos indígenas foram caracterizados como aqueles que possuíam qualidades
relacionadas à apatia, à tristeza, à indolência, à preguiça, à selvageria, ou então
passaram a serem vistos como puros, ingênuos, atrasados, inaptos ao trabalho. La
Condamine e Wallace estiveram na região Amazônica entre os séculos XVIII e XIX,
produzindo ou reproduzindo as imagens sobre os povos indígenas com os quais
tiveram contato ao longo das suas passagens pela região. É importante destacar
que as produções posteriores a esses séculos fazem menção aos trabalhos
descritos. Isso é um indicador de que os trabalhos pretéritos exerceram uma
relação de influência nos estudos que foram elaborados posteriormente sobre a
Amazônia e pelos pesquisadores da região. As menções não ocorreram na
perspectiva da descontinuidade, do rompimento, do confronto, mas na da
continuidade, da reafirmação dos discursos sobre os povos indígenas. Daí a idéia da
relação de continuidade entre os discursos dos viajantes e de parte da produção
acadêmica realizada no século XX. A linguagem, com seu poder de expressão e de
definição, proferida a partir do espaço institucional, atuou na criação e recriação
das imagens sobre os povos indígenas, o que possivelmente não deixou de existir
na atualidade. Supostamente, fragmentos dessas imagens estereotipadas
permanecem agindo ou norteando os olhares sobre os povos indígenas, visto que
as falas sobre eles frequentemente estão relacionadas à idéia de atraso ou os
relacionam à natureza.
Palavras-chave:
Viajantes, Amazônia, Indígenas.
Este trabalho[1] visa produzir um entendimento a respeito da forma como os povos
indígenas foram inseridos na História, principalmente pela narrativa do cientista e
explorador francês Charles Marie La Condamine[2] (Viagem na América Meridional
descendo o rio das Amazonas - 1735-1744) e pela do cientista naturalista britânico
Alfred Russel Wallace[3], (Viagens pelos rios Amazonas e Negro). Nesse sentido,
em suas narrativas, os povos indígenas foram caracterizados como aqueles que
possuíam qualidades relacionadas à apatia, à tristeza, à indolência, à preguiça, à
selvageria, ou então foram compreendidos como indivíduos puros, ingênuos,
atrasados e inaptos ao trabalho.
La Condamine e Wallace estiveram na região Amazônica entre os séculos XVIII e
XIX, produzindo ou reproduzindo as imagens sobre os povos indígenas com os
quais entraram em contato ao longo das suas passagens pela região. É importante
destacar que as produções posteriores a esses séculos dos escritores da região
Amazônia, do início do século XX, mencionam os trabalhos dos autores descritos, o
que pode ser um indicador de que os trabalhos pretéritos exerceram uma relação
de influência nas formas de pensamentos e nos estudos que foram elaborados
posteriormente pelos pesquisadores da região a respeito das sociedades indígenas
amazônicas.
De qualquer forma, ainda que possamos encontrar entre os pesquisadores do início
do século XX referências aos cientistas citados, esse aspecto merece ser mais
estudado. Embora as menções aos trabalhos de La Condamine e Wallace não
tenham ocorrido na perspectiva da descontinuidade, do rompimento, do confronto,
mas na da continuidade, da reafirmação dos discursos sobre os povos indígenas.
Daí a ideia da relação de continuidade entre os discursos dos viajantes e de parte
da produção acadêmica realizada no início do século XX.
Embora o estudo aqui realizado trate das narrativas produzidas pelos cientistas
sobre as sociedades indígenas, e sabendo que essa forma de denominá-los é
genérica e não corresponde às discussões da atualidade que destaca o estudo das
etnias e não dos indígenas, assumo que trabalharei com essa denominação, mesmo
reconhecendo seu equívoco no que diz respeito à diversidade de etnias e de forma
de viver e de ser.
As narrativas, com seu poder de expressão e de definição, proferidas a partir do
espaço institucional e por indivíduos que falaram a partir da autoridade atribuída
pelo lugar que ocupavam nas instituições de pesquisa, podem ter contribuído para
a criação e recriação das imagens estereotipadas sobre os povos indígenas.
Provavelmente, essas imagens ainda são criadas na atualidade, no entanto não
necessariamente pelas instituições relacionadas ao saber cientifico. Supostamente,
fragmentos dessas imagens estereotipadas permanecem agindo ou norteando os
olhares dos não-indígenas sobre os povos indígenas, visto que as falas sobre eles
frequentemente estão relacionadas à ideia de atraso, de empecilhos para o
desenvolvimento da sociedade e da produção, para as aberturas das estradas, para
a proteção do território nacional. Além disso, existem as imagens que os
relacionam à natureza, apresentando-os como tipos sociais que vivem em completa
harmonia com ela. Esse tipo de pensamento remete à visão romântica,
evidenciando a ideia de que as vidas desses povos foram e são pautadas pelo
princípio da pureza, do equilíbrio entre os povos e os bichos, a fauna e a flora.
Ainda que fossem os indígenas considerados preguiçosos pelo cientista francês, os
trabalhos de remadores das canoas que circularam na Amazônia durante as visitas
dos cientistas naturalistas foram realizados pelos povos indígenas, os quais
utilizaram seus conhecimentos sobre a região para guiar essas expedições pelos
rios amazônicos. Além de serem os responsáveis pela condução dos mantimentos e
instrumentos de pesquisa dos naturalistas. "[...] é preciso tudo levar às costas dos
índios" (LA CONDAMINE, 2000, p. 46)
É preciso reconhecer que sem o trabalho dos indígenas na condição de remadores,
de carregadores e sem os conhecimentos desses povos sobre os rios da região o
processo de reconhecimento de sua geografia dificilmente seria realizado pelo
cientista francês. Todavia, La Condamine incorpora esses povos a sua narrativa na
qualidade de quem apresentava pouca disposição ao trabalho e para o acúmulo de
riqueza. O referencial de comparação adotado pelo cientista centra-se no modo de
vida da sociedade branca europeia, que havia adotado para si a ideia do acúmulo
de riqueza e do progresso material. Provavelmente, em função dessa noção de
sociedade, o cientista afirmava que no Maranhão
Os índios vão recolher, então, precisamente a quantidade necessária para pagar o
tributo ou capitação, e somente o fazem quando estão muito solicitados a pagá-lo.
O resto do tempo eles calcariam o ouro debaixo dos pés, em vez de darem o
trabalho de o recolher e triar. Em toda essa zona, as duas margens do rio estão
cobertas de cacau selvagem, que não é menos bom que o cultivado, e de que os
índios não fazem tampouco o menor caso. (LA CONDAMINE, 2000. p. 51)
Assim, por meio das ideias de trabalho e de prosperidade que nortearam a visão de
La Condamine, ocorreu classificação das sociedades indígenas com as quais entrava
em contato. Esses não foram apresentados como trabalhadores que conduziram às
canoas, que transportavam às costas os mantimentos e equipamentos e nem que
utilizaram seus conhecimentos sobre a fauna e a flora para guiar os cientistas nas
suas pesquisas. Pelo contrário, foram narrados como sujeitos desinteressados e
preguiçosos.
A denominação trabalho não foi atribuída às tarefas das sociedades indígenas a
serviço dos cientistas, mas apenas as realizadas pelos cientistas. Enquanto os
indígenas eram chamados de carregadores e remadores[4], diante do perigo de
naufrágio da jangada em que viajavam, o cientista descrevia a situação falando do
risco que correram de perder os jornais e os papéis das observações, fruto de oito
anos de trabalho. (LA CONDAMINE, 2000, p. 56)
Esse caso é revelador da noção de certa atitude exigida por La Condamine aos
povos indígenas, constituída a partir da ideia de valor econômico centrado nos
referencias do próprio cientista, que seria, na sua visão, um atributo supostamente
não existente entre os indígenas. Este viajante pesquisador, em suas observações
sobre os povos da Amazônia do século XVIII, dizia que a insensibilidade fazia parte
do seu caráter, uma vez que supunha
[...] reconhecer em todos eles um mesmo fundo de caráter. A insensibilidade é o
fundamental. Fica a decidir se a devemos honrar com o nome de apatia, ou se lhe
dar o apodo de estupidez. Ela nasce indubitavelmente do número limitado de suas
ideias, que não vai além de suas necessidades. Glutões até a voracidade, quando
têm que saciar-se; sóbrios quando a necessidade os obriga a se privarem de tudo
sem parecerem nada desejar; pusilânimes ao excesso, se a embriaguez os não
transporta; inimigos do trabalho, indiferentes a toda a ambição de glória, honra ou
reconhecimento; sem a preocupação do futuro; incapazes de previdência e
reflexão; entregues, quando nado os molesta a brincadeiras pueris, que
manifestam por saltos e gargalhadas sem objeto nem desígnio; passam a vida sem
pensar, e envelhecem sem sair da infância, cujos defeitos todos são conservados
(LA CONDAMINE, 2000, p. 60)
Nesses termos, as sociedades indígenas foram incorporadas às narrativas na
condição predominante de povos selvagens, preguiçosos e desqualificados para o
trabalho. Todavia, aqueles grupos que haviam incorporados elementos da
religiosidade cristã passaram a ser vistos como em processo evolutivo, visto que
para o cientista isso era uma representação de que haviam assimilados os hábitos
dos conquistadores. Portanto, hábitos civilizados. É possível entender então que os
referenciais do modo de vida considerados significativos e válidos para La
Condamine eram o modo de ser e viver de uma parcela da sociedade branca
europeia.
Por meio dessa matriz de inteligibilidade, as sociedades indígenas foram avaliadas
pelo viajante cientista francês. Através desse pressuposto, as sociedades indígenas
deveriam absolver e aprender esse modo de vida, pois era este o considerado
civilizado e válido para todas as sociedades. Tal modelo fica evidente quando o
cientista assevera
[...] os índios das missões e os selvagens que gozam de liberdade são tão limitados
por não dizer tão estúpidos quanto os outros, e não se pode ver sem humilhação o
quanto o homem abandonado à natureza, privado de educação e sociedade, pouco
difere das bestas". (LA CONDAMINE, 2000, p. 60)
Assim, as referências aos conhecimentos, aos modos de ser de uma parcela dos
europeus ocorreram também a partir da comparação das línguas das sociedades
indígenas[5], sobretudo procurando encontrar na língua as palavras que
expressassem as ideias consideradas abstratas e universais; todavia essas ideias
tinham suas centralidades nos universais criados pela sociedade europeia. A
ausência de tais ideias expressaria um suposto estágio de atraso, ou de vida em
estado de selvageria. Para La Condamine, esse suposto estágio estaria evidente na
ausência das palavras que exprimisse sentidos de:
"Tempo", "duração", "espaço", "ser", "substância", "matéria", "corpo": todos esses
nomes, e muitos outros, faltam em suas línguas; não somente os nomes dos entes
metafísicos, mas os dos seres morais, não podem verter-se senão imperfeitamente,
e por longas perífrases. Não há palavras que corresponda exatamente à "virtude",
"justiça", "liberdade", "reconhecimento", "ingratidão". (LA CONDAMINE, 2000, p.
61)
Nesse contexto, fica evidente na narrativa do cientista francês que o seu
desconhecimento das línguas das sociedades indígenas foi o motivo de julgamento
e classificação, uma vez que se torna mais fácil rotular negando o que não se
conhece, do que assumindo o desconhecimento das línguas com as quais entrara
em contato. Com base no seu desconhecimento, dizia que a língua dos selvagens
chamados jameus, recentemente trazidos das selvas
"[...] é de uma dificuldade inexprimível, e sua maneira de falar é ainda mais
extraordinária do que a língua. Eles falam por missão de voz, e não fazem soar
quase nenhuma vogal. Têm vocábulos que não poderíamos escrever, mesmo
imperfeitamente, sem empregar menos de nove a dez sílabas, entretanto
pronunciado por eles, não parecem ter mais de três ou quarto" (LA CONDAMINE,
2000, p. 66).
Ao referir-se à língua do povo Omágua, que dominava sua pronúncia, dizia que era
considerada tão doce e tão fácil de pronunciar e aprender, porém a dos jameus é
rude e difícil. (LA CONDAMINE, 2000, p. 70)
O Senhor L., sujeito português que acompanhou o cientista britânico na viagem ao
Alto Rio Negro, apresenta a língua portuguesa que falava como superior à língua
indígena. Dizia que vivia com uma pessoa indígena com uns trinta anos e que era
mãe de seus filhos menores. Não lhe agradava a ideia de casamento com ela, pois
essa mulher não dominava a língua portuguesa e assim não poderia educar seus
filhos na língua considerada superior. No diálogo como Wallace, o senhor L. justifica
seu estado matrimonial e sua necessidade em ensinar o português para os seus
filhos.
Para justificar as vantagens de não se prender a ninguém por semelhante vínculo,
contou-me, então, que a mãe de suas duas filhas mais velhas, quando estas se
tornaram mais crescidas, não podia educá-las com asseio, e era incapaz,
outrossim, de ensinar-lhes o português. Em vista disso, resolveu pô-la fora de casa,
substituindo-a, então, por outra mulher mais jovem e mais civilizada (WALLACE,
2004, p. 268)
Nessa perspectiva, os elementos de comparação e valoração utilizados pelo
cientista francês do século XVIII também circularam pela religiosidade ocidental,
pois ao referir-se à sociedade indígena localizada no rio Japurá, Amazonas,
chamado de habitantes de Pebas, dizia "[...] na sua maioria ainda não são cristãos:
são selvagens recentemente tirados de sua floresta. Não se trata enquanto senão
fazer deles uns homens, o que não é pequeno trabalho" (LA CONDAMINE, 2000, p.
74). A religiosidade cristã foi usada como modelo para compreender as dimensões
sagradas das sociedades indígenas. Partindo dessa perspectiva, o francês chegou a
afirmar que era mais frequente a existência de povos indígenas sem qualquer ideia
de religião (LA CONDAMINE, 2000, p. 123)
Assim, as imagens criadas circulam entre a ideia de que quase todos os indígenas
são mentirosos, selvagens e que os missionários jesuítas trabalham em amansar
(LA CONDAMINE, 2000, p. 97)
E, sobretudo, a preguiça dos homens das sociedades indígenas foi reforçada pelas
condições favoráveis que oferece a natureza para abastecê-los de alimentos e
necessidades.
"[...] os lagos e os mangues que se encontravam a cada passo nas proximidades do
Amazonas, e não raro bem no interior das terras, são enchidos de peixes de todas
as qualidades, nos tempos do extravasamento; e quando as águas baixam, aí eles
ficam encerrados como em tanques ou reservatórios naturais, e onde se pescam
com a maior facilidade" (LA CONDAMINE, 2000, p. 105)
No entanto, o mesmo cientista que os denomina de preguiçosos relata que os
indígenas remavam dia e noite tanto a serviço das expedições de pesquisa da
natureza, quanto a serviço dos colonos e dos missionários para vender os produtos
das missões e buscar as provisões no Pará.
Alfred Russel Wallace, viajante-naturalista que esteve na Amazônia e produziu
narrativa sobre os povos indígenas amazônicos no século XIX, percorreu o
Amazonas e o Pará, coletando material botânico e zoológico, realizando assim
viagem de cunho científico na região Amazônica. Aliás, as coletas de parte dos
animais eram realizadas pelos indígenas, pois consta do relato desse naturalista
que o Sr. Balbino, a quem foi apresentado na cidade da Barra[6], disponibilizou um
caçador para matar pássaros e quaisquer outros animais que o quisesse (2004, p.
217)
Sua forma de pensar e narrar as populações indígenas estava pautada na
racionalidade baseada em valores e visão de mundo europeu, constituída a partir
de uma perspectiva etnocêntrica. Em que modelo ocidental, constituído, sobretudo,
como base na ideia de desenvolvimento e progresso foi apresentado como
indicador para medir e avaliar os modos de ser e de viver das sociedades indígenas.
Nesse modelo, questões como desperdício de trabalho e de tempo, baixa
produtividade, são apresentadas como problemáticas e, portanto, devem ser
superadas. Esses aspectos relativos ao que supostamente deveria ser as
características dos homens e das mulheres estão presentes nas narrativas de
Wallace quando sugere mudanças nas formas de produzir das sociedades
indígenas, ao dizer que deveriam "[...] ocupar-se com uma indústria qualquer e
trocar os seus produtos pelas mercadorias de que tiver precisão" (WALLACE, 2004,
p. 224)
Alfred Russel Wallace, ao realizar sua viagem científica pela região, também fez
observações acerca das populações indígenas e não indígenas carregadas de ideias
estereotipadas. Ele deixou fluir, em suas afirmações, os elementos que compõem a
concepção de cultura com a qual pensa a vida humana. Estava baseada nos
princípios considerados originais, autênticos, usados como modelo para
compreender os modos de ser e de viver das sociedades indígenas. Para ele, o
povo indígena "[...] nas vizinhanças da civilização perde a maior parte de seus
costumes típicos, modificando seu estilo de vida, sua arquitetura, seus hábitos e
sua linguagem [...] Torna-se logo um ser diferente daquele que constitui um
genuíno habitante da selva" (2004. p.576). Wallace classifica os indígenas a partir
de seu olhar de cientista naturalista. O homem amazônico foi considerado uma
espécie que precisaria ser catalogada: via de regra, ostentam (os indígenas)
soberbas compleições físicas. Podem estar certos de que considero esses perfeitos
exemplares da maravilhosa anatomia humana (2004, p. 577)
Essa espécie exótica presente na descrição do naturalista britânico está evidenciada
na narrativa que fez dos modos como os indígenas e as indígenas procedem no
tratamento dos pelos do corpo. "Os homens têm muita pouca barba, e mesmo esta
pouca eles arrancam, puxando os fios. Homens e mulheres, todos arrancam
também as sobrancelhas e pêlos dos sovacos e das partes genitais" (WALLACE,
2004, p. 581). Essa imagem, presente na narrativa de Wallace, parece destoar do
modo de ser dos europeus considerados civilizados, já que os povos indígenas
vistos nessa perspectiva foram incorporados a seres exóticos, que deveriam compor
o quadro evolutivo da espécie humana. Todavia, esse cenário em que os corpos
aparecem sem os pelos realça na visão de Wallace um aspecto de anormalidade, de
monstruosidade, pois o modelo a ser seguido, na sua perspectiva, não condiz com
esse procedimento considerado selvagem.
De qualquer modo, essa visão dos indígenas exóticos não corresponde apenas a
uma narrativa dos indígenas da Amazônia, pois é possível ser identificada em
outras regiões do país. Na pesquisa doutoramento de Iara Bonin realizada em
2007, sobre as narrativas dos professores, identifica a ideia de que os povos
indígenas são pessoas livres, vivendo na floresta, em harmonia com os animais
silvestres e ingênuos, apresentando um estado de exotismo nas suas manifestações
individuais e coletivas. Constata-se, dessa forma, que as narrativas estereotipadas
feitas dos povos indígenas não correspondem apenas uma situação relativa às
sociedades indígenas amazônicas do pretérito, uma que o estudo de Bonin (2006)
evidencia essa situação também no Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre.
Esse estudo pode servir como demonstração da abrangência desse pensamento,
descartando a ideia de que correspondesse a um pensamento localizado e regional
sobre os povos indígenas.
No século XX, essa imagem é mencionada e reaparece na fala de Djalma Batista,
um dos primeiros pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia
(INPA), do início da segunda metade do século XX, do Estado do Amazonas que
teve provavelmente atuação junto à formação do sistema de pensamento no
Estado. Esse cientista dizia que a mestiçagem não redimiu esse povo, uma vez que
ainda resta mostra da herança ameríndia em seu comportamento.
Uma delas, das mais típicas, é uma dose visível de preguiça reinante entre os
habitantes do vale, uma indisposição para o trabalho sistemático, um conformismo
com o resultado dos modestos esforços e uma permanente despreocupação com o
dia de amanhã (BATISTA, 1976, p. 49)
Essa forma de pensar presente também no século XX e apresentado por um
cientista que dedicou sua vida ao estudo da medicina na Amazônia demonstra a
relação de continuidade com o pensamento dos séculos anteriores, que viam na
mestiçagem o meio de promover o suposto melhoramento da raça tida como
inferior, pois a ideia de puro sangue europeu (WALLACAE, 2004, p. 215)
apresentada pelo cientista britânico revela a noção de superioridade de um povo
considerado legítimo e superior.
Considerações finais
Este estudo não consiste em explicar quando e como começou a produção dessas
marcas sociais. Todavia buscou mostrar que essas imagens foram criadas, foram
inventadas, que elas existiram e possivelmente existem, embora não possa ser
entendido como uma existência natural, mas como efeito de poder e saber numa
relação de tensão entre os brancos e os povos indígenas ou mesmo entre os
próprios povos indígenas.
Algumas questões podem ser feitas no sentido de problematizar a invenção da
escrita e da imagem a respeito das sociedades indígenas. Dessa forma, é possível
afirmar que a produção do saber com sua força de verdade correspondeu a um ato
realizado pelos cientistas que tomaram a sociedade branca ocidental como modelo
válido para entender as sociedades não ocidentais, inclusive as indígenas. Nesse
sentido, as falas dos povos indígenas sobre si parecem que não ecoaram e nem
foram produzidas por eles com estatuto de verdade científicos em defesa de um
tipo de sociedade singular, não ocidental.
Tudo indica que a narrativa predominante sobre as sociedades indígenas foram
realizadas por sujeitos não-índios, situados na condição cientista, com autoridade e
poder para nomear, classificar os modos de ser e de viver dos não-indígenas e dos
indígenas. Talvez pudéssemos pensar quando e como emergiram essas narrativas,
com efeito de saber-poder, inventando o modo de ser das sociedades indígenas na
condição de sociedades inferiores, subalternas e desqualificadas? Como a sociedade
branca que não fala pela ciência assimilou os estereótipos e se tornou reprodutora
dessa forma de pensar sobre os indígenas? Essas questões são apresentadas para
estimular os entendimentos sobre os modos como os povos indígenas foram
inventados pelas narrativas dos não-indígenas.
Nessa perspectiva, as imagens criadas pelas narrativas sobre os povos indígenas
pelos viajantes - cientistas e naturalistas - foram constituídas a partir de
estereótipos e, ainda, centradas no modo de ser e de viver das sociedades
europeias, sobretudo dos homens e das mulheres que serviram de parâmetros para
pensar os outros modos de vida. Os grupos indígenas, principalmente aqueles que
não apresentavam as técnicas de fabricação de algum produto com valor
econômico e que também não fossem dóceis e submissos para facilitar a
exploração e a conquista dos europeus, foram considerados selvagens, rude,
inferiores e incapazes de abstração e pensamento mais complexo. Muitas vezes,
fica a nítida impressão de que os grupos indígenas foram comparados aos animais
inferiores e em uma escala evolutiva, convergindo, assim, para as noções da teoria
evolutiva, onde os povos indígenas ocupariam um lugar inferior em relação a outros
grupos humanos - europeu, brancos e cristãos.
Assim sendo, essas narrativas inventadas possuem o poder de converter, de
instruir uma forma de pensar, de educar os olhares para ver e avaliar os outros que
não vivem e nem produzem da mesma forma que a sociedade predominante
ocidentalizada. Essas narrativas inventadas, além de classificatórias, também
possuem o poder de convencer pelo uso razão de que a o modelo de sociedade
válido é o ocidentalizado e cristão.
Referências bibliográficas
ALBURQUEQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007
BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia (Análise do processo de
desenvolvimento). RJ, Conquista, 1976. Coleção Temas Brasileiros. Vol. 20
BONIN, Iara Tatiana. Com quais palavras se narra a vida indígena na
literatura infanto-juvenil que chega às escolas? In: SILVEIRA, Rosa Maria
Hessel. Estudos Culturais para professoras. Canoas: ULBRA,
_______, Iara Tatiana. E por falar em povos indígenas ...: quais narrativas
contam em práticas pedagógicas? Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Faculdade de Educação: Programa de Pós-Graduação em Educação,
2007
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 16 ed. São Paulo: Loyola, 2008
LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Viagem na América Meridional descendo o
rio das Amazonas - Brasília: Senado Federal, 2000.
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro, notas de Basílio
de Magalhães. - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.
[1] Cujo autor é doutorando em Educação pela UFRGS, professor da Universidade
Estado do Amazonas - UEA e bolsista da FAPEAM. jvicente@uea.edu.br
[2] Fez estudos de natureza geografica, sobre a fauna e sobre a flora da bacia
amazônica, dedicou-se também à astronomia, à geodesia e à física.
[3] Viajante-naturalista que esteve na Amazônia entre maio de 1848 a julho de
1852 e produziu narrativas sobre os povos indígenas amazônicos.
[4] As mesmas necessidades de trabalhadores para realizar o transporte dos
materiais de pesquisa e dos mantimentos foram apresentadas nos relatos de
Wallace. Além do mais, acrescenta o esforço dedicado pelos indígenas para vencer
as dificuldades e ameaças apresentadas pelas cachoeiras da região de São Gabriel
da Cachoeira. Sem o conhecimento dos indígenas sobre a região que compunham a
expedição, o cientista britânico não teria realizado sua coleta dos animais da fauna
e da flora, pois reconhece que não podia aventurar-se a andar pela floresta e pelos
rios em busca dos animais e peixes e outros seres.
[5] Vale ressaltar que o domínio da língua das sociedades indígenas por parte dos
jesuítas foi fundamental para o sucesso trabalhos religioso de suas missões no
Brasil e nos países da América Latina como no Peru, Venezuela, Bolívia, Paraguai,
dentre outros. A língua geral foi criada com a finalidade de servir como meio de
comunicação entre brasileiros e índios.
[6] Fortaleza da Barra de São José do Rio Negro, denominação que a Cidade de
Manaus recebeu por volta de sua fundação em 1669.
COPYRIGHT JOSÉ VICENTE DE SOUZA AGUIAR
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