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VIAGENS E CARTOGRAFIAS EM PAUL ZUMTHOR:
(RE) LEITURAS
Josebel Akel Fares1
Resumo:
Neste artigo, tomo como ponto de partida a obra La mesure du monde, escrita por Paul
Zumthor em 1993, principalmente em seu estudo sobre cartografia e representação. Como
os mitos têm sido representados pelos viajantes desde o século X? Como as representações
dos viajantes influenciaram o imaginário amazônida? Qual é a relação entre as narrativas
orais amazônidas e os mitos construídos pelos viajantes em seus relatos? Estas são algumas
questões que eu busco tratar.
Palavras-chave: viajantes, representação, mitos, região amazônica.
Abstract:
In this paper I have focused on La mesure du monde written by Paul Zumthor in 1993,
mainly in his study of cartography and representation. How myths have been depicted by
travelers since Xth century? How travelers’ depictions have influenced the Amazon
imaginary? What is the relationship between oral narratives in Amazon and the myths built
by travelers in their texts? These are some questions that I deal with.
Keywords: travelers; depiction, myths, Amazon region
Ao amigo Cincinato Jr.,
pela amizade e pelos esclarecimentos geográficos.
Em La Mesure du monde, Paul Zumthor (1993) confessa a paixão pelos livros de
história e prospectos de viagem, que somente ao completar 72 anos, se transforma em
interesse teórico. Na apresentação da obra, o pesquisador conta um pouco desta busca e dos
caminhos para compor o trabalho. Na quarta parte “Representações”, Zumthor se debruça
sobre relatos de viagem e sobre cartografias. A resenha refere-se a esta parte da obra. Além
de expor as idéias centrais do texto, comento a relação destes conteúdos teóricos com a
pesquisa de campo2, que desenvolvo no arquipélago marajoara (2000/2).
1 Doutora em Comunicação e Semiótica, professora da Universidade Estadual do Pará - belfares@uol.br
2 Pesquisa de doutorado. “Cartografias Marajoaras: cultura, oralidade, comunicação”, tese defendida em
2003, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, orientada pela profa. Jerusa Pires Ferreira.
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1. Relatos de viagem. Os narradores. Tipos de discurso. Do imaginário ao utópico.
Desde o século X, no mundo árabe3, os relatos, como “As mil e umas noite”, já
aparecem identificados como gênero literário autônomo, aparentado da novela. O
humanismo alimenta-se desta experiência, porém os sábios, os geógrafos e cosmógrafos
conhecem pouco essa literatura e a tratam com depreciação. As circunstâncias de origem, a
intenção, os meios, a qualidade do texto impedem de se considerar o conjunto dos relatos
como um gênero elaborado.
Entre os tipos do gênero, os mais comuns são os relatos missioneiros, informes de
embaixadores, diário de bordo de viajantes, livro de rotas dos mercadores (custos e
distâncias), ou simples enumerações de maravilhas4. Nenhuma categoria tem limites claros.
Alguns classificam a matéria em função do itinerário percorrido, outras em quadros
justapostos sem muita coerência. Não faltam nem aqueles em que, mesmo chamados de
relatos de viagem, a viagem não é o elemento principal da narrativa. O que existe de
unidade ou um “tipo de fascinação” compreende uma ordem espacial, cujo conhecimento é
a experiência de alteridade. Procura-se um tipo de retórica capaz de dar conta dos
deslocamentos do corpo e das emoções particulares que estes suscitam. Daí, se criar uma
tópica em que se destacam algumas figuras, como a hipérbole, a exclamação e a
enumeração, e que se desenham pouco a pouco à partida, a duração do trajeto, o país
desconhecido, a acolhida e a volta.
Esse espaço discursivo, que parece sair do corpus dos contos, desdobra-se.
Relacionam-se os nomes próprios de lugares, de povos, de pessoas. Há o duplo registro - o
narrativo e o descritivo – que todo relato de viagem inclui. O predomínio de um ou outro
conferem a totalidade.
O cronista viajante opera a reintegração ao mundo familiar em que andou. E o
objetivo que preside a ação não é tanto analisar a realidade, mas prolongar uma experiência.
3 A tradição iniciada por Abu Zaid, de Siraf, em 915, se mantém até o século XVII. Entre os textos
fundadores, encontram-se os relatos de Ibn Battuta (1325/1345, África e Ásia), de Marco Pólo (143
manuscritos), de Hans Staden, 1557 (quatro edições em um ano); os manuscritos coletivos da Biblioteca
Nacional (1380); Ramucio (em Veneza, 1574); Théodore de Bry (3 vol., 1590/1640).
4 As peregrinações (séc XIII) constituem um grupo à parte entre os relatos de viagem. Consistem em
testemunho da comunidade peregrina cristã e só têm importância em função dos lugares santos que puderam
balizar, principalmente Roma e Santiago. A tradição remonta do século IV e o Peregrinatio da abadessa de
Eteria, antes de 400, é um dos textos mais famosos. Todavia, até o final do séc XV, esses relatos em nada se
diferenciam dos outros textos de viagem: centrados em Jerusalém, evocam imagens da ausência, paraíso
perdido, graça ausente ou desperdiçada, abrem o caminho interior que leva ao sentimento de um exílio.
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A descrição - até o séc. XV / XVI - procede em geral à base do tópico, emprestada do
conhecimento livresco, mais que de anotações “ingênuas”, portanto, pobre em detalhes
concretos, se organiza de acordo com um itinerário real, cheia de digressões anedóticas.
Quando o relato fala de lugares sucessivos, os topônimos balizam o discurso, como
para significar uma aproximação simbólica do território, mais que para operar uma
projeção de espaço. As numerosas variantes dos manuscritos e a pluralidade de versões do
mesmo texto implicam torná-lo menos descontínuo, perfurado, incompleto, turvo. São
poucos os autores cujo discurso, mediante algum artifício, como o uso de verbos como vir e
chegar, mantém uma ilusão espacial na expressão do movimento.
Todavia, o elemento narrativo constitui sua substância mesma, qualquer estudo de
posse territorial se realiza através do relato. Então, aumenta a tensão entre a história e a
geografia, entre o tempo irrecuperável e o espaço constantemente disponível, que resulta na
discussão entre o real e o imaginário, cuja culminância é a indagação de como distinguir o
verdadeiro, no séc. XV. Contudo, a realidade tem suas zonas de sombra, o discurso não
pode ser comprovado e tem rasgos ficcionais. Por isso, o séc. XVIII o elevará à categoria
de gênero literário, uma vez que se constitui num meio simbólico de explorar o mundo.
Os próprios autores, conscientes de que os textos dos relatos são de difícil
credibilidade, se apóiam em textos antigos ou modernos, saqueiam as fontes literárias, e,
muitas vezes, depreciam as experiências e as contradições dos testemunhos orais, coletados
por outros viajantes.
Os relatos de Marco Pólo exemplificam estas contradições, pois foram escritos por
Rusticiano de Pisa, um famoso novelista italiano, que imprime às narrativas marcas das
enciclopédias escolásticas. Entretanto, um exame mais minucioso revela um palimpsesto,
superposição das fontes literárias do escriba: a das recordações ditadas por Marco Pólo e a
dos relatos coletados.
Chaque auteur, chaque voyager construit son objet em vertu de sa culture, de
son expérience, de circonstances de sa vie.(...) Myopie de la description,
absence (sauf exception) de survol. Entre la généralité du lieu commun et tel
detail isolé rapopoté par le texte, se creuse un vide que ne vient combler ni
glose interprétative ni l’aveu d’une subjetivité auctoriale (p.305).5
5 “Cada autor, cada viajante constrói seu objeto em virtude de sua cultura, de sua experiência, das
circunstâncias de sua vida (...). Miopia da descrição, ausência (salvo exceções) de visões gerais. Entre a
generalidade dos tópicos e detalhes isolados que inclui o texto, se abre um vácuo que não leva nem a uma
interpretação, nem a confissão da subjetividade do autor”.
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Nas narrativas dos primeiros cronistas viajantes da América – especialmente das
regiões tropicais – há uma tendência a alegorizar alguns aspectos do território, com
finalidades comerciais, sem se importar com os demais elementos6: Contudo, o discurso
desses viajantes introduz na linguagem elementos inovadores, como observações sobre o
estranho nas pessoas - “a feição deles é serem pardos, maneira d’ avermelhados, de bons
rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam
nenhuma cousa cobrir e nem mostrar suas vergonhas” (Caminha, 2000, p.7) - ou o uso de
um rico léxico geográfico – “houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d’um grande
monte , mui alto e redondo, e d’outras serras mais baixas a sul dele e de terra chã com
grandes arvoredos” (p.5) – hidrográfico – “e passaram um rio, que por aí corre, d’água doce
, de muita água” (p.10), climatológico – “a noute seguinte ventou tanto sueste com
chuvaceiros” (p.6), por exemplo.
Um critério de exatidão se impõe pouco a pouco na observação dos espaços.
Realidade e credibilidade coincidem. A modernidade triunfa nos relatos posteriores a
Caminha. O Brasil aparece nas obras de Thevet (1558 e 1571) e Léry (1578). Fernão
Mendes Pinto publica a Peregrinação (1615) sobre o oriente, equivalente a uma novela
picaresca, quase que paralelamente a Tempestade (1615) de Shakespeare e a primeira parte
de D. Quixote (1605) de Miguel de Cervantes.
Essa primeira passagem para a modernidade avança nos séculos XVII e XVIII,
quando se reduzem as distâncias entre o relato de viagem e a novela – na medida em que
aqueles estarão cada vez mais condicionados por um sujeito. Na tradição oral da Alta Idade
Média, a prioridade era do ouvir sobre o olhar, a modernidade substitui o ouvido pela visão
em função da fonte de conhecimento: o que se sabe pelo ouvido pode ser comprovado de
forma universal. A experiência e a sabedoria começam a misturar-se.
Os ilustradores produzem tipos figurativos mais emblemáticos que descritivos, um
oriental pode ser identificado pelo turbante ou outra peça de sua indumentária. Daí antigos
viajantes se preocuparem em desenhar os lugares e tipos memoráveis de cada viagem. O
desenhista ou o pintor é incluído na tripulação.
6 Nesta perspectiva alegórica, inclui-se, de certa forma, como exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha, os
relatos sobre as amazonas em Carvajal, relator da viagem de Orellana e as narrativas sobre o Lago Dourado e
as Minas de Ouro por Pedro Teixeira e Acuña.
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A experiência de utilizar uma imageria é tomada como um fato poético
generalizado e recorrente nos textos. A imagem de um deslocamento cujo término espacial
se encontra fora dos limites conhecidos ou concebidos constitui uma metáfora chave do
destino. Assinalam-se as raízes folclóricas deste tema nas novelas de cavalarias, povoadas
por imagens do “país em que nunca se volta” e pela forma iniciática da viagem que a ele
conduz.
Agora, precisa-se simplesmente desemaranhar nestas ficções os efeitos imaginativos
e a relação conflituosa que mantêm com a experiência. Em alguns textos anteriores à
modernidade, a idéia geral de uma descrição mais geográfica que simbólica já aparece: o
autor quer fazer tangível a imensidão do mundo e, em conseqüência, a fragilidade de nossa
condição social. Um leitor moderno pode identificar rasgos fugazes da crítica moral, que se
anunciam há muito tempo, indicada ou na carga filosófica expressa nos discursos, ou nas
alegorias do conteúdo de um conhecimento, ou no rompimento das amarras geográficas,
que lançam seus personagens a um universo de parábolas e metáforas. O destino de um
itinerário representa uma redefinição de si, uma identificação da sabedoria e de uma
verdade pessoal.
Nas discussões entre verdade e imaginação, em alguns momentos, o inexplicável ou
o não comprovado ficam fora do discurso, assim como as suas formas de expressá-los,
ficam em baixa e se tornam matérias privilegiadas dos poetas. Mas, a ilusão da totalização
do espaço através de uma trajetória imaginária triunfa no discurso dos viajantes cultos que
cruzam o Atlântico no séc. XVI. Thevet passa dez semanas no Brasil e faz uma descrição
paradisíaca desta “terra sem Mal”. No século XVIII, todo o Ocidente reconhece o gênero de
viagem imaginário integrado a imagem e a linguagem da Utopia, criado com os
descobrimentos do séc. XV e com as conquistas do XVI.
Os relatos dos viajantes estrangeiros pela Amazônia intensificam-se nos séculos
XVII e XIX. As crônicas estudadas nesta tese pertencem a cientistas europeus, trazem as
breves passagens nas águas marajoaras, por qualquer um dos lados, e apresentam um
grande repertório de narrativas míticas de origem indígenas. Essas são inseridas nos
escritos dos viajantes como uma forma de acentuar a inferioridade do nativo, que acredita
na sobrenaturalidade ou para demonstrar nele algum traço de sensibilidade. Todavia, apesar
da negação das crenças em entidades fantásticas, subliminarmente, chegam a duvidar de
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suas existências. Na construção dessa tese, realizo viagens de pesquisa ao Marajó e registro
minhas próprias viagens em busca do poético em quatro municípios da região. Relato dados
sobre os habitantes, a paisagem natural e a cultural, como embarcações, percursos,
encontros, entrevistas, por exemplo.
2. Cartografias. A representação da terra. Do símbolo ao número. A intrusão de
Ptolomeu. Mapa e ambientação.
A cartografia precede a escritura e configura um desejo universal de representar o
espaço em que se vive e em que se desloca, um desejo de ordenar o mundo, ao estabelecer
uma correlação entre lugares e distâncias, uma necessidade de representar, de definir e de
apropriar-se do espaço. O mapa iconiza o espaço, mas a imagem construída não é igual ao
que representa, e com freqüência só representa parte de um elemento determinado. Implica,
pois, num sistema semiótico complexo. O ícone, afinal, é construído a partir de que fatores:
uma percepção, uma idéia ou um mito?
O mapa objetiva a terra concreta e constitui importante registro cultural. Neste
sentido, o conjunto de seu contexto é como um holograma, em que cada um dos pontos
contém informações do todo. Este ícone arquiva conhecimentos de um grupo humano,
memoriza a história, articula os espaços em uma globalidade, projeta e direciona um
itinerário. Renega o nômade, toma partido pela estabilidade.
A carta é um signo que tem uma lógica própria, é instrumento de referência e
mensagem, que remete mais a representação condicionada pelas tradições culturais, que a
própria realidade espacial. Como texto, o mapa exige ao mesmo tempo uma leitura e uma
interpretação e atua sobre a imaginação de quem o consulta. Como os relatos dos viajantes,
os mapas também serviram para ilustrar a revelação bíblica e render a homenagem da terra
à vontade divina. Por isto, o espaço universal se reduzia ao ecumênico, à parte da terra onde
se encontra o homem é entendido como espaço de Redenção. Então, eles variam de
abrangência, de objetivo e nas formas de imitar a terra. As imagens, desprovidas de
pretensões de imitar a realidade, trazem o desejo de colocar em destaque a interpretação de
mundo do desenhista.
Quanto à forma de imitar a terra, consideram-se as formas geométricas. Os mapas
circulares simbolizam emblemas da perfeição divina, são os mais numerosos, bem cuidados
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e os mais ricos em informação. Os hemisféricos dividem o círculo em duas metades: uma
representa o ecumênico e a outra, regiões supostamente inabitáveis, ou dividem o círculo de
norte a sul em partes paralelas, respectivamente, as regiões de clima frio, temperado, e
quente. Um mapa do séc. XI representa as zonas climáticas com círculos menores inscritos
no maior, rodeados pelo oceano-rio. Por vezes, os mapas ovais, retangulares ou quadrados
se assemelham formalmente, quando os cantos arredondados dos espaços representados
podem ser interpretados como a estilização de um ângulo ou como um fragmento de curva.
Em outros casos, no retangular ou no quadrado regular, o desenho representa um marco ou,
no caso deste último, está rodeado de ondulações do oceano-rio.
Quanto à abrangência da imagem, o material cartográfico pode ser classificado em
mapas mundis, mapas regionais (séc. XII e XIII); mapas marinhos ou portulanos (séc.
XIV), mapas de itinerários.
Os mapas de itinerários são de tradição romana. Caracterizam-se por uma rede de
linhas e por não representar uma superfície continua, e sim diferentes itinerários,
certamente, comerciais. Apesar de carecer de escalas entre os locais, indica-se à distância
pelos números de dias necessários para o percurso e apresentam-se os principais obstáculos
do percurso e as formas de superá-los.
Os mapas mundis representam toda a terra ou o ecumênico e são produzidos na Alta
Idade Média. O cartógrafo desta época procede por dedução, parte de um princípio, e daí
extrai os elementos de uma representação. Deste modo, explicita, interpreta; seu objetivo é
confirmar, não criar um conhecimento. O gênero mapa mundi equivale às crônicas
universais. Ele exalta a unidade da criação, que se percebe como uma manifestação da
Providência. Designa-se o nobre de história, que representa ao mesmo tempo a imagem e a
o relato.
O esquematismo desse mapa supõe que se reduza a imagem a algumas diretrizes.
Não procede de uma pura fantasia geométrica, como pode parecer, e sim de uma nostalgia
da unidade cósmica – unidade imediatamente perceptível pelos sentidos, ao mesmo tempo,
que afirma a existência, mais além de todas as aparências, da dita unidade. Como exemplo,
aparece os numerosos e antigos mapas TO: o T, horizontal, designa o Mediterrâneo; na
vertical, o Nilo e o Tanais, separam o espaço dos três continentes – Ásia acima, Europa e
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África abaixo, uma à esquerda e outra à direita. Esta imagem, profundamente gravada no
imaginário europeu, impede, durante muito tempo, a identificação de um quarto continente.
Os mapas mundis vão construir todo um percurso de interpretação do mundo desde
a Antigüidade, passando pelo medievalismo. Zumthor explica, uma a uma, as contribuições
das épocas, que vão avançando na combinação entre o desenho e as representações de
localização das edificações, reais ou simbólicas, que integram a história, o pensamento
religioso, a topografia, teratologia (os monstros, dispersos pela terra), ou seja, remitem aos
registros do conhecimento e do mundo imaginário.
Nul doute que l’homme d’alors n’ait eu, de l’espace, un sens et une mémoire
beaucoup plus aigus que les nôtres Mais à mesure que s’etendaient les aires
de domination et d’organisation publique, la charte et, un jour prochain, la
carte devenaient d’indispensables instrument d’ archivage7 (p.329).
Então, a partir do séc. XIII, com a formação dos Estados da Europa moderna, vai se
produzindo, paralelamente, um deslizamento funcional da cartografia, em detrimento de
antigos símbolos. No séc. XV, se invocará os testemunhos dos mapas, no processo de
fronteira.
A nova mentalidade cria o mapa portulano, necessário à expansão marítima, obra da
burguesia mercantil italiana. Autônomo em relação à cartografia tradicional, diferente por
sua origem intelectual e por sua finalidade, ele centra esforço na representação das
distâncias e da profundidade, e está destinado às viagens de cabotagem pelo Mediterrâneo.
É um mapa costeiro que indica, com precisão, os acidentes e localidades que balizam uma
rota marítima determinada, e deixam as terras interiores reduzidas a uma franja
superficialmente desenhada.
O portulano deprecia as veleidades enciclopédicas e qualquer alusão mística.
Concentra-se no pequeno número de setores semânticos: registra uma experiência, a
tradução dos signos pragmáticos e mnemotécnicos, no espaço concreto. Não se concentra
apenas nos registros dos lugares, mas representa o intervalo das distâncias, incorpora as
informações da bússola e estima a velocidade aproximada do barco em relação aos
acidentes da costa. A falta da escala, desconhecida até final do séc. XVI, faz com que se
7 “Não há dúvida de que o homem daquela época teria um sentido e uma memória do espaço muito mais
aguda que a nossa. Todavia, à medida que se estendiam as áreas de domínio e de organização pública, os
diplomas e, a continuação, os mapas se convertiam em instrumentos de arquivos indispensáveis”.
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use uma trama de linhas coordenadas, chamadas de gratícula, marteloire, marteloio, como
para afirmar o domínio das estruturas racionais sobre a realidade. A paisagem natural cai
como liberada das aproximações sensoriais, em benefício de uma visão virtualmente
geométrica da Terra. Notável premonição do que será o espírito moderno.
O mapa náutico-geográfico, criado paralelamente a estas experiências pelo genovês
Pietro Vesconte, desde 1311, mistura os dados de um portulano mediterrâneo com os de um
mapa mundi. Introduz-se uma preocupação ornamental na elaboração dos desenhos, em
princípio, sobriamente utilitários; aparecem imagens de cidades, de barcos, figuras
mitológicas que sopram os ventos, cujas figuras compõem a rosa dos ventos.
As descobertas do quinhentismo afetam profundamente o movimento cartográfico,
estimulam a curiosidade dos desenhistas, o orgulho dos navegantes, a cobiça dos príncipes,
estabelece-se entre todos uma circulação de interesse. Algumas cidades têm suas escolas de
navegação, contam com suas próprias tradições, técnicas e segredos. Aparecem os
primeiros mapas impressos, o que favorece sua difusão.
A simbolização do divino continua ainda nesse século, época dos últimos mapas
circulares. E no seguinte, seguem-se mesclando sonhos e fantasias com a representação da
realidade, ainda que só em suas margens, como as imagens de monstros fabulosos, pinturas
(mais assemelhadas) de negros ou de índios. E, apesar da modernidade, os traços da
tradição ainda são preservados. Na primeira oleada de modernidade, o céu e as estrelas são
cartografados. O primeiro atlas celeste é de 1603, a Uranometria de Johann Bayer,
compõe-se de 51 mapas, que situam as estrelas do hemisfério Norte. As estrelas do
hemisfério Sul só aparecerão mais de meio século depois, nas cartas de Halley.
A Geographia de Ptolomeu, redescoberta no princípio do séc. XV, marca “um
episódio do humanismo”. É um tratado de cartografia, com os efeitos de uma revolução
científica, mais que uma descrição do mundo, os mapas que ilustram a obra são posteriores
ao texto, mas ambos devem ser lidos como um todo. As edições multiplicaram-se, mesmo
assim, uma série de críticas aponta os erros em relação às medidas, e a existência do
continente americano era tida por alguns como inconcebível.
Nas últimas décadas daquele século, multiplicam-se as iniciativas que tendem ao
triunfo das representações da realidade útil em detrimento da simbolização, com vistas a
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atender ao contexto de mutações políticas e econômicas. A descoberta dos satélites de
Júpiter por Galileu, em 1610, facilita as bases do “realismo” cartográfico.
O tempo não modifica a inércia das tradições, nem com a descoberta do Novo
Mundo. Os testemunhos dos que voltam estão plenos de imprecisões e de contradições. As
costas da Venezuela e do Brasil emergem de uma massa misteriosa. À medida que o século
avança e o espólio dos conquistadores se avoluma, a massa continental se amplia nos
mapas e, conseqüentemente, o número de topônimos. A cartografia abre-se para um público
de aficionados e de eruditos, a fabricação de globos e a publicação de grandes Atlas
respondem. às necessidades destes interessados.
O traçado topográfico forma, junto com seu contexto imediato, uma unidade de
comunicação: os elementos figurativos ou textuais do mesmo mapa, inclusive quando
cumprem função estética, são necessários para a compreensão da mensagem que transmite.
Vistas de prédios, retratos de bestas, de monstros ou de humanos, alegoria das estações,
cenas bíblicas, históricas ou cotidianas, tudo está pleno de sentido – não menos que as
inscrições que salpicam estes espaços – de forma sintética, apesar da heterogeneidade. A
composição do conjunto estrutura-se de tal modo, que a mera leitura de apenas uma parte
dos elementos seria absurda. Os mapas desestruturam o conhecimento enciclopédico dos
eruditos, com a finalidade de remeter aos lugares particulares. E ao encadear esses lugares
da perspectiva de um itinerário (passado, presente e futuro) devolvem a este conhecimento
seu dinamismo.
O mapa contém várias iconizações. Traço, desenho, escritura, correspondem a
níveis semióticos diferentes. O traço e o desenho projetam uma reprodução simulada e a
escritura ensaia um discurso. Essas expressões mantêm entre si uma relação de
equivalência comparada com a que une o discurso a sua glosa. Globalmente e em seu
aspecto comunicativo, o mapa medieval é um relato. Aspectos narrativos são introduzidos
na ficção de alguns autores do séc. XII, pela descrição de um mapa mundi: abre-se um
espaço no espaço, uma janela a um universo anedótico, o relato cósmico assumia o
particular.
O mapa define uma relação interna entre escritura e desenho. O texto se inscreve no
desenho, sendo um de seus planos de expressão. O tipo de carta define as características e
as quantidades das inscrições distribuídas no mapa. Em geral, essas legendas e notas
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compõem-se de anotações descritivas ou explicativas, que localizam personagens, objetos
ou episódios da história sagrada ou antiga, elementos de uma sabedoria relativa às
propriedades do dito lugar. Simultaneamente, pode estabelecer uma relação externa quando
o mapa se integra a um texto, num dos elementos, como uma letra florida. De toda a forma,
se ilustra um texto, é uma unidade de comunicação.
Na terminologia medieval, pintura designa o traçado topográfico e as figuras
representativas que o animam, consistem nas imagens. Existem por elas mesmas, como
suporte de sentido, abertas às interpretações. As imagens servem de mediação entre o
cartógrafo e o leitor, em geral, e usa-se para falar daquilo que o traçado não consegue
expressar: um barco relata o mar; animais e vegetais falam de zonas e de climas; os
humanos, um estandarte ou um escudo de armas contam de uma nação e os edifícios
metaforizam as cidades, que salpicam ou estruturam a geografia. Não importam as
proporções destas imagens, elas têm o poder do maravilhoso: evocam a recordação de um
milagre, de uma legenda épica, as monstruosidades e as partes desconhecidas da Terra,
como leões, elefantes e outros animais.
Os diferentes elementos dos mapas nem sempre tiveram referências sincrônicas,
podem remeter a momentos diferentes da história. Não há uma regra para decifrá-lo, o
discurso de um mapa é de natureza poética, para não dizer profética. O espaço cartográfico
pertence, basicamente, ao imaginário.
Esta tradição cartográfica continua até meados do séc. XVIII. Contudo, no
princípio do séc. XVII, os cartógrafos parecem duvidar deste conjunto de imagens e se
inicia um movimento pró-abstração. Conserva-se a imagem, mas ela vai sendo empurrada
às margens. A função tradicional de propor uma leitura pessoal do mundo e uma meditação
sobre sua diversidade, se perde. Uma mudança naquela forma tradicional de representação
do mundo real já se insinuara, um caráter científico é reivindicado. Esta historiografia e
reflexão sobre os relatos de viagem e as cartografias, no Ocidente e Oriente, escrita por
Paul Zumthor, traz a evolução do conhecimento e das formas de conceber o mundo, da
Antiguidade até o séc. XVIII - século em que a Amazônia foi também interpretada pelos
viajantes. Isto nunca será obtido de todo até, quiçá, a informática contemporânea.
3. Viajantes estrangeiros na Amazônia marajoara, antes do século XX.
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Em relação à cartografia ou aos mapas, que emprego como sinônimos, dos viajantes
estrangeiros na Amazônia inseridos nesta leitura, são também mapas que tentam descrever
os itinerários dos pesquisadores. E, apesar do desenho da carta ser uma representação, as
formas da terra e das águas nas primeiras representações da Amazônia deformam a sua
forma física, por isso recebem críticas dos cartógrafos de épocas subseqüentes. Incluo no
trabalho final os mapas que acompanham as publicações dos relatos viajeiros.
Os dois mapas que registram os meus percursos de viagem pelo Marajó foram
elaborados por profissionais do departamento de Geografia da Universidade Federal do
Pará. Eles seguem as normas de cartográficas, contudo há algumas lacunas informativas,
devido aos caminhos não terem sido acompanhados por instrumental adequado. Hoje, usase
o GPS8 para medir e situar os territórios, que são as substituições de instrumentos, como
a bússola.
Um vasto material etnográfico pertence ao período de colonização das Américas,
contudo é do século XV ao XIX que as viagens se aglomeram e assumem outro caráter. O
ciclo das viagens estrangeiras está registrado nos relatos dos que singraram os rios da
Amazônia. Nessas narrativas de viagens, a descrição da cultura - a literatura, as danças, os
cantos, as pinturas corporais indígenas, enfim, a arte – é a expressão do cotidiano, inerente
ao espaço e, conseqüentemente, aos relatos. A pesquisa sobre os recursos naturais,
especialmente a fauna e a flora, é privilegiada, pois os cientistas viajantes são, a maioria,
naturalistas. O mundo da sobrenaturalidade explica e cria as concepções de mundo, os
expedicionários tentam desconsiderar a presença do mítico, mas remetem o leitor a esta
viagem espaço-temporal, ainda hoje escrita com a presença do elemento maravilhoso.
Nos documentos de viagem sobre Amazônia, encontra-se a construção de um
espaço edificada através de leituras subjetivas e imaginárias, mesmo considerando-se o
momento do “racionalismo das luzes”, de negação dessa prática. As expedições movem-se
pelo desejo de conquistas de bens materiais, da vontade de redimir almas e de exploração
científica. As imagens de uma geografia exótica são fundadas na descoberta da América,
8 GPS significa Global Positioning System. É um sistema de navegação com base em satélites artificiais que
emitem sinais rádio com informação sobre uma posição tridimensional, velocidade e tempo numa base de 24
horas. Este sistema criado nos anos 70 é controlado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos que
fornece dois serviços. O SPS, Standard Positioning Service (gratuito), usado pelo público em geral cujo sinal
é intencionalmente degradado por razões de segurança interna dos E.U. e o PPS, Precise Positioning Service,
codificado e usado primáriamente pelo Departamento de Defesa.
Boitatá –Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL
ISSN 1980-4504
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com as promessas de encontro do paraíso terrestre, do Eldorado e do reino misterioso das
Amazonas, composto por tesouros e por fábulas.
Alguns destes relatos organizam-se cronologicamente, outros não. De forma geral,
todos registram desde os tipos de embarcações, instalações, formas de sobrevivências, até o
contato com as pessoas. E estabelecem, em síntese, as relações entre cultura e natureza.
Mapas, gravuras e outros desenhos também fazem parte do acervo anexo aos relatórios, daí
que as equipes de trabalho das viagens científicas são formadas não só de especialistas nas
ciências naturais, mas também cartógrafos, pintores, desenhistas e outros técnicos.
A maioria dos viajantes chega ao Brasil via Colômbia, ou desembarca no Rio de
Janeiro. Os roteiros iniciam-se, encerram-se, ou detêm-se, apenas, na Amazônia. O
arquipélago marajoara, situado na foz do oceano Atlântico, é passagem obrigatória para
muitas rotas. Apesar de saírem de seus países com objetivos definidos, situações inusitadas,
muitas vezes, desmontam as equipes expedicionárias antes de alcançarem o destino
almejado e obrigam alguns viajantes a refazerem suas metas. A passagem pela Amazônia
quase sempre dura muito além do tempo pré-estabelecido. Daqui enviam matérias das
coletas e dos estudos para museus de ciências naturais de seus países de origem.
Depois, dos três a cinco anos longe de suas terras, os cientistas recebem os louros da
viagem. Os pesquisadores fazem conferências, palestras em torno de suas descobertas e
publicam relatos individuais ou em co-autoria. As mais importantes publicações de autoresviajantes
europeus, dos séculos XVIII e XIX, que passaram na Amazônia marajoara, são A
Viagem pelo Amazonas 1735-1745, de Charles La Condamine; Viagem pelo Brasil.
1817-1820, de Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Phillipp von Martius
(1794-1868); Viagem pelos rios Amazonas e Negro. (de 1848/52) de Alfred Russel
Wallace (1823-1913); Um naturalista no rio Amazonas (de 1848/ 59) de Henry Walter
Bates (1825-1892); Viagem ao Brasil: 1865-1866 Luiz Agassiz (1807-1873) e Elizabeth
Cary Agassiz.
As obras compõem-se de relatos e de toda uma imageria. Os desenhos dos mapas
indicam os do tipo itinerários, porque, muitas vezes, faltam as escalas, e as distâncias,
apesar de alguns as medirem em léguas, outros a fazem pelos dias inseridos nos roteirosrelato.
Além dos mapas, alguns, como os dos Agassiz, são ricos em imagens de paisagens
naturais e culturais. No trabalho final da pesquisa, apresento o itinerário dos exploradores,
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baseada nas cartografias, relatos de viagem e narrativas em torno de personagens
sobrenaturais. A passagem pelo Marajó - seja na região dos furos, seja na região dos
campos, seja em outras ilhas do arquipélago - é o ponto de ancoragem privilegiada por este
recorte.
Os séculos podem variar e os cronistas serem originários das mais diferentes
nacionalidades, no entanto, diante do rio e da mata amazônicos, quase
genericamente, nenhum se isentou de externalizar sentimentos que variam
do primitivismo pré-edênico ao inferno primordial. (GONDIN, 1994, p.77).
Referências
CAMINHA, Pero Vaz. A carta. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
FARES, Josebel Akel. Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação. São
Paulo: PUC/SP, 2003 [tese de doutorado]
GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1994.
ZUMTHOR, Paul. La mesure du monde. Représentation de l’ espace au moyen age.
Paris: Seuil, 1993.
___________ La medida del mundo. Representación del espacio em la Edad Media.
Traducción Alicia Martorell. Madrid: Cátedra, 1994.
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