segunda-feira, 2 de abril de 2012

OS KADIWEU E SEUS ETNÓGRAFOS DE ALÉM ATLÂNTICO

Trabalho Apresentado no Simpósio Temático “Os Índios e o Atlântico”, XXVI Simpósio
Nacional de História da ANPUH, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011
OS KADIWÉU E SEUS ETNÓGRAFOS DE ALÉM DO ATLÂNTICO:
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA NOS SÉCULOS XIX E XX
GIOVANI JOSÉ DA SILVA*
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os Kadiwéu (autodenominados Ejiwajegi), seja no passado (quando seus ancestrais
eram chamados de Mbayá-Guaikuru, dentre outras denominações 1), seja no presente,
fascinaram àqueles que se aventuraram por suas terras e desfrutaram de seu convívio, ainda
que alguns por pouco tempo. Dentre esses viajantes, destacaram-se os que, oriundos
majoritariamente da Europa, deixaram escritos a respeito daqueles que em tempos coloniais
também foram chamados de “índios cavaleiros” e impressionaram aos colonizadores por suas
lides na guerra. Esta comunicação tem por objetivo apresentar alguns desses viajantes (aqui
chamados de etnógrafos) e suas obras a respeito dos Kadiwéu que encontraram em território
brasileiro, na fronteira com o Paraguai, entre o final do século XIX e a primeira metade do
século XX. São eles: Herbert Huntington Smith (estadunidense), Guido Boggiani (italiano),
Emile Rivasseau (francês), Alberto Vojtěch Frič (tchecoslovaco), Henrich Henrikhovitch
Manizer (russo), Erich Freundt (alemão), Wanda Theressia Leokadia Hanke (austríaca),
Kalervo Oberg (canadense) e Claude Lévi-Strauss (franco-belga).
O texto apresenta os resultados parciais de uma pesquisa em estágio avançado,
atualmente desenvolvida pelo autor sobre a bibliografia existente a respeito dos Kadiwéu e
que resultará em um dos capítulos do livro Kadiwéu: Senhoras da Arte, Senhores da Guerra
(Volume Dois), a ser lançado proximamente. Não se trata de um levantamento exaustivo e
tampouco definitivo, mas uma espécie de “guia” biobibliográfico a servir de orientação para
pesquisadores que desejarem conhecer o que se escreveu e ficou registrado em relação aos
Kadiwéu e a visão de viajantes de além do Atlântico sobre esta sociedade indígena. Como se
verá, temas como as pinturas faciais e corporais, a fabricação de cerâmica e a guerra aparecem
constantemente nas etnografias construídas por tais pesquisadores, chamando a atenção para
alguns aspectos marcantes da cultura Kadiwéu, enquanto outros são praticamente ignorados.
* Docente da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)/ Campus de Nova





Andradina. Doutor em



História pela UFG (Universidade Federal de Goiás).
1 Além de Guaycurús ou Guaycurus, diversas denominações aparecem em livros e documentos referindo-se ao
grupo no passado, dentre elas: Caduvei, Caduvéo, Cadiuveos, Cadiuéu, Cadioéos, Cadiuéos, Cadivéns, Kadiueu,
Kadiuéo (HERBERTS, 1998).
2
Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro que chamava os Kadiwéu de “meus índios”,
legou um retrato dessa sociedade indígena do final da primeira metade do século XX
(RIBEIRO, 1980), época em que desenvolveu entre eles trabalhos de campo pelo antigo SPI
(Serviço de Proteção aos Índios), órgão do qual era funcionário na ocasião (1947 e 1948).
Entre inúmeras narrativas coletadas, Ribeiro (1980, p. 24) registrou a seguinte fala entre os
Kadiwéu: “Ediu-adig (Kadiwéu) antigo era a nação mais poderosa; este mundo todo foi
nosso: tereno, xamacoco, brasileiro, paraguaio, todos foram nossos cativeiros, hoje estamos
assim”. Tal fragmento revela o quanto mudaram as percepções dos Kadiwéu sobre as relações
interétnicas estabelecidas ao longo do tempo e de que forma o passado guerreiro era evocado,
nas lembranças dos mais velhos, como um período de conquistas territoriais e obtenção de
“cativos”. 2
Os etnógrafos aqui elencados, em sua maioria homens, conheceram os Kadiwéu antes
de Ribeiro e, em conjunto, seus escritos percorrem um espaço temporal que abarca a década
de 1880 até o início da década de 1940, um período aproximado de cinquenta anos. Leva-se
em consideração, nas análises empreendidas, o fato de que no período em questão a
Antropologia dava seus primeiros passos como área do conhecimento, com um caráter ainda
fortemente colonialista, característico dos primórdios da disciplina. Os registros, contudo,
desde que lidos com os devidos cuidados, contêm importantes informações etnográficas e
históricas a respeito dos Kadiwéu, um grupo étnico formado, no passado e no presente, pelo
“amálgama” de diferentes culturas.
DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO, SÉCULO XIX: BOGGIANI E RIVASSEAU
Guido Boggiani e Emile Rivasseau conheceram os Kadiwéu no final do século XIX,
quando os mesmos já estavam localizados na região que mais tarde viria a se constituir
oficialmente na Reserva Indígena Kadiwéu (JOSÉ DA SILVA, 2004). Ambos, em seus
escritos, fizeram uma espécie de “diário de campo” sobre o tempo em que conviveram com
aqueles indígenas. Boggiani escreveu Os Caduveos (1975), além de outros textos, publicados
na Itália e na Argentina (cf., por exemplo, BOGGIANI, 1929). Já Rivasseau escreveu apenas
A vida dos indios Guaycurús: quinze dias nas suas aldeias (1941). Comparativamente, o
2 Os Kadiwéu constituem, pelo menos desde os tempos coloniais, uma sociedade estratificada. No passado, havia
os “nobres”, os “guerreiros” e os “cativos”, estes últimos geralmente capturados em incursões bélicas junto a
outros grupos. Atualmente, a estratificação configura-se da seguinte forma: “nobres” ou Otagodepodi
(“senhores”) e “cativos” ou Niotagipe, sendo que os “nobres” são considerados Kadiwéu “puros”, enquanto os
“cativos” são aqueles descendentes de índios de outros grupos (JOSÉ DA SILVA, 2004).
3
tempo de permanência do italiano foi muito maior do que o do francês, embora as obras de
ambos se constituam em instigantes construções etnográficas a respeito dos Kadiwéu na
época em que foram visitados.
Guido Boggiani (1861-1901), explorador, comerciante e pintor italiano, esteve duas
vezes entre os Kadiwéu, em 1892 e 1897.
Como já observado em texto publicado anteriormente:
Boggiani não era um etnógrafo, embora hoje suas observações sejam consideradas
preciosas descrições etnográficas sobre aquela sociedade indígena [os Kadiwéu].
Antes, era um comerciante de peles, especialmente de couro de cervo (Blastocerus
dichotomus), sendo atraído à região sudoeste do atual estado de Mato Grosso do Sul
por causa da grande quantidade de animais de caça ali existente à época e também
por saber que poderia contar com os índios para abatê-los. Curiosamente, o fracasso
em encontrar os valiosos animais que tanto desejava, o obrigou a conviver um certo
tempo entre os Kadiwéu (JOSÉ DA SILVA, 2002: 44).
A antropóloga Mônica T. S. Pechincha – após a convivência com os Kadiwéu na
década de 1990, o que resultou em dissertação de mestrado (1994) defendida na UnB
(Universidade de Brasília) – afirma que:
Guido Boggiani foi possivelmente o único branco a demonstrar algum apreço por
aquela sociedade e, portanto, alguma comunicação e entendimento, no panorama da
relação com os brancos no final do século passado [XIX]. Este século fatal para os
Kadiwéu, que viram desaparecer quase a totalidade da numerosa população
Guaikurú que habitava aquela região (PECHINCHA, 2000: 161).
Por meio dos diários do italiano percebe-se que ao final de uma viagem
inesperadamente longa e frustrante (do ponto de vista dos negócios almejados), Guido
Boggiani foi capaz de afirmar que os Kadiwéu possuíam uma “civilização” que lhes era
própria, embora acreditasse que estivesse presenciando o “fim” de tal “civilização”,
corrompida, em sua opinião, por “vícios” e “degenerações” de toda sorte. Tais
“degenerações” seriam provocadas especialmente pelos contatos com os não índios e pela
mistura de “diferentes raças”. Boggiani foi assassinado no Paraguai, muito provavelmente,
por índios Tumrahá (chamados também de “Chamacoco bravos”), em 1901, e boa parte dos
resultados de suas pesquisas no Pantanal brasileiro foi recuperada por Frič, outro dos
etnógrafos europeus a conviver com os Kadiwéu, já no início do século XX.
Sobre Emile Rivasseau (?-?), agrimensor francês, sabe-se pouco, ainda, a respeito de
sua vida. As escassas informações encontradas dão conta de que ele acompanhou José de
Barros Maciel na primeira demarcação oficial das terras Kadiwéu (1899-1900) e permaneceu
4
por muitos anos no então sul de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, trabalhando em
medições de terras. Sua obra, apesar do pouco tempo de convivência com os índios, permite
diversas leituras da organização social, dos usos e costumes dos índios Kadiwéu na virada dos
séculos XIX e XX.
As referências às guerras e pilhagens provocadas pelos “Guaykurús” (denominação
pela qual Rivasseau designava os Kadiwéu), são constantes ao longo de seu texto:
[...] uma das tribus que mais a meúdo pelejavam com os Guaycurus, era a dos
Chamacocos que quasi sempre soffria o peso da derrota.
Victoriosos, os Guaycurús traziam tudo quanto a pilhagem dos acampamentos e
aldeias dos inimigos podia dar-lhes, de interessante, de proveitoso, segundo as
conveniencias. Faziam tambem alguns prisioneiros, ás vezes homens, mas sobretudo
mulheres e crianças (RIVASSEAU, 1941: 87)
A obra de Rivasseau é importante para se compreender, especialmente, o processo de
demarcação de terras dos Kadiwéu, no final do século XIX e início do século XX, promovido
pelo governo do então Estado de Mato Grosso. Diga-se de passagem, a leitura de A vida dos
indios Guaycurús permite entrever questões ligadas à posse da terra e as lutas entre os
chamados “coronéis” pelo poder, com prejuízos incalculáveis para as populações indígenas
que viviam na região do atual Mato Grosso do Sul.
DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO, SÉCULO XX: FRIČ, MANIZER, FREUNDT,
LÉVI-STRAUSS E HANKE
Alberto Vojtěch Frič (1882 – 1944), etnógrafo e botânico tchecoslovaco, foi o
responsável por divulgar parte dos resultados das pesquisas de Boggiani que, de outro modo,
estariam, provavelmente, perdidas para sempre. Isso inclui a coleção de fotografias de índios
Kadiwéu e Chamacoco (estes últimos “cativos” dos primeiros), que impressiona pela beleza
das pinturas corporais e pelas feições (FRIČ; FRIČOVA, 1997). Frič teve, inclusive, uma
filha com uma indígena Chamacoco e parte de seus descendentes indígenas vive hoje no
Paraguai, em Puerto Esperanza. Escreveu, também, alguns livros (tais como Indiáni Jižní
Ameriky, publicado em 1977, em Praga), mas, infelizmente, nenhum deles foi traduzido para
o Português até o momento.
Frič interessou-se, sobretudo, pela mitologia Kadiwéu e pelo que, então, chamava de
“folclore” indígena. Dois importantes artigos, também não traduzidos para o Português, sobre
os “índios cavaleiros” de autoria dele são: Notes on the Grave-Posts of the Kadiuéo
5
(“Observações sobre os postes sepulcrais dos Kadiwéu”), publicado em Londres, em 1906, e
Onoenrgodi-Gott und Idole der Kaduveo in Mato Grosso (“O Deus Onoenrgodi e os Ídolos
dos Kadiwéu no Mato Grosso”), também publicado na Inglaterra, em 1913. No artigo Notes
on the Grave-Posts..., “[...], Frič chama a atenção, baseando-se em sua própria observação dos
rituais fúnebres, para a possibilidade de outra explicação dos chamados postes sepulcrais e
das estatuetas humanas que Boggiani considerou, segundo Frič erradamente, como ídolos”
(FRIČOVA, 1997: 140).
O botânico empreendeu um total de oito viagens à América do Sul (1901-1902; 1903-
1905; 1906-1908; 1909-1912; 1919-1920; 1923-1924; 1927 e 1928-1929), além de ter
percorrido o interior brasileiro (rios Tietê, Verde e Verdão) e convivido entre indígenas no
Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Viveu, entre 1919 e 1920, nestes dois últimos países,
como membro de uma missão diplomática do Ministério das Relações Exteriores da então
recém-criada República Tchecoslovaca. Nas últimas três viagens ao continente, esteve no
México, Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru, orientando seus estudos
exclusivamente para a coleta e o estudo de cactos.
Henrich Henrikhovitch Manizer – ou Genrikh Genrikhovich Manizer – (1889-1917),
etnógrafo nascido na Rússia, foi o principal nome da segunda expedição russa à América do
Sul (1914-1915). Esteve entre os Kaingang (1914-1915) e entre os Krenak (1915), deixando
registros valiosos dessas sociedades indígenas e sua cultura material. Além disso, pesquisou a
documentação acerca da primeira expedição científica russa ao Brasil, a Expedição
Langsdorff (1821-1829) e redigiu o primeiro trabalho histórico relevante sobre ela, que
permaneceu inédito por três décadas após a morte do autor. A Primeira Guerra Mundial na
Europa fez a segunda expedição ser abreviada e Manizer teria morrido de tifo nos campos de
batalha na antiga România, atual Romênia. Em relação aos Kadiwéu, sua contribuição
encontra-se no texto “Música e instrumentos de musica de algumas tribus do Brasil”,
publicado na Revista Brasileira de Música, em 1934 (CAMÊU, 1977; MANIZER, 1934).
Manizer permaneceu, segundo suas próprias palavras, apenas dois meses com os
Kadiwéu, registrando eventos musicais entre os índios. Apesar de se ater somente à música,
fez interessantes observações sobre luto, xamanismo e danças, estando, juntamente com F. A.
Fielstrup, seu colaborador, na aldeia Nalike, referida em muitas obras como a “capital” dos
Kadiwéu na primeira metade do século XX. O artigo de Manizer, publicado originalmente em
Petrogrado, em 1918, sob a forma de folheto pelo “Museu de Anthropologia e de Etnographia
do Imperador Pedro o Grande, annexo á Academia das Sciencias da Russia”, contém
6
inúmeras fotografias de instrumentos musicais dos Kadiwéu, além de partituras de cantos e
sons ouvidos e recolhidos em campo.
Erich Freundt (1905?-?) fez parte do corpo docente do atual Colégio Visconde de
Porto Seguro, em São Paulo, capital. Recrutado na Alemanha, viúvo, foi admitido no ano
letivo de 1936, como professor de Desenho e, mais tarde, de Educação Física. Já em 1938
prestou exames de proficiência em Português, exames estes decretados no período do Estado
Novo. Sendo alemão, a partir de 1942, suas atividades docentes cessaram temporariamente,
época em que a Deutsche Schule foi nacionalizada, tornando-se o Colégio Visconde de Porto
Seguro. Retomou suas funções em 1949 e havendo empreendido várias viagens ao Mato
Grosso, principalmente no período em que esteve afastado da docência, encantou-se com os
índios Kadiwéu, Ofayé e Bororo que conheceu, retratando-os em sua única obra editada. Em
1958, provavelmente, casou-se com uma brasileira, pois a partir deste ano passou a assinar
“Eurico Freundt de Castro”. Deve ter se aposentado em 1965, aos 60 anos, pois o Colégio não
possui mais registros de Erich Freundt desde então. 3
Ainda não foram encontradas informações mais detalhadas sobre a biografia de
Freundt, sabendo-se apenas que esteve entre os Kadiwéu (Caduveo), em 1939 e os Ofayé
(Opaié), em 1942. Tais informações se encontram na introdução escrita por Herbert Baldus
para Índios de Mato Grosso (FREUNDT, 1946). É provável que depois de estar entre os
Kadiwéu e os Ofayé, Freundt esteve entre os Bororo (Boróro), pois também escreveu sobre os
mesmos. Referindo-se aos Kadiwéu apresenta alguns desenhos feitos de próprio punho e
discorre sobre o fabrico da cerâmica e as pinturas corporais. Freundt conheceu Anoã, uma
anciã Kadiwéu de muita habilidade na cerâmica e que anos mais tarde encantaria a Darcy
Ribeiro. Segundo ele, “A velhíssima Anoã é uma relíquia dos Caduveo. Guarda, ainda, as
antigas tradições no fabrico da cerâmica” (1946: 20). Freundt conheceu, ainda, outra
personagem que serviria para Ribeiro como informante: o velho “feiticeiro”, descendente de
índios Chamacoco, “João Gordo”.
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo franco-belga, dedicou a quinta parte de
Tristes trópicos (Cadiueu) aos Kadiwéu encontrados por ele em uma expedição realizada
entre 1935 e 1936. Especialmente os capítulos 19 (Nalike) e 20 (Uma sociedade indígena e
seu estilo) referem-se àqueles índios. Admirado com as pinturas faciais e corporais que vira
durante os trabalhos de campo, Lévi-Strauss pergunta a certa altura do texto: “Afinal, para
que serve a arte cadiueu?”.
3 Informações gentilmente repassadas ao autor por Roberta Kutschat, ex-aluna de Freundt e, atualmente, do
Centro de Memória CVPS (Colégio Visconde de Porto Seguro).
7
Ele mesmo tratou de tentar chegar a uma conclusão, ao escrever que:
Respondemos parcialmente à pergunta, ou melhor, os indígenas o fizeram por nós.
Antes de mais nada, as pinturas do rosto conferem ao indivíduo sua dignidade de ser
humano; operam a passagem da natureza à cultura, do animal “estúpido” ao homem
civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição segundo as
castas, expressam numa sociedade complexa a hierarquia dos status. Possuem,
assim, uma função sociológica (LÉVI-STRAUSS, 2001: 183).
Salienta-se que na época que esteve entre os Kadiwéu, Claude Lévi-Strauss,
acompanhado de sua esposa Dina Lévi-Strauss, ainda não havia se tornado o renomado
cientista que anos mais tarde seria reconhecido como o “pai do Estruturalismo” na
Antropologia. Antes, era um professor de Filosofia em início de carreira, integrante do
segundo grupo da Missão Francesa que viera ao Brasil fundar a USP (Universidade de São
Paulo). Faziam parte do grupo, além de Lévi-Strauss, Jean Maugüé, Pierre Monbeig e
Fernand Braudel, dentre outros.
De acordo com Luís Donisete Benzi Grupioni:
No final do primeiro ano letivo, em vez de voltar à França, como fizeram os outros
professores contratados, Lévi-Strauss e sua esposa partiram rumo às aldeias dos
índios Kadiwéu e Bororo, no Mato Grosso. A primeira expedição realizada por
Lévi-Strauss ao Brasil Central [1935-1936] não difere de outras expedições de
mesmo caráter organizadas no período [década de 1930]. Eram baseadas, [...], em
um conjunto de hipóteses, fruto das preocupações teóricas do momento e tinha [sic],
entre outros objetivos, intenção de formar coleções etnográficas (GRUPIONI, 1998:
122).
Wanda Hanke (1893-1958), nascida em Troppau, Áustria, realizou estudos
etnográficos na Bolívia e no Brasil, vindo a falecer em Benjamin Constant, Amazonas.
Escreveu um artigo a respeito dos Kadiwéu e Terena, com quem manteve breve contato no
então sul de Mato Grosso, no início dos anos 1940. O Museu Paranaense fomentou parte das
pesquisas da etnóloga, que escreveu também sobre os Kaingang, Ofayé e Tikuna. Numa das
edições dos Arquivos do Museu Paranaense, datada de 1942, encontra-se o texto Cadivéns
y Terenos, escrito em Espanhol. A autora faz interessante menção aos Kinikinau, afirmando
que os mesmos se encontravam “[...] mestizados y asimilados a los campesinos brasileños”
(HANKE, 1942: 79).
A antropóloga chama, ainda, atenção para a presença de índios de outras etnias entre
os Kadiwéu, notadamente Terena e Chamacoco. Uma importante informação contida no texto
de Hanke é sobre a aldeia Xatelodi (Xatelodo), vizinha à estação ferroviária Guaicurus (antiga
linha Bauru – Porto Esperança) e que na segunda demarcação da Reserva Indígena Kadiwéu,
ocorrida no início da década de 1980, ficou fora dos limites pertencentes aos índios, ainda que
8
os mesmos tivessem protestado veementemente (JOSÉ DA SILVA, 2004). O texto apresenta
algumas imagens de índios Kadiwéu, além de cerâmicas coletadas e expostas no Museu
Paranaense.
Hanke demonstra-se, ao longo do texto, impressionada com o grupo:
Los Cadivéns conservan así sus antiguas costumbres, al menos en ciertas ocasiones.
Dedicados a los juegos de azar – como todos los índios – no adoptaron los juegos de
la baraja, sino practican los juegos antigos. Uno de éstos se realiza con pelota: según
la caída de ella adentro o afuera de cierto límite marcado, se gana o se pierde. El
juego se llama “djadibáñonra”.
Admirables son sus reglas de higiene y sus conocimientos de la naturaleza. Saben la
duración de la gravidez de la mujer y conocen los ciclos de la menstruación. El parto
se hace en la propia casa con la ayuda de una mujer perita (HANKE, 1942: 83).
Pelos textos até aqui sumariamente apresentados nota-se que alguns aspectos da
cultura Kadiwéu despertaram o interesse dos etnógrafos que travaram contato com o grupo: as
pinturas faciais e corporais, o comportamento guerreiro e, sobretudo, a fabricação de
cerâmica. Sobre este último item, um dos textos descritivos mais antigos encontrados a
respeito das técnicas que envolvem o trabalho com a argila entre as mulheres Kadiwéu é do
naturalista estadunidense Herbert Smith.
DO MESMO LADO DO ATLÂNTICO, DO OUTRO LADO DAS AMÉRICAS: SMITH
E OBERG
Herbert Huntington Smith (1851-1919) publicou, dentre outras obras, Brazil, the
Amazons and the coast, em 1880. Em “O fabrico de louça entre os Cadiueus”, publicado em
Do Rio de Janeiro a Cuyabá, faz uma minuciosa descrição da forma como observou, por
volta de 1886, a fabricação de cerâmica entre as mulheres Kadiwéu (SMITH, 1922). O texto
originalmente fora divulgado na Gazeta de Notícias, periódico antimonarquista e abolicionista
publicado no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Embora não localize
precisamente os Kadiwéu encontrados por ele, Smith dá pistas importantes de que os mesmos
vivessem nessa época (final da década de 1880) às margens do rio Paraguai. A beleza da
cerâmica Kadiwéu chamou a atenção de Smith, embora o autor faça referências à baixa
qualidade das técnicas de confecção.
De acordo com o naturalista:
O fabrico de louça é entre os Cadiueus uma arte universal e, ao que parece, indigena.
Quasi todos os objectos que vi são ornamentados de maneira peculiar e,
9
considerando-se o grau inferior de civilisação destes indios, é muito notável o gosto
que se revela n’esta ornamentação. Ainda mais notavel é que tamanho progresso
haja conseguido uma tribu essencialmente erradia, a qual até muito pouco, não tinha
nem plantações nem casas dignas deste nome. A pericia no fabrico e ornamentação
da louça até agora só tem se encontrado entre tribus agricolas que têm habitações
fixas (SMITH, 1922: 16).
Kalervo Oberg (1901-1973), antropólogo canadense, escreveu The Terena and the
Caduveo of Southern Mato Grosso, Brazil (1949) em que se refere aos Mbayá no século XIX
(organização social, vida econômica, “ciclo de vida” e xamanismo), aos Kadiwéu “hoje” – no
caso, na época em que o texto foi escrito, ou seja, final da década de 1940 – (economia,
terminologia de parentesco, “ciclo de vida”, mitos, religião, danças e jogos) e da cerâmica
Kadiwéu (formas da cerâmica, manufatura e decoração). A obra contém um interessante
dossiê fotográfico, em que são retratados os Kadiwéu e os Terena, bem como objetos de sua
cultura material.
Traçando um resumido panorama histórico do grupo, Oberg escreve no início de seu
texto que:
During the eighteenth century the Caduveo, then known as the Cadiquegodí, seem to
have carried on their raids on both sides of the Paraguay River. In the nineteenth
century the Caduveo were ranging in the territory between Rio Branco and Miranda
River on the east of the Paraguay River where they finally settled. During the
Paraguayan War, from 1865 [sic] to 1870, what were left of the Mbayá fought with
the Brazilians against the Paraguayans. At the beginning of the twentieth century the
Caduveo were granted possession of an area of land in southern Mato Grosso,
Brazil, between the Nabileque and Aquidaban Rivers, bounded on the west by the
Paraguay River and on the east by the Serra da Bodoquena. It is in this reservation,
rich in agricultural and grazing land and plentifully supplied with fish and game, that
some 150 Caduveo are now living in three villages under the protection of the
Brazilian Government (OBERG, 1949: 03).
Assim como outros etnógrafos, Oberg faz inúmeras referências ao caráter bélico da
cultura Kadiwéu, referindo-se aos índios como possuidores de “qualidades espartanas”. Estas
e outras características dos descendentes dos antigos Mbayá-Guaikuru são ressaltadas ao
longo de praticamente todos os textos encontrados para as análises empreendidas, o que não
significa que fossem as únicas relevantes a serem anotadas. Ocorre que tais trabalhos estão
localizados em um recorte temporal em que a Antropologia possuía determinados interesses e
isto não escapa aos pesquisadores elencados, muitos deles preocupados em reunir objetos da
cultura material, além de narrativas e mitos, de sociedades que, se acreditava, estariam em
“vias de extinção”. Afinal, como lembra John Manuel Monteiro, “Sobretudo a partir do século
XIX, a perspectiva que passava a predominar prognosticava, mais cedo ou mais tarde, o
desaparecimento total dos povos indígenas” (MONTEIRO In: LOPES DA SILVA;
10
GRUPIONI, 1995: 222). Felizmente, no caso dos Kadiwéu, tais prognósticos não se
confirmaram e atualmente vivem mais de 1.500 indígenas na Reserva localizada no município
sul-mato-grossense de Porto Murtinho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura dos textos a respeito dos Kadiwéu escritos pelos europeus e norte-americanos
citados nesta comunicação evidencia alguns pontos importantes, aqui assinalados a guisa de
considerações finais. Praticamente todos os autores referem-se à “decadência” em que se
encontravam os Kadiwéu, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Tal
“decadência” seria resultado direto do contato daqueles índios com a “civilização” não
indígena.
Assim, o olhar destes etnógrafos viu os Kadiwéu como espécies de “resíduos” da
grande “nação Mbayá-Guaikuru” do passado, estabelecendo uma espécie de período de
“apogeu” da etnia, localizado entre os séculos XVIII e XIX. Os próprios autores chamam a
atenção em seus textos para o fato de que os Kadiwéu estariam muito “misturados” com
índios de outras etnias, tais como os Kinikinau, Terena e Chamacoco. Este olhar europeu e
europocêntrico, “civilizado” e “civilizatório” construiu a imagem que temos hoje dos
Kadiwéu do passado.
Em compensação, o conjunto das obras destes etnógrafos que vieram do outro lado do
Atlântico revela aspectos da cultura material dos Kadiwéu do passado, além de conter dados
relevantes sobre a organização social, o xamanismo e a própria história do grupo,
demostrando as diversas facetas do contato desta sociedade indígena como os não índios em
determinado contexto. Ressalta-se que estes “documentos” também fazem parte da história
dos Kadiwéu e que estes elaboraram, a partir de sua própria lógica, as presenças de
pesquisadores, estrangeiros e brasileiros, em seu meio ao longo do tempo. Afinal,
Certo é que a sociedade Kadiwéu nunca foi avessa à inclusão de estrangeiros.
Elementos da cosmologia Kadiwéu evocam esse seu movimento peculiar. Há [...]
mito[s] Kadiwéu que [...] fala[m] sobre a guerra de captura e faz[em] perceber como
é equacionada a inclusão de novos membros vindos de fora (PECHINCHA, 2000:
157).
Pode-se dizer que, de certa forma, os Kadiwéu do passado “cativaram” aos
pesquisadores estrangeiros, pois ao mesmo tempo em que foram observados e “construídos”
discursivamente por seus etnógrafos, também elaboraram tais presenças a partir de ideias e
11
parâmetros próprios. Se Lévi-Strauss, por exemplo, não sobreviveu na memória dos Kadiwéu
mais antigos, ainda vivos nos dias de hoje, é fato que o nome de Boggiani, chamado pelos
Kadiwéu contemporâneos de “Boggiano” (PECHINCHA, 2000) ainda está presente e bastante
ligado à figura de Darcy Ribeiro, considerado como um “filho” ou “parente próximo” do
explorador italiano do século XIX!
No caso dos Kadiwéu, Smith, Boggiani, Rivasseau, Frič, Manizer, Freundt, Lévi-
Strauss, Hanke e Oberg foram os “construtores” de grande parte da massa de informações que
se dispõe sobre estes índios, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX.
Foram, sem dúvida, esses viajantes e seus relatos etnográficos que elaboraram as
representações que se possui sobre a história e a cultura dos Kadiwéu em determinada época.
Não obstante as informações etnográficas recolhidas e a trajetória histórica que é apresentada,
tais informações estão longe de estar prontas e acabadas. O olhar de além do Atlântico,
portanto, reclama aprofundada revisão, pois ainda que não se possa voltar no tempo, os
documentos e os registros desses etnógrafos estão impregnados no papel, podendo-se sempre
apreender algo novo, aquilo que ainda não foi visto, dito ou escrito. E isso só é possível ser
percebido por meio de novas perguntas elaboradas pelo historiador que se vale das
ferramentas que o impedem de cometer alguns dos mesmos erros do passado: as ferramentas
da interdisciplinaridade, notadamente entre a História e a Antropologia.
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