quinta-feira, 3 de março de 2011

9543 - CHARLES RIBEYROLLES

RHAA 8 51
Imagens de permanência:
considerações acerca do álbum Brasil Pitoresco
de Charles Ribeyrolles e Victor Frond
(in english, p. 131)
MARIA ANTONIA COUTO DA SILVA
Doutoranda pelo IFCH/UNICAMP
RESUMO Pretendemos neste artigo abordar as relações entre pintura e fotografia no Brasil
do século XIX, analisando, em especial, o álbum Brasil Pitoresco, de autoria dos franceses
Charles Ribeyrolles (1812-1860) e Victor Frond (1821-1881), publicado em 1861. O Brasil
Pitoresco foi a primeira obra de viajantes editada na América Latina com ilustrações obtidas a
partir de fotografias. Victor Frond foi pioneiro também ao realizar o registro fotográfico da
produção agrícola nacional e do trabalho dos afro-descendentes nas lavouras fluminenses.
Após a década de 1880, o repertório de imagens dessa publicação tornou-se fonte de inspiração
e foi retomado por artistas que praticavam a nascente pintura de gênero, buscando
representar cenas do cotidiano nacional, como pode ser percebido em alguns quadros de
Almeida Júnior (1850-1899).
PALAVRAS-CHAVE Pintura – Brasil – Século XIX, Fotografia – Brasil – Século XIX, Victor
Frond (1821-1881), Charles Ribeyrolles (1812-1860), Almeida Júnior (1850-1899).
ABSTRACT In this article, we intend to deal with the relations between painting and photography
in Brazil during the 19th century. Our aim is to analyze, in detail, the album Brasil
Pitoresco (Brazil Picturesque), from the French authors Charles Ribeyrolles (1812-1860) and
Victor Frond (1821-1881), which was published in 1861. Brasil Pitoresco was the first travel
narrative edited in Latin America with illustrations came from photography. Victor Frond
was also a pioneer when he registered in his photographs the national agricultural production
and the work of the afro-descendents at the farming areas of the Fluminense region,
in Rio de Janeiro. After de 1880’s, the publication’s repertory of images became inspiration
source, being reused by artists that dealt with the rising genre painting. They tried to portrait
national daily scenes, as can be seen in some of Almeida Junior’s paintings (1850-1899).
KEYWORDS Painting – Brazil – 19th century – Photography – Brazil – 19th century – Victor
Frond (1821-1881), Charles Ribeyrolles (1812-1860), Almeida Júnior (1850-1899).
Maria Antonia Couto da Silva
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Pretendemos neste artigo abordar as relações
entre pintura e fotografia no Brasil do século XIX,
analisando, em especial, o álbum Brasil Pitoresco, com
texto de Charles Ribeyrolles e litografias realizadas a
partir de fotografias de Victor Frond, publicado em
1861.1 O Brasil Pitoresco foi a primeira obra de viajantes
editada na América Latina com ilustrações obtidas a
partir de fotografias.2 Victor Frond foi pioneiro também
ao realizar o registro fotográfico da produção
agrícola nacional e do trabalho dos afro-descendentes
nas lavouras fluminenses.3
No ensaio intitulado “O século XIX”, Alexandre
Eulálio comentou a importância, em relação às
artes visuais, do surgimento das técnicas inéditas de
reprodução mecânica da imagem, de rápida fatura: o
caso da litografia e da fotografia, em especial. Ambas
colocaram em discussão algumas funções da pintura,
vista de um ponto de vista utilitário, como tradicional
meio de registro e fixação de tipos humanos e
ambientes sociais. O autor afirma ainda: “... a pintura
sofreria o impacto de ambas invenções, embora
também (nem poderia ser diferente) por seu lado influenciasse
atitudes, procedimentos, partidos do lápis
litográfico e da objetiva do artista-fotógrafo”.4 No que
concerne à associação entre fotografia e litogravura,
Eulálio destaca o álbum Brasil Pitoresco, com texto de
Charles Ribeyrolles e ilustrado com litografias realizadas
a partir de fotografias de Victor Frond, como
um dos “mais altos momentos da nossa iconografia
oitocentista”.
Frond retomou em suas fotografias vistas consagradas
do Rio de Janeiro, representadas por viajantes
em pinturas, desenhos e aquarelas, como os Arcos da
Lapa e o Outeiro da Glória. Nas obras dos viajantes
eram apresentadas, em sua maior parte, paisagens um
tanto idealizadas. A fotografia permitiu o registro da
paisagem local em sua especificidade, destacando a
luminosidade diversa e a variedade das espécies botânicas.
Assim, a produção de Victor Frond e de outros
fotógrafos contribuiu para a abordagem mais realista
da pintura de paisagem no país, como ocorre na produção
de Agostinho José da Motta, que pintou temas
e vistas brasileiras isentas de exotismo. Em obras do
artista como Vista dos Arcos da Lapa (s.d., col. Brasiliana)
podemos notar um novo olhar em relação à
representação da natureza e da paisagem nacional.
Devemos observar que o álbum Brasil Pitoresco
inseriu-se em um conjunto mais amplo de coletâneas
de imagens realizadas no Oitocentos, com o apoio do
imperador, relacionadas à redescoberta iconográfica
do país. A partir da década de 1860, foram lançadas
no Brasil várias publicações marcadas pela temática
nacional, seguindo a linha dos estudos históricos
(História do Brasil, R. Southey, 1862, por exemplo),
a dos romances literários (obras de José de Alencar,
entre outros) e a dos álbuns ilustrados. No campo
da pintura histórica podemos destacar o quadro de
Victor Meirelles A primeira missa do Brasil (1861, Museu
Nacional de Belas Artes).
Os autores do Brasil Pitoresco tiveram uma trajetória
associada às lutas pela liberdade política na
França. Charles Ribeyrolles (1811-1860) foi redator
do jornal l’Homme, porta-voz dos grupos republicanos
exilados na Inglaterra devido aos movimentos políticos
de 1848 e ao golpe de Estado de Louis Napoleão,
em 1851.
Victor Frond, originário de uma família de pequenos
proprietários do sul da França, tornou-se um
dedicado militante republicano. Trabalhava no Corpo
de Bombeiros de Paris quando rebelou-se durante o
golpe de 1851; posteriormente foi perseguido e levado
à prisão na Algéria. Após uma série de eventos conseguiu
fugir e exilar-se na Inglaterra, onde manteve
contato, entre outros, com Charles Ribeyrolles e com
o escritor Victor Hugo. Frond tornou-se um dos personagens
do livro de Hugo intitulado Histoire d’un crime
(1854). Envolvido em atividades ligadas à militância
política, Frond passou a viver em Lisboa e, para prover
seu sustento, assumiu a profissão daqueles “que
nada tinham” – tornou-se fotógrafo.5 Pouco sabemos
sobre seu período em Portugal, mas provavelmente
estudou fotografia com Alfred Fillon, também francês
e companheiro de fuga das prisões na Algéria. Fillon
tornou-se bastante conhecido em sua profissão, como
fotógrafo da Casa Real Portuguesa.6 Alguns meses
depois, ao chegar ao Brasil, Frond montou um atelier
no Rio de Janeiro, recebendo o reconhecimento
imediato da Casa Imperial. Ao conceber o projeto
do livro-álbum anunciado nos jornais da época e que
contava com o apoio do imperador, Frond chamou
Ribeyrolles para redigir o texto e cuidou da documentação
fotográfica.
Brasil Pitoresco de Ribeyrolles e Frond
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Na viagem pelas terras brasileiras, que ocorreu
em 1858, os autores procuraram documentar o território,
reunindo imagens, descrições dos locais visitados
e análise das relações sociais. O livro tornou-se
mais conhecido pelas ilustrações do que pelo texto de
Ribeyrolles. O texto foi publicado em 1859, em uma
edição apressada, traduzida de maneira precária e impressa
em um papel de má qualidade. Entretanto, essa
publicação teve um caráter oficial por ser publicada
pela Typographia Nacional e apresentou uma grande
inovação do ponto de vista editorial – o texto foi apresentado
em duas colunas, em francês e em português,
visando abranger um público mais amplo.
As imagens, vindas da França, foram distribuídas
em pequenas séries, durante os meses de agosto de
1860 a novembro de 1861. As fotografias, reproduzidas
em litogravuras, tiveram ampla repercussão, ganhando
autonomia em relação ao livro.7
Nessa publicação podem ser estabelecidas algumas
séries litográficas que destacam a capital do
Império e o trabalho escravo. Além destes núcleos
temáticos centrais, predominam entre as ilustrações do
álbum as pranchas sobre a natureza (como as cascatas
e a floresta), sobre as cidades e fazendas do interior
fluminense e sobre a cidade de Salvador, Bahia.8
A abordagem dos autores em relação ao Brasil
é bastante diferente daquela ligada ao debate europeu
sobre a utilização da fotografia em expedições
científicas ou nas viagens associadas ao “orientalismo
romântico”.9 Como enfatiza Lygia Segala :
À diferença dos inúmeros álbuns europeus ilustrados,
sobre países ou regiões, que trazem junto das
paisagens, invariavelmente, a galeria dos notáveis do
lugar, o de Frond mostra, além das vistas, escravos
negros, aliás, a mais longa série temática do seu
trabalho. Essa escolha, em princípio desconcertante,
é então possível, em primeiro lugar, porque essas
imagens se afinam com as cenas de gênero, com o
gosto pelo exotismo, em voga nas séries fotográficas
européias (álbuns, vistas estereoscópicas) consumidas
pelas elites. Em segundo, porque já encontram,
enquanto registro de costumes e documentos de
trabalho, algum reconhecimento no ainda tímido
discurso nacional abolicionista que se desenha com
mais nitidez depois da lei de extinção do tráfico
negreiro de 1850. Com esse enfoque, o fotógrafo
projeta para primeiro plano, em contraponto aos
retratos da família imperial que abrem em uma
dedicatória iconográfica o álbum, o problema da
representação do “povo brasileiro”.10
É importante notar que, nessa publicação, os
autores evitaram a abordagem de aspectos pitorescos
do Brasil, fugindo da descrição e da representação
de costumes exóticos da população e da abordagem
sentimental da paisagem. Nas ilustrações de Frond
destacam-se vistas do Rio de Janeiro que enfatizam,
além da beleza natural, uma certa racionalidade urbana,
priorizando espaços públicos como o aqueduto
e o hospital. Muitas ilustrações do livro apresentam o
trabalho dos afro-descendentes nas fazendas do interior
fluminense. O fotógrafo buscou, entretanto, certa
neutralidade ao registrar as atividades dos escravos. O
discurso abolicionista dos autores é sutil – a obra tem
o apoio do imperador e a documentação fotográfica
pressupõe a colaboração dos proprietários das fazendas
e o olhar atento do feitor. Frond também teria
realizado na mesma época fotografias que serviriam
para uma campanha de incentivo à imigração de colonos
para o Espírito Santo.11
As imagens do Brasil Pitoresco foram muito divulgadas
na época de sua publicação. Posteriormente as
ilustrações do álbum foram apresentadas na Primeira
Exposição de História do Brasil, realizada em 1881,
na Biblioteca Nacional. Nessa mostra o texto do livro
foi apresentado de forma fragmentada, nas classes I
– Geografia do Brasil e XII – História Econômica. As
imagens foram expostas como vistas pitorescas (classe
XIX), como tema botânico (classe XX), retratos da
família imperial (classe XIX) e, principalmente, como
usos (classe XVII, parte 2), série na qual estavam inseridas
as imagens sobre a atividade agrícola nas fazendas
fluminenses e sobre o trabalho escravo.12
Em relação ao cenário artístico no período,
devemos observar que os fotógrafos, ao registrarem
trabalhadores urbanos e rurais, criaram um repertório
de imagens que não estava presente na pintura no
Brasil, naquele momento. As academias de pintura,
até o início do século XIX, seguindo uma hierarquia
dos gêneros consolidada na Academia Francesa no
século XVII, consideravam a pintura de costumes e de
cenas cotidianas como um gênero menor, ao lado da
paisagem e da natureza-morta. Esse panorama começa
a mudar apenas no século XIX. Na França, desde
Maria Antonia Couto da Silva
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1830, a pintura de história passa a ser substituída pela
pintura de gênero histórico, que representava temas
patrióticos e nacionalistas retirados de episódios da
história passada e contemporânea. Posteriormente, no
Salão de 1850, foram apresentados três quadros de
Gustave Courbet, artista que mais tarde seria considerado
o “pai” do realismo na pintura: Os britadores
de pedras (1849, Dresden, Gemäldgalerie, destruído em
1945), Funeral em Ornans (1849-1850, Musée d’Orsay,
Paris) e Camponeses de Flagey retornando da feira (1850,
original desaparecido; cópia no Musée des Beaux-Arts
de Besançon). O pintor empregou o grande formato,
dedicado até então apenas à pintura de história, para
representar a vida de indivíduos do povo, trabalhadores
e camponeses. Assim como Courbet, vários artistas
passaram a representar temas semelhantes em suas
obras. A pintura realista elevava a pintura de “cenas
de gênero” ao status das antigas pinturas de história.13
No contexto europeu essas imagens não eram consideradas
pitorescas, mas se relacionavam às revoluções
sociais que exigiam mudanças nas relações de trabalho,
que marcaram o século XIX, como a de 1848.14
Na Itália, representações de trabalhadores
ocorreram na pintura, desde a década de 1860, como
na obra O quebra-pedras na Toscana, de Francesco Saverio
Altamura, de 1861 (Nápoles, Museo Nazionale
di Capodimonte). Filippo Palizzi e muitos pintores
macchiaioli passam a representar camponeses com uma
visão dignificante, e em uma escala reservada anteriormente
à pintura de história. Essas obras relacionamse
à necessidade da representação e da identidade do
povo no país recém-unificado.15
Voltando ao contexto brasileiro, gostaríamos
de destacar que os autores do álbum Brasil Pitoresco,
Ribeyrolles e Frond, mantiveram contato com o meio
artístico e intelectual francês, no fim da década de
1840. Lygia Segala destaca a proximidade entre Courbet
e Victor Frond, que foi modelo para um quadro
inacabado do pintor (A partida dos bombeiros para atender
a um incêndio, 1850), pertencente ao Musée du Petit
Palais, Paris.16
No cenário artístico brasileiro percebemos, por
meio dos escritos de Araújo Porto-Alegre, de 1855, que
a Academia estava dividida entre os cânones tradicionais
do ensino de belas-artes e as tendências realista
e naturalista, que ganhavam cada vez mais adeptos.17
Desde a década de 1880 as pinturas de paisagem e
também as de gênero passam a ter maior destaque,
com a atuação dos pintores ligados ao Grupo Grimm
e também com a presença de artistas recém-chegados
de estágios europeus, como Almeida Júnior, Rodolfo
Bernardelli e Belmiro de Almeida. O crítico carioca
Félix Ferreira comenta no livro Belas artes: estudos e
apreciações, de 1885, o gosto e a crescente valorização
da pintura de gênero e da paisagem:
... ao passo que a pintura histórica de batalhas vai decaindo
do gosto do público, os quadros de gênero e
os de paisagem vão subindo de apreço. A paisagem,
os usos e costumes nacionais, são minas inexploradas,
que os nossos artistas estão deixando em criminoso
abandono, para esgotarem a inspiração nas
grandes telas históricas, que não compensam nem
moral nem monetariamente tantos e tão aturados
trabalhos para conseguir um desses quadros ...18
Como observa Luciano Migliaccio, no Brasil,
também após a década de 1880, o repertório de imagens
do Brasil Pitoresco e de outros álbuns fotográficos
tornou-se fonte de inspiração e foi retomado por artistas
que praticavam a nascente pintura de gênero,
buscando representar cenas do cotidiano nacional.19
A evocação de fotografias de Frond pode ser
observada, por exemplo, no quadro Engenho de Mandioca
(Museu Nacional de Belas Artes, 1892), de Modesto
Brocos. A importância das imagens do álbum
pode ser compreendida também em obras do pintor
Almeida Júnior, como Apertando o lombilho, Cozinha
caipira (ambas da Pinacoteca do Estado de São Paulo,
de 1895) e também em Caipira picando fumo (Pinacoteca
do Estado de São Paulo, 1893), das quais trataremos
a seguir.
A evocação das litogravuras do álbum Brasil Pitoresco
em algumas pinturas de Almeida Júnior
Dentro do conjunto de ilustrações do álbum
Brasil Pitoresco, iremos analisar neste artigo principalmente
algumas representações de trabalho rural. Podemos
observar que Frond fotografou grupos de pessoas
em espaço aberto, em momentos em que o trabalho
ainda não se iniciara, como em Partida para a roça, na
qual percebemos o grupo organizado em fila, com os
instrumentos de trabalho; muitos evitam o olhar do
Brasil Pitoresco de Ribeyrolles e Frond
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fotógrafo. Esta litogravura é evocada na década de
1880 em algumas fotografias de Marc Ferrez, como
Partida para a colheita do café (ca. 1885, Instituto Moreira
Salles), na qual vemos uma fila de trabalhadores diante
de uma casa da fazenda. Vários personagens olham
para o fotógrafo e seguram grandes peneiras e outros
utensílios de trabalho. Ferrez retoma nessa fotografia a
ênfase na geometria presente nas ilustrações do álbum
de Frond, mostrando também o aspecto digno e o
anonimato desses trabalhadores.
Já em imagens como Produção de farinha de mandioca,
Escravos pilando grãos de café, Rendeiras e Descascando
mandioca são apresentados pequenos grupos de trabalhadores
em ação, dispostos diante de uma arquitetura
[Figs. 1 a 4]. Destaca-se nas obras mencionadas
acima o rigor da estrutura geométrica à frente da qual
se dispõem os personagens. Em Escravos pilando grãos
de café podemos perceber o jogo de verticais presente
nas vigas da soleira da porta, em oposição às linhas
horizontais da arquitrave da construção e da viga superior
da porta. A geometria está também presente nos
cestos e volumes dispostos em diagonal. As diagonais
são enfatizadas, em oposição ao jogo de ortogonais,
nos dois pilões e na escada colocada à direita do observador.
Nessa imagem Frond destaca uma série de
utensílios de trabalho, quase não há áreas vazias na
cena, o que parece enfatizar a dimensão de silêncio e
certa melancolia dos retratados.
A construção da imagem estruturada com rigor
geométrico por parte do fotógrafo é retomada em várias
imagens, destacando de forma incisiva a presença
dos personagens, como pode ser observado em Descascando
mandioca e em Produção de farinha de mandioca, na qual
além da sucessão de retângulos e quadrados expressos
nas janelas da casa destacam-se as formas geométricas
da mesa e dos objetos de trabalho e da grande roda à
direita do observador. Em Rendeiras é notável o jogo
de retângulos no plano de fundo, expressos nas vigas
da soleira da porta. Há também todo o movimento
sugerido no jogo de pranchas nas quais são feitas as
rendas e no círculo formado pelas mulheres.
Devemos destacar que, nessas imagens, estão
envolvidas ainda questões relacionadas à técnica da
época em que, devido à precariedade da fotografia,
os gravadores são obrigados a “traduzir” as imagens
fotográficas para os códigos da litografia.
Os procedimentos formais e a temática de algumas
litogravuras do álbum permitem uma aproximação
com a produção de Almeida Júnior. Em Cozinha
caipira [Fig. 5] e Apertando o lombilho [Fig. 6] a representação
do ambiente rural, das atividades cotidianas e
de aspectos peculiares de objetos de trabalho podem
ter sido inspiradas em litografias do álbum de Frond.
Por outro lado, em uma obra como Caipira picando fumo
[Fig. 7] a referência às litografias é mais direta, e diz
respeito primeiramente a aspectos formais.
O historiador da arte Jorge Coli, em seu ensaio
intitulado Almeida Júnior: o caipira e a violência, destaca,
em relação à pintura de Almeida Júnior, o sentido
firme e exato da composição: “A geometria é sua
grande aliada. Sempre que pode, combina e afirma
ortogonais exatas”.20 Para o autor no quadro Caipira
picando fumo (estudo a óleo, 1893, Pinacoteca do Estado,
São Paulo), o personagem disposto diante de um jogo
de faixas horizontais e verticais substitui, visualmente,
o ponto central de equilíbrio e impõe-se “não como
imagem de impacto, mas como imagem de permanência”.
21 Como enfatiza Coli, na obra de Almeida Júnior
“as relações geométricas nunca se impõem sobre o
sentido geral da imagem. Elas suportam o visível, sustentam
aquilo que é dado a ver, mas retiram-se por trás
desse visível. São elas que dão força aos personagens
afirmados, conferindo-lhes uma evidência icônica”.
Assim, nesses quadros “os personagens realçam-se,
articulados com o fundo. São integrados, mas também
valorizados pelos efeitos de composição. São eles, e
não o meio, o tema essencial”.22
Críticos como Gonzaga Duque e Monteiro Lobato,
entre outros, assinalaram outra característica fundamental
nas obras de Almeida Júnior: sua definitiva
simplicidade. O pintor evita a eloqüência, como também
o pitoresco e o narrativo. Não busca em seus quadros
nenhuma afetação sentimental ou heróica, e não dispõe
seus personagens em grupos, em interações sociais.
Como observa Coli, em obras como Picando o
fumo o artista articula fundo e figura, “ligando-os ambos
para melhor projetar o personagem como imagem
forte, mas isolada socialmente. Esse poderoso isolamento
propulsou as imagens dos caipiras de Almeida
Júnior dentro da cultura brasileira”.23
A admiração de Almeida Júnior pela fotografia
tem sido apontada em estudos recentes e pode ser
Maria Antonia Couto da Silva
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percebida nas escolhas de enquadramento de algumas
pinturas que remetem a procedimentos e ângulos
escolhidos pelo fotógrafo. Em relação ao álbum de
Frond e Ribeyrolles o pintor evocou, como vimos,
além do ambiente rural, também aspectos formais
de algumas imagens, como a relação entre os personagens
e o jogo de linhas paralelas horizontais e
verticais. Nas fotografias litografadas de Frond há
também certo distanciamento, certa neutralidade do
fotógrafo que evita o pitoresco e retrata personagens
que trabalham em grupo, mas muitas vezes se apresentam
absortos em seus pensamentos – o que talvez
seja resultado também do tempo de exposição solicitado
pela técnica fotográfica.
As litografias do álbum foram muito divulgadas
em sua época e posteriormente, em versões muitas
vezes coloridas por pintores diversos. Podemos notar
como Frond criou imagens de permanência, em que
se percebe a marca pessoal do fotógrafo. As ilustrações
do álbum foram importantes para a criação de pintores
de paisagem e também de costumes, pelo menos até
o final do século.
Em relação a Almeida Júnior, como estudos
de Coli o demonstram, o artista retoma em seus quadros
imagens do repertório da história da arte, de
pintores franceses contemporâneos, como Courbet.
Podemos observar também como utilizou fotografias,
combinando especificamente as imagens do álbum
Brasil Pitoresco, e conferindo a seus personagens uma
força icônica. Na litogravura Senzalas, do álbum Brasil
Pitoresco, podemos notar o escravo situado à esquerda,
sentado à soleira da porta, de pernas cruzadas, diante
da casa [ Fig. 8]. A figura tem diante de si uma área de
terra, vazia. Em Caipira picando fumo, além das questões
mencionadas em relação à geometria, presentes em
algumas litografias realizadas a partir de fotografias de
Frond, Almeida Júnior evoca ainda um personagem
como este, substituindo a figura do negro diante da
senzala pela do caipira sentado diante da entrada da
habitação humilde. Nesse quadro, em um procedimento
também fotográfico, o pintor aproxima o personagem
aos olhos do observador. As ilustrações do
Brasil Pitoresco apresentam também, freqüentemente,
personagens próximos a portas ou janelas, que expressam,
mais uma vez, um jogo de ortogonais, procedimento
adotado pelo pintor em várias obras.
A retomada desse conjunto de imagens por
pintores dos anos 1880 revela o quanto a produção
de Frond foi apreciada e divulgada, e também o papel
fundamental da fotografia na arte do período. No
âmbito da pintura européia, grande foi o diálogo entre
pintores e fotógrafos, como demonstram os estudos
de Aaron Scharf e aqueles reunidos por Dorothy Kosinski,
entre outros.24
No Brasil, na bibliografia publicada sobre história
da arte e da fotografia no século XIX, são raras
as menções ao trabalho muitas vezes conjunto de
pintores e fotógrafos e ao diálogo entre ambos.25 A
análise destas relações entre pintura e fotografia pode
permitir uma nova compreensão da arte do período,
não apenas em relação à pintura de gênero, mas também
de paisagem.
No campo da literatura, em relação ao gênero
do retrato, o autor José de Alencar narra, em uma
passagem do romance Senhora, de 1875, o quanto era
comum a utilização da fotografia pelos pintores:
... Aí foi Seixas encontrar dois grandes quadros, colocados
nos respectivos cavaletes. Na tela viam-se
esboços de dois retratos, o de Aurélia e o seu, que
um pintor notável, êmulo de Victor Meireles e de
Pedro Américo, havia delineado à vista de alguma
fotografia, para retocá-lo em face dos modelos.
Ao olhar interrogador do marido, Aurélia respondeu:
– É um ornato indispensável à sala ...26
Como destaca Tadeu Chiarelli, por esta descrição
“o fato de se usar a fotografia como um instrumento
facilitador da vida, tanto do retratista quanto do
retratado, era algo que parecia corriqueiro no contexto
da elite brasileira de meados do século XIX”. Esta
prática ainda não foi objeto de análises mais aprofundadas,
tanto por parte dos historiadores da arte
quanto dos historiadores da fotografia. Entretanto,
“a observação cuidadosa de certas pinturas apresenta
evidências de que, intermediando a relação artistapintura,
estava a fotografia”.27
Brasil Pitoresco de Ribeyrolles e Frond
RHAA 8 57
1 As questões tratadas neste artigo inserem-se em um trabalho
mais amplo de pesquisa para tese de doutorado (Programa de
Pós-Graduação em História da Arte do IFCH/UNICAMP),
sob orientação da Prof. Dra. Claudia Valladão de Mattos. O
foco central da pesquisa é a análise do álbum Brasil Pitoresco
e sua importância em relação às artes visuais no período. A
autora é bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo – FAPESP.
2 FROND, Victor. Brazil pittoresco [Texto de Charles Ribeyrolles.]
Paris: Lemercier Imprimeur-Lithographe, 1861.
3 Cf. SEGALA, Lygia. Ensaio das luzes sobre um Brasil Pitoresco: o
projeto fotográfico de Victor Frond. 1998. 337 f. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 218.
4 EULÁLIO, Alexandre. “O século XIX”. In Tradição e ruptura:
síntese de arte e cultura brasileira. São Paulo: Fundação Bienal
de São Paulo, 1984, p. 117.
5 “Je résolus de ... planter ma tente à Lisbonne et pour ne devoir
mes moyens d’existence qu’a mon travail, je pris le métier de
ceux qui n’nen ont pas: je me fis photographe!”. Archives
Nationales de France, série F 15, 4083, dossier Frond. Apud
SEGALA 1998, v.1, p. 105.
6 Cf. SEGALA, Lygia. Victor Frond et le projet photographique du Brésil
Pittoresque. Colloque International “Voyageurs et images du
Brésil”. MSH- Paris, 2003, p. 5. Disponível em : http://www.
chairesergiobuarque.msh-paris.fr/pdf-voyageurs/segala.pdf.
Acesso 20/04/2007.
7 Cf. SEGALA, 1998, p. 287-8.
8 Segundo alguns estudiosos a série de litografias sobre Salvador
teria sido realizada a partir de fotografias de Benjamin
Mullock, que esteve no local entre 1858-1861 e teriam sido
adquiridas por Frond, inclusive com a cessão de direitos do
autor. Na verdade algumas ilustrações do álbum que mostram
a cidade de Salvador são muito semelhantes a fotografias de
Mullock.
9 Desde o fim dos anos 1840 são lançados na Europa vários
álbuns ilustrados a partir de fotografias do Egito, Palestina,
Síria, como Voyages en Orient, de Louis de Clerq, 1859-1860.
Cf. SEGALA, 2003.
10SEGALA, 1998, p. 247.
11 Informações constam do relato de VON TSCHUDI, Johann
Jakob. Viagem à Província do Espírito Santo: imigração e colonização
suíça – 1860. Fotografias: Victor Frond. Vitória: Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo, 2004.
12 Cf. SEGALA, Op. cit., p. 294-5.
13 Cf. CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza: a crítica de
Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas,
2007, p. 214-23.
14 NOCHLIN, Linda. Realism. Harmondsworth: Penguin, 1971,
p. 111-3.
15 Cf. OLSON, Roberta J. M. Ottocento: Romanticism and Revolution
in 19th-Century Italian Painting. New York: The
American Federation of Arts, 1992, p. 15.
16 SEGALA, 1998, p. 66.
17 Cf. GALVÃO, A. “Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência
na Academia Imperial das Belas Artes e no meio artístico
do Rio de Janeiro”. Revista SPHAN, n. 14, 1959, p. 50-61.
18 FERREIRA, Felix. Belas artes: estudos e apreciações. [1885].
Rio de Janeiro: Arte Data, 1998, p. 106-7.
19 Cf. Luciano Migliaccio, em conversa ocorrida em 2005.
20 COLI, Jorge. “Almeida Júnior: o caipira e a violência” In Como
estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: SENAC, 2005,
p. 101.
21 COLI, Op. cit., p. 104.
22 Ibidem, p. 105.
23 Ibidem, p. 113.
24 SCHARF, Aaron. Art and photography. London: Viking/Penguin,
1968; KOSINSKI, Dorothy (ed.) El artista y la camara. de
Degas a Picasso. Bilbao: Gugenheim Bilbao, 2000.
25 Um estudo recente sobre o período é o de OLIVEIRA, Vladimir
José Machado de. Do esboço pictórico à rotunda dos dioramas:
a fotografia na pintura das batalhas de Pedro Américo. Tese
(Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
– FFLCH-USP. São Paulo FFLCH-USP, 2002.
26 ALENCAR, José de. Senhora. [1875]. São Paulo: Ática, 1971,
p. 171.
27 CHIARELLI, Tadeu. “História da Arte/História da fotografia
no Brasil – século XIX: algumas considerações”. São Paulo,
Revista Ars, v. 6, p. 78, 2005, p. 85-6.

Brasil Pitoresco de Ribeyrolles e Frond
RHAA 8 59
1
2
1 Victor Frond. Produção de
farinha e mandioca, 1858-1861
2 Victor Frond. Escravos
pilando grãos de café, 1858-1861
Maria Antonia Couto da Silva
60 RHAA 8
4
3
3 Victor Frond.
Rendeiras, 1858-1861
4 Victor Frond.
Descascando mandioca,
1858-1861
Brasil Pitoresco de Ribeyrolles e Frond
RHAA 8 61
6
5
5 Almeida Júnior.
Cozinha caipira, 1895
6 Almeida Júnior.
Apertando o lombilho, 1895
Maria Antonia Couto da Silva
62 RHAA 8
8
7
7 Almeida Júnior.
Caipira picando fumo, 1893
8 Victor Frond.
Senzalas, 1858-1861


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