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ISSN - 1980-9387
REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE GEOGRAFIA
VOLUME: 1 - NÚMERO: 1 ANO 2006
A visita de Élisée Réclus à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro [i]
Luciene P. Carris Cardoso - (Bibliografia)
Resumo: O presente artigo analisa a visita do sábio geógrafo francês Élisée Réclus à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, atual Sociedade Brasileira de Geografia, em 1893. De passagem pelo Brasil, Réclus estava pesquisando para o 19o. volume da Nouvellle Géographie Universelle patrocinada pela Editora Hachette. Seguindo o ritual consagrado das associações oitocentistas, o ilustre viajante proferiu uma palestra na sede da associação evidenciando o trato de questões cientificas e de impressões da viagem sobre a natureza brasileira.
Palavras-chaves: sociedades geográficas; viajantes; território brasileiro
Abstract: The present article analyses the visit of Elisée Réclus, french wise geographer, to the former Rio de Janeiro Geographical Society, current Brazilian Geographical Society, in 1893. In his brazilian tour, Réclus was doing research for the 19th volume of the “Nouvelle Géographie Universelle”, sponsored by the publishing company Editora Hachette. Following the consecrated rituals of the associations of the 18th century, this memorable voyager pronounced a lecture in the headquarters of the association evidencing scientific questions and his impressions about the brazilian nature.
Key words: geographical societies; travellers; brazilian territory
Em 18 de julho de 1893, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro promoveu uma sessão extraordinária para recepcionar Jean-Jacques Élisée Réclus. O conhecido geógrafo francês estava de passagem pela capital brasileira, rumo ao extremo norte do país. Viera colher subsídios para redigir o 19º volume da Nouvelle Géographie Universelle – que seria dedicado ao estudo do Brasil e das repúblicas vizinhas do rio da Prata.
Fundada em 25 de fevereiro de 1883, durante o governo do imperador D. Pedro II, por iniciativa do senador Manuel Francisco Correia, a Sociedade de Geografia se inspirava no modelo da entidade congênere de Paris, existente desde 1821[ii]. Seus quadros sociais eram formados por advogados, médicos, engenheiros e militares. Esses indivíduos defendiam um projeto pragmático de ciência[iii]. Pretendiam utilizar o conhecimento geográfico para responder às demandas da jovem Nação brasileira, constituída em 1822 nos antigos domínios portugueses na América, e que mal conhecia os limites físicos da sua soberania[iv].
A preocupação de estabelecer uma geografia nacional, contudo, não dispensava a cooperação e nem os conselhos de estudiosos estrangeiros, sempre acolhidos com grande entusiasmo pela corporação. Basta dizer que diversos cientistas, exploradores e viajantes vindos do exterior participaram das atividades da Sociedade, tais como, dentre outros, o naturalista alemão Carl von den Steinen, o professor de etnologia da Universidade de Gênova, Giovanni Rossi e o explorador e oceanógrafo francês Jean Charcot. A par disso, o intercâmbio científico também se dava por meio da permuta da Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro com periódicos especializados de associações internacionais afins.[v]
Élisée Réclus foi recebido na Sociedade de acordo o ritual de consagração das academias oitocentistas: o homenageado tomou assento à direita do presidente da associação, José Lustosa da Cunha Paranaguá, Marquês de Paranaguá. Aberta a sessão, Paranaguá dirigiu-lhe uma breve saudação, sublinhando sua contribuição para o aprimoramento dos estudos geográficos. Referiu-se, sobretudo, à Nouvelle Géographie Universelle, obra de caráter enciclopédico, bastante apreciada no Brasil, e que vinha sendo publicada desde 1876. Salientou a importância do trabalho de campo que Réclus pretendia desenvolver durante ao longo da sua permanência no país: (...) o seu espírito penetrante e o seu gênio investigador, a par de uma imaginação brilhante, saberá devassar os segredos e reproduzir, ao vivo, as cenas esplêndidas da natureza desta parte da América, para patenteá-la ao mundo.[vi] Concluiu que a jornada deveria concorrer para o alargamento dos horizontes geográficos, além de fortalecer as relações culturais franco-brasileiras. Como se vê, Paranaguá demonstrava partilhar de uma idéia muito cara a Réclus, a de que universalidade da ciência superava as diversidades naturais e culturais entre os povos.
A Sociedade de Geografia conferiu ao ilustre visitante o diploma de sócio honorário, título concedido aos que se distinguiam pelos conhecimentos teóricos e práticos em geografia e ciências conexas. Ofertou-lhe, ainda, a coleção da Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, e exemplares de diversos estudos ali desenvolvidos, como o Relatório sobre o Meteorito de Bendegó.
Élisée Réclus, por sua vez, agradeceu a acolhida da Sociedade e doou uma coleção dos dezoito volumes já lançados da Nouvelle Geographie Universelle para a biblioteca da corporação. Recém premiado com a medalha de ouro da Sociedade de Geografia de Paris (1892), ele realizava sua última longa jornada de estudos ao continente americano, patrocinado pela Editora Hachette, responsável por aquela publicação.
Embora perseguido na França por sua militância anarquista, o geógrafo possuía renome internacional e desfrutava de sólida reputação no mercado editorial. É sabido que após ser detido por atividades políticas em Paris, conseguiu ser liberado da prisão e exilar-se na Bélgica, graças às inúmeras petições encaminhadas ao governo francês por sociedades científicas estrangeiras.
Por sinal, ele chegara ao Brasil num momento de grande turbulência política, em pleno desenrolar da Revolta da Armada, uma das diversas insurreições que irromperam no país, durante o processo de consolidação do regime republicano, instaurado em 1889. Não por acaso, os representantes da Editora Hachette o advertiram para não emitir pronunciamentos de natureza política, de modo a evitar possíveis conflitos com as autoridades brasileiras.
Aliás, sintomaticamente, apesar da crescente difusão do ideário anarquista no país, introduzido nas últimas décadas do século XIX, por grupos de imigrados europeus, sobretudo no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, não há notícias de contatos formais de Réclus com esses grupos. No Rio de Janeiro, até onde se conhece, ele cumpriu um programa eminentemente acadêmico, organizado pela Editora Hachette[vii]. Suas intervenções se caracterizaram pelo trato de questões cientificas e de impressões da viagem que realizava. Há, todavia, pistas de que o geógrafo tomou conhecimento da experiência realizada no estado do Paraná[viii], onde se estabeleceu a primeira colônia anarquista do continente americano, a Colônia Cecília (Paraná, 1890-1895).
Élisée Réclus proferiu uma rápida palestra na Sociedade de Geografia, uma espécie de relato preliminar das suas observações de campo. Privilegiou aspectos da cidade do Rio de Janeiro e do estado de São Paulo, que como veremos mais adiante ele aprofundaria no livro publicado. De um modo geral, revelou-se encantado com a paisagem natural que circundava a então capital da República:
(...) os picos altos alcantilados da Tijuca e da Gávea e as montanhas a pique, que margeiam a baía, fazem sensivelmente perguntar como se pôde ter aí construído uma cidade: entretanto, ela está ali, estendendo como uma “pieuvre” seus múltiplos braços pelos vales, e rivalizando em progresso com muitas das mais importantes cidades européias. (...) sua temperatura amena e a beleza de suas paisagens fazem-na não ser excedida pelas mais formosas capitais[ix]. [x]
Demonstrou até certa surpresa, por haver se deparado com o sistema viário do Rio de Janeiro, (...) tão desenvolvido como em nenhuma outra cidade do mundo. Aliás, na Nouvelle géographie universelle ele retornaria ao tema, acrescentando:
(...) o aspecto do Rio de Janeiro é deslumbrante. Quando o viajante se aproxima da baía depois de ter dobrado o Cabo Frio, vê uma serie de ilhas de granito, quase todas de forma arredonda ou oval, cortadas a pique, cobertas de uma relva curta com alguns grupos de coqueiros nas quebradas mais prolongadas (...)[xi].
Da passagem pelo interior de São Paulo, destacou a excursão realizada pelo rio Mogi-Guaçú, o que lhe permitiu descobrir em meio às matas virgens, imensas plantações de café, na época o mais importante produto da agricultura brasileira, que abastecia o mercado mundial. Observador perspicaz, não deixou de assinalar o problema da baixa densidade demográfica brasileira: os 16 milhões de habitantes se disseminavam por um território de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Calculava que para ter uma população compacta e densa, como a Alemanha ou a Bélgica, o Brasil deveria (...) registrar em suas estatísticas um milhar de milhão, proporção que lhe é bem cabida.
Defendeu a necessidade de “desfazer hábitos arraigados” em prol da “marcha para o futuro”, referindo-se, em particular, à resistência das pessoas que preferiam utilizar como meio de transporte “as gôndolas e as diligências”, ao invés das “rápidas locomotivas” que cortavam o continente europeu de um ponto a outro. Presumia, porém, que o Brasil, por ser um país jovem, não seria afetado aqueles velhos costumes, porque não possuía um passado retardatário e pode assentar suas tendas de trabalho no caminho do progresso e com vistas no porvir[xii].
Por outro lado, lembrou que o Brasil fora a última nação a extinguir o trabalho escravo no hemisfério ocidental, acrescentando que o fez por completo e de forma mais humanitária, ao contrário de outras partes do mundo, a exemplo dos Estados Unidos, onde a primitiva diferença das raças ainda perdurava. A comparação, por certo, devia-se às experiências que vivenciara em Nova Orleans, na década de 1850, como preceptor dos filhos de um fazendeiro local.
O geógrafo concluiu sua intervenção fazendo uma reflexão simpática e ao mesmo tempo crítica em relação aos seus anfitriões: (...) geralmente os brasileiros não têm consciência de sua força e de seu valor. Eles possuem elementos para um desenvolvimento muito mais rápido do que aquele que se nota nos mais adiantados países do velho mundo.[xiii]
O programa de recepção a Élisée Réclus na Sociedade de Geografia encerrou-se com uma conferência, preparada pelo engenheiro geógrafo Torquato Xavier Monteiro Tapajós, sobre o Vale do Amazonas[xiv]. Natural da região, o Dr Monteiro Tapajós traçou um panorama abrangente daquele vasto território, englobando aspectos geográficos, históricos e culturais, além de oferecer ao homenageado algumas indicações, que julgava essenciais para o êxito da missão que iria cumprir no extremo norte do Brasil.
Segundo Tapajós, em condições favoráveis, a excursão pelo rio Amazonas até porto de Manaus, capital do estado do Amazonas, deveria durar dezoito dias. Tratava-se de uma grande aventura, contudo assegurava que Réclus poderia dispor de conforto no navio. A jornada se tornaria mais incerta, ao tomar outras embarcações mais precárias para atingir locais remotos, como as nascentes dos rios tributários do Amazonas, pois (...) pouco se sabe, mesmo no Brasil, desta região que apenas tínhamos podido obter apontamentos incompletos (...)[xv]. Assim, recomendava prudência, o que não significava dizer que o lustrado viajante iria penetrar na antecâmara da morte[xvi].
Alertava, também, para as variações climáticas bruscas que às vezes ocorrem na região, lembrando a teoria do barão de Humboldt, de que (...) o fato de se achar uma região situada nas proximidades do equador geográfico não é suficiente por si só, para que se a tenha como foco concentrador de todos os calores equatoriais[xvii]. Porém, partidário da teoria da adaptação do homem ao meio, conjeturava que Réclus se ambientaria bem à região amazônica: o homem é cosmopolita, di-lo a ciência: vive em qualquer parte na superfície do globo, mesmo nos gelos polares, como os esquimós, ou nas ardências dos Saara, como os árabes que o infestam.[xviii] Apesar disso, sugeria-lhe que fosse (...) cauteloso (...) posto, que vindo de clima tão outro vai por algum tempo viver a vida do Amazonas; (...).[xix]
Apesar das advertências, tudo leva a crer que as informações passadas por Monteiro Tapajós devem ter aguçado ainda mais a curiosidade de Réclus, como se pode constatar nos capítulos relativos ao Brasil, que integram o 19º volume da Nouvelle Géographie Universelle, publicado na França em 1894. O estudo demonstra sólida pesquisa de gabinete[xx], aprofundado por um trabalho de campo minucioso. Tanto assim, que recebeu tradução para a língua portuguesa e anotações de Ramiz Galvão, editada em 1900, com o título Estados Unidos do Brasil: geographia, ethnographia, estatistica, por Élisée Réclus, acompanhada de comentários do Barão do Rio Branco, a respeito do território contestado ao Brasil pela França[xxi]. Neste artigo nos reportaremos à versão brasileira.
O Brasil na Nouvelle Géographie Universelle
A inserção do Brasil na Nouvelle Géographie Universelle principia como a descrição dos territórios situados no extremo norte do país. O fio condutor da análise é o próprio percurso descrito pelo rio Amazonas, que o autor considerou o mais caudaloso (...) da América do Sul e do mundo, recebendo diferentes denominações entre a nascente e a foz[xxii]. Elisée Réclus introduziu o estudo dos vários afluentes que nele deságuam para explicar o volume das suas cheias anuais, que comparou com as do rio Nilo, no Egito: (...) regular em seus movimentos como o Nilo, o rio Amazonas sobe e baixa alternadamente conforme as estações, por uma serie de fluxos e de refluxos em que os indígenas vêm uma espécie de maré que eles designam pelos nomes correspondentes: enchente e vazante.[xxiii] Dedicou grande atenção aos fenômenos que ocorrem durante as enchentes do Amazonas, a exemplo das pororocas, ondas que se formam na embocadura do rio quando suas águas se encontram com as do oceano Atlântico. Destacou a beleza e a violência desse choque e assinalou suas conseqüências tanto para o meio ambiente, quanto para as populações ribeirinhas:
Nas grandes águas as ilhas baixas desaparecem, a margem é inundada, as lagoas esparsas unem-se ao rio e ramificam-se em vastos mares inferiores: os animais procuram então refugio nas arvores e o índios das ribanceiras acampam em jangadas. Depois, quando o rio começa a baixar, a água voltando ao antigo leito alui as barrancas por muito tempo ensopadas, corroê-las e de repente massas de terra se desmoronam, por centenas e milhares de metros cúbicos, arrastando consigo arvores e animais. As próprias ilhas estão expostas a uma súbita destruição quando as filas de troncos que as guarneciam vem a ceder a violência da corrente, bastam algumas horas e até alguns minutos para que elas desapareçam, levadas pela ressaca: fundem-se rapidamente e os índios, que colhiam ovos de tartaruga ou secavam o produto de sua pesca, são obrigados a fugir precipitadamente nas suas canoas. (...)[xxiv]
A floresta nas margens dos cursos d’água causou-lhe forte impacto, tanto pelo seu aspecto cerrado quanto pelas dimensões espaciais. Para dar ao leitor uma idéia daquela pujança, o geógrafo cotejou-a com a extensão do território francês: (...) a mata só era interrompida pelo curso dos rios e por um ou outro sitio cultivado, ocupa um espaço avaliado em cinco milhões de quilômetros quadrados – extensão igual a doze vezes a superfície da França. (...).[xxv] Esclarecia, entretanto, que a região continuava desabitada e desconhecida do homem civilizado. Nas suas palavras, o colono ainda não se arriscou a seguir as pegadas dos indígenas e das feras.[xxvi] De acordo com suas observações, havia apenas um modo de devassá-la: seguir o caminho que a própria natureza oferecia, ou seja, o curso dos afluentes do Amazonas:
(...) os viajantes que sobem o Amazonas não percebem senão uma muralha compacta de árvores, entrelaçadas de cipós, cobertas de uma massa verdejante continua, erguendo em forma de estacada, de ambos os lados do rio, suas hastes contíguas retas como juntos (...) Dos barcos que vogam no meio da corrente não se pode distinguir forma alguma definida neste paredão de verdura, para que se faça idéia da imensa variedade das arvores e dos arbustos ricos da seiva perpetua de natureza tropical, e mister penetrar num dos igarapés tortuosos que se ramificam entre as ilhotas dos mil arquipélagos semeados no Amazonas. Então tudo se vê de perto. (...)[xxvii]
A flora amazonense, segundo Réclus, caracterizava-se pela variedade de árvores. Notou, porém, que (...) a mata assombra o viajante pela ausência de flores variegadas. Estranhou, em especial, a ausência de orquídeas: (...) para encontrá-las, é mister subir as encostas das montanhas no Equador e da Colômbia.[xxviii]
Mas ele não se limitou a descrever a paisagem natural. Preocupou-se em identificar os recursos da floresta cuja exploração lhe parecia viável, sem contudo degradá-la. No seu entender, o desenvolvimento da ciência poderia solucionar os problemas da sociedade e, por conseguinte, aperfeiçoar socialmente o homem e a crença inabalável no progresso[xxix]. Dentre outros tesouros naturais, destacou a possibilidade de comercializar (...) madeiras preciosas, borracha, gomas diversas, resinas e substancias canforadas, plantas medicinais, fibras e espécies tintoriais, tem-nos assinalados os botânicos aos milhares, e a industria aprende cada vez mais a conhecê-los e aproveitá-los[xxx].
Após devassar a Amazônia, Réclus examinou o território brasileiro de norte a sul, de acordo com a divisão das suas regiões naturais, o que na época (...) constituiu uma novidade quanto ao método de apresentar as sínteses geográficas[xxxi]. Não vem ao caso, no momento, fazer uma apreciação minuciosa dessas sínteses, por demais conhecidas. Entretanto, é importante assinalar que a abordagem de Réclus ultrapassa a enumeração dos fenômenos geográficos. Ele reuniu um conjunto de informações substantivas sobre a situação econômica, social e política do país. Alguns desses aspectos valem a pena ser destacados, pois revelam o apurado senso crítico do cientista francês.
Élisée Réclus condenou a estrutura fundiária do país e atribuiu a pobreza generalizada das populações rurais à existência de grandes latifúndios improdutivos. Fez, também, sérias restrições à supremacia da cultura do café nos terrenos férteis do centro-sul, apontando o perigo que a monocultura representava para a economia nacional, sujeita às oscilações constantes do preço do produto no mercado externo. Ademais, julgou impróprias as técnicas agrícolas utilizadas pelos cafeicultores, em especial a prática das queimadas, que provocava desgaste no solo. Discutiu a necessidade do governo incentivar as pequenas lavouras e se perguntava, (...) sem preconceito contra o regime da grande propriedade, se não há perigo em sacrificar todas as culturas a uma só ?(...). Concluía a censura com uma reflexão bastante sensata[xxxii]: (...) a população que aumenta rapidamente, ficaria exposta a uma penúria repentina se qualquer fenômeno econômico ou um desastre natural viesse a secar de súbito a fonte desta espantosa riqueza[xxxiii].
A colonização promovida pelo governo brasileiro nas terras do sul do país também foi alvo da pena do geógrafo. Criticou os agentes de imigração, que introduziram as primeiras levas de camponeses eslavos nos campos do Paraná, sem qualquer preparo para recebê-los. Porém, não parecia ver com bons olhos a predominância de colonos polacos naquele estado, pois anotou: (...) conservam sua língua, seus costumes, seu vestuário, suas igrejas e até uma gazeta. Quase todos agricultores, conquistaram monopólio da produção de cereais e dos legumes e começam até a recalcar para São Paulo os colonos de outra nacionalidade. Identificou, entretanto, muito surpreso, a existência de (...) alguns grupos resistentes de imigrantes não eslavos, notavelmente uma colônia de comunistas, quase todos italianos, que se fundou em La Cecília, perto de Palmeira[xxxiv].
De qualquer modo, Réclus considerou inadequada a divisão político-administrativa do território brasileiro, referindo-se à disparidade existente entre as áreas ocupadas pelos diversos estados. Opinava que o problema poderia ter sido sanado após a queda do Império, se o governo republicano tivesse criado novas unidades federativas de proporções mais harmônicas. A esse respeito, vale a pena rever suas apreciações sobre o regime político instaurado no Brasil em 1889: (...) A República brasileira foi proclamada, e, todavia, por estranha inconseqüência, o povo não foi consultado para saber quais deviam ser os grupos de constituintes da federação. Limitaram-se a mudar os nomes das circunscrições do império: de províncias passaram a estados (...)[xxxv]. Ponderava que a constituição brasileira (...) com haver imitado quase servilmente a dos Estados Unidos se mostrava inadequada às tradições, aos costumes e à herança da colonização portuguesa do país, e deduzia: (...) É assim que os poderes reais dados ao do presidente dos Estados Unidos e por imitação ao do Brasil, levaram logo o governo a prática da ditadura. Desde seu começo aliás, o poder nascido da revolução foi uma autocracia militar.[xxxvi]
No fundo, avaliava que a troca de regime político não havia alterado as estruturas vigentes. Apesar da adoção do sistema federalista, a República se caracterizava pela centralização administrativa, um legado do regime monárquico. Isto provocava uma luta contínua dos estados, em busca de maior autonomia. Por fim, questionou os órgãos públicos por permitirem que empresas estrangeiras monopolizassem a exploração de ferrovias brasileiras.
Como se poder perceber, se durante a visita ao Brasil o cientista cumpriu a ordem da Editora Hachette de não emitir pronunciamentos políticos, nada escapou da sua aguçada caderneta de campo. Seu juízo sobre a situação política constitui síntese bem fundamentada da realidade brasileira.
O 19º volume da Nouvelle géographie universelle foi lançado na França em 1894. Seis anos mais tarde, a parte relativa ao Brasil foi publicada em português, com o título Estados Unidos do Brasil: geographia, ethnographia, estatistica, por Élisée Réclus, traduzida por Ramiz Galvão, que a atualizou com uma série de retificações em notas de pé de página: (...) tendo traduzido esta excelente obra de Élisée Réclus, não nos julgamos autorizados a modificá-la em pontos substanciais, ainda que nem sempre concordássemos com a opinião do autor[xxxvii]. As correções efetuadas assinalavam apenas lapsos de texto em relação a nomes próprios e datas. Apesar disso, o livro não perdia a sua importância: (...) prestará bons serviços e merece o favor do público brasileiro[xxxviii], conforme as palavras de Ramiz Galvão.
À guisa de curiosidade, serão aqui destacadas algumas dessas correções. Segundo o texto original, a língua oficial dos estabelecimentos de ensino superior seria o francês. O tradutor apontou o engano e observou que o idioma oficial era o português. Porém, atribuiu o equívoco ao uso freqüente de compêndios escolares provenientes da França, bem como ao número elevado de consultas a livros franceses nas bibliotecas públicas, superior inclusive ao das obras de autores nacionais. Do mesmo modo, esclarecia a fixação dos limites entre o Brasil e Argentina, apenas tangenciada pelo geógrafo, resolvida em 1895, com o laudo favorável ao Brasil, promulgado pelo presidente Cleveland do Estados Unidos. Outras notas menores atualizavam informações censitárias, a exemplo da nacionalidade e da entrada de imigrantes.
Já a questão do território disputado entre o Brasil e a França veio a merecer reparo de maior profundidade, preparado pelo Barão do Rio Branco[xxxix], representante diplomático nas negociações do litígio, cuja arbitragem coube ao Governo Suíço, resolvido pelo Tratado de 10 de abril de 1897.
De acordo com Réclus, o território reclamado pela França se estendia por duzentos e sessenta mil quilômetros quadrados, área que correspondia (...) a de quinze departamentos franceses e com cerca de três mil habitantes civilizados. O Tratado de Utrecht de 1713, no seu entender, ao invés de resolver o problema, complicou-o ainda mais: fixando como fronteira das possessões respectivas dos dois paises um rio que ninguém conhecia, e cuja foz nenhum navegante havia explorado. Mais adiante, perguntava: Qual é esse rio Yapok ou Vicente Pinzon que os diplomatas de Utrecht, ignorantes das coisas da América quiseram indicar nas suas cartas rudimentares?[xl] Acrescentou que o limite meridional seria o rio Amazonas, o que de certo relembrava as aspirações pretendidas por Napoleão III em 1841.
O geógrafo afirmou, também, que apenas dois terços da população local era de origem brasileira, (...) todavia o dialeto crioulo francês de Caiena, mesclado de termos índios é geralmente conhecido. Portugueses, martinicanos e crioulos franceses constituem o outro terço com os mestiços indígenas que outrora eram os únicos habitantes dessa região.[xli] Comentou, ainda, a suposta proclamação de uma república na região do Cunani, em 1886, que teria tornado a região independente: (...) era-lhes preciso, porém, um presidente francês, e Paris divertiu-se com a história de um honrado geógrafo de Vanves transformado subitamente em chefe de um estado de nome até então desconhecido, e que se rodeou imediatamente de uma corte, constituiu ministério e fundou uma ordem nacional, a Estrela do Cunani (...).[xlii]
As retificações do Barão do Rio Branco ocupam mais espaço do que o texto de Réclus. São longos comentários, repletos de explicações históricas, fruto da pesquisa documental que empreendera para preparar a defesa brasileira, mais tarde publicada com o título A questão de limites entre o Brasil e a Guiana Francesa (1899-1900). Sua argumentação baseava-se no princípio do uti-possidetis solis, ou seja, na ocupação anterior do território.
Rio Branco, em primeiro lugar, procurou elucidar as dúvidas suscitadas pelo geógrafo. Esclareceu que o rio Japoc ou Vicente Pinzon do Tratado de Utrecht de 1713 era o mesmo rio Oiapoque ou Vicente Pinzon do Tratado Provisional de 1700. Concordava, entretanto, que era correta a premissa de que o limite primitivo da Guiana Francesa situava-se no rio Amazonas. Porém, os franceses não poderiam exigir a posse daquelas terras, pois nunca as ocuparam, enquanto que os portugueses lá se estabeleceram desde 1616. Ponderou, ainda, que: (...) O aparecimento de um ou outro navio francês que em fins do século XVI e princípios do XVII foi negociar com os índios dessa região não constitui um titulo em favor da França.[xliii]
Quanto à população local, o Barão discordava da origem apontada pelo autor da Nouvelle géographie. Na sua maior parte, os habitantes eram brasileiros, conforme o relatório do próprio comandante francês, major E. Peroz, datado de Caiena em 27 de maio de 1895: Les 8 ou 10000 habitants fixes actuellement sur le Contesté sont brésiliens de coeur et patriotes dans l’âme [xliv]. Já na área em torno do rio Calçoene, havia uma população flutuante e adventícia, composta não só de brasileiros, como também de estrangeiros de diferentes nacionalidades. [xlv]
Em relação ao episódio da pretensa república de Cunani, Rio Branco opunha-se ao relato do geógrafo, afiançando que tal proclamação nunca chegou a ser conhecida em Cunani e no território contestado. Os diferentes núcleos de população (Amapá, Cunani, Cassiporé, Uaça, Arucauá) sempre tiveram os seus chefes ou governos particulares.
Considerações finais
É inquestionável que a viagem de Élisée Réclus ao Brasil trouxe uma contribuição positiva para o conhecimento geográfico, conforme sublinhou Ramiz Galvão, apesar dos equívocos apontados. Além da nitidez das reflexões sobre o quadro político nacional nos anos subseqüentes à proclamação da República, suas minuciosas observações de campo, sistematizadas na Nouvelle Géographie Universelle, mostravam-se pertinentes, inspiradas nas teorias então vigentes, tais como, o evolucionismo, o darwinismo e o determinismo de seu ex-mestre, Karl Ritter. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de notar a influência do pensamento rousseauniano na obra, face ao uso recorrente das noções de natureza harmoniosa e de obediência às leis naturais que regem os homens.
Por outro lado, há que se destacar a abordagem comparada e a atualidade das análises de Réclus. No caso brasileiro, dentre outros temas tratados, cabe salientar a preocupação com a preservação do meio-ambiente, a problemática das monoculturas, o aproveitamento racional da floresta amazônica, o desequilíbrio da divisão político-administrativa do território brasileiro, a relação entra a pobreza rural e a estrutura fundiária, questões, enfim, que apontam para o que hoje em dia se entende por geografia social.
Contudo, o pensamento de Réclus só seria retomado no Brasil a partir da década de 1980. A reabilitação do cientista francês, sobretudo no meio universitário, decorreria de uma visão mais crítica dos estudos geográficos, de viés marxista, bem como do aprofundamento das análises históricas sobre o movimento anarquista no país. [xlvi]
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[i] Luciene P. Carris Cardoso, sócio da SBG, mestre e doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Registramos o apoio financeiro da Faperj para a realização desse trabalho. Este artigo foi apresentado no “Colloque International Elisee Reclus et nos geographies”, realizado na Université Lumière Lyon 2, na cidade de Lyon, França, entre os dias 8, 9 e 10 setembro de 2005.
[ii] Cf. HERMES, J. S. F., “Como foi fundada a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, 1946.
[iii] Figueirôa, S. F. M. “Mundialização da ciência e respostas locais: sobre a institucionalização das ciências naturais no Brasil (de fins do séc. XVIII à transição ao século XX)”. .Asclépio, Revista de historia de la medicina y de la ciência, Madrid, V. L, fase 2, 1998. P. 107-123
[iv] CARDOSO, L. P. C., Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: identidade e espaço nacional (1883-1909). (Dissertação) Mestrado, Programa de Pós Graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.
[vi]PARANAGUÁ, J. L. da C., “Discurso”. Sessão Extraordinária em 18/07/1893. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, t. 11, n. 1-4, 1895. p. 34.
[vii] No Rio de Janeiro, Élisée Réclus também visitou outras instituições científicas e culturais, a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
[viii] RÉCLUS, E., op. cit., p.346.
[ix] Figueirôa, op. cit., p. 35.
[x] Réclus, Élisée. Extrato do discurso do sr. Elisee Reclus, distinto geógrafo francês. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, t. 11, n. 1-4, 1895. p.35
[xi] RÉCLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geografia, etnografia, estatística. Tradução e breves notas de Barão de F. Ramiz Galvão e anotações sobre o território contestado pelo Barão do Rio Branco, 1900. Rio de Janeiro-Paris, H. Garnier, Paris Livreiro-Editor. [1899]. 488 p. illus., cartes. 28 cm. p.262.
[xii] RÉCLUS, E., op. cit., p.36.
[xiii] Idem, p.37.
[xiv] A palestra em questão compunha um conjunto de seis conferências sobre o vale do Amazonas publicadas na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre os anos de 1889 e 1894. Monteiro Tapajós escreveu diversos trabalhos sobre a região amazônica, tais como: Província do Amazonas, Navegação direta (1886); As correntes do Amazonas e o fenômeno da pororoca (1886); O Amazonas e a França: questão de limites (1893) e Climatologia do Vale do Amazonas (1890). Cf. JOBIM, Anísio. O Amazonas, sua história: ensaio antropogeográfico e político. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1957. (Coleção Brasiliana, v. 292). p. 290.
[xv] TAPAJÓS, T. X. M., “Conferência em honra ao distinto geógrafo sobre o vale do Amazonas”. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, t.11, n.1-4, 1895, p. 45
[xvi] Idem. P. 49
[xvii] Idem.
[xviii] Idem.
[xix] Idem.
[xx] Apoiou-se em autores estrangeiros, a exemplo de Saint-Hillaire, de Spix e Martius e de Francis de Castelnau, além de brasileiros como Francisco A. de Varnhagen e o Barão do Rio Branco.
[xxi] O livro divide-se em onze capítulos, a saber: “Vista Geral, a Amazônia, os estados do Amazonas e do Pará”; “Vertente do Tocantins”; “Costa Equatorial e os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas”; “Bacias do Rio São Francisco e vertente oriental dos planaltos e os estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Espírito Santo”; “Bacia do Paraíba e o estado do Rio de Janeiro e Distrito Federal”; “Vertente do Paraná e contravertente oceânica”; “Vertente do Uruguai e litoral adjacente do Estado de São Pedro do Rio Grande do Sul”; “o Mato Grosso”; “Estado social da sociedade brasileira e Governo e administração”.
[xxii] Idem, p. 33 e 34.
[xxiii] Idem, p. 58.
[xxiv] Idem, p. 59.
[xxv] Idem, p. 71
[xxvi] Idem, p. 72.
[xxvii] Idem.
[xxviii] Idem, p78.
[xxix] ANDRADE, M. C. de. Geografia, ciência da Sociedade: uma introdução na análise do pensamento geográfico. São Paulo: Atlas, 1987. p. 57.
[xxx] RÉCLUS, E. op. cit, p.79.
[xxxi] PEREIRA, J. V. da C., “A geografia no Brasil” In: AZEVEDO, Fernando de, As ciências no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,1994. p.55
[xxxii] Ramiz Galvão, tradutor da obra para língua portuguesa, corroborou reflexão de Réclus, nas suas palavras, a baixa extraordinária do café em 1896 a esta parte causa presentemente sérios embaraços à lavoura, e todo o país sofre as conseqüências dessa depreciação, cada da se avigora, portanto, a necessidade da policultura. RÉCLUS, E., op. cit. p. 424.
[xxxiii] Idem.
[xxxiv] RÉCLUS, E., op. cit., p. 346.
[xxxv] RÉCLUS, E., op. cit, p. 460.
[xxxvi] Idem, p. 465.
[xxxvii] GALVÃO, Ramiz, “Ao leitor”. In: RÉCLUS, E., op. cit.,S./p.
[xxxviii] Idem.
[xxxix] Entre 1893 e 1900, o Barão do Rio Branco fora designado para resolver as disputas pelos territórios de Palmas e do Amapá. Em 1902, foi indicado para o Ministério das Relações Exteriores e participou das negociações pelo Acre com a Bolívia e de questões fronteiriças com Venezuela e Colômbia.
[xl] RÉCLUS, E., op. cit., p. 475.
[xli] Idem, p. 479.
[xlii] Idem, p. 477.
[xliii] RÉCLUS, E., op. cit. p.472
[xliv] Idem, P.477
[xlv] Idem, p. 479.
[xlvi] O termo reabilitação aqui utilizado inspira-se em Phillippe Joutard, La légende des Camisards, um sensibilité au passé. Paris: Gallimard. p. 185-194.
atualizado por E.Amaral - Colaborador da SBG
REVISTA DA SOCIEDADEW BRASILEIRA DE GEOGRAFIA
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