TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 11
Professora do Departamento de História da UnB
Vanessa Maria Brasil
Tantas águas, quantas histórias, diferentes
narrativas – o São Francisco dos viajantes
Iniciando a viagem pelo rio São Francisco
Era noite, e Saint-Hilaire
Parou na serra o seu cavalo,
Sob a chuva e a bofetada do trovão
Europicamente deslumbrado.
Carlos Drummond de Andrade .
Espetáculo. Menino antigo (Boitempo – II).
Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, [I]
Ressoam aqui, na mais alvoroçada celeuma,
chiados e gorjeios sem fim dos mais diversos gêneros de aves, e,
quanto mais observamos o raro espetáculo,
tanto menos vontade sentimos de perturbar
aquele cenário pacífico da natureza. (Spix e Martius, 1820)
Límpidas e abissais, turvas e transparentes, penetrantes e superficiais,
agitadas e sonolentas, ondulantes e deslizantes, calorosas e refrescantes, vívidas
e destruidoras, sombrias e luzentes, silenciosas e sonoras, rasas e transbordantes,
livres e aprisionadas, unificantes e limitantes, lá vão elas, as águas do
São Francisco.
Quem as conhece? Quem por elas navegou e em que épocas? Quem
pôde ter, nos olhos e no corpo, a sensação contagiante dessas águas?
Alguns viajantes estrangeiros por elas navegaram, estudaram e transitaram,
pois estiveram no Brasil dos oitocentos. Que emoções sentiram ao
entrarem nessas águas seus corpos, suas idéias, seus planos, suas ações?
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Sensações de alumbramento, de reverência, de afetividade, de religiosidade,
de desencanto, de perplexidade, de riqueza, de pobreza. E contar
histórias desse povo ribeirinho faz parte de suas metas? Essas histórias estão
em seus relatos?
Pois bem, chegou o momento de darmos respostas a todas essas indagações.
Mas em que águas e em que paragens essas repostas foram se desaguar?
Após muitas braçadas, fomos encontrá-las num rio de papéis intitulados
– literatura de viagem – , que consiste nos relatos cotidianos de inúmeros
viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil e, em especial, os cinco estados
banhados pelo rio São Francisco, durante a primeira metade do século XIX.
Porém, para não ficarmos à deriva nessa imensidão de tempo e espaço, nós
traçamos um curso. Vamos navegar pelo rio São Francisco, beirando as duas
margens: a história e a literatura. A margem literária constitui fonte inesgotável
de informações a respeito do rio São Francisco, seja de natureza técnica e/ou
historiográfica. Com certeza, é um encontrar, um embolar, um emaranhar, um
distanciar de águas distintas, mas no final elas terão um porto seguro.
Muitas vezes esses dados, mesmo os mais relevantes, nos são fornecidos
de maneira assistemática e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas
do rio, quando resolvem emaranhar-se. Creio que chegou a hora de pedirmos
ajuda, porque nosso fôlego diminuiu e, quem vem de barco é o historiador e
literato Sérgio Buarque de Holanda, para nos informar sobre uma das mais
importantes contribuições dos diferentes viajantes estrangeiros, assim que
chegavam ao Brasil. Criar uma imagem do país, “uma vez que o olhar estrangeiro
acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou
esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país”
(HOLANDA,1976, p.13,14).
Comprovamos que esse seu pensamento vai ao encontro dos relatos de
Spix e Martius na obra “Viagem ao Brasil”. De acordo com os dois naturalistas,
após recolherem vasto material de pesquisa, em várias localidades do Brasil,
sempre apresentavam às comunidades os seus resultados e, que ficavam surpresos,
pois este rico material era “alvo de admiração da gente da cidade, que
peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão
pouco conhecida deles próprios” (Apud Lisboa , 1975, p. 115).
Nossa resistência aumentou? Nossas águas ficaram mais translúcidas? As
águas das margens literárias e históricas se distanciaram ou se emaranharam?
Só um pouco, é preciso mais luz. Afinal, quem escreveu essas narrativas sobre
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o rio São Francisco abordou muitos assuntos. Além disso, os viajantes estrangeiros
atravessaram águas salgadas antes de cá desembarcar. Outra salva-vidas
trás mais uma bóia e diz: “Os depoimentos de viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida
compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na
armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a
única e própria realidade”. (Reichel, Heloisa Jochims, p. 2)
Nossa Senhora dos Afogados!!!
E agora? É melhor nadarmos diretamente em direção a essas fontes e
deixarmos emergi-las. Escolhemos as narrativas de quatro viajantes vindos
de outras plagas, indivíduos das mais diferentes origens e propósitos. Todos
eles são europeus, vivendo em contextos históricos distintos; alguns vieram
de países em pleno desenvolvimento capitalista, como a França e a Inglaterra,
outros são provenientes de regiões em processo de unificação, como o Império
Austro-Húngaro. Alguns acontecimentos auxiliaram e impeliram a viagem
desses naturalistas para outros mundos. Por exemplo, o estreitamento dos
vínculos comerciais entre Portugal e Inglaterra e a consequente abertura dos
Portos; o Congresso de Viena, o casamento de D. Pedro I, que favoreceu a
locomoção dos viajantes estrangeiros, precedentes de várias partes da Europa
continental.
As águas do rio São Francisco continuam revoltas. Mais uma vez contamos
com o esclarecimento de outra navegante, pois ela também circulou
pelas margens literárias e históricas dessas águas. É a Ana Maria Belluzo
quem nos socorre, dizendo que os relatos de viajantes estrangeiros são um
tipo de produção que só pode “dar a ver um Brasil e um rio pensado por
outro”(BELLUZO, 1995, p.170). Em seguida chega mais um salva vidas, dessa
vez um literato de peso, Antônio Candido nos alertando para o significado
dessa visão estrangeira. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente
como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções,
mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu”
(LEITE, 1996, p. 6-7).
É, precisamos ter cuidado para não afundarmos junto com esses estrangeiros,
portanto, vamos elencar o quê buscar em suas águas, ou seja, em suas
narrativas. Atentamos para os aspectos físicos, tais como o clima, a fauna, a
flora, a navegabilidade, o relevo, os recursos minerais e, também, os aspectos
sociais e culturais das populações ribeirinhas, sempre na perspectiva de que
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esse tipo de literatura é fundamental para a apreensão da historicidade de um
evento dado, pois traz a possibilidade de novas aproximações com a história
do Brasil.
Durante uma parte do século XIX, os viajantes, mesmo os que desejavam
ir para outras províncias brasileiras, detinham-se no Rio de Janeiro para obter
licença e cartas de apresentação das autoridades e, em seguida, dar início às
suas pesquisas.
Viajantes estrangeiros convid ados: um francês mergulhando no rio
Entre os que chegaram elegemos ingleses, austríacos e um francês, que
percorreram o rio São Francisco, em suas respectivas províncias, na primeira
metade do século XIX. Quando eles irão emergir das águas? Qual vai ser o
primeiro a se apresentar?
E meio a um calor escaldante de um Brasil ainda Colônia, surge o botânico
francês Saint-Hilaire, que aportou em nosso país em 1816, junto com
a Missão Artística Francesa. Durante os seis anos de permanência no Brasil,
esse botânico viajou por várias províncias, como Minas Gerais, Goiás, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Bahia, visitando inúmeras localidades. E quanto ao rio
São Francisco? Calma, lá vem o Saint -Hilaire, todo esbaforido e suado, carregando
uma porção de tralha e reclamando do calor : Merde, merde! Primeiro
preciso conhecer as nascentes do rio para depois emitir minhas opiniões.
Lá se foram Saint-Hilaire e seus ajudantes. Eles pretendiam ir à Comarca
de Paracatu e de lá a Goiás, mas se desviaram do caminho mais direto a fim de
conhecer o rio São Francisco. Embrenharam-se mata adentro e, após algumas
horas, começaram a ouvir um barulho ensurdecedor, logo identificado com o
de uma cachoeira, que despencava de um dos lados da Serra da Canastra. De
acordo com esse viajante, o “espetáculo arrancou dele um grito de admiração”
(SAINT-HILAIRE, 1975, p. 104). A cachoeira, de nome Casca d’Anta precipitava
sem violência , exibindo “um belo lençol de água branca e espumosa
que se expandia lentamente, parecendo formar flocos de neve. As suas águas
caiam desordenadamente, por uma encosta escarpada para formar o famoso
rio São Francisco”(Idem, ibidem, p. 104-105).
Saint-Hilaire continua a sua caminhada por uma vegetação composta só
de arbustos, mas logo adiante o terreno já se apresentava coberto de densas
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matas, onde se viam numerosas palmeiras. A beleza da nascente do rio e dos
lugares por onde andava fez o viajante ter saudade de sua terra natal e, num
dado momento, comparou a paisagem local com a do seu país, comentando:
“o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de
encantadora: um céu de azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma
cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das
folhagens e, as matas virgens, que exibem todo o tipo de vegetação tropical”
(Idem, ibidem, p. 104).
Coroadas, majestosas, cintilantes todos esses elogios narrados pelo
viajante francês nos fez lembrar as monarquias, francesa, portuguesa e quiçá
brasileira. De uma coisa temos certeza, na opinião de Saint-Hilaire a nossa
paisagem já era real.
Da nascente aos afluentes e enfim ao leito do rio, o São Francisco “é o
maior da província das Minas e um dos mais importantes do Brasil”(Idem, ibidem,
p. 279), assim comentou o botânico francês em parte de seus relatos. Mas
que sensações esse rio proporcionou aos povos que viviam em suas margens e
nos sertões adentro? O viajante narrador observou que em uma grande parte
dos terrenos situados próximos ao rio, criava-se gado em quantidade ainda mais
considerável do que nas partes altas do sertão. O botânico fez essa afirmação
a partir dos seus contatos em outras partes dos sertões das Gerais.
Nesse trecho é importante explicar o significado de sertão para o viajante
francês: “compreende, nas Minas a bacia do São Francisco e dos seus
afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira
ou, pelo menos, quase a partir dessa cadeia até os limites ocidentais da província”
(SAINT-HILAIRE, 1938, p. 248). Mon Dieu! Tantas águas e agora
tantos sertões!
No início dos oitocentos, lá em Portugal, a palavra sertão tornou -se sinônimo
de interior, daquilo que se opõe ao marítimo, ao costeiro, e nos trópicos,
as águas dos rios deram-lhe um novo banho. A navegante literária, Janaína
Amado, deixa transbordar mais informações a esse respeito ao acrescentar
que no início do século XIX o “sertão estava de tal modo integrado à língua
usada no Brasil, que os viajantes estrangeiros em visita ao país registravam a
palavra, utilizando-a várias vezes em seus relatos: Sain-Hilaire usou ‘sertão’
em mais de um livro, sempre designando as áreas despovoadas do interior do
Brasil”(AMADO, 1995, p. 05).
Saint-Hilaire quis reforçar seu entendimento sobre sertão e volta nos
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informando, que ao dizer “despovoada, refiro -me aos habitantes civilizados,
pois de gentios e animais está povoada até em excesso” (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 256). Com certeza outros significados de sertão vão surgir nos variados
relatos escolhidos por nós, portanto, não podemos confiar nas primeiras aguadas.
Devemos mergulhar profundamente nos rios históricos e literários. Para
isso, convidamos o navegador histórico, Durval Muniz (ALBUQUERQUE
JR., 1999, p. 39), que, após muitas braçadas, nos alertou que é fundamental,
em nossas pesquisas, analisar os conceitos e as categorias conforme eles
emergiram em cada momento histórico.
Dando continuidade ao nosso percurso ao longo do rio São Francisco
e, voltando às narrativas de Saint-Hilaire, nos deparamos com esse botânico
preocupado com o sertão, com o gado e com o futuro desse rio. Em um dado
momento de sua narrativa, comenta que o sertão conhecerá novos recursos
e, ao mesmo tempo, “restar-lhe-ão sempre gordas pastagens, terras férteis, e
um rio que navegável em imensa extensão, estabelecerá uteis comunicações
entre o país e o oceano” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 278).
Ao falar do comércio realizado por essas bandas, se lembra de outras
províncias banhadas pelo São Francisco e as funções que lhe foram atribuídas,
ao longo da história, a de união, de terras e de gentes. Diz-nos que o algodão
pode ser exportado para “Pernambuco e Bahia pelo rio, e o feijão assim como
o milho podem ser permutados pelo sal trazido da região das salinas, situada à
margem do rio, e onde a excessiva seca se opõe ao cultivo dos cereais”(Idem,
ibidem, p. 320).
O pesquisador francês continua observando e conferindo as funções
atribuídas ao São Francisco e logo nos aponta mais uma delas, a de fixador,
de atração natural, ao descrever uma cena sobre os costumes das pessoas que
escolheram viver mais para o interior da região são-franciscana. “Felisberto
nos recebeu maravilhosamente bem. Morava num casebre humilde, desprovi
do de conforto. Leite e feijão no nosso jantar, e por leito me deram um colchão
de palha sem lençol. Mas tudo foi oferecido de bom coração” (SAINTHILAIRE,
1975, p. 103).
Nem sempre Saint-Hilaire via o rio, suas riquezas, seu povo e os lugares
por onde passava com tamanha benevolência. Às vezes, os mosquitos, os
infernais borrachudos, mudavam o seu humor e as suas opiniões. Em sua
passagem pela Comarca de Paracatu, depois de prolongada seca, o viajante
estrangeiro comenta que ficou privado de arroz durante três semanas, o calor
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Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
era excessivo, o capim estava seco, não tinha flores, “alojamentos detestáveis
e hospedeiros ignorantes e estúpidos”(Idem, ibidem, p.119). Enfim, a viagem
foi “penosa para ele e infrutífera para a ciência” (Idem, ibidem, p. 119).
Alguns parágrafos depois desses comentários, o botânico francês parece
se arrepender e nos informa que Paracatu “dispõe de todos os elementos
propícios à riqueza e à prosperidade. Não somente se encontram aí jazidas
de ouro e diamantes como também de ferro e estanho”(Idem, ibidem, p.123).
Com relação à sua especialidade, comenta que “diversas plantas fornecem
ao homem salutares remédios, as terras são férteis e as pastagens imensas”.
Diz ainda, que em vários pontos da Comarca pôde comprovar a existência
de “águas minerais de valor inestimável para a cura de várias doenças e que
permitia aos criadores de gado substituí-la pelo sal, gênero tão caro no interior
do país”(Idem, ibidem, p.142).
Saint-Hilaire continua a sua longa caminhada pelas margens do rio São
Francisco, observando minuciosamente tudo e todos que vê em seu caminho
e, é claro, sem deixar de emitir as suas opiniões, nem sempre coerentes, acerca
das habitações e das populações ribeirinhas. Quanto às habitações, ele nos
informa que eram “miseráveis palhoças. O que há de extraordinário em tudo
isso é que são homens brancos que moram nessas palhoças”(Idem, ibidem,
p. 120). Ao falar das populações locais, ele aproveita para analisar a questão
da ‘cor’ de seus habitantes e comenta: “Nem toda a população é composta
de homens de cor e, muitas vezes, a cor não corresponde aos bons costumes
e à educação”(Idem, ibidem).
Antes de partir rumo a Salgado ou brejo do Salgado, paróquia que tem
“quarenta léguas de comprimento por vinte de largura e cuja população atinge
8 mil almas”(Idem, ibidem, p.121), o botânico decide descansar, acampando a
margem desse rio. Pelo jeito descansar o corpo, pois a sua língua não parecia
cansada. Conseguiu ver que o local compunha-se de “meia dúzia de cabanas
cahindo em ruínas e, a maior parte dellas abandonada”(Idem, ibidem, p.
119).
Saint-Hilaire continua sua caminhada e, pouco depois comenta: “Ao
me aproximar de Paracatu encontrei finalmente uma pessoa com a casa bem
cuidada, mais do que a maioria das outras e com quem pude conversar. O
extraordinário no caso é que esse homem era um mulato”(Idem, ibidem, p.
123), diz ele. Parece que o sol claudicante da viagem esquentou a sua cabeça
e seus pensamentos.
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Após um bom descanso, o viajante francês descreveu um por de sol admirável
e o rio São Francisco deslizando com extrema lentidão nessa localidade.
“O céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma
calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as
águas e nem sequer enrugavam-lhe a superfície”(SAINT-HILAIRE, 1938, p.
328). Que você descanse sempre, Sain-Hilaire!
Acreditamos que ele, infelizmente, deve ter passado a noite deitado sobre
suas malas e não em sua cabana, pois dentro desta os “bichos de pé são muito
numerosos”(Idem, ibidem, p. 362).
Em outro trecho de seu diário, ele relata que os “terrenos próximos as
duas margens do velho Chico apresentavam-se impregnados de sal e que os
habitantes de Salgado sabiam extraí-lo e dele faziam “um importante objeto
de comércio”(Idem, ibidem, p. 332).
O açúcar e a aguardente principais gêneros dessa localidade eram
constantemente oferecidos em troca de sal. Ele continua nos contando que
a prosperidade reina entre os habitantes de Salgado devido ao importante
comércio realizado por vários mercadores, possibilitando maiores oportunidades
de lazer, para alguns setores dessa comunidade. “Parece que vários
deles possuem grande quantidade de escravos, e meu proprio hospedeiro tinha
setenta”(Idem, ibidem, p. 333). Ali ele observou que as pessoas “jogavam cartas
e gamão, ouviam música e dançavam alegremente. Uma vez até ensaiaram e
apresentaram uma peça de teatro em sua homenagem “ (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 133).
Enfim, um Sant-Hilaire menos ‘salgado’. Sua viagem segue para a província
de Goiás, mas não vamos acompanhá -lo nessa jornada, pois o rio São
Francisco não corta essa província. Quanto a sua despedida do Brasil, só vamos
entendê-la lendo as últimas partes de seu diário e, em particular, os ‘votos do
autor’. Saint-Hilaire deixou claro que gostaria de ter os seus apelos e conselhos
atendidos. Por quem? Onde? Tentemos compreender suas palavras: “Quanto
a mim, se vier, a saber, que meus fracos apelos foram ouvidos, que alguns conselhos
produziram frutos, jamais lamentarei ter passado perdidos nos sertões,
em meio a privações, longe de minha família e de minha pátria, os mais belos
dias da minha existência”(Idem, ibidem, p.189). Segue a sua narrativa, agora
lamentando sobre a perda de sua saúde, pois “paguei a dívida da hospitalidade,
e minha passagem pela terra não foi inútil”(Idem, ibidem, p.190).
Um tanto dramático esse monsieur Saint-Hilaire!
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Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Mudança de rumo – dois bávaros embarcam nessa vigem pelo velho
Chico
Atento a todos os movimentos, tanto em suas margens quanto dentro
de suas águas, o rio São Francisco continua o seu curso em direção ao mar.
Quem será o próximo a me visitar, a me desvendar? Atravessando o Atlântico
rumo ao Brasil, lá vem outro viajante, de língua enrolada, para conhecer o rio
de tantas histórias.
Valei-me meu São Francisco, dessa vez são dois, os bávaros Spix e Martius,
que pretendem passar uns três anos visitando várias províncias brasileiras,
no período de 1817 a 1820, e com certeza vão cruzar com o inequecível
viajante francês, que ainda continua seus estudos científicos pelo país. Eles
vêm a bordo do navio que traz a D. Leopoldina, arquiduquesa d’Áustria, para
se casar com D. Pedro I. De acordo com esses dois estudiosos, foi o amor
à ciência que os conduziu para terras tão longínquas e, em especial, para o
rio São Francisco. Eles irão percorrer as províncias do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piaui, Maranhão, Pará e Amazonas,
estudando a fauna e a flora brasileira. Quem sabe em dupla, o humor desses
dois viajantes seja mais agradável!
Vários aspectos observados por Saint-Hilaire, com relação ao rio São
Francisco, as províncias banhadas por ele e as cidades que o margeiam,
também serviram de pesquisa para Spix e Martius: a vegetação, os minerais,
os animais, a formação geológica, os afluentes desse rio, as doenças típicas
dessas regiões, a navegação e as embarcações, as populações ribeirinhas e seus
hábitos e costumes, enfim, a imponência desse rio impressionou tanto os dois
pesquisadores, que eles estudaram, relataram e desenharam muito mais do que
o previsto em suas profissões de naturalistas e zoológos.
Ao sair do Rio de Janeiro com as suas cartas de recomendação, os
viajantes bávaros adentraram o sertão rumo ao rio que tem nome de santo,
São Francisco. O início da viagem científica significa também o início das
observações, das anotações e coletas e dos comentários da dupla a respeito
de tudo que viam.
Depois de forçar o caminho através da mata intensa, “cheios de alegria,
avistamos o rio São Chico passar suas ondas espelhentas em majestosa calma
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diante de nós” (SPIX&MARTIUS, 1981, p. 88). Dentro desse clima de admiração,
os naturalistas sentiram que a força das águas desse rio iriam reanimarlhes
os ânimos, para seguir viagem e finalmente alcançarem, “depois de tantas
atribuições e desventuras, a margem do abençoado rio hospitaleiro” (Idem,
ibidem, p. 218). A viagem prossegue nas Minas Gerais, com os dois viajantes
observando que o rio era, já naquela época, a “via usual do comércio” (Idem,
ibidem, p. 91) de uma grande parte do sertão das Gerais. O São Francisco
transportando os seus produtos para a Bahia “com facilidade maior do que
em lombo de mulas ao Rio de Janeiro e em troca recebendo o sal das salinas
situadas ao norte do rio, além de mercadorias européias” (Idem, ibidem, p.
91).
Tomara que o sal não amargue o humor desses naturalistas, até o momento
muito agradável. Felizmente eles continuam a viajar por trechos do
rio São Chico onde existe uma quantidade de pequenos engenhos, apesar de
“muito pouco açúcar ser produzido. A produção é “quase que exclusivamente
de rapadura parda, sendo a maioria despachada rio abaixo para a província da
Bahia”(Idem, ibidem, p. 91).
Além de relatarem que o São Francisco derrama as bênçãos de um grande
rio sobre toda a população ribeirinha, os dois naturalistas alemães matam
um pouco da saudade da terra natal ao afirmarem que o rio os faz lembrar
o “pátrio Reno na parte onde ele sai apertado dos montes, percorrendo de
Bonn em diante, férteis planícies” (Idem, ibidem, p. 221).
Ainda em Minas, ficam impressionados com a abundância e variedade de
peixes, tanto no rio São Francisco quanto em seus principais afluentes, e com
a riqueza das aves às margens desse rio. Já é hora de sair das Minas Gerais,
atravessar o sertão da Bahia até Juazeiro, às margens do rio São Francisco.
No transcorrer do caminho eles deparam com tropas de mulas e comentam
que elas saem das províncias do “Rio Grande do Sul e de São Paulo e que
geralmente são tocadas ao longo desse rio, em direção à província da Bahia”
(Idem, ibidem, p. 228).
Mais uma vez os bávaros ficam impressionados não só com a quantidade,
mas com a qualidade das “espécies de animais fantásticos, como os variados
tipos de morcegos que habitam as Minas Gerais, principalmente as regiões
das grutas que margeiam o rio São Francisco” (Idem, ibidem, p.81). Segundo
Spix e Martius, os morcegos em “numerosos bandos atacam o gado à noite e
muitas vezes obrigam os habitantes a abandonar as suas fazendas e retirar-se
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para regiões mais sossegadas” (Idem, ibidem, p. 81).
Com relação à riqueza das aves que vivem às margens do velho Chico,
os dois viajantes gastaram páginas e páginas em seus diários, tanto em relatos
quanto em desenhos. As aves que lá e cá gorjeiam e falam, essas, então, foram
merecedoras de incontáveis elogios.
Mas qual não foi a nossa surpresa, ao depararmos, em uma das páginas
desse precioso diário, com uma cena no mínimo estarrecedora. O Sr. Dr. Spix,
não contente com a refeição frugal que lhe foi oferecida, em um dos trechos
da viagem decidiu contribuir, para completar o cardápio de feijão e toucinho,
com os produtos de sua vitoriosa caçada: alguns verdejantes papagaios. Pobres
louros, o que diriam eles a esse bávaro caçador, tão preocupado com a nossa
exuberante fauna? Curupaco, papaco...
E a expedição continua rumo às terras das Gerais. Novos gêneros de
caça iam surgindo, como caititus, veados, onças e antas. Spix, Martius e seus
companheiros de viagem comentam alegremente: “É muito agradável a caçada
a esta última, pois não tem perigo algum”( Idem, ibidem, p. 83). O perigo não
estava com as antas, pois elas cotidianamente saiam dos brejos em direção às
matas e mal sabiam que homens caçadores estavam atrás das grossas árvores,
tomando posição para atacá-las com balas de espingarda. Alguns mais arrojados
“arremessavam um facão largo no meio do peito da anta passando a toda
pressa” (Idem, ibidem, p. 84). Comentavam esses homens que essa atitude
era bem arriscada, “embora o animal não pudesse ferir com os dentes, nem
com as garras, só o formidável embate, que ele der com o focinho, basta para
ferir seriamente” (Idem, ibidem, p. 83). Relatam ainda, que tiveram a sorte de
matar duas antas grandes em um só dia, e de “capturar uma cria para amansar”
(Idem, ibidem, p. 83).
Pobre santo, o Francisco, não é à toa que ele decidiu ser o protetor dos
animais, além de dar nome ao rio.
As águas do velho Chico continuam a deslizar, as folhas das árvores a
balançar, algumas vezes fora do ritmo normal, incomodadas com o ruído das
armas. Numa pausa do dia, entre relatar e caçar, podem os caçadores europeus
abandonar-se às impressões do sossego da mata brasileira e apreciar os
buritizais, ornamento característico da bacia do rio São Francisco. O buriti,
“um dos mais belos produtos do mundo das plantas” (Idem, ibidem, p. 103)
fornece aos habitantes da região fios e fibras resistentes para a cobertura das
palhoças; a seiva dos caules produz uma bebida agradável, semelhante à água
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da bétula” (Idem, ibidem, p. 103) e a polpa do fruto, misturada com outros
ingredientes, é doce apreciado e artigo de comércio do sertão de Minas com
a costa.
A natureza pródiga beneficia também as mulheres, pois a “fertilidade
delas e o crescimento da população no norte de Minas é um dos fenômenos
mais prodigiosos” (Idem, ibidem, p. 85). De acordo com Spix e Martius, um
hospedeiro de Contendas contou-lhes que o trecho “entre o rio Verde Grande
e o rio São Francisco conta com quase 10 mil almas” (Idem, ibidem, p. 87). Para
constatar a fertilidade da região, das mulheres e dos homens, esses viajantes
nos descrevem que “certa mulher de pouco mais de 50 anos, moradora de
Contendas, tem 204 descendentes vivos; outra, que aos setenta anos casou-se
com um velho da mesma idade, deu -lhe trigêmeos, que ainda vivem” (Idem,
ibidem, p. 86). Nem a bíblia explicaria tamanho milagre! Os viajantes também
ficaram admirados com as mulheres novas: “não é raro ali uma moça de
apenas 20 anos, já ser mãe de oito a dez filhos” (Idem, ibidem, p. 86). Entre
os homens, encontram- se velhos ativos, vigorosos, “de altura gigantesca, que
conservam todo o humor da virilidade”( Idem, ibidem, p. 86).
A mortalidade era muito pequena, “morrem apenas três a quatro pessoas
por ano, ao passo que nascem 70 a 80” (Idem, ibidem, p. 86). A prole
numerosa não constitui motivo de queixa e miséria.
Após tantas notícias, a expedição dirigida pelos dois viajantes força
caminho pela orla do mato, que o povo chama de alagadiço. Cheios de alegria
e ânimo, avistaram outro trecho do rio São Francisco: “o majestoso rio
resplandeceu, ondulando placidamente” (Idem, ibidem, p. 221), sob o olhar
atento dos dois naturalistas.
Em meio às andanças pelas matas, pelas margens do rio e diferentes
localidades, os bávaros comentaram que precisavam pesquisar e anotar muitos
dados sobre aquela expedição ao interior do Brasil, porque ao sair de seu país
teriam declarado o “amor a Vossa Majestade e à ciência” (Idem, ibidem, p.
02). Também não podiam esquecer que vieram na bagagem da D. Leopoldina
e que, ao chegar ao Rio de Janeiro, eles contaram com valiosos recursos de D.
Pedro I, para iniciar os trabalhos.
Hoje sabemos que a produção científica dos dois naturalistas bávaros,
resultado dessa expedição, é extremamente importante, com várias obras
publicadas e que os dois, em especial o Martius, não se limitou à taxonomia e
nem mesmo à botânica. Ele escreveu sobre as plantas medicinais brasileiras, fez
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 23
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
observações fitogeográficas, estudou etnografia, assuntos lingüísticos, o costume
dos indígenas brasileiros, organizou mapa fitogeográfico do Brasil, além
dos incontáveis desenhos de cenas da fauna, da flora e do povo ribeirinho.
Vamos observar detalhadamente as narrativas desses dois viajantes,
principalmente depois desses compromissos e preocupações assumidas. Sobre
o velho Chico e as comunidades ribeirinhas, as informações são riquíssimas e
variadas, porque de acordo com Spix e Martius, a “imponência e importância
do rio deixaram-nos impressionados” (Idem, ibidem, p. 70).
Ao viajarem do sertão até o rio São Francisco, uma soma enorme de
anotações foi realizada e, dentre elas, a qualidade da água, que para eles “embora
fresca e potável era enjoativa e parecia ser um dos fatores da malária,
tão predominante e devastadora na grande região desse rio.”( Idem, ibidem,
p. 78)
Nada como um bom descanso ao ar livre para amenizar a opinião desses
naturalistas, pois nesse momento eles “nem sentiam a falta da agradável e
saudável água do rio São Francisco” (Idem, ibidem, p. 104).
As grandes cheias, assim como as grandes secas, os afluentes das duas
margens do rio São Francisco ocuparam muitas páginas de seus diários. Vale
ressaltarmos as anotações, os desenhos e comentários feitos com relação à
fauna e à flora brasileira e, em especial, as da região são franciscana.
Na flora dessa intensa e rica região eles notaram uma “decisiva predominância
das plantas das famílias das Nopáleas, Verbenáceas, Malváceas,
Terebintáceas, Rutáceas” (Idem, ibidem, p. 103), valei-nos São Francisco,
quantos nomes complicados! Destacaram mais uma vez estar encantados
com os buritizais, que segundo os dois bávaros, caracterizam e ornamentam
a bacia do velho Chico.
Nesse vai-e-vem, nesse sobe e desce o rio e seus afluentes, Spix e Martius
decidem demorar um pouco mais em Contendas. À margem do rio, os dois
botânicos encontraram uma melhor oportunidade para fazer as suas anotações
médicas. Relataram que em vários trechos às margens do São Francisco as
“febres são endêmicas e reina grande disposição para elas, além de inflamações
no peito e no abdome serem bem comuns nas proximidades do rio” (Idem,
ibidem, p. 96 ). Notaram também que na parte alta do sertão das Gerais a
população tinha um aspecto mais saudável .
Uma cena diferente distrai o olhar dos naturalistas e os fazem mudar de
assunto. Outra enorme tropa de mulas vindas das províncias do Sul e de São
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Vanessa Maria Brasil
Paulo, “geralmente são tocadas ao longo do rio São Francisco à província da
Bahia” (Idem, ibidem, p.199). A curiosidade aumentou, pois os naturalistas
queriam saber qual o conteúdo das cargas e, por isso, várias perguntas fizeram
aos tropeiros. Os produtos eram os mais diversos, como “açúcar bruto,
cachaça, farinha, fumo (Idem, ibidem, p.111)” que deveriam ser trocados com
o sal daquela localidade. Foram informados, ainda, que pelo leito do rio São
Francisco já era habitual, naquela época, o transporte de uma grande parte
desses produtos do sertão das Gerais para a Bahia, chegando até o Rio de
Janeiro e que os tropeiros preferiam “o transporte pelo rio ao invés de tropas
de mulas” (Idem, ibidem, p. 228).
Aproveitando o assunto acerca de transporte pelo rio, os naturalistas
emendaram, em seguida, o tema sobre navegação fluvial. E as funções de
separar, unir, dividir, transportar atribuídas ao São Francisco, ao longo de sua
história, foram brotando nos relatos de Spix e Martius. Notaram in loco que o
rio “separa as capitanias da Bahia e Pernambuco, e Registro, situado à margem
setentrional do São Francisco, frente a Juazeiro, faz parte de Pernambuco”
(Idem, ibidem, p. 221).
Em outra página do diário, anotaram que “estando em Juazeiro poderiam
continuar viagem por uma parte da província de Pernambuco, em direção a
Oeiras, capital do Piauí” (Idem, ibidem, p. 252).
Mais uma vez as funções de travessia e de fronteira atribuídas ao rio
surgem em seus inúmeros relatos, ao comentarem que “atravessaram um
lugar raso do Carinhanha e, ao meio-dia, voltamos outra vez ao rio, em cuja
margem setentrional tínhamos que prosseguir até a sua foz no São Francisco.
Este rio, que forma aqui a fronteira entre Minas e Pernambuco” (Idem,
ibidem, p. 113).
Voltando a narrar sobre a navegação nesse rio, os dois viajantes chamam a
atenção do leitor para os tipos de embarcações que conheceram, por exemplo,
as simples barcaças e ajoujos (canoas amarradas, uma ao lado da outra) . Para os
dois viajantes, a navegação fluvial se destaca não só pelos tipos de transporte,
mas, também, pela grande importância no crescimento da população e do
comércio, pois, “desde São Romão até Juazeiro, na província da Bahia e, com
o crescimento da população e do comércio, os poucos casebres do povoado
se transformarão brevemente em próspera cidade” (Idem, ibidem, p. 91).
A viagem prosseguia ora sertão adentro, ora pelas margens do rio. E ao
longo do percurso nenhum acontecimento alterou o humor dos estrangeiros?
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 25
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Nada de mosquitos? E os animais selvagens? Como diz o velho ditado, quem
procura, acha, fomos revirando as páginas dos diários e foram surgindo as
reclamações. Para debulhar o rosário de queixas os naturalistas escolheram uma
localidade, Malhada, “por sua posição insalubre, é entre as povoações do rio
São Francisco, a de pior reputação” (Idem, ibidem, p. 115). Agora aumentou
a nossa curiosidade. Por que será? Acabamos de descobrir ao virarmos mais
uma página do diário dos viajantes: “Malhada apresentava um número muito
grande de doentes de fígado e baço, calor insuportável e o pior, a quantidade
de roubos sem nenhum tipo de punição” (Idem, ibidem, p. 116).
Em outra parada para descanso, os dois estrangeiros relembraram a
época em que colonos europeus se espalharam da província da Bahia para a
província do Piauí, entre os anos de 1674 e 1700 e, pouco mais tarde, deram
início às viagens pelas Minas Gerais, pelo rio São Francisco abaixo. Nesses
percursos, os colonos europeus presenciaram a “fundação de muitas missões
pelos franciscanos, que já se encontravam na Bahia” (Idem, ibidem, p. 216).
Ao narrar sobre essas missões, os naturalistas comentaram ainda o papel
dos religiosos na catequese dos índios e desenharam cenas de “várias tribos
indígenas que, durante os meses secos, se direcionavam para as margens do
rio São Francisco, onde viviam principalmente da pesca, pois havia abundância
de peixes” (Idem, ibidem, p. 216).
Assim como Saint-Hilaire, os dois bávaros gastaram páginas e mais páginas
de seus diários, relatando acerca da produção de salinas e do comércio
de sal realizado nas feiras, com comerciantes de Minas Gerais, assim como
o despacho do produto para todo o interior do país via rio São Francisco. O
sal era importante não só para o comercio, mas também para alguns animais.
“O gado, que pasta em grandes rebanhos nestas campinas, procura o sal com
avidez, e lambe os barrancos, às vezes em longas filas, numa camaradagem
pacífica” (Idem, ibidem, p. 114). De acordo com Martius, esse comportamento
parece ter passado dos animais para os homens: “Quero referir-me à irreprimível
vontade que tem as crianças de comer terra” (Idem, ibidem, p. 87). Ele
viu meninos e meninas comerem a “terra margosa, às vezes o revestimento
calcário das paredes” (Idem, ibidem, p. 87) e, segundo o naturalista, só uma
vigilância constante poderia impedir tal hábito. Continua relatando que “parte
do material indigesto não pode ser eliminada, e ocorre a inchação das glândulas
abdominais”. As crianças são barrigudas, pálidas, raquíticas e, “quando não
morrem, sofrem de câimbras ou hidropisia” (Idem, ibidem, p. 87).
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Vanessa Maria Brasil
Ilustres naturalistas, esse mal é causado por vermes e lombrigas. Em
seguida ouvimos uma pergunta com sotaque carregado: Uma pessoa falar
alguma coisa?
Sim, nós leitores e moradores dessas regiões ribeirinhas acostumadas
que somos, com essa cena, crianças barrigudas comendo terra, resultado da
quantidade de vermes. Elas são tratadas com as plantas locais. Como os senhores
botânicos constataram em suas pesquisas, “a natureza daquela região
fornece-lhes a opulência de suas poderosas plantas medicinais, que merecem
a máxima consideração dos médicos, e muitas das quais deveriam, no futuro,
enriquecer a farmacopéia da Europa” (Idem, ibidem, p. 87).
Até aquele momento, o humor dos dois naturalistas não tinha sido
contaminado pelo sal, mas em outro trecho de suas narrativas, o paciência dos
estrangeiros nos pareceu bem menor. Notávamos que a impaciência dos dois
viajantes aumentava, à medida que erravam mais o nosso idioma. Ao descrever
o sertanejo dessa região são franciscana, não foram nada felizes, como veremos
a seguir. Para os naturalistas, o “sertanejo é criatura da natureza, sem instrução,
sem exigências, de costumes simples e rudes. Envergonhado de si próprio e
de todos que o cercam, falta-lhe o sentimento da delicadeza moral, o que já
se demonstra pela negligência no modo de vestir; porém é bem intencionado,
prestativo, nada egoísta e de gênio pacífico” (Idem, ibidem, p. 76).
Não nos parece um tanto precipitado, esse julgamento com relação ao
sertanejo? Os dois viajantes estiveram pouco tempo no país e, menos ainda,
nessa imensa parte dos sertões brasileiros? E não terminam aí as considerações
dos estrangeiros a respeito dessa figura complexa que é o sertanejo. Nas
páginas seguintes, eles continuam a narrar que a “solidão e a falta de ocupação
espiritual arrastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sensual, no
qual, incitado pelo seu temperamento insaciável e pelo calor do clima, goza
com requinte” (Idem, ibidem, p. 103).
Nesse momento, prefiro me lembrar do verso de uma canção: “não
existe pecado, do outro lado, do Equador...” (Francisco Buarque Holanda;
Ruy Guerra, 1978). Somos obrigados a retirar outro trecho de suas narrativas
onde os naturalistas falam: “o ciúme é quase a única paixão que o leva até ao
crime” e “ademais, só a mínima parte dos sertanejos é de origem puramente
européia; a maioria consta de mulatos, na quarta ou quinta geração; outros são
mestiços de índios com negros ou de europeus com índios...” (Idem, ibidem,
p. 102). Pensando melhor, Euclides da Cunha definiu sabiamente esse homem,
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 27
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
“o sertanejo é antes de tudo, um forte...” (CUNHA, 1994, p. 95)
Além de subir e descer várias vezes o rio São Francisco e seus afluentes,
os viajantes estrangeiros, por inúmeras vezes, levantaram e abaixaram os seus
olhares e, dessa vez de encantamento, para descrever e desenhar as aves e os
peixes dos rios.
Na fazenda Capão, às margens do rio São Francisco, mais especificamente
à beira de uma grande lagoa formada por esse rio, os dois naturalistas
foram “transportados a um país inteiramente diverso. Eram “matas virentes,
que orlavam extensas lagoas piscosas”(SPIX & MARTIUS, op.cit., p. 96). A
variedade e a quantidade de peixes eram assustadoras e, de acordo com os
naturalistas, páginas e páginas seriam necessárias para anotar os seus nomes,
como: “pacu, surubim, dourado, cascudo, pirá -tamanduá, acari, mandi, piau,
traira, bagre, sarapó, piranha ordinária e roduleira, curumatã , mandipintado”
(Idem, ibidem, p. 97) e mais, muito mais. Em outra lagoa, nessa mesma fazenda,
outra cena chamou-lhes atenção, pois contaram “mais de quarenta jacarés, uns
deitados nas margens, outros inquietos por nosso ruído. Os maiores desses
animais tinham oito a nove pés de comprimento, couraça esverdeada e focinho
rombudo” (Idem, ibidem, p. 83).
De repente, um estrondoso barulho mudou a direção de seus olhos, agora
voltados para o alto. Os dois botânicos disseram ainda extasiados: “Ressoam
aqui, na mais alvoroçada celeuma grasnada, chiados e gorjeios sem fim dos
mais diversos gêneros de aves, e, quanto mais observávamos o raro espetáculo
da natureza, menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros,
aquele cenário pacífico da natureza” (Idem, ibidem, p.84).
Papagaios!!! Em um cenário poético, pacífico, colorido e encantador, os
dois bávaros ainda pensaram em “mortíferos tiros”!
Felizmente um bando de marrecos, numerosos quero-queros voou rápido
por sobre suas cabeças, levando embora aqueles pensamentos ruins. E
a riquíssima variedade de animais volta a perturbar-lhes, anotando mais uma
vez que “viram mais de 10.000 animais reunidos. Parecia-nos ter-se renovado
o quadro da criação do mundo diante dos nossos olhos, e esse maravilhoso
espetáculo nos teria ainda agradavelmente impressionado, se não nos ocorresse
o pensamento de que a guerra, a eterna guerra, era a lei e misteriosa
condição de toda existência animal” (Idem, ibidem, p. 82). Pasmem senhores
leitores sobre esse comentário dos naturalistas. Realistas em excesso? Visões
de mundo distintas?
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Vanessa Maria Brasil
A viagem pela região são franciscana estava chegando ao final, por essa
razão escolhemos como último trecho do diário desses dois viajantes, um
momento mais ameno, mais descontraído: um dia de festa no coração do
sertão. Uma das fazendeiras ricas da região os convidou para participar de
uma solenidade religiosa muito tradicional. Lá os viajantes puderam constatar
que o comércio e a riqueza proporcionaram uma “sociabilidade e costumes
amenos. Solenizaram-se aqui, com decoro e pompa, várias festas da Igreja,
entre outras uma inteiramente nova para nós” (Idem, ibidem, p. 93).
A senhora rica tinha feito a Nossa Senhora, a promessa de uma procissão
e, qual não foi a surpresa dos bávaros, quando viram que a “dama, vestida de
gala, conduzia o séquito até a Igreja (Idem, ibidem, p. 93) O convite da ilustre
dama era para “assistirmos a missa, e de lá voltarmos todos a casa dela, onde
estava posta uma grande mesa com as mais finas iguarias e vinhos escolhidos
e, sobretudo, deliciosos doces, para serem deleitados o dia inteiro” ( Idem,
ibidem, p. 94).
Essas horas alegres decorridas na casa da gentil senhora só foram perturbadas
pelas preocupações com o prosseguimento da viagem. Para felicidade
dos dois naturalistas, um novo guia foi arranjado, um experiente paulista, para
acompanhá-los de volta ao mar.
Como foi a saída de cena desses bávaros naturalistas? Mais uma vez
recorremos aos seus diários e, nas últimas páginas amareladas e amarrotadas,
encontramos essa despedida. Os dois viajantes chegaram à conclusão que a
relação dos fatos de sua viagem ao Brasil e dos seus resultados científicos
gerais “corresponderam aos seus encargos relativos à botânica e à zoologia”
(Idem, ibidem, p. 320). Comentaram ainda, que o país de origem depois de
muitos séculos fechados às investigações dos europeus, deu–lhes uma rica
oportunidade de “enriquecer com fatos aquelas ciências “ (Idem, ibidem,
p.320). Pareceu-lhes também mais acertado “colecionar durante a viagem,
exemplares tanto de formações geológicas quanto etnográficas e, em particular,
de animais e plantas, dar assento em nosso diário, as descrições e noticias
minuciosas” (Idem, ibidem, p. 320), e, com isso, preparem uma exposição
científica quando de volta à pátria.
Por falar em horas e também em anos, já faz um bom tempo que não
nos deparamos, nem nas estradas de terra, nem sertão adentro, muito menos
nas margens dos rios, com viajantes esbaforidos, avermelhados, suados, reclamando
de calor e se comunicando mais com gestos do que com palavras.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 29
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
É verdade que estamos sentindo falta dessas cenas. Já estamos quase no final
da década de trinta dos oitocentos, na passagem de 1836 para o ano seguinte.
Será que vamos ter surpresas?
O último convid ado a percorr er o rio: o pontual viajante inglês
Santo Antônio das roças grandes! Leitores e leitoras! Esfreguem bem
os seus olhos e vejam mais adiante quem vem chegando, com sua tradicional
pontualidade britânica. É o botânico inglês George Gardner, quase 20 anos
após a saída dos dois naturalistas bávaros.
Além do peso de sua bagagem, sua mente também pesava com a quantidade
de informações adquiridas por outros viajantes, que aqui estiveram e
que lhes narrou, ainda na Europa, a beleza e a variedade de riquezas naturais,
a grandiosidade de cenários existentes nos países dos trópicos. Ele esperava
encontrar um campo vasto e inexplorado para as suas investigações, apesar
das informações de naturalistas que aqui estiveram antes de sua chegada.
Que surpresas nos aguardam? A primeira é que Gardner era um naturalista
de origem escocesa. Chegou ao Brasil em 1837, nos últimos anos do
período regencial, e aqui permaneceu até 1841.
O país se encontrava em ebulição com tantas mudanças. Tínhamos uma
Constituição desde 1824, o colégio Pedro II, O IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro); o Arquivo Público e, em 1840, deu-se o início do
Segundo Reinado, com o imperador Pedro II, enfim, o Brasil não era o mesmo
dos dois naturalistas bávaros e do francês, aqui estudados.
Em meio a todas essas transformações, George Gardner coletou vasto
material sobre a fauna e a flora brasileira, além de numerosos relatos dos
costumes e hábitos da população das províncias de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Piauí, Maranhão e Goiás. Fazem parte de suas anotações
ricas informações geográficas e históricas dessas províncias visitadas
e pesquisadas. Enfim, realizou quase o mesmo trabalho que os outros três
viajantes estrangeiros citados anteriormente. Nosso objetivo maior é observar
as pequenas nuances, ou seja, o que difere, nas páginas de seu diário, as
anotações sobre o rio São Francisco e seus afluentes, o viver das populações
ribeirinhas e as funções atribuídas ao rio no transcorrer de sua história. Enfim,
como George Gardner viu, sentiu, anotou, pesquisou esses mesmos assuntos,
30
Vanessa Maria Brasil
uma vez que viajou pelas mesmas províncias visitadas pelos naturalistas que
o precederam.
De acordo com as palavras desse botânico, vários são os motivos de
sua viagem ao Brasil, mas a motivação inicial partiu das minuciosas descrições,
feitas por Humboldt e outros viajantes, sobre as belezas e variedades
de produtos naturais dos países dos trópicos e dos diferentes cenários das
montanhas. As ricas produções vegetais do Brasil, menos conhecidas dos
ingleses, aumentaram o seu desejo de viagem rumo a América do Sul e, não
menos importante, a orientação do seu professor de botânica, Sir William T.
Hooker, que foi o seu patrocinador.
O botânico inglês iniciou a sua viagem pelo rio São Francisco de forma
diferente dos seus antecessores, pela foz do rio, ao invés da nascente, portanto,
pela província de Alagoas, pelo menos é dessa forma que está divida a sua obra.
A partir daí vamos observar os seus relatos. O rio São Francisco seria o seu
guia, para atingir o interior das regiões banhadas por ele, especialmente por
ser navegável, sem interrupção, por um longo percurso em direção à primeira
província a ser conhecida Alagoas. A vontade desse viajante era fazer uma
excursão pelo velho Chico, rio acima até chegar à cachoeira de Paulo Afonso.
Assim foi ele com a sua equipe até atingir uma aldeia de nome Peba, “cerca
de 5 léguas ao norte da embocadura do rio São Francisco e término de sua
viagem marítima” (GARDNER, 1975, p. 63).
Uma fala em comum com os viajantes estrangeiros vem brotando, nas
páginas do seu diário, as diversas funções atribuídas ao rio e, nesse momento,
a função de separar é comentada: “como o São Francisco separa a província
de Alagoas da de Sergipe, é fácil ver que Vila Penedo pertence à primeira e
Vila Nova à última” (Idem, ibidem, p. 64).
Oh my God!!! Exclamava o viajante inglês. Preciso arranjar transporte
para continuar a minha viagem em direção a outros lugares. Uma preocupação
certamente inglesa, pois o botânico acabara de chegar à aldeia de Peba e já
pensava em dar continuidade às suas pesquisas. Sua ansiedade era tanta que
conseguiu tratar com o dono de um carro de boi, para lhe levar a bagagem
a Piassabuçu, pequena aldeia da margem norte do São Francisco. Pelo jeito
não gostou do local.
Em Vila Penedo, no ano de 1838, o viajante inglês observou e recolheu
espécimes de rocha de “arenito branco e grosso, semelhante às que vira na
costa entre o rio São Francisco e Pernambuco” (Idem, ibidem, p. 65). Outras
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 31
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
rochas de gnaisse e xisto micáceo lhe chamaram a atenção durante sua travessia,
tanto na costa quanto nas margens desse rio. As primeiras anotações
do botânico destacam as povoações e os tipos de rochas da região. Durante o
percurso, ainda em 1838, ele se depara, porém, com uma paisagem totalmente
distinta das firmes rochas: uma grande enchente.
Suas palavras são de espanto, uma vez que estava atravessando vários
trechos do rio em ajoujos, as canoas unidas, levando cavalos e pesadas bagagens.
Com a enchente, as águas do São Francisco “subiram cinco pés acima
do nível do assoalho e as paredes ainda conservavam os sinais evidentes do
fato” (Idem, ibidem, p. 69). Era impossível realizar a travessia.
O inglês, acostumado aos rígidos horários e compromissos, foi obrigado
a encher várias vezes o seu cachimbo, com um perfumado fumo, e dar boas
baforadas para não ficar estressado. Entre uma fumaça e outra, traçou novos
planos, ou melhor, começou a estudar os planos do governo imperial, com
relação à navegação a vapor. Seria viável?
Well! Bem! Vamos aos mapas. Gardner ouviu ainda no Rio de Janeiro,
que havia um plano de se estabelecer a navegação a vapor “entre a costa e
as províncias centrais do Brasil, pelo rio São Francisco e, só em observar os
mapas desta parte do império, lhe pareceu que a natureza oferecia todas as
facilidades para a realização desse feito” (Idem, ibidem, p. 73). Não são estudos
meus afirmou o inglês.
As águas do rio alheias a todos esses estudos, continuavam a subir. Mais
fumo no cachimbo e mais baforadas do botânico inglês. O jeito é continuar
a estudar esses planos do governo, mesmo sem muita convicção. Vamos
realizar esse plano, porque “uma comunicação fluvial, fácil e barata, embora
algo sinuosa pode ligar o mar dos confins da província de Pernambuco às
terras ricas e relativamente bem povoadas das zonas interiores de mineração
e diamantes...” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico inglês repetiu bem alto: my
God, my God, my God!!! Why, por que o governo imperial quer fazer isso? Uma
fumaça espessa saiu de sua boca. Os técnicos pretendiam unir aquelas zonas
porque estavam “separadas dos grandes mercados do Rio de Janeiro e Bahia
por altas barreiras de montanhas, sempre de acesso difícil e onde os meios de
transporte são cansativos e caros” (Idem, ibidem, p. 74).
No entanto, Gardner tinha grandes dúvidas e críticas que tal plano
pudesse dar certo e, em seguida, descreveu as razões. Esse foi um tema que
gastou páginas e mais páginas de seu diário. Passemos às suas explanações:
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Vanessa Maria Brasil
“em primeiro lugar, a barra na embocadura do rio, com cerca de duas léguas
de largura, é sempre batida por fortes vagas, e raro tem mais de quatro pés
de profundidade. Depois, na cachoeira de Paulo Afonso, uma série de corredeiras
e quedas, em extensão aproximada de 60 milhas, cria sérios obstáculos
ao progresso da navegação. Por fim, nas zonas intermediárias, a população é
muito escassa e não tem possibilidade de crescer, dada a natureza inóspita da
maior parte do interior!” (Idem, ibidem, p. 74)
O viajante inglês parecia entender do assunto, pois, virando mais algumas
páginas de seu diário, encontramos outras observações sobre a pouca
viabilidade dessa empresa de navegação a vapor. Para ele, essa “zona de terra
só é propícia à criação de gado” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico não acreditava
que naquele momento histórico, os brasileiros, fossem investir verbas
na tentativa de tornar o São Francisco navegável. Sua desconfiança pairava
nos obstáculos da natureza ou na capacidade dos brasileiros? A resposta vem
imediatamente: “Talvez possa aventurar-se em tal tentativa uma companhia
inglesa, uma vez que alguns recentes e mal sucedidos planos semelhantes no
Brasil foram ainda mais absurdos. Veja-se aquele monumento mais absurdo
que se chamou Companhia do Rio Doce” (Idem, ibidem, p. 74).
Não sabemos se a enchente já estava a lhe aumentar o mau humor, a lhe
atrasar os planos de viagem, mas ele foi implacável em suas críticas. Quem
sabe, mudando de ares, de província, de novas paisagens, o tempo perdido
desse viajante inglês seria recuperado? George Gardner atravessava com sua
equipe, pela Serra Geral, muito próximo a uma aldeia “contendo cerca de
quarenta casas” (Idem, ibidem, p. 176), onde pretendiam ficar até encontrar
um homem que os ajudasse no trato da tropa. Apesar de haver dezenas de
homens, nenhum deles estava disposto a realizar tal empreitada e o inglês, irritado,
faz a sua crítica: “É comum dizer aqui, que para cada dez que trabalham,
há noventa que nada fazem e sustentam uma existência mísera caçando ou
roubando seus semelhantes mais industriosos” (Idem, ibidem, p. 178).
Como não podia desistir desse tipo de serviço, Gardner acabou por
encontrar um homem que já havia percorrido e conhecia esses caminhos para
Minas Gerais. Nem bem tinha concluído seu acordo com o sujeito, o viajante
vê chegar uma senhora, “uma mulata grande, velha e feia” (Idem, ibidem, p.
175). Porém, o que mais o surpreendeu foi o fato dela ser escrava, ao passo
que o homem, mulato também, era livre e mais moço. A mulher insultou o
inglês por aliciar o marido para abandoná-la. Que coisa feia, mister Gardner!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 33
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Quanto preconceito! A mulher era esposa do homem e só o liberou para tal
empreitada depois de ouvir o esposo dizer que só ficaria fora por um mês. Os
comentários maldosos do botânico continuaram e, para sua alegria, o guia,
além de seguir com sua tropa por um tempo maior, “não se sentiu inclinado
a voltar e seguiu com eles até o distrito do ouro, onde obteve emprego em
uma das minas” (Idem, ibidem, p. 175).
O viajante estrangeiro e sua comitiva continuaram a viagem ao longo
da chapada, observando que os “pequenos regatos que vinham atravessando
desde algum tempo corriam todos para leste, desembocando no rio São Francisco”
(Idem, ibidem, p. 178). O viajante e sua tropa estavam se dirigindo de
Arraias para a vila de São Romão em Minas Gerais. Logo ao chegar trocou
o seu cavalo castanho por outro todo branco, de crina e caudas bastas, mas
infelizmente a alegria do botânico durou pouco, pois o cavalo branco não
ficou muito tempo em seu poder, porque o roubaram depois de atravessarem
o rio São Francisco.
Gardner e sua tropa viajavam ora uma légua ora jornadas de mais de três
léguas, dependendo das condições das viagens. Sempre teve muitas histórias
para narrar em seu diário, principalmente as mais pitorescas, como a do guia
índio ainda no norte de Minas Gerais. O índio tinha sofrido um acidente de
cavalo e estava muito machucado, então mister Gardner mandou sua tropa
seguir viagem e ficou par a ajudar o índio, que dizia sofrer de muita dor. Deulhe
água e levou-o até a casa mais próxima, tentando encontrar algum medicamento.
Após o índio tomar chá quente e forte, “único estimulante que se
podia obter, melhorou muito. Em seguida, o botânico fez-lhe uma sangria no
braço que o aliviou consideravelmente, tanto que poucos dias depois puderam
seguir viagem” (Idem, ibidem, p.178).
Léguas e léguas de viagem, quando chegaram a outra chapada, o viajante
notou que os pequenos regatos, de águas cristalinas e frias, certamente
desembocariam no rio São Francisco. “Sentimos muito frio à noite, além de
sermos molestados por uma espécie de mosquito grande, cuja picada era
bem dolorosa, e o que nos inchou o rosto e as mãos” (Idem, ibidem, p.179).
No outro dia cedo, notou que os cavalos tinham extraviado para muito longe
e, para não perder seu precioso tempo, realizou uma colheita botânica nos
arredores próximos à chapada.
Por onde passavam notavam os tipos de habitações, quase sempre
“míseras choças feitas de varas e barro cobertas de palmas” (Idem, ibidem,
34
Vanessa Maria Brasil
p.177), muitas delas desabitada, mesmo a igreja local era construída do mesmo
material. Nunca deixava de relatar a preguiça dos habitantes dos distritos por
onde andava: “São desesperadamente preguiçosos, que mal plantam qualquer
coisa suficiente para o seu próprio uso, embora cada família possua terras
ilimitadas” (Idem, ibidem, p.178)
A fauna e flora compõem vários diários de Gardner. Os morcegos foram
insistentemente descritos por seus ataques a cavalos, porcos e, também, aos
homens. Segundo o viajante inglês, as “singulares criaturas produzem tamanhos
estragos e constituem o gênero Phyllostoma, assim chamados por causa
do apêndice em forma de folha de seu lábio superior” (Idem, ibidem, p.178).
Em uma noite que Gardner passou em Riachão, localidade mineira, toda a
sua tropa sofreu com os ataques desse animal e o viajante estrangeiro chegou
a matar morcegos que mediam “dois pés entre as pontas das asas”.
Jesus Crist! Vamos correr desses enormes vampiros!
Ainda em Minas Gerais, mas longe dos morcegos, e tendo como “único
conforto o chá, única bebida nesta longa e morosa jornada” (Idem, ibidem,
p.68), principalmente após uma cavalgada sob o sol ardente dos trópicos,
avistaram o rio “Urucuia, que corre da Serra Geral diretamente para o leste e
desemboca no rio São Francisco, pouco abaixo de São Romão, de considerável
largura e profundidade” (Idem, ibidem, p. 184). Tempos imemoriais! Certamente
nosso grande escritor Guimarães Rosa estaria feliz com essa observação,
pois o rio Urucuia , de tão volumoso, adentrava a casa de seu pai.
Na tarde da manhã seguinte seguiram viagem e tempos depois entravam
na vila de São Romão. O viajante se dirigiu à casa do juiz de paz para lhe
mostrar seu passaporte e, em seguida, conseguiram um local para descansar.
Nas próximas páginas de um dos seus muitos diários, George Gardner volta a
observar as variadas funções atribuídas ao rio São Francisco. A função de fixar
e povoar vem logo em seguida, ao ressaltar que a vila risonha de São Romão
está situada na margem sul do rio, no distrito de Paracatu. “É pequena, não
tendo mais de mil habitantes, e forma um quadrado com diversas ruas longas,
estreitas e irregulares”. Também descreve a sua população, comentando que
“quase toda de gente é de cor e não creio que haja na Vila intera uma dúzia
de famílias brancas” (Idem, ibidem, p. 188).
Uma vez descansados tropas e homens, era a hora de colocar os pés na
estrada rumo ao distrito dos diamantes, porque muitos estudos o botânico
tinha por lá. E, por falarmos em estrada, a mais freqüentada é a que corre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 35
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
na direção sul, ao longo da margem do rio São Francisco e ao norte do rio
das Velhas, “grande tributário daquele que nasce no distrito do ouro” (Idem,
ibidem, p.191).
O botânico inglês e sua equipe, sem perder tempo, começaram a jornada
até chegar a outra fazenda, das muitas que pernoitaram e descansaram,
ao longo dessa árdua tarefa de pesquisar. No caminho o viajante notou que a
mata era baixa e consistia principalmente de diferentes espécies de “mimosa,
acácia, bauhinia, caesalpina etc” (Idem, ibidem, p.192).
Quanto mais viajavam, mais as paisagens iam se modificando: de extensas
vegetações a pedregulhos, cascalhos, argila dura, rochas distintas contendo
diamantes encravados. Era um subir e descer serras, que parecia não ter fim.
A paisagem humana também era rica e diversa: escravos na mineração, tropeiros
ao longo das estradas, lavadeiras dentro dos rios, entoando canções
nem sempre alegres, homens forros trabalhando por conta própria, religiosos
conversando com senhoras nas escadarias das igrejas, artesãos esculpindo
figuras em madeira e barro e muitos negociantes.
Depois de muito pesquisar em Minas Gerais, Gardner seguiu viagem
pelo Ceará e Maranhão realizando ricos estudos e compondo frutíferos diários
de viagem. De acordo com esse botânico, nessas duas províncias a riqueza da
cultura do algodão, das palmeiras no Ceará, foi motivo de desenhos, escritos
e, não poderia deixar de lado, as muitas anotações sobre os peixes dos rios,
do mar e, em especial, os peixes voadores, que em “multidões se erguiam
rente ao navio” (Idem, ibidem, p. 248). Estava chegando o tempo de partir
e a viagem do botânico inglês nos pareceu rápida e agradável: “quanto mais
se aproximava da pátria, mais se intensificava meu desejo de estar entre meus
amigos” ( Idem, ibidem, p. 250).
Para nós aqui dos trópicos, esse sentimento tem um nome, saudade, sem
tradução para o inglês, no entanto, as palavras de despedida do botânico inglês
merecem tradução e registro. Em seu diário ele nos relata que cumpriu sua
missão de forma intensa e satisfatória, “não sofreu qualquer desengano quanto
aos prazeres que antecipara derivar de tal expedição, mesmo com os pequenos
aborrecimentos” (Idem, ibidem, p. 250). Fomos lendo e nos surpreendendo
com aquele cientista, a cada página que virávamos. Mais adiante, Gardner se
diz mais afortunado do que os outros naturalistas que o antecederam, porque
as suas numerosas coleções de espécimes “despachadas a intervalo para a Inglaterra
chegaram todas a salvo” e, por fim, ele nos presenteia, ressaltando que
36
Vanessa Maria Brasil
deixou o Brasil com grande pesar, porque a “vida que lá vivi era independente
e livre e para a minha saúde, seu clima era melhor do que a Inglaterra; que o
país é belo e mais rico que qualquer outro do mundo nos objetos naturais a
cujo estudo devotei minha vida” (Idem, ibidem, p.250).
Tempo de despedidas: do rio São Francisco e dos viajantes
Mister George, agora que lemos suas últimas considerações sobre o
Brasil e os lugares por onde passou, sobre os resultados de suas pesquisas,
constatamos que o senhor é quase um lorde, pois soube reconsiderar as intempéries
que muitas vezes cruzaram os seus caminhos nos trópicos. Certamente,
um dia iríamos desfrutar dessas pesquisas, não só a do senhor, mister
Gardner, mas, também, de todos outros naturalistas que por aqui passaram.
Nossa contribuição com esse artigo surgiu a partir das narrativas encontradas
em seus diários.
Merci beaucoup, monsieur Sai nt-Hilaire; Thank you, very much, mister
Gardner; Vielen Dank, meine Herren Spix e Martius.
As voltas e as respectivas despedidas dos viajantes estrangeiros aqui
estudados tiveram percursos distintos: o botânico francês, com tons de lamento
à possível não realização de seus apelos, às vezes saia do leito do rio;
os dois bávaros cientes de suas pesquisas e dos planejamentos futuros, com
relação ao rico material coletado no Brasil, quase se afogaram nas águas de
suas vaidades; e o inglês, quem diria, foi o que não ficou à deriva, no barco de
pesquisas e coletas que deslizou sobre o rio. E, o mais importante para nós,
os três naturalistas estrangeiros não tiveram dúvida alguma sobre a beleza, a
grandeza, o esplendor, a majestade, a importância da navegação e as funções
atribuídas ao rio São Francisco ao longo de sua extensa história.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 37
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
BIBLIOGRAFIA
SPIX, Johann Baptist Von, Viagem pelo Brasil: 1817-1820/Spix e Martius. Vol.2. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981.
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: ED.Itatiaia; São
Paulo, Edusp, 1975.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1975.
_____. Viagens pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tomo 2, São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1938.
HOLANDA,Sérgio Buarque de. “A herança colonial, sua desagregação. In: HOLANDA,
S. B(org.) História Geral da Civilização Brasileira. 4ª Ed., Tomo II, 1º volume. São
Paulo: Difel, 1975.
_____. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros, 1995.
38
Vanessa Maria Brasil
CANDIDO, Antônio. In: LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e
libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.
_____. Letras e idéias no Brasil colonial. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org)
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1972, v.2, t. 2.
Resumo: Neste presente artigo faremos a le itura do rio São Francisco
a partir dos relatos de viagem de quatro viajantes estrangeiros dos oitocentos.
A literatura de viagem constitui fonte inesgotável de informações a respeito
desse rio, seja de natureza técnica, literária e historiográfica. Muitas vezes
esses dados, mesmo os mais relevantes nos são fornecidos de maneira assistemática
e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas do rio, quando
resolvem emaranhar -se. Para torná-lo mais translúcido, tanto o artigo como
o São Francisco, ressaltaremos as obras dos naturalistas europeus, como
referenciais importantes, para o conhecimento da história do meio ambiente
e da natureza no Brasil. A contribuição de estudiosos que transitam entre a
história e a literatura também serão imprescindíveis para esse texto.
Palavras-Chave: rio São Francisco; meio ambiente; história; literatura
de viagem; Brasil oitocentista.
Abstract: In the following article we are going to study the São
Francisco river from the perspective found on the reports of four foreign
travelers from the 1800’s. The literature of travel and exploration constitutes
an inexhaustible source of information about this river, in both technical,
literary and historiografical way. In several occasions this data, even the most
relevant one, are supplied to us in a non-systematic and disorganized way,
similar to the water of different riverbeds when it decides to meet. To make
it translucent, both the article and the São Francisco, we shall take the work
of different european naturalists as an imp ortant reference to the knowledge
of environmental and natural history of Brazil. The contribution given by
intellectuals that transit between History and Literature are also indispensable
for this text.
Key-Words: São Francisco river, environment, History , travellers
literature. Brazil in the 1800’s.TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 11
Professora do Departamento de História da UnB
Vanessa Maria Brasil
Tantas águas, quantas histórias, diferentes
narrativas – o São Francisco dos viajantes
Iniciando a viagem pelo rio São Francisco
Era noite, e Saint-Hilaire
Parou na serra o seu cavalo,
Sob a chuva e a bofetada do trovão
Europicamente deslumbrado.
Carlos Drummond de Andrade .
Espetáculo. Menino antigo (Boitempo – II).
Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, [I]
Ressoam aqui, na mais alvoroçada celeuma,
chiados e gorjeios sem fim dos mais diversos gêneros de aves, e,
quanto mais observamos o raro espetáculo,
tanto menos vontade sentimos de perturbar
aquele cenário pacífico da natureza. (Spix e Martius, 1820)
Límpidas e abissais, turvas e transparentes, penetrantes e superficiais,
agitadas e sonolentas, ondulantes e deslizantes, calorosas e refrescantes, vívidas
e destruidoras, sombrias e luzentes, silenciosas e sonoras, rasas e transbordantes,
livres e aprisionadas, unificantes e limitantes, lá vão elas, as águas do
São Francisco.
Quem as conhece? Quem por elas navegou e em que épocas? Quem
pôde ter, nos olhos e no corpo, a sensação contagiante dessas águas?
Alguns viajantes estrangeiros por elas navegaram, estudaram e transitaram,
pois estiveram no Brasil dos oitocentos. Que emoções sentiram ao
entrarem nessas águas seus corpos, suas idéias, seus planos, suas ações?
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Vanessa Maria Brasil
Sensações de alumbramento, de reverência, de afetividade, de religiosidade,
de desencanto, de perplexidade, de riqueza, de pobreza. E contar
histórias desse povo ribeirinho faz parte de suas metas? Essas histórias estão
em seus relatos?
Pois bem, chegou o momento de darmos respostas a todas essas indagações.
Mas em que águas e em que paragens essas repostas foram se desaguar?
Após muitas braçadas, fomos encontrá-las num rio de papéis intitulados
– literatura de viagem – , que consiste nos relatos cotidianos de inúmeros
viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil e, em especial, os cinco estados
banhados pelo rio São Francisco, durante a primeira metade do século XIX.
Porém, para não ficarmos à deriva nessa imensidão de tempo e espaço, nós
traçamos um curso. Vamos navegar pelo rio São Francisco, beirando as duas
margens: a história e a literatura. A margem literária constitui fonte inesgotável
de informações a respeito do rio São Francisco, seja de natureza técnica e/ou
historiográfica. Com certeza, é um encontrar, um embolar, um emaranhar, um
distanciar de águas distintas, mas no final elas terão um porto seguro.
Muitas vezes esses dados, mesmo os mais relevantes, nos são fornecidos
de maneira assistemática e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas
do rio, quando resolvem emaranhar-se. Creio que chegou a hora de pedirmos
ajuda, porque nosso fôlego diminuiu e, quem vem de barco é o historiador e
literato Sérgio Buarque de Holanda, para nos informar sobre uma das mais
importantes contribuições dos diferentes viajantes estrangeiros, assim que
chegavam ao Brasil. Criar uma imagem do país, “uma vez que o olhar estrangeiro
acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou
esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país”
(HOLANDA,1976, p.13,14).
Comprovamos que esse seu pensamento vai ao encontro dos relatos de
Spix e Martius na obra “Viagem ao Brasil”. De acordo com os dois naturalistas,
após recolherem vasto material de pesquisa, em várias localidades do Brasil,
sempre apresentavam às comunidades os seus resultados e, que ficavam surpresos,
pois este rico material era “alvo de admiração da gente da cidade, que
peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão
pouco conhecida deles próprios” (Apud Lisboa , 1975, p. 115).
Nossa resistência aumentou? Nossas águas ficaram mais translúcidas? As
águas das margens literárias e históricas se distanciaram ou se emaranharam?
Só um pouco, é preciso mais luz. Afinal, quem escreveu essas narrativas sobre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 13
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
o rio São Francisco abordou muitos assuntos. Além disso, os viajantes estrangeiros
atravessaram águas salgadas antes de cá desembarcar. Outra salva-vidas
trás mais uma bóia e diz: “Os depoimentos de viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida
compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na
armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a
única e própria realidade”. (Reichel, Heloisa Jochims, p. 2)
Nossa Senhora dos Afogados!!!
E agora? É melhor nadarmos diretamente em direção a essas fontes e
deixarmos emergi-las. Escolhemos as narrativas de quatro viajantes vindos
de outras plagas, indivíduos das mais diferentes origens e propósitos. Todos
eles são europeus, vivendo em contextos históricos distintos; alguns vieram
de países em pleno desenvolvimento capitalista, como a França e a Inglaterra,
outros são provenientes de regiões em processo de unificação, como o Império
Austro-Húngaro. Alguns acontecimentos auxiliaram e impeliram a viagem
desses naturalistas para outros mundos. Por exemplo, o estreitamento dos
vínculos comerciais entre Portugal e Inglaterra e a consequente abertura dos
Portos; o Congresso de Viena, o casamento de D. Pedro I, que favoreceu a
locomoção dos viajantes estrangeiros, precedentes de várias partes da Europa
continental.
As águas do rio São Francisco continuam revoltas. Mais uma vez contamos
com o esclarecimento de outra navegante, pois ela também circulou
pelas margens literárias e históricas dessas águas. É a Ana Maria Belluzo
quem nos socorre, dizendo que os relatos de viajantes estrangeiros são um
tipo de produção que só pode “dar a ver um Brasil e um rio pensado por
outro”(BELLUZO, 1995, p.170). Em seguida chega mais um salva vidas, dessa
vez um literato de peso, Antônio Candido nos alertando para o significado
dessa visão estrangeira. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente
como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções,
mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu”
(LEITE, 1996, p. 6-7).
É, precisamos ter cuidado para não afundarmos junto com esses estrangeiros,
portanto, vamos elencar o quê buscar em suas águas, ou seja, em suas
narrativas. Atentamos para os aspectos físicos, tais como o clima, a fauna, a
flora, a navegabilidade, o relevo, os recursos minerais e, também, os aspectos
sociais e culturais das populações ribeirinhas, sempre na perspectiva de que
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Vanessa Maria Brasil
esse tipo de literatura é fundamental para a apreensão da historicidade de um
evento dado, pois traz a possibilidade de novas aproximações com a história
do Brasil.
Durante uma parte do século XIX, os viajantes, mesmo os que desejavam
ir para outras províncias brasileiras, detinham-se no Rio de Janeiro para obter
licença e cartas de apresentação das autoridades e, em seguida, dar início às
suas pesquisas.
Viajantes estrangeiros convid ados: um francês mergulhando no rio
Entre os que chegaram elegemos ingleses, austríacos e um francês, que
percorreram o rio São Francisco, em suas respectivas províncias, na primeira
metade do século XIX. Quando eles irão emergir das águas? Qual vai ser o
primeiro a se apresentar?
E meio a um calor escaldante de um Brasil ainda Colônia, surge o botânico
francês Saint-Hilaire, que aportou em nosso país em 1816, junto com
a Missão Artística Francesa. Durante os seis anos de permanência no Brasil,
esse botânico viajou por várias províncias, como Minas Gerais, Goiás, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Bahia, visitando inúmeras localidades. E quanto ao rio
São Francisco? Calma, lá vem o Saint -Hilaire, todo esbaforido e suado, carregando
uma porção de tralha e reclamando do calor : Merde, merde! Primeiro
preciso conhecer as nascentes do rio para depois emitir minhas opiniões.
Lá se foram Saint-Hilaire e seus ajudantes. Eles pretendiam ir à Comarca
de Paracatu e de lá a Goiás, mas se desviaram do caminho mais direto a fim de
conhecer o rio São Francisco. Embrenharam-se mata adentro e, após algumas
horas, começaram a ouvir um barulho ensurdecedor, logo identificado com o
de uma cachoeira, que despencava de um dos lados da Serra da Canastra. De
acordo com esse viajante, o “espetáculo arrancou dele um grito de admiração”
(SAINT-HILAIRE, 1975, p. 104). A cachoeira, de nome Casca d’Anta precipitava
sem violência , exibindo “um belo lençol de água branca e espumosa
que se expandia lentamente, parecendo formar flocos de neve. As suas águas
caiam desordenadamente, por uma encosta escarpada para formar o famoso
rio São Francisco”(Idem, ibidem, p. 104-105).
Saint-Hilaire continua a sua caminhada por uma vegetação composta só
de arbustos, mas logo adiante o terreno já se apresentava coberto de densas
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 15
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
matas, onde se viam numerosas palmeiras. A beleza da nascente do rio e dos
lugares por onde andava fez o viajante ter saudade de sua terra natal e, num
dado momento, comparou a paisagem local com a do seu país, comentando:
“o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de
encantadora: um céu de azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma
cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das
folhagens e, as matas virgens, que exibem todo o tipo de vegetação tropical”
(Idem, ibidem, p. 104).
Coroadas, majestosas, cintilantes todos esses elogios narrados pelo
viajante francês nos fez lembrar as monarquias, francesa, portuguesa e quiçá
brasileira. De uma coisa temos certeza, na opinião de Saint-Hilaire a nossa
paisagem já era real.
Da nascente aos afluentes e enfim ao leito do rio, o São Francisco “é o
maior da província das Minas e um dos mais importantes do Brasil”(Idem, ibidem,
p. 279), assim comentou o botânico francês em parte de seus relatos. Mas
que sensações esse rio proporcionou aos povos que viviam em suas margens e
nos sertões adentro? O viajante narrador observou que em uma grande parte
dos terrenos situados próximos ao rio, criava-se gado em quantidade ainda mais
considerável do que nas partes altas do sertão. O botânico fez essa afirmação
a partir dos seus contatos em outras partes dos sertões das Gerais.
Nesse trecho é importante explicar o significado de sertão para o viajante
francês: “compreende, nas Minas a bacia do São Francisco e dos seus
afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira
ou, pelo menos, quase a partir dessa cadeia até os limites ocidentais da província”
(SAINT-HILAIRE, 1938, p. 248). Mon Dieu! Tantas águas e agora
tantos sertões!
No início dos oitocentos, lá em Portugal, a palavra sertão tornou -se sinônimo
de interior, daquilo que se opõe ao marítimo, ao costeiro, e nos trópicos,
as águas dos rios deram-lhe um novo banho. A navegante literária, Janaína
Amado, deixa transbordar mais informações a esse respeito ao acrescentar
que no início do século XIX o “sertão estava de tal modo integrado à língua
usada no Brasil, que os viajantes estrangeiros em visita ao país registravam a
palavra, utilizando-a várias vezes em seus relatos: Sain-Hilaire usou ‘sertão’
em mais de um livro, sempre designando as áreas despovoadas do interior do
Brasil”(AMADO, 1995, p. 05).
Saint-Hilaire quis reforçar seu entendimento sobre sertão e volta nos
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Vanessa Maria Brasil
informando, que ao dizer “despovoada, refiro -me aos habitantes civilizados,
pois de gentios e animais está povoada até em excesso” (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 256). Com certeza outros significados de sertão vão surgir nos variados
relatos escolhidos por nós, portanto, não podemos confiar nas primeiras aguadas.
Devemos mergulhar profundamente nos rios históricos e literários. Para
isso, convidamos o navegador histórico, Durval Muniz (ALBUQUERQUE
JR., 1999, p. 39), que, após muitas braçadas, nos alertou que é fundamental,
em nossas pesquisas, analisar os conceitos e as categorias conforme eles
emergiram em cada momento histórico.
Dando continuidade ao nosso percurso ao longo do rio São Francisco
e, voltando às narrativas de Saint-Hilaire, nos deparamos com esse botânico
preocupado com o sertão, com o gado e com o futuro desse rio. Em um dado
momento de sua narrativa, comenta que o sertão conhecerá novos recursos
e, ao mesmo tempo, “restar-lhe-ão sempre gordas pastagens, terras férteis, e
um rio que navegável em imensa extensão, estabelecerá uteis comunicações
entre o país e o oceano” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 278).
Ao falar do comércio realizado por essas bandas, se lembra de outras
províncias banhadas pelo São Francisco e as funções que lhe foram atribuídas,
ao longo da história, a de união, de terras e de gentes. Diz-nos que o algodão
pode ser exportado para “Pernambuco e Bahia pelo rio, e o feijão assim como
o milho podem ser permutados pelo sal trazido da região das salinas, situada à
margem do rio, e onde a excessiva seca se opõe ao cultivo dos cereais”(Idem,
ibidem, p. 320).
O pesquisador francês continua observando e conferindo as funções
atribuídas ao São Francisco e logo nos aponta mais uma delas, a de fixador,
de atração natural, ao descrever uma cena sobre os costumes das pessoas que
escolheram viver mais para o interior da região são-franciscana. “Felisberto
nos recebeu maravilhosamente bem. Morava num casebre humilde, desprovi
do de conforto. Leite e feijão no nosso jantar, e por leito me deram um colchão
de palha sem lençol. Mas tudo foi oferecido de bom coração” (SAINTHILAIRE,
1975, p. 103).
Nem sempre Saint-Hilaire via o rio, suas riquezas, seu povo e os lugares
por onde passava com tamanha benevolência. Às vezes, os mosquitos, os
infernais borrachudos, mudavam o seu humor e as suas opiniões. Em sua
passagem pela Comarca de Paracatu, depois de prolongada seca, o viajante
estrangeiro comenta que ficou privado de arroz durante três semanas, o calor
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 17
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
era excessivo, o capim estava seco, não tinha flores, “alojamentos detestáveis
e hospedeiros ignorantes e estúpidos”(Idem, ibidem, p.119). Enfim, a viagem
foi “penosa para ele e infrutífera para a ciência” (Idem, ibidem, p. 119).
Alguns parágrafos depois desses comentários, o botânico francês parece
se arrepender e nos informa que Paracatu “dispõe de todos os elementos
propícios à riqueza e à prosperidade. Não somente se encontram aí jazidas
de ouro e diamantes como também de ferro e estanho”(Idem, ibidem, p.123).
Com relação à sua especialidade, comenta que “diversas plantas fornecem
ao homem salutares remédios, as terras são férteis e as pastagens imensas”.
Diz ainda, que em vários pontos da Comarca pôde comprovar a existência
de “águas minerais de valor inestimável para a cura de várias doenças e que
permitia aos criadores de gado substituí-la pelo sal, gênero tão caro no interior
do país”(Idem, ibidem, p.142).
Saint-Hilaire continua a sua longa caminhada pelas margens do rio São
Francisco, observando minuciosamente tudo e todos que vê em seu caminho
e, é claro, sem deixar de emitir as suas opiniões, nem sempre coerentes, acerca
das habitações e das populações ribeirinhas. Quanto às habitações, ele nos
informa que eram “miseráveis palhoças. O que há de extraordinário em tudo
isso é que são homens brancos que moram nessas palhoças”(Idem, ibidem,
p. 120). Ao falar das populações locais, ele aproveita para analisar a questão
da ‘cor’ de seus habitantes e comenta: “Nem toda a população é composta
de homens de cor e, muitas vezes, a cor não corresponde aos bons costumes
e à educação”(Idem, ibidem).
Antes de partir rumo a Salgado ou brejo do Salgado, paróquia que tem
“quarenta léguas de comprimento por vinte de largura e cuja população atinge
8 mil almas”(Idem, ibidem, p.121), o botânico decide descansar, acampando a
margem desse rio. Pelo jeito descansar o corpo, pois a sua língua não parecia
cansada. Conseguiu ver que o local compunha-se de “meia dúzia de cabanas
cahindo em ruínas e, a maior parte dellas abandonada”(Idem, ibidem, p.
119).
Saint-Hilaire continua sua caminhada e, pouco depois comenta: “Ao
me aproximar de Paracatu encontrei finalmente uma pessoa com a casa bem
cuidada, mais do que a maioria das outras e com quem pude conversar. O
extraordinário no caso é que esse homem era um mulato”(Idem, ibidem, p.
123), diz ele. Parece que o sol claudicante da viagem esquentou a sua cabeça
e seus pensamentos.
18
Vanessa Maria Brasil
Após um bom descanso, o viajante francês descreveu um por de sol admirável
e o rio São Francisco deslizando com extrema lentidão nessa localidade.
“O céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma
calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as
águas e nem sequer enrugavam-lhe a superfície”(SAINT-HILAIRE, 1938, p.
328). Que você descanse sempre, Sain-Hilaire!
Acreditamos que ele, infelizmente, deve ter passado a noite deitado sobre
suas malas e não em sua cabana, pois dentro desta os “bichos de pé são muito
numerosos”(Idem, ibidem, p. 362).
Em outro trecho de seu diário, ele relata que os “terrenos próximos as
duas margens do velho Chico apresentavam-se impregnados de sal e que os
habitantes de Salgado sabiam extraí-lo e dele faziam “um importante objeto
de comércio”(Idem, ibidem, p. 332).
O açúcar e a aguardente principais gêneros dessa localidade eram
constantemente oferecidos em troca de sal. Ele continua nos contando que
a prosperidade reina entre os habitantes de Salgado devido ao importante
comércio realizado por vários mercadores, possibilitando maiores oportunidades
de lazer, para alguns setores dessa comunidade. “Parece que vários
deles possuem grande quantidade de escravos, e meu proprio hospedeiro tinha
setenta”(Idem, ibidem, p. 333). Ali ele observou que as pessoas “jogavam cartas
e gamão, ouviam música e dançavam alegremente. Uma vez até ensaiaram e
apresentaram uma peça de teatro em sua homenagem “ (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 133).
Enfim, um Sant-Hilaire menos ‘salgado’. Sua viagem segue para a província
de Goiás, mas não vamos acompanhá -lo nessa jornada, pois o rio São
Francisco não corta essa província. Quanto a sua despedida do Brasil, só vamos
entendê-la lendo as últimas partes de seu diário e, em particular, os ‘votos do
autor’. Saint-Hilaire deixou claro que gostaria de ter os seus apelos e conselhos
atendidos. Por quem? Onde? Tentemos compreender suas palavras: “Quanto
a mim, se vier, a saber, que meus fracos apelos foram ouvidos, que alguns conselhos
produziram frutos, jamais lamentarei ter passado perdidos nos sertões,
em meio a privações, longe de minha família e de minha pátria, os mais belos
dias da minha existência”(Idem, ibidem, p.189). Segue a sua narrativa, agora
lamentando sobre a perda de sua saúde, pois “paguei a dívida da hospitalidade,
e minha passagem pela terra não foi inútil”(Idem, ibidem, p.190).
Um tanto dramático esse monsieur Saint-Hilaire!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 19
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Mudança de rumo – dois bávaros embarcam nessa vigem pelo velho
Chico
Atento a todos os movimentos, tanto em suas margens quanto dentro
de suas águas, o rio São Francisco continua o seu curso em direção ao mar.
Quem será o próximo a me visitar, a me desvendar? Atravessando o Atlântico
rumo ao Brasil, lá vem outro viajante, de língua enrolada, para conhecer o rio
de tantas histórias.
Valei-me meu São Francisco, dessa vez são dois, os bávaros Spix e Martius,
que pretendem passar uns três anos visitando várias províncias brasileiras,
no período de 1817 a 1820, e com certeza vão cruzar com o inequecível
viajante francês, que ainda continua seus estudos científicos pelo país. Eles
vêm a bordo do navio que traz a D. Leopoldina, arquiduquesa d’Áustria, para
se casar com D. Pedro I. De acordo com esses dois estudiosos, foi o amor
à ciência que os conduziu para terras tão longínquas e, em especial, para o
rio São Francisco. Eles irão percorrer as províncias do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piaui, Maranhão, Pará e Amazonas,
estudando a fauna e a flora brasileira. Quem sabe em dupla, o humor desses
dois viajantes seja mais agradável!
Vários aspectos observados por Saint-Hilaire, com relação ao rio São
Francisco, as províncias banhadas por ele e as cidades que o margeiam,
também serviram de pesquisa para Spix e Martius: a vegetação, os minerais,
os animais, a formação geológica, os afluentes desse rio, as doenças típicas
dessas regiões, a navegação e as embarcações, as populações ribeirinhas e seus
hábitos e costumes, enfim, a imponência desse rio impressionou tanto os dois
pesquisadores, que eles estudaram, relataram e desenharam muito mais do que
o previsto em suas profissões de naturalistas e zoológos.
Ao sair do Rio de Janeiro com as suas cartas de recomendação, os
viajantes bávaros adentraram o sertão rumo ao rio que tem nome de santo,
São Francisco. O início da viagem científica significa também o início das
observações, das anotações e coletas e dos comentários da dupla a respeito
de tudo que viam.
Depois de forçar o caminho através da mata intensa, “cheios de alegria,
avistamos o rio São Chico passar suas ondas espelhentas em majestosa calma
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Vanessa Maria Brasil
diante de nós” (SPIX&MARTIUS, 1981, p. 88). Dentro desse clima de admiração,
os naturalistas sentiram que a força das águas desse rio iriam reanimarlhes
os ânimos, para seguir viagem e finalmente alcançarem, “depois de tantas
atribuições e desventuras, a margem do abençoado rio hospitaleiro” (Idem,
ibidem, p. 218). A viagem prossegue nas Minas Gerais, com os dois viajantes
observando que o rio era, já naquela época, a “via usual do comércio” (Idem,
ibidem, p. 91) de uma grande parte do sertão das Gerais. O São Francisco
transportando os seus produtos para a Bahia “com facilidade maior do que
em lombo de mulas ao Rio de Janeiro e em troca recebendo o sal das salinas
situadas ao norte do rio, além de mercadorias européias” (Idem, ibidem, p.
91).
Tomara que o sal não amargue o humor desses naturalistas, até o momento
muito agradável. Felizmente eles continuam a viajar por trechos do
rio São Chico onde existe uma quantidade de pequenos engenhos, apesar de
“muito pouco açúcar ser produzido. A produção é “quase que exclusivamente
de rapadura parda, sendo a maioria despachada rio abaixo para a província da
Bahia”(Idem, ibidem, p. 91).
Além de relatarem que o São Francisco derrama as bênçãos de um grande
rio sobre toda a população ribeirinha, os dois naturalistas alemães matam
um pouco da saudade da terra natal ao afirmarem que o rio os faz lembrar
o “pátrio Reno na parte onde ele sai apertado dos montes, percorrendo de
Bonn em diante, férteis planícies” (Idem, ibidem, p. 221).
Ainda em Minas, ficam impressionados com a abundância e variedade de
peixes, tanto no rio São Francisco quanto em seus principais afluentes, e com
a riqueza das aves às margens desse rio. Já é hora de sair das Minas Gerais,
atravessar o sertão da Bahia até Juazeiro, às margens do rio São Francisco.
No transcorrer do caminho eles deparam com tropas de mulas e comentam
que elas saem das províncias do “Rio Grande do Sul e de São Paulo e que
geralmente são tocadas ao longo desse rio, em direção à província da Bahia”
(Idem, ibidem, p. 228).
Mais uma vez os bávaros ficam impressionados não só com a quantidade,
mas com a qualidade das “espécies de animais fantásticos, como os variados
tipos de morcegos que habitam as Minas Gerais, principalmente as regiões
das grutas que margeiam o rio São Francisco” (Idem, ibidem, p.81). Segundo
Spix e Martius, os morcegos em “numerosos bandos atacam o gado à noite e
muitas vezes obrigam os habitantes a abandonar as suas fazendas e retirar-se
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 21
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
para regiões mais sossegadas” (Idem, ibidem, p. 81).
Com relação à riqueza das aves que vivem às margens do velho Chico,
os dois viajantes gastaram páginas e páginas em seus diários, tanto em relatos
quanto em desenhos. As aves que lá e cá gorjeiam e falam, essas, então, foram
merecedoras de incontáveis elogios.
Mas qual não foi a nossa surpresa, ao depararmos, em uma das páginas
desse precioso diário, com uma cena no mínimo estarrecedora. O Sr. Dr. Spix,
não contente com a refeição frugal que lhe foi oferecida, em um dos trechos
da viagem decidiu contribuir, para completar o cardápio de feijão e toucinho,
com os produtos de sua vitoriosa caçada: alguns verdejantes papagaios. Pobres
louros, o que diriam eles a esse bávaro caçador, tão preocupado com a nossa
exuberante fauna? Curupaco, papaco...
E a expedição continua rumo às terras das Gerais. Novos gêneros de
caça iam surgindo, como caititus, veados, onças e antas. Spix, Martius e seus
companheiros de viagem comentam alegremente: “É muito agradável a caçada
a esta última, pois não tem perigo algum”( Idem, ibidem, p. 83). O perigo não
estava com as antas, pois elas cotidianamente saiam dos brejos em direção às
matas e mal sabiam que homens caçadores estavam atrás das grossas árvores,
tomando posição para atacá-las com balas de espingarda. Alguns mais arrojados
“arremessavam um facão largo no meio do peito da anta passando a toda
pressa” (Idem, ibidem, p. 84). Comentavam esses homens que essa atitude
era bem arriscada, “embora o animal não pudesse ferir com os dentes, nem
com as garras, só o formidável embate, que ele der com o focinho, basta para
ferir seriamente” (Idem, ibidem, p. 83). Relatam ainda, que tiveram a sorte de
matar duas antas grandes em um só dia, e de “capturar uma cria para amansar”
(Idem, ibidem, p. 83).
Pobre santo, o Francisco, não é à toa que ele decidiu ser o protetor dos
animais, além de dar nome ao rio.
As águas do velho Chico continuam a deslizar, as folhas das árvores a
balançar, algumas vezes fora do ritmo normal, incomodadas com o ruído das
armas. Numa pausa do dia, entre relatar e caçar, podem os caçadores europeus
abandonar-se às impressões do sossego da mata brasileira e apreciar os
buritizais, ornamento característico da bacia do rio São Francisco. O buriti,
“um dos mais belos produtos do mundo das plantas” (Idem, ibidem, p. 103)
fornece aos habitantes da região fios e fibras resistentes para a cobertura das
palhoças; a seiva dos caules produz uma bebida agradável, semelhante à água
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Vanessa Maria Brasil
da bétula” (Idem, ibidem, p. 103) e a polpa do fruto, misturada com outros
ingredientes, é doce apreciado e artigo de comércio do sertão de Minas com
a costa.
A natureza pródiga beneficia também as mulheres, pois a “fertilidade
delas e o crescimento da população no norte de Minas é um dos fenômenos
mais prodigiosos” (Idem, ibidem, p. 85). De acordo com Spix e Martius, um
hospedeiro de Contendas contou-lhes que o trecho “entre o rio Verde Grande
e o rio São Francisco conta com quase 10 mil almas” (Idem, ibidem, p. 87). Para
constatar a fertilidade da região, das mulheres e dos homens, esses viajantes
nos descrevem que “certa mulher de pouco mais de 50 anos, moradora de
Contendas, tem 204 descendentes vivos; outra, que aos setenta anos casou-se
com um velho da mesma idade, deu -lhe trigêmeos, que ainda vivem” (Idem,
ibidem, p. 86). Nem a bíblia explicaria tamanho milagre! Os viajantes também
ficaram admirados com as mulheres novas: “não é raro ali uma moça de
apenas 20 anos, já ser mãe de oito a dez filhos” (Idem, ibidem, p. 86). Entre
os homens, encontram- se velhos ativos, vigorosos, “de altura gigantesca, que
conservam todo o humor da virilidade”( Idem, ibidem, p. 86).
A mortalidade era muito pequena, “morrem apenas três a quatro pessoas
por ano, ao passo que nascem 70 a 80” (Idem, ibidem, p. 86). A prole
numerosa não constitui motivo de queixa e miséria.
Após tantas notícias, a expedição dirigida pelos dois viajantes força
caminho pela orla do mato, que o povo chama de alagadiço. Cheios de alegria
e ânimo, avistaram outro trecho do rio São Francisco: “o majestoso rio
resplandeceu, ondulando placidamente” (Idem, ibidem, p. 221), sob o olhar
atento dos dois naturalistas.
Em meio às andanças pelas matas, pelas margens do rio e diferentes
localidades, os bávaros comentaram que precisavam pesquisar e anotar muitos
dados sobre aquela expedição ao interior do Brasil, porque ao sair de seu país
teriam declarado o “amor a Vossa Majestade e à ciência” (Idem, ibidem, p.
02). Também não podiam esquecer que vieram na bagagem da D. Leopoldina
e que, ao chegar ao Rio de Janeiro, eles contaram com valiosos recursos de D.
Pedro I, para iniciar os trabalhos.
Hoje sabemos que a produção científica dos dois naturalistas bávaros,
resultado dessa expedição, é extremamente importante, com várias obras
publicadas e que os dois, em especial o Martius, não se limitou à taxonomia e
nem mesmo à botânica. Ele escreveu sobre as plantas medicinais brasileiras, fez
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 23
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
observações fitogeográficas, estudou etnografia, assuntos lingüísticos, o costume
dos indígenas brasileiros, organizou mapa fitogeográfico do Brasil, além
dos incontáveis desenhos de cenas da fauna, da flora e do povo ribeirinho.
Vamos observar detalhadamente as narrativas desses dois viajantes,
principalmente depois desses compromissos e preocupações assumidas. Sobre
o velho Chico e as comunidades ribeirinhas, as informações são riquíssimas e
variadas, porque de acordo com Spix e Martius, a “imponência e importância
do rio deixaram-nos impressionados” (Idem, ibidem, p. 70).
Ao viajarem do sertão até o rio São Francisco, uma soma enorme de
anotações foi realizada e, dentre elas, a qualidade da água, que para eles “embora
fresca e potável era enjoativa e parecia ser um dos fatores da malária,
tão predominante e devastadora na grande região desse rio.”( Idem, ibidem,
p. 78)
Nada como um bom descanso ao ar livre para amenizar a opinião desses
naturalistas, pois nesse momento eles “nem sentiam a falta da agradável e
saudável água do rio São Francisco” (Idem, ibidem, p. 104).
As grandes cheias, assim como as grandes secas, os afluentes das duas
margens do rio São Francisco ocuparam muitas páginas de seus diários. Vale
ressaltarmos as anotações, os desenhos e comentários feitos com relação à
fauna e à flora brasileira e, em especial, as da região são franciscana.
Na flora dessa intensa e rica região eles notaram uma “decisiva predominância
das plantas das famílias das Nopáleas, Verbenáceas, Malváceas,
Terebintáceas, Rutáceas” (Idem, ibidem, p. 103), valei-nos São Francisco,
quantos nomes complicados! Destacaram mais uma vez estar encantados
com os buritizais, que segundo os dois bávaros, caracterizam e ornamentam
a bacia do velho Chico.
Nesse vai-e-vem, nesse sobe e desce o rio e seus afluentes, Spix e Martius
decidem demorar um pouco mais em Contendas. À margem do rio, os dois
botânicos encontraram uma melhor oportunidade para fazer as suas anotações
médicas. Relataram que em vários trechos às margens do São Francisco as
“febres são endêmicas e reina grande disposição para elas, além de inflamações
no peito e no abdome serem bem comuns nas proximidades do rio” (Idem,
ibidem, p. 96 ). Notaram também que na parte alta do sertão das Gerais a
população tinha um aspecto mais saudável .
Uma cena diferente distrai o olhar dos naturalistas e os fazem mudar de
assunto. Outra enorme tropa de mulas vindas das províncias do Sul e de São
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Vanessa Maria Brasil
Paulo, “geralmente são tocadas ao longo do rio São Francisco à província da
Bahia” (Idem, ibidem, p.199). A curiosidade aumentou, pois os naturalistas
queriam saber qual o conteúdo das cargas e, por isso, várias perguntas fizeram
aos tropeiros. Os produtos eram os mais diversos, como “açúcar bruto,
cachaça, farinha, fumo (Idem, ibidem, p.111)” que deveriam ser trocados com
o sal daquela localidade. Foram informados, ainda, que pelo leito do rio São
Francisco já era habitual, naquela época, o transporte de uma grande parte
desses produtos do sertão das Gerais para a Bahia, chegando até o Rio de
Janeiro e que os tropeiros preferiam “o transporte pelo rio ao invés de tropas
de mulas” (Idem, ibidem, p. 228).
Aproveitando o assunto acerca de transporte pelo rio, os naturalistas
emendaram, em seguida, o tema sobre navegação fluvial. E as funções de
separar, unir, dividir, transportar atribuídas ao São Francisco, ao longo de sua
história, foram brotando nos relatos de Spix e Martius. Notaram in loco que o
rio “separa as capitanias da Bahia e Pernambuco, e Registro, situado à margem
setentrional do São Francisco, frente a Juazeiro, faz parte de Pernambuco”
(Idem, ibidem, p. 221).
Em outra página do diário, anotaram que “estando em Juazeiro poderiam
continuar viagem por uma parte da província de Pernambuco, em direção a
Oeiras, capital do Piauí” (Idem, ibidem, p. 252).
Mais uma vez as funções de travessia e de fronteira atribuídas ao rio
surgem em seus inúmeros relatos, ao comentarem que “atravessaram um
lugar raso do Carinhanha e, ao meio-dia, voltamos outra vez ao rio, em cuja
margem setentrional tínhamos que prosseguir até a sua foz no São Francisco.
Este rio, que forma aqui a fronteira entre Minas e Pernambuco” (Idem,
ibidem, p. 113).
Voltando a narrar sobre a navegação nesse rio, os dois viajantes chamam a
atenção do leitor para os tipos de embarcações que conheceram, por exemplo,
as simples barcaças e ajoujos (canoas amarradas, uma ao lado da outra) . Para os
dois viajantes, a navegação fluvial se destaca não só pelos tipos de transporte,
mas, também, pela grande importância no crescimento da população e do
comércio, pois, “desde São Romão até Juazeiro, na província da Bahia e, com
o crescimento da população e do comércio, os poucos casebres do povoado
se transformarão brevemente em próspera cidade” (Idem, ibidem, p. 91).
A viagem prosseguia ora sertão adentro, ora pelas margens do rio. E ao
longo do percurso nenhum acontecimento alterou o humor dos estrangeiros?
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 25
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Nada de mosquitos? E os animais selvagens? Como diz o velho ditado, quem
procura, acha, fomos revirando as páginas dos diários e foram surgindo as
reclamações. Para debulhar o rosário de queixas os naturalistas escolheram uma
localidade, Malhada, “por sua posição insalubre, é entre as povoações do rio
São Francisco, a de pior reputação” (Idem, ibidem, p. 115). Agora aumentou
a nossa curiosidade. Por que será? Acabamos de descobrir ao virarmos mais
uma página do diário dos viajantes: “Malhada apresentava um número muito
grande de doentes de fígado e baço, calor insuportável e o pior, a quantidade
de roubos sem nenhum tipo de punição” (Idem, ibidem, p. 116).
Em outra parada para descanso, os dois estrangeiros relembraram a
época em que colonos europeus se espalharam da província da Bahia para a
província do Piauí, entre os anos de 1674 e 1700 e, pouco mais tarde, deram
início às viagens pelas Minas Gerais, pelo rio São Francisco abaixo. Nesses
percursos, os colonos europeus presenciaram a “fundação de muitas missões
pelos franciscanos, que já se encontravam na Bahia” (Idem, ibidem, p. 216).
Ao narrar sobre essas missões, os naturalistas comentaram ainda o papel
dos religiosos na catequese dos índios e desenharam cenas de “várias tribos
indígenas que, durante os meses secos, se direcionavam para as margens do
rio São Francisco, onde viviam principalmente da pesca, pois havia abundância
de peixes” (Idem, ibidem, p. 216).
Assim como Saint-Hilaire, os dois bávaros gastaram páginas e mais páginas
de seus diários, relatando acerca da produção de salinas e do comércio
de sal realizado nas feiras, com comerciantes de Minas Gerais, assim como
o despacho do produto para todo o interior do país via rio São Francisco. O
sal era importante não só para o comercio, mas também para alguns animais.
“O gado, que pasta em grandes rebanhos nestas campinas, procura o sal com
avidez, e lambe os barrancos, às vezes em longas filas, numa camaradagem
pacífica” (Idem, ibidem, p. 114). De acordo com Martius, esse comportamento
parece ter passado dos animais para os homens: “Quero referir-me à irreprimível
vontade que tem as crianças de comer terra” (Idem, ibidem, p. 87). Ele
viu meninos e meninas comerem a “terra margosa, às vezes o revestimento
calcário das paredes” (Idem, ibidem, p. 87) e, segundo o naturalista, só uma
vigilância constante poderia impedir tal hábito. Continua relatando que “parte
do material indigesto não pode ser eliminada, e ocorre a inchação das glândulas
abdominais”. As crianças são barrigudas, pálidas, raquíticas e, “quando não
morrem, sofrem de câimbras ou hidropisia” (Idem, ibidem, p. 87).
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Vanessa Maria Brasil
Ilustres naturalistas, esse mal é causado por vermes e lombrigas. Em
seguida ouvimos uma pergunta com sotaque carregado: Uma pessoa falar
alguma coisa?
Sim, nós leitores e moradores dessas regiões ribeirinhas acostumadas
que somos, com essa cena, crianças barrigudas comendo terra, resultado da
quantidade de vermes. Elas são tratadas com as plantas locais. Como os senhores
botânicos constataram em suas pesquisas, “a natureza daquela região
fornece-lhes a opulência de suas poderosas plantas medicinais, que merecem
a máxima consideração dos médicos, e muitas das quais deveriam, no futuro,
enriquecer a farmacopéia da Europa” (Idem, ibidem, p. 87).
Até aquele momento, o humor dos dois naturalistas não tinha sido
contaminado pelo sal, mas em outro trecho de suas narrativas, o paciência dos
estrangeiros nos pareceu bem menor. Notávamos que a impaciência dos dois
viajantes aumentava, à medida que erravam mais o nosso idioma. Ao descrever
o sertanejo dessa região são franciscana, não foram nada felizes, como veremos
a seguir. Para os naturalistas, o “sertanejo é criatura da natureza, sem instrução,
sem exigências, de costumes simples e rudes. Envergonhado de si próprio e
de todos que o cercam, falta-lhe o sentimento da delicadeza moral, o que já
se demonstra pela negligência no modo de vestir; porém é bem intencionado,
prestativo, nada egoísta e de gênio pacífico” (Idem, ibidem, p. 76).
Não nos parece um tanto precipitado, esse julgamento com relação ao
sertanejo? Os dois viajantes estiveram pouco tempo no país e, menos ainda,
nessa imensa parte dos sertões brasileiros? E não terminam aí as considerações
dos estrangeiros a respeito dessa figura complexa que é o sertanejo. Nas
páginas seguintes, eles continuam a narrar que a “solidão e a falta de ocupação
espiritual arrastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sensual, no
qual, incitado pelo seu temperamento insaciável e pelo calor do clima, goza
com requinte” (Idem, ibidem, p. 103).
Nesse momento, prefiro me lembrar do verso de uma canção: “não
existe pecado, do outro lado, do Equador...” (Francisco Buarque Holanda;
Ruy Guerra, 1978). Somos obrigados a retirar outro trecho de suas narrativas
onde os naturalistas falam: “o ciúme é quase a única paixão que o leva até ao
crime” e “ademais, só a mínima parte dos sertanejos é de origem puramente
européia; a maioria consta de mulatos, na quarta ou quinta geração; outros são
mestiços de índios com negros ou de europeus com índios...” (Idem, ibidem,
p. 102). Pensando melhor, Euclides da Cunha definiu sabiamente esse homem,
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 27
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
“o sertanejo é antes de tudo, um forte...” (CUNHA, 1994, p. 95)
Além de subir e descer várias vezes o rio São Francisco e seus afluentes,
os viajantes estrangeiros, por inúmeras vezes, levantaram e abaixaram os seus
olhares e, dessa vez de encantamento, para descrever e desenhar as aves e os
peixes dos rios.
Na fazenda Capão, às margens do rio São Francisco, mais especificamente
à beira de uma grande lagoa formada por esse rio, os dois naturalistas
foram “transportados a um país inteiramente diverso. Eram “matas virentes,
que orlavam extensas lagoas piscosas”(SPIX & MARTIUS, op.cit., p. 96). A
variedade e a quantidade de peixes eram assustadoras e, de acordo com os
naturalistas, páginas e páginas seriam necessárias para anotar os seus nomes,
como: “pacu, surubim, dourado, cascudo, pirá -tamanduá, acari, mandi, piau,
traira, bagre, sarapó, piranha ordinária e roduleira, curumatã , mandipintado”
(Idem, ibidem, p. 97) e mais, muito mais. Em outra lagoa, nessa mesma fazenda,
outra cena chamou-lhes atenção, pois contaram “mais de quarenta jacarés, uns
deitados nas margens, outros inquietos por nosso ruído. Os maiores desses
animais tinham oito a nove pés de comprimento, couraça esverdeada e focinho
rombudo” (Idem, ibidem, p. 83).
De repente, um estrondoso barulho mudou a direção de seus olhos, agora
voltados para o alto. Os dois botânicos disseram ainda extasiados: “Ressoam
aqui, na mais alvoroçada celeuma grasnada, chiados e gorjeios sem fim dos
mais diversos gêneros de aves, e, quanto mais observávamos o raro espetáculo
da natureza, menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros,
aquele cenário pacífico da natureza” (Idem, ibidem, p.84).
Papagaios!!! Em um cenário poético, pacífico, colorido e encantador, os
dois bávaros ainda pensaram em “mortíferos tiros”!
Felizmente um bando de marrecos, numerosos quero-queros voou rápido
por sobre suas cabeças, levando embora aqueles pensamentos ruins. E
a riquíssima variedade de animais volta a perturbar-lhes, anotando mais uma
vez que “viram mais de 10.000 animais reunidos. Parecia-nos ter-se renovado
o quadro da criação do mundo diante dos nossos olhos, e esse maravilhoso
espetáculo nos teria ainda agradavelmente impressionado, se não nos ocorresse
o pensamento de que a guerra, a eterna guerra, era a lei e misteriosa
condição de toda existência animal” (Idem, ibidem, p. 82). Pasmem senhores
leitores sobre esse comentário dos naturalistas. Realistas em excesso? Visões
de mundo distintas?
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Vanessa Maria Brasil
A viagem pela região são franciscana estava chegando ao final, por essa
razão escolhemos como último trecho do diário desses dois viajantes, um
momento mais ameno, mais descontraído: um dia de festa no coração do
sertão. Uma das fazendeiras ricas da região os convidou para participar de
uma solenidade religiosa muito tradicional. Lá os viajantes puderam constatar
que o comércio e a riqueza proporcionaram uma “sociabilidade e costumes
amenos. Solenizaram-se aqui, com decoro e pompa, várias festas da Igreja,
entre outras uma inteiramente nova para nós” (Idem, ibidem, p. 93).
A senhora rica tinha feito a Nossa Senhora, a promessa de uma procissão
e, qual não foi a surpresa dos bávaros, quando viram que a “dama, vestida de
gala, conduzia o séquito até a Igreja (Idem, ibidem, p. 93) O convite da ilustre
dama era para “assistirmos a missa, e de lá voltarmos todos a casa dela, onde
estava posta uma grande mesa com as mais finas iguarias e vinhos escolhidos
e, sobretudo, deliciosos doces, para serem deleitados o dia inteiro” ( Idem,
ibidem, p. 94).
Essas horas alegres decorridas na casa da gentil senhora só foram perturbadas
pelas preocupações com o prosseguimento da viagem. Para felicidade
dos dois naturalistas, um novo guia foi arranjado, um experiente paulista, para
acompanhá-los de volta ao mar.
Como foi a saída de cena desses bávaros naturalistas? Mais uma vez
recorremos aos seus diários e, nas últimas páginas amareladas e amarrotadas,
encontramos essa despedida. Os dois viajantes chegaram à conclusão que a
relação dos fatos de sua viagem ao Brasil e dos seus resultados científicos
gerais “corresponderam aos seus encargos relativos à botânica e à zoologia”
(Idem, ibidem, p. 320). Comentaram ainda, que o país de origem depois de
muitos séculos fechados às investigações dos europeus, deu–lhes uma rica
oportunidade de “enriquecer com fatos aquelas ciências “ (Idem, ibidem,
p.320). Pareceu-lhes também mais acertado “colecionar durante a viagem,
exemplares tanto de formações geológicas quanto etnográficas e, em particular,
de animais e plantas, dar assento em nosso diário, as descrições e noticias
minuciosas” (Idem, ibidem, p. 320), e, com isso, preparem uma exposição
científica quando de volta à pátria.
Por falar em horas e também em anos, já faz um bom tempo que não
nos deparamos, nem nas estradas de terra, nem sertão adentro, muito menos
nas margens dos rios, com viajantes esbaforidos, avermelhados, suados, reclamando
de calor e se comunicando mais com gestos do que com palavras.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 29
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
É verdade que estamos sentindo falta dessas cenas. Já estamos quase no final
da década de trinta dos oitocentos, na passagem de 1836 para o ano seguinte.
Será que vamos ter surpresas?
O último convid ado a percorr er o rio: o pontual viajante inglês
Santo Antônio das roças grandes! Leitores e leitoras! Esfreguem bem
os seus olhos e vejam mais adiante quem vem chegando, com sua tradicional
pontualidade britânica. É o botânico inglês George Gardner, quase 20 anos
após a saída dos dois naturalistas bávaros.
Além do peso de sua bagagem, sua mente também pesava com a quantidade
de informações adquiridas por outros viajantes, que aqui estiveram e
que lhes narrou, ainda na Europa, a beleza e a variedade de riquezas naturais,
a grandiosidade de cenários existentes nos países dos trópicos. Ele esperava
encontrar um campo vasto e inexplorado para as suas investigações, apesar
das informações de naturalistas que aqui estiveram antes de sua chegada.
Que surpresas nos aguardam? A primeira é que Gardner era um naturalista
de origem escocesa. Chegou ao Brasil em 1837, nos últimos anos do
período regencial, e aqui permaneceu até 1841.
O país se encontrava em ebulição com tantas mudanças. Tínhamos uma
Constituição desde 1824, o colégio Pedro II, O IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro); o Arquivo Público e, em 1840, deu-se o início do
Segundo Reinado, com o imperador Pedro II, enfim, o Brasil não era o mesmo
dos dois naturalistas bávaros e do francês, aqui estudados.
Em meio a todas essas transformações, George Gardner coletou vasto
material sobre a fauna e a flora brasileira, além de numerosos relatos dos
costumes e hábitos da população das províncias de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Piauí, Maranhão e Goiás. Fazem parte de suas anotações
ricas informações geográficas e históricas dessas províncias visitadas
e pesquisadas. Enfim, realizou quase o mesmo trabalho que os outros três
viajantes estrangeiros citados anteriormente. Nosso objetivo maior é observar
as pequenas nuances, ou seja, o que difere, nas páginas de seu diário, as
anotações sobre o rio São Francisco e seus afluentes, o viver das populações
ribeirinhas e as funções atribuídas ao rio no transcorrer de sua história. Enfim,
como George Gardner viu, sentiu, anotou, pesquisou esses mesmos assuntos,
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Vanessa Maria Brasil
uma vez que viajou pelas mesmas províncias visitadas pelos naturalistas que
o precederam.
De acordo com as palavras desse botânico, vários são os motivos de
sua viagem ao Brasil, mas a motivação inicial partiu das minuciosas descrições,
feitas por Humboldt e outros viajantes, sobre as belezas e variedades
de produtos naturais dos países dos trópicos e dos diferentes cenários das
montanhas. As ricas produções vegetais do Brasil, menos conhecidas dos
ingleses, aumentaram o seu desejo de viagem rumo a América do Sul e, não
menos importante, a orientação do seu professor de botânica, Sir William T.
Hooker, que foi o seu patrocinador.
O botânico inglês iniciou a sua viagem pelo rio São Francisco de forma
diferente dos seus antecessores, pela foz do rio, ao invés da nascente, portanto,
pela província de Alagoas, pelo menos é dessa forma que está divida a sua obra.
A partir daí vamos observar os seus relatos. O rio São Francisco seria o seu
guia, para atingir o interior das regiões banhadas por ele, especialmente por
ser navegável, sem interrupção, por um longo percurso em direção à primeira
província a ser conhecida Alagoas. A vontade desse viajante era fazer uma
excursão pelo velho Chico, rio acima até chegar à cachoeira de Paulo Afonso.
Assim foi ele com a sua equipe até atingir uma aldeia de nome Peba, “cerca
de 5 léguas ao norte da embocadura do rio São Francisco e término de sua
viagem marítima” (GARDNER, 1975, p. 63).
Uma fala em comum com os viajantes estrangeiros vem brotando, nas
páginas do seu diário, as diversas funções atribuídas ao rio e, nesse momento,
a função de separar é comentada: “como o São Francisco separa a província
de Alagoas da de Sergipe, é fácil ver que Vila Penedo pertence à primeira e
Vila Nova à última” (Idem, ibidem, p. 64).
Oh my God!!! Exclamava o viajante inglês. Preciso arranjar transporte
para continuar a minha viagem em direção a outros lugares. Uma preocupação
certamente inglesa, pois o botânico acabara de chegar à aldeia de Peba e já
pensava em dar continuidade às suas pesquisas. Sua ansiedade era tanta que
conseguiu tratar com o dono de um carro de boi, para lhe levar a bagagem
a Piassabuçu, pequena aldeia da margem norte do São Francisco. Pelo jeito
não gostou do local.
Em Vila Penedo, no ano de 1838, o viajante inglês observou e recolheu
espécimes de rocha de “arenito branco e grosso, semelhante às que vira na
costa entre o rio São Francisco e Pernambuco” (Idem, ibidem, p. 65). Outras
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 31
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
rochas de gnaisse e xisto micáceo lhe chamaram a atenção durante sua travessia,
tanto na costa quanto nas margens desse rio. As primeiras anotações
do botânico destacam as povoações e os tipos de rochas da região. Durante o
percurso, ainda em 1838, ele se depara, porém, com uma paisagem totalmente
distinta das firmes rochas: uma grande enchente.
Suas palavras são de espanto, uma vez que estava atravessando vários
trechos do rio em ajoujos, as canoas unidas, levando cavalos e pesadas bagagens.
Com a enchente, as águas do São Francisco “subiram cinco pés acima
do nível do assoalho e as paredes ainda conservavam os sinais evidentes do
fato” (Idem, ibidem, p. 69). Era impossível realizar a travessia.
O inglês, acostumado aos rígidos horários e compromissos, foi obrigado
a encher várias vezes o seu cachimbo, com um perfumado fumo, e dar boas
baforadas para não ficar estressado. Entre uma fumaça e outra, traçou novos
planos, ou melhor, começou a estudar os planos do governo imperial, com
relação à navegação a vapor. Seria viável?
Well! Bem! Vamos aos mapas. Gardner ouviu ainda no Rio de Janeiro,
que havia um plano de se estabelecer a navegação a vapor “entre a costa e
as províncias centrais do Brasil, pelo rio São Francisco e, só em observar os
mapas desta parte do império, lhe pareceu que a natureza oferecia todas as
facilidades para a realização desse feito” (Idem, ibidem, p. 73). Não são estudos
meus afirmou o inglês.
As águas do rio alheias a todos esses estudos, continuavam a subir. Mais
fumo no cachimbo e mais baforadas do botânico inglês. O jeito é continuar
a estudar esses planos do governo, mesmo sem muita convicção. Vamos
realizar esse plano, porque “uma comunicação fluvial, fácil e barata, embora
algo sinuosa pode ligar o mar dos confins da província de Pernambuco às
terras ricas e relativamente bem povoadas das zonas interiores de mineração
e diamantes...” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico inglês repetiu bem alto: my
God, my God, my God!!! Why, por que o governo imperial quer fazer isso? Uma
fumaça espessa saiu de sua boca. Os técnicos pretendiam unir aquelas zonas
porque estavam “separadas dos grandes mercados do Rio de Janeiro e Bahia
por altas barreiras de montanhas, sempre de acesso difícil e onde os meios de
transporte são cansativos e caros” (Idem, ibidem, p. 74).
No entanto, Gardner tinha grandes dúvidas e críticas que tal plano
pudesse dar certo e, em seguida, descreveu as razões. Esse foi um tema que
gastou páginas e mais páginas de seu diário. Passemos às suas explanações:
32
Vanessa Maria Brasil
“em primeiro lugar, a barra na embocadura do rio, com cerca de duas léguas
de largura, é sempre batida por fortes vagas, e raro tem mais de quatro pés
de profundidade. Depois, na cachoeira de Paulo Afonso, uma série de corredeiras
e quedas, em extensão aproximada de 60 milhas, cria sérios obstáculos
ao progresso da navegação. Por fim, nas zonas intermediárias, a população é
muito escassa e não tem possibilidade de crescer, dada a natureza inóspita da
maior parte do interior!” (Idem, ibidem, p. 74)
O viajante inglês parecia entender do assunto, pois, virando mais algumas
páginas de seu diário, encontramos outras observações sobre a pouca
viabilidade dessa empresa de navegação a vapor. Para ele, essa “zona de terra
só é propícia à criação de gado” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico não acreditava
que naquele momento histórico, os brasileiros, fossem investir verbas
na tentativa de tornar o São Francisco navegável. Sua desconfiança pairava
nos obstáculos da natureza ou na capacidade dos brasileiros? A resposta vem
imediatamente: “Talvez possa aventurar-se em tal tentativa uma companhia
inglesa, uma vez que alguns recentes e mal sucedidos planos semelhantes no
Brasil foram ainda mais absurdos. Veja-se aquele monumento mais absurdo
que se chamou Companhia do Rio Doce” (Idem, ibidem, p. 74).
Não sabemos se a enchente já estava a lhe aumentar o mau humor, a lhe
atrasar os planos de viagem, mas ele foi implacável em suas críticas. Quem
sabe, mudando de ares, de província, de novas paisagens, o tempo perdido
desse viajante inglês seria recuperado? George Gardner atravessava com sua
equipe, pela Serra Geral, muito próximo a uma aldeia “contendo cerca de
quarenta casas” (Idem, ibidem, p. 176), onde pretendiam ficar até encontrar
um homem que os ajudasse no trato da tropa. Apesar de haver dezenas de
homens, nenhum deles estava disposto a realizar tal empreitada e o inglês, irritado,
faz a sua crítica: “É comum dizer aqui, que para cada dez que trabalham,
há noventa que nada fazem e sustentam uma existência mísera caçando ou
roubando seus semelhantes mais industriosos” (Idem, ibidem, p. 178).
Como não podia desistir desse tipo de serviço, Gardner acabou por
encontrar um homem que já havia percorrido e conhecia esses caminhos para
Minas Gerais. Nem bem tinha concluído seu acordo com o sujeito, o viajante
vê chegar uma senhora, “uma mulata grande, velha e feia” (Idem, ibidem, p.
175). Porém, o que mais o surpreendeu foi o fato dela ser escrava, ao passo
que o homem, mulato também, era livre e mais moço. A mulher insultou o
inglês por aliciar o marido para abandoná-la. Que coisa feia, mister Gardner!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 33
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Quanto preconceito! A mulher era esposa do homem e só o liberou para tal
empreitada depois de ouvir o esposo dizer que só ficaria fora por um mês. Os
comentários maldosos do botânico continuaram e, para sua alegria, o guia,
além de seguir com sua tropa por um tempo maior, “não se sentiu inclinado
a voltar e seguiu com eles até o distrito do ouro, onde obteve emprego em
uma das minas” (Idem, ibidem, p. 175).
O viajante estrangeiro e sua comitiva continuaram a viagem ao longo
da chapada, observando que os “pequenos regatos que vinham atravessando
desde algum tempo corriam todos para leste, desembocando no rio São Francisco”
(Idem, ibidem, p. 178). O viajante e sua tropa estavam se dirigindo de
Arraias para a vila de São Romão em Minas Gerais. Logo ao chegar trocou
o seu cavalo castanho por outro todo branco, de crina e caudas bastas, mas
infelizmente a alegria do botânico durou pouco, pois o cavalo branco não
ficou muito tempo em seu poder, porque o roubaram depois de atravessarem
o rio São Francisco.
Gardner e sua tropa viajavam ora uma légua ora jornadas de mais de três
léguas, dependendo das condições das viagens. Sempre teve muitas histórias
para narrar em seu diário, principalmente as mais pitorescas, como a do guia
índio ainda no norte de Minas Gerais. O índio tinha sofrido um acidente de
cavalo e estava muito machucado, então mister Gardner mandou sua tropa
seguir viagem e ficou par a ajudar o índio, que dizia sofrer de muita dor. Deulhe
água e levou-o até a casa mais próxima, tentando encontrar algum medicamento.
Após o índio tomar chá quente e forte, “único estimulante que se
podia obter, melhorou muito. Em seguida, o botânico fez-lhe uma sangria no
braço que o aliviou consideravelmente, tanto que poucos dias depois puderam
seguir viagem” (Idem, ibidem, p.178).
Léguas e léguas de viagem, quando chegaram a outra chapada, o viajante
notou que os pequenos regatos, de águas cristalinas e frias, certamente
desembocariam no rio São Francisco. “Sentimos muito frio à noite, além de
sermos molestados por uma espécie de mosquito grande, cuja picada era
bem dolorosa, e o que nos inchou o rosto e as mãos” (Idem, ibidem, p.179).
No outro dia cedo, notou que os cavalos tinham extraviado para muito longe
e, para não perder seu precioso tempo, realizou uma colheita botânica nos
arredores próximos à chapada.
Por onde passavam notavam os tipos de habitações, quase sempre
“míseras choças feitas de varas e barro cobertas de palmas” (Idem, ibidem,
34
Vanessa Maria Brasil
p.177), muitas delas desabitada, mesmo a igreja local era construída do mesmo
material. Nunca deixava de relatar a preguiça dos habitantes dos distritos por
onde andava: “São desesperadamente preguiçosos, que mal plantam qualquer
coisa suficiente para o seu próprio uso, embora cada família possua terras
ilimitadas” (Idem, ibidem, p.178)
A fauna e flora compõem vários diários de Gardner. Os morcegos foram
insistentemente descritos por seus ataques a cavalos, porcos e, também, aos
homens. Segundo o viajante inglês, as “singulares criaturas produzem tamanhos
estragos e constituem o gênero Phyllostoma, assim chamados por causa
do apêndice em forma de folha de seu lábio superior” (Idem, ibidem, p.178).
Em uma noite que Gardner passou em Riachão, localidade mineira, toda a
sua tropa sofreu com os ataques desse animal e o viajante estrangeiro chegou
a matar morcegos que mediam “dois pés entre as pontas das asas”.
Jesus Crist! Vamos correr desses enormes vampiros!
Ainda em Minas Gerais, mas longe dos morcegos, e tendo como “único
conforto o chá, única bebida nesta longa e morosa jornada” (Idem, ibidem,
p.68), principalmente após uma cavalgada sob o sol ardente dos trópicos,
avistaram o rio “Urucuia, que corre da Serra Geral diretamente para o leste e
desemboca no rio São Francisco, pouco abaixo de São Romão, de considerável
largura e profundidade” (Idem, ibidem, p. 184). Tempos imemoriais! Certamente
nosso grande escritor Guimarães Rosa estaria feliz com essa observação,
pois o rio Urucuia , de tão volumoso, adentrava a casa de seu pai.
Na tarde da manhã seguinte seguiram viagem e tempos depois entravam
na vila de São Romão. O viajante se dirigiu à casa do juiz de paz para lhe
mostrar seu passaporte e, em seguida, conseguiram um local para descansar.
Nas próximas páginas de um dos seus muitos diários, George Gardner volta a
observar as variadas funções atribuídas ao rio São Francisco. A função de fixar
e povoar vem logo em seguida, ao ressaltar que a vila risonha de São Romão
está situada na margem sul do rio, no distrito de Paracatu. “É pequena, não
tendo mais de mil habitantes, e forma um quadrado com diversas ruas longas,
estreitas e irregulares”. Também descreve a sua população, comentando que
“quase toda de gente é de cor e não creio que haja na Vila intera uma dúzia
de famílias brancas” (Idem, ibidem, p. 188).
Uma vez descansados tropas e homens, era a hora de colocar os pés na
estrada rumo ao distrito dos diamantes, porque muitos estudos o botânico
tinha por lá. E, por falarmos em estrada, a mais freqüentada é a que corre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 35
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
na direção sul, ao longo da margem do rio São Francisco e ao norte do rio
das Velhas, “grande tributário daquele que nasce no distrito do ouro” (Idem,
ibidem, p.191).
O botânico inglês e sua equipe, sem perder tempo, começaram a jornada
até chegar a outra fazenda, das muitas que pernoitaram e descansaram,
ao longo dessa árdua tarefa de pesquisar. No caminho o viajante notou que a
mata era baixa e consistia principalmente de diferentes espécies de “mimosa,
acácia, bauhinia, caesalpina etc” (Idem, ibidem, p.192).
Quanto mais viajavam, mais as paisagens iam se modificando: de extensas
vegetações a pedregulhos, cascalhos, argila dura, rochas distintas contendo
diamantes encravados. Era um subir e descer serras, que parecia não ter fim.
A paisagem humana também era rica e diversa: escravos na mineração, tropeiros
ao longo das estradas, lavadeiras dentro dos rios, entoando canções
nem sempre alegres, homens forros trabalhando por conta própria, religiosos
conversando com senhoras nas escadarias das igrejas, artesãos esculpindo
figuras em madeira e barro e muitos negociantes.
Depois de muito pesquisar em Minas Gerais, Gardner seguiu viagem
pelo Ceará e Maranhão realizando ricos estudos e compondo frutíferos diários
de viagem. De acordo com esse botânico, nessas duas províncias a riqueza da
cultura do algodão, das palmeiras no Ceará, foi motivo de desenhos, escritos
e, não poderia deixar de lado, as muitas anotações sobre os peixes dos rios,
do mar e, em especial, os peixes voadores, que em “multidões se erguiam
rente ao navio” (Idem, ibidem, p. 248). Estava chegando o tempo de partir
e a viagem do botânico inglês nos pareceu rápida e agradável: “quanto mais
se aproximava da pátria, mais se intensificava meu desejo de estar entre meus
amigos” ( Idem, ibidem, p. 250).
Para nós aqui dos trópicos, esse sentimento tem um nome, saudade, sem
tradução para o inglês, no entanto, as palavras de despedida do botânico inglês
merecem tradução e registro. Em seu diário ele nos relata que cumpriu sua
missão de forma intensa e satisfatória, “não sofreu qualquer desengano quanto
aos prazeres que antecipara derivar de tal expedição, mesmo com os pequenos
aborrecimentos” (Idem, ibidem, p. 250). Fomos lendo e nos surpreendendo
com aquele cientista, a cada página que virávamos. Mais adiante, Gardner se
diz mais afortunado do que os outros naturalistas que o antecederam, porque
as suas numerosas coleções de espécimes “despachadas a intervalo para a Inglaterra
chegaram todas a salvo” e, por fim, ele nos presenteia, ressaltando que
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Vanessa Maria Brasil
deixou o Brasil com grande pesar, porque a “vida que lá vivi era independente
e livre e para a minha saúde, seu clima era melhor do que a Inglaterra; que o
país é belo e mais rico que qualquer outro do mundo nos objetos naturais a
cujo estudo devotei minha vida” (Idem, ibidem, p.250).
Tempo de despedidas: do rio São Francisco e dos viajantes
Mister George, agora que lemos suas últimas considerações sobre o
Brasil e os lugares por onde passou, sobre os resultados de suas pesquisas,
constatamos que o senhor é quase um lorde, pois soube reconsiderar as intempéries
que muitas vezes cruzaram os seus caminhos nos trópicos. Certamente,
um dia iríamos desfrutar dessas pesquisas, não só a do senhor, mister
Gardner, mas, também, de todos outros naturalistas que por aqui passaram.
Nossa contribuição com esse artigo surgiu a partir das narrativas encontradas
em seus diários.
Merci beaucoup, monsieur Sai nt-Hilaire; Thank you, very much, mister
Gardner; Vielen Dank, meine Herren Spix e Martius.
As voltas e as respectivas despedidas dos viajantes estrangeiros aqui
estudados tiveram percursos distintos: o botânico francês, com tons de lamento
à possível não realização de seus apelos, às vezes saia do leito do rio;
os dois bávaros cientes de suas pesquisas e dos planejamentos futuros, com
relação ao rico material coletado no Brasil, quase se afogaram nas águas de
suas vaidades; e o inglês, quem diria, foi o que não ficou à deriva, no barco de
pesquisas e coletas que deslizou sobre o rio. E, o mais importante para nós,
os três naturalistas estrangeiros não tiveram dúvida alguma sobre a beleza, a
grandeza, o esplendor, a majestade, a importância da navegação e as funções
atribuídas ao rio São Francisco ao longo de sua extensa história.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 37
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
BIBLIOGRAFIA
SPIX, Johann Baptist Von, Viagem pelo Brasil: 1817-1820/Spix e Martius. Vol.2. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981.
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: ED.Itatiaia; São
Paulo, Edusp, 1975.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1975.
_____. Viagens pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tomo 2, São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1938.
HOLANDA,Sérgio Buarque de. “A herança colonial, sua desagregação. In: HOLANDA,
S. B(org.) História Geral da Civilização Brasileira. 4ª Ed., Tomo II, 1º volume. São
Paulo: Difel, 1975.
_____. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros, 1995.
38
Vanessa Maria Brasil
CANDIDO, Antônio. In: LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e
libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.
_____. Letras e idéias no Brasil colonial. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org)
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1972, v.2, t. 2.
Resumo: Neste presente artigo faremos a le itura do rio São Francisco
a partir dos relatos de viagem de quatro viajantes estrangeiros dos oitocentos.
A literatura de viagem constitui fonte inesgotável de informações a respeito
desse rio, seja de natureza técnica, literária e historiográfica. Muitas vezes
esses dados, mesmo os mais relevantes nos são fornecidos de maneira assistemática
e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas do rio, quando
resolvem emaranhar -se. Para torná-lo mais translúcido, tanto o artigo como
o São Francisco, ressaltaremos as obras dos naturalistas europeus, como
referenciais importantes, para o conhecimento da história do meio ambiente
e da natureza no Brasil. A contribuição de estudiosos que transitam entre a
história e a literatura também serão imprescindíveis para esse texto.
Palavras-Chave: rio São Francisco; meio ambiente; história; literatura
de viagem; Brasil oitocentista.
Abstract: In the following article we are going to study the São
Francisco river from the perspective found on the reports of four foreign
travelers from the 1800’s. The literature of travel and exploration constitutes
an inexhaustible source of information about this river, in both technical,
literary and historiografical way. In several occasions this data, even the most
relevant one, are supplied to us in a non-systematic and disorganized way,
similar to the water of different riverbeds when it decides to meet. To make
it translucent, both the article and the São Francisco, we shall take the work
of different european naturalists as an imp ortant reference to the knowledge
of environmental and natural history of Brazil. The contribution given by
intellectuals that transit between History and Literature are also indispensable
for this text.
Key-Words: São Francisco river, environment, History , travellers
literature. Brazil in the 1800’s.TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 11
Professora do Departamento de História da UnB
Vanessa Maria Brasil
Tantas águas, quantas histórias, diferentes
narrativas – o São Francisco dos viajantes
Iniciando a viagem pelo rio São Francisco
Era noite, e Saint-Hilaire
Parou na serra o seu cavalo,
Sob a chuva e a bofetada do trovão
Europicamente deslumbrado.
Carlos Drummond de Andrade .
Espetáculo. Menino antigo (Boitempo – II).
Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, [I]
Ressoam aqui, na mais alvoroçada celeuma,
chiados e gorjeios sem fim dos mais diversos gêneros de aves, e,
quanto mais observamos o raro espetáculo,
tanto menos vontade sentimos de perturbar
aquele cenário pacífico da natureza. (Spix e Martius, 1820)
Límpidas e abissais, turvas e transparentes, penetrantes e superficiais,
agitadas e sonolentas, ondulantes e deslizantes, calorosas e refrescantes, vívidas
e destruidoras, sombrias e luzentes, silenciosas e sonoras, rasas e transbordantes,
livres e aprisionadas, unificantes e limitantes, lá vão elas, as águas do
São Francisco.
Quem as conhece? Quem por elas navegou e em que épocas? Quem
pôde ter, nos olhos e no corpo, a sensação contagiante dessas águas?
Alguns viajantes estrangeiros por elas navegaram, estudaram e transitaram,
pois estiveram no Brasil dos oitocentos. Que emoções sentiram ao
entrarem nessas águas seus corpos, suas idéias, seus planos, suas ações?
12
Vanessa Maria Brasil
Sensações de alumbramento, de reverência, de afetividade, de religiosidade,
de desencanto, de perplexidade, de riqueza, de pobreza. E contar
histórias desse povo ribeirinho faz parte de suas metas? Essas histórias estão
em seus relatos?
Pois bem, chegou o momento de darmos respostas a todas essas indagações.
Mas em que águas e em que paragens essas repostas foram se desaguar?
Após muitas braçadas, fomos encontrá-las num rio de papéis intitulados
– literatura de viagem – , que consiste nos relatos cotidianos de inúmeros
viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil e, em especial, os cinco estados
banhados pelo rio São Francisco, durante a primeira metade do século XIX.
Porém, para não ficarmos à deriva nessa imensidão de tempo e espaço, nós
traçamos um curso. Vamos navegar pelo rio São Francisco, beirando as duas
margens: a história e a literatura. A margem literária constitui fonte inesgotável
de informações a respeito do rio São Francisco, seja de natureza técnica e/ou
historiográfica. Com certeza, é um encontrar, um embolar, um emaranhar, um
distanciar de águas distintas, mas no final elas terão um porto seguro.
Muitas vezes esses dados, mesmo os mais relevantes, nos são fornecidos
de maneira assistemática e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas
do rio, quando resolvem emaranhar-se. Creio que chegou a hora de pedirmos
ajuda, porque nosso fôlego diminuiu e, quem vem de barco é o historiador e
literato Sérgio Buarque de Holanda, para nos informar sobre uma das mais
importantes contribuições dos diferentes viajantes estrangeiros, assim que
chegavam ao Brasil. Criar uma imagem do país, “uma vez que o olhar estrangeiro
acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou
esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país”
(HOLANDA,1976, p.13,14).
Comprovamos que esse seu pensamento vai ao encontro dos relatos de
Spix e Martius na obra “Viagem ao Brasil”. De acordo com os dois naturalistas,
após recolherem vasto material de pesquisa, em várias localidades do Brasil,
sempre apresentavam às comunidades os seus resultados e, que ficavam surpresos,
pois este rico material era “alvo de admiração da gente da cidade, que
peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão
pouco conhecida deles próprios” (Apud Lisboa , 1975, p. 115).
Nossa resistência aumentou? Nossas águas ficaram mais translúcidas? As
águas das margens literárias e históricas se distanciaram ou se emaranharam?
Só um pouco, é preciso mais luz. Afinal, quem escreveu essas narrativas sobre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 13
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
o rio São Francisco abordou muitos assuntos. Além disso, os viajantes estrangeiros
atravessaram águas salgadas antes de cá desembarcar. Outra salva-vidas
trás mais uma bóia e diz: “Os depoimentos de viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida
compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na
armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a
única e própria realidade”. (Reichel, Heloisa Jochims, p. 2)
Nossa Senhora dos Afogados!!!
E agora? É melhor nadarmos diretamente em direção a essas fontes e
deixarmos emergi-las. Escolhemos as narrativas de quatro viajantes vindos
de outras plagas, indivíduos das mais diferentes origens e propósitos. Todos
eles são europeus, vivendo em contextos históricos distintos; alguns vieram
de países em pleno desenvolvimento capitalista, como a França e a Inglaterra,
outros são provenientes de regiões em processo de unificação, como o Império
Austro-Húngaro. Alguns acontecimentos auxiliaram e impeliram a viagem
desses naturalistas para outros mundos. Por exemplo, o estreitamento dos
vínculos comerciais entre Portugal e Inglaterra e a consequente abertura dos
Portos; o Congresso de Viena, o casamento de D. Pedro I, que favoreceu a
locomoção dos viajantes estrangeiros, precedentes de várias partes da Europa
continental.
As águas do rio São Francisco continuam revoltas. Mais uma vez contamos
com o esclarecimento de outra navegante, pois ela também circulou
pelas margens literárias e históricas dessas águas. É a Ana Maria Belluzo
quem nos socorre, dizendo que os relatos de viajantes estrangeiros são um
tipo de produção que só pode “dar a ver um Brasil e um rio pensado por
outro”(BELLUZO, 1995, p.170). Em seguida chega mais um salva vidas, dessa
vez um literato de peso, Antônio Candido nos alertando para o significado
dessa visão estrangeira. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente
como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções,
mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu”
(LEITE, 1996, p. 6-7).
É, precisamos ter cuidado para não afundarmos junto com esses estrangeiros,
portanto, vamos elencar o quê buscar em suas águas, ou seja, em suas
narrativas. Atentamos para os aspectos físicos, tais como o clima, a fauna, a
flora, a navegabilidade, o relevo, os recursos minerais e, também, os aspectos
sociais e culturais das populações ribeirinhas, sempre na perspectiva de que
14
Vanessa Maria Brasil
esse tipo de literatura é fundamental para a apreensão da historicidade de um
evento dado, pois traz a possibilidade de novas aproximações com a história
do Brasil.
Durante uma parte do século XIX, os viajantes, mesmo os que desejavam
ir para outras províncias brasileiras, detinham-se no Rio de Janeiro para obter
licença e cartas de apresentação das autoridades e, em seguida, dar início às
suas pesquisas.
Viajantes estrangeiros convid ados: um francês mergulhando no rio
Entre os que chegaram elegemos ingleses, austríacos e um francês, que
percorreram o rio São Francisco, em suas respectivas províncias, na primeira
metade do século XIX. Quando eles irão emergir das águas? Qual vai ser o
primeiro a se apresentar?
E meio a um calor escaldante de um Brasil ainda Colônia, surge o botânico
francês Saint-Hilaire, que aportou em nosso país em 1816, junto com
a Missão Artística Francesa. Durante os seis anos de permanência no Brasil,
esse botânico viajou por várias províncias, como Minas Gerais, Goiás, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Bahia, visitando inúmeras localidades. E quanto ao rio
São Francisco? Calma, lá vem o Saint -Hilaire, todo esbaforido e suado, carregando
uma porção de tralha e reclamando do calor : Merde, merde! Primeiro
preciso conhecer as nascentes do rio para depois emitir minhas opiniões.
Lá se foram Saint-Hilaire e seus ajudantes. Eles pretendiam ir à Comarca
de Paracatu e de lá a Goiás, mas se desviaram do caminho mais direto a fim de
conhecer o rio São Francisco. Embrenharam-se mata adentro e, após algumas
horas, começaram a ouvir um barulho ensurdecedor, logo identificado com o
de uma cachoeira, que despencava de um dos lados da Serra da Canastra. De
acordo com esse viajante, o “espetáculo arrancou dele um grito de admiração”
(SAINT-HILAIRE, 1975, p. 104). A cachoeira, de nome Casca d’Anta precipitava
sem violência , exibindo “um belo lençol de água branca e espumosa
que se expandia lentamente, parecendo formar flocos de neve. As suas águas
caiam desordenadamente, por uma encosta escarpada para formar o famoso
rio São Francisco”(Idem, ibidem, p. 104-105).
Saint-Hilaire continua a sua caminhada por uma vegetação composta só
de arbustos, mas logo adiante o terreno já se apresentava coberto de densas
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 15
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
matas, onde se viam numerosas palmeiras. A beleza da nascente do rio e dos
lugares por onde andava fez o viajante ter saudade de sua terra natal e, num
dado momento, comparou a paisagem local com a do seu país, comentando:
“o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de
encantadora: um céu de azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma
cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das
folhagens e, as matas virgens, que exibem todo o tipo de vegetação tropical”
(Idem, ibidem, p. 104).
Coroadas, majestosas, cintilantes todos esses elogios narrados pelo
viajante francês nos fez lembrar as monarquias, francesa, portuguesa e quiçá
brasileira. De uma coisa temos certeza, na opinião de Saint-Hilaire a nossa
paisagem já era real.
Da nascente aos afluentes e enfim ao leito do rio, o São Francisco “é o
maior da província das Minas e um dos mais importantes do Brasil”(Idem, ibidem,
p. 279), assim comentou o botânico francês em parte de seus relatos. Mas
que sensações esse rio proporcionou aos povos que viviam em suas margens e
nos sertões adentro? O viajante narrador observou que em uma grande parte
dos terrenos situados próximos ao rio, criava-se gado em quantidade ainda mais
considerável do que nas partes altas do sertão. O botânico fez essa afirmação
a partir dos seus contatos em outras partes dos sertões das Gerais.
Nesse trecho é importante explicar o significado de sertão para o viajante
francês: “compreende, nas Minas a bacia do São Francisco e dos seus
afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira
ou, pelo menos, quase a partir dessa cadeia até os limites ocidentais da província”
(SAINT-HILAIRE, 1938, p. 248). Mon Dieu! Tantas águas e agora
tantos sertões!
No início dos oitocentos, lá em Portugal, a palavra sertão tornou -se sinônimo
de interior, daquilo que se opõe ao marítimo, ao costeiro, e nos trópicos,
as águas dos rios deram-lhe um novo banho. A navegante literária, Janaína
Amado, deixa transbordar mais informações a esse respeito ao acrescentar
que no início do século XIX o “sertão estava de tal modo integrado à língua
usada no Brasil, que os viajantes estrangeiros em visita ao país registravam a
palavra, utilizando-a várias vezes em seus relatos: Sain-Hilaire usou ‘sertão’
em mais de um livro, sempre designando as áreas despovoadas do interior do
Brasil”(AMADO, 1995, p. 05).
Saint-Hilaire quis reforçar seu entendimento sobre sertão e volta nos
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Vanessa Maria Brasil
informando, que ao dizer “despovoada, refiro -me aos habitantes civilizados,
pois de gentios e animais está povoada até em excesso” (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 256). Com certeza outros significados de sertão vão surgir nos variados
relatos escolhidos por nós, portanto, não podemos confiar nas primeiras aguadas.
Devemos mergulhar profundamente nos rios históricos e literários. Para
isso, convidamos o navegador histórico, Durval Muniz (ALBUQUERQUE
JR., 1999, p. 39), que, após muitas braçadas, nos alertou que é fundamental,
em nossas pesquisas, analisar os conceitos e as categorias conforme eles
emergiram em cada momento histórico.
Dando continuidade ao nosso percurso ao longo do rio São Francisco
e, voltando às narrativas de Saint-Hilaire, nos deparamos com esse botânico
preocupado com o sertão, com o gado e com o futuro desse rio. Em um dado
momento de sua narrativa, comenta que o sertão conhecerá novos recursos
e, ao mesmo tempo, “restar-lhe-ão sempre gordas pastagens, terras férteis, e
um rio que navegável em imensa extensão, estabelecerá uteis comunicações
entre o país e o oceano” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 278).
Ao falar do comércio realizado por essas bandas, se lembra de outras
províncias banhadas pelo São Francisco e as funções que lhe foram atribuídas,
ao longo da história, a de união, de terras e de gentes. Diz-nos que o algodão
pode ser exportado para “Pernambuco e Bahia pelo rio, e o feijão assim como
o milho podem ser permutados pelo sal trazido da região das salinas, situada à
margem do rio, e onde a excessiva seca se opõe ao cultivo dos cereais”(Idem,
ibidem, p. 320).
O pesquisador francês continua observando e conferindo as funções
atribuídas ao São Francisco e logo nos aponta mais uma delas, a de fixador,
de atração natural, ao descrever uma cena sobre os costumes das pessoas que
escolheram viver mais para o interior da região são-franciscana. “Felisberto
nos recebeu maravilhosamente bem. Morava num casebre humilde, desprovi
do de conforto. Leite e feijão no nosso jantar, e por leito me deram um colchão
de palha sem lençol. Mas tudo foi oferecido de bom coração” (SAINTHILAIRE,
1975, p. 103).
Nem sempre Saint-Hilaire via o rio, suas riquezas, seu povo e os lugares
por onde passava com tamanha benevolência. Às vezes, os mosquitos, os
infernais borrachudos, mudavam o seu humor e as suas opiniões. Em sua
passagem pela Comarca de Paracatu, depois de prolongada seca, o viajante
estrangeiro comenta que ficou privado de arroz durante três semanas, o calor
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 17
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
era excessivo, o capim estava seco, não tinha flores, “alojamentos detestáveis
e hospedeiros ignorantes e estúpidos”(Idem, ibidem, p.119). Enfim, a viagem
foi “penosa para ele e infrutífera para a ciência” (Idem, ibidem, p. 119).
Alguns parágrafos depois desses comentários, o botânico francês parece
se arrepender e nos informa que Paracatu “dispõe de todos os elementos
propícios à riqueza e à prosperidade. Não somente se encontram aí jazidas
de ouro e diamantes como também de ferro e estanho”(Idem, ibidem, p.123).
Com relação à sua especialidade, comenta que “diversas plantas fornecem
ao homem salutares remédios, as terras são férteis e as pastagens imensas”.
Diz ainda, que em vários pontos da Comarca pôde comprovar a existência
de “águas minerais de valor inestimável para a cura de várias doenças e que
permitia aos criadores de gado substituí-la pelo sal, gênero tão caro no interior
do país”(Idem, ibidem, p.142).
Saint-Hilaire continua a sua longa caminhada pelas margens do rio São
Francisco, observando minuciosamente tudo e todos que vê em seu caminho
e, é claro, sem deixar de emitir as suas opiniões, nem sempre coerentes, acerca
das habitações e das populações ribeirinhas. Quanto às habitações, ele nos
informa que eram “miseráveis palhoças. O que há de extraordinário em tudo
isso é que são homens brancos que moram nessas palhoças”(Idem, ibidem,
p. 120). Ao falar das populações locais, ele aproveita para analisar a questão
da ‘cor’ de seus habitantes e comenta: “Nem toda a população é composta
de homens de cor e, muitas vezes, a cor não corresponde aos bons costumes
e à educação”(Idem, ibidem).
Antes de partir rumo a Salgado ou brejo do Salgado, paróquia que tem
“quarenta léguas de comprimento por vinte de largura e cuja população atinge
8 mil almas”(Idem, ibidem, p.121), o botânico decide descansar, acampando a
margem desse rio. Pelo jeito descansar o corpo, pois a sua língua não parecia
cansada. Conseguiu ver que o local compunha-se de “meia dúzia de cabanas
cahindo em ruínas e, a maior parte dellas abandonada”(Idem, ibidem, p.
119).
Saint-Hilaire continua sua caminhada e, pouco depois comenta: “Ao
me aproximar de Paracatu encontrei finalmente uma pessoa com a casa bem
cuidada, mais do que a maioria das outras e com quem pude conversar. O
extraordinário no caso é que esse homem era um mulato”(Idem, ibidem, p.
123), diz ele. Parece que o sol claudicante da viagem esquentou a sua cabeça
e seus pensamentos.
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Vanessa Maria Brasil
Após um bom descanso, o viajante francês descreveu um por de sol admirável
e o rio São Francisco deslizando com extrema lentidão nessa localidade.
“O céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma
calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as
águas e nem sequer enrugavam-lhe a superfície”(SAINT-HILAIRE, 1938, p.
328). Que você descanse sempre, Sain-Hilaire!
Acreditamos que ele, infelizmente, deve ter passado a noite deitado sobre
suas malas e não em sua cabana, pois dentro desta os “bichos de pé são muito
numerosos”(Idem, ibidem, p. 362).
Em outro trecho de seu diário, ele relata que os “terrenos próximos as
duas margens do velho Chico apresentavam-se impregnados de sal e que os
habitantes de Salgado sabiam extraí-lo e dele faziam “um importante objeto
de comércio”(Idem, ibidem, p. 332).
O açúcar e a aguardente principais gêneros dessa localidade eram
constantemente oferecidos em troca de sal. Ele continua nos contando que
a prosperidade reina entre os habitantes de Salgado devido ao importante
comércio realizado por vários mercadores, possibilitando maiores oportunidades
de lazer, para alguns setores dessa comunidade. “Parece que vários
deles possuem grande quantidade de escravos, e meu proprio hospedeiro tinha
setenta”(Idem, ibidem, p. 333). Ali ele observou que as pessoas “jogavam cartas
e gamão, ouviam música e dançavam alegremente. Uma vez até ensaiaram e
apresentaram uma peça de teatro em sua homenagem “ (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 133).
Enfim, um Sant-Hilaire menos ‘salgado’. Sua viagem segue para a província
de Goiás, mas não vamos acompanhá -lo nessa jornada, pois o rio São
Francisco não corta essa província. Quanto a sua despedida do Brasil, só vamos
entendê-la lendo as últimas partes de seu diário e, em particular, os ‘votos do
autor’. Saint-Hilaire deixou claro que gostaria de ter os seus apelos e conselhos
atendidos. Por quem? Onde? Tentemos compreender suas palavras: “Quanto
a mim, se vier, a saber, que meus fracos apelos foram ouvidos, que alguns conselhos
produziram frutos, jamais lamentarei ter passado perdidos nos sertões,
em meio a privações, longe de minha família e de minha pátria, os mais belos
dias da minha existência”(Idem, ibidem, p.189). Segue a sua narrativa, agora
lamentando sobre a perda de sua saúde, pois “paguei a dívida da hospitalidade,
e minha passagem pela terra não foi inútil”(Idem, ibidem, p.190).
Um tanto dramático esse monsieur Saint-Hilaire!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 19
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Mudança de rumo – dois bávaros embarcam nessa vigem pelo velho
Chico
Atento a todos os movimentos, tanto em suas margens quanto dentro
de suas águas, o rio São Francisco continua o seu curso em direção ao mar.
Quem será o próximo a me visitar, a me desvendar? Atravessando o Atlântico
rumo ao Brasil, lá vem outro viajante, de língua enrolada, para conhecer o rio
de tantas histórias.
Valei-me meu São Francisco, dessa vez são dois, os bávaros Spix e Martius,
que pretendem passar uns três anos visitando várias províncias brasileiras,
no período de 1817 a 1820, e com certeza vão cruzar com o inequecível
viajante francês, que ainda continua seus estudos científicos pelo país. Eles
vêm a bordo do navio que traz a D. Leopoldina, arquiduquesa d’Áustria, para
se casar com D. Pedro I. De acordo com esses dois estudiosos, foi o amor
à ciência que os conduziu para terras tão longínquas e, em especial, para o
rio São Francisco. Eles irão percorrer as províncias do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piaui, Maranhão, Pará e Amazonas,
estudando a fauna e a flora brasileira. Quem sabe em dupla, o humor desses
dois viajantes seja mais agradável!
Vários aspectos observados por Saint-Hilaire, com relação ao rio São
Francisco, as províncias banhadas por ele e as cidades que o margeiam,
também serviram de pesquisa para Spix e Martius: a vegetação, os minerais,
os animais, a formação geológica, os afluentes desse rio, as doenças típicas
dessas regiões, a navegação e as embarcações, as populações ribeirinhas e seus
hábitos e costumes, enfim, a imponência desse rio impressionou tanto os dois
pesquisadores, que eles estudaram, relataram e desenharam muito mais do que
o previsto em suas profissões de naturalistas e zoológos.
Ao sair do Rio de Janeiro com as suas cartas de recomendação, os
viajantes bávaros adentraram o sertão rumo ao rio que tem nome de santo,
São Francisco. O início da viagem científica significa também o início das
observações, das anotações e coletas e dos comentários da dupla a respeito
de tudo que viam.
Depois de forçar o caminho através da mata intensa, “cheios de alegria,
avistamos o rio São Chico passar suas ondas espelhentas em majestosa calma
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Vanessa Maria Brasil
diante de nós” (SPIX&MARTIUS, 1981, p. 88). Dentro desse clima de admiração,
os naturalistas sentiram que a força das águas desse rio iriam reanimarlhes
os ânimos, para seguir viagem e finalmente alcançarem, “depois de tantas
atribuições e desventuras, a margem do abençoado rio hospitaleiro” (Idem,
ibidem, p. 218). A viagem prossegue nas Minas Gerais, com os dois viajantes
observando que o rio era, já naquela época, a “via usual do comércio” (Idem,
ibidem, p. 91) de uma grande parte do sertão das Gerais. O São Francisco
transportando os seus produtos para a Bahia “com facilidade maior do que
em lombo de mulas ao Rio de Janeiro e em troca recebendo o sal das salinas
situadas ao norte do rio, além de mercadorias européias” (Idem, ibidem, p.
91).
Tomara que o sal não amargue o humor desses naturalistas, até o momento
muito agradável. Felizmente eles continuam a viajar por trechos do
rio São Chico onde existe uma quantidade de pequenos engenhos, apesar de
“muito pouco açúcar ser produzido. A produção é “quase que exclusivamente
de rapadura parda, sendo a maioria despachada rio abaixo para a província da
Bahia”(Idem, ibidem, p. 91).
Além de relatarem que o São Francisco derrama as bênçãos de um grande
rio sobre toda a população ribeirinha, os dois naturalistas alemães matam
um pouco da saudade da terra natal ao afirmarem que o rio os faz lembrar
o “pátrio Reno na parte onde ele sai apertado dos montes, percorrendo de
Bonn em diante, férteis planícies” (Idem, ibidem, p. 221).
Ainda em Minas, ficam impressionados com a abundância e variedade de
peixes, tanto no rio São Francisco quanto em seus principais afluentes, e com
a riqueza das aves às margens desse rio. Já é hora de sair das Minas Gerais,
atravessar o sertão da Bahia até Juazeiro, às margens do rio São Francisco.
No transcorrer do caminho eles deparam com tropas de mulas e comentam
que elas saem das províncias do “Rio Grande do Sul e de São Paulo e que
geralmente são tocadas ao longo desse rio, em direção à província da Bahia”
(Idem, ibidem, p. 228).
Mais uma vez os bávaros ficam impressionados não só com a quantidade,
mas com a qualidade das “espécies de animais fantásticos, como os variados
tipos de morcegos que habitam as Minas Gerais, principalmente as regiões
das grutas que margeiam o rio São Francisco” (Idem, ibidem, p.81). Segundo
Spix e Martius, os morcegos em “numerosos bandos atacam o gado à noite e
muitas vezes obrigam os habitantes a abandonar as suas fazendas e retirar-se
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 21
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
para regiões mais sossegadas” (Idem, ibidem, p. 81).
Com relação à riqueza das aves que vivem às margens do velho Chico,
os dois viajantes gastaram páginas e páginas em seus diários, tanto em relatos
quanto em desenhos. As aves que lá e cá gorjeiam e falam, essas, então, foram
merecedoras de incontáveis elogios.
Mas qual não foi a nossa surpresa, ao depararmos, em uma das páginas
desse precioso diário, com uma cena no mínimo estarrecedora. O Sr. Dr. Spix,
não contente com a refeição frugal que lhe foi oferecida, em um dos trechos
da viagem decidiu contribuir, para completar o cardápio de feijão e toucinho,
com os produtos de sua vitoriosa caçada: alguns verdejantes papagaios. Pobres
louros, o que diriam eles a esse bávaro caçador, tão preocupado com a nossa
exuberante fauna? Curupaco, papaco...
E a expedição continua rumo às terras das Gerais. Novos gêneros de
caça iam surgindo, como caititus, veados, onças e antas. Spix, Martius e seus
companheiros de viagem comentam alegremente: “É muito agradável a caçada
a esta última, pois não tem perigo algum”( Idem, ibidem, p. 83). O perigo não
estava com as antas, pois elas cotidianamente saiam dos brejos em direção às
matas e mal sabiam que homens caçadores estavam atrás das grossas árvores,
tomando posição para atacá-las com balas de espingarda. Alguns mais arrojados
“arremessavam um facão largo no meio do peito da anta passando a toda
pressa” (Idem, ibidem, p. 84). Comentavam esses homens que essa atitude
era bem arriscada, “embora o animal não pudesse ferir com os dentes, nem
com as garras, só o formidável embate, que ele der com o focinho, basta para
ferir seriamente” (Idem, ibidem, p. 83). Relatam ainda, que tiveram a sorte de
matar duas antas grandes em um só dia, e de “capturar uma cria para amansar”
(Idem, ibidem, p. 83).
Pobre santo, o Francisco, não é à toa que ele decidiu ser o protetor dos
animais, além de dar nome ao rio.
As águas do velho Chico continuam a deslizar, as folhas das árvores a
balançar, algumas vezes fora do ritmo normal, incomodadas com o ruído das
armas. Numa pausa do dia, entre relatar e caçar, podem os caçadores europeus
abandonar-se às impressões do sossego da mata brasileira e apreciar os
buritizais, ornamento característico da bacia do rio São Francisco. O buriti,
“um dos mais belos produtos do mundo das plantas” (Idem, ibidem, p. 103)
fornece aos habitantes da região fios e fibras resistentes para a cobertura das
palhoças; a seiva dos caules produz uma bebida agradável, semelhante à água
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Vanessa Maria Brasil
da bétula” (Idem, ibidem, p. 103) e a polpa do fruto, misturada com outros
ingredientes, é doce apreciado e artigo de comércio do sertão de Minas com
a costa.
A natureza pródiga beneficia também as mulheres, pois a “fertilidade
delas e o crescimento da população no norte de Minas é um dos fenômenos
mais prodigiosos” (Idem, ibidem, p. 85). De acordo com Spix e Martius, um
hospedeiro de Contendas contou-lhes que o trecho “entre o rio Verde Grande
e o rio São Francisco conta com quase 10 mil almas” (Idem, ibidem, p. 87). Para
constatar a fertilidade da região, das mulheres e dos homens, esses viajantes
nos descrevem que “certa mulher de pouco mais de 50 anos, moradora de
Contendas, tem 204 descendentes vivos; outra, que aos setenta anos casou-se
com um velho da mesma idade, deu -lhe trigêmeos, que ainda vivem” (Idem,
ibidem, p. 86). Nem a bíblia explicaria tamanho milagre! Os viajantes também
ficaram admirados com as mulheres novas: “não é raro ali uma moça de
apenas 20 anos, já ser mãe de oito a dez filhos” (Idem, ibidem, p. 86). Entre
os homens, encontram- se velhos ativos, vigorosos, “de altura gigantesca, que
conservam todo o humor da virilidade”( Idem, ibidem, p. 86).
A mortalidade era muito pequena, “morrem apenas três a quatro pessoas
por ano, ao passo que nascem 70 a 80” (Idem, ibidem, p. 86). A prole
numerosa não constitui motivo de queixa e miséria.
Após tantas notícias, a expedição dirigida pelos dois viajantes força
caminho pela orla do mato, que o povo chama de alagadiço. Cheios de alegria
e ânimo, avistaram outro trecho do rio São Francisco: “o majestoso rio
resplandeceu, ondulando placidamente” (Idem, ibidem, p. 221), sob o olhar
atento dos dois naturalistas.
Em meio às andanças pelas matas, pelas margens do rio e diferentes
localidades, os bávaros comentaram que precisavam pesquisar e anotar muitos
dados sobre aquela expedição ao interior do Brasil, porque ao sair de seu país
teriam declarado o “amor a Vossa Majestade e à ciência” (Idem, ibidem, p.
02). Também não podiam esquecer que vieram na bagagem da D. Leopoldina
e que, ao chegar ao Rio de Janeiro, eles contaram com valiosos recursos de D.
Pedro I, para iniciar os trabalhos.
Hoje sabemos que a produção científica dos dois naturalistas bávaros,
resultado dessa expedição, é extremamente importante, com várias obras
publicadas e que os dois, em especial o Martius, não se limitou à taxonomia e
nem mesmo à botânica. Ele escreveu sobre as plantas medicinais brasileiras, fez
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 23
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
observações fitogeográficas, estudou etnografia, assuntos lingüísticos, o costume
dos indígenas brasileiros, organizou mapa fitogeográfico do Brasil, além
dos incontáveis desenhos de cenas da fauna, da flora e do povo ribeirinho.
Vamos observar detalhadamente as narrativas desses dois viajantes,
principalmente depois desses compromissos e preocupações assumidas. Sobre
o velho Chico e as comunidades ribeirinhas, as informações são riquíssimas e
variadas, porque de acordo com Spix e Martius, a “imponência e importância
do rio deixaram-nos impressionados” (Idem, ibidem, p. 70).
Ao viajarem do sertão até o rio São Francisco, uma soma enorme de
anotações foi realizada e, dentre elas, a qualidade da água, que para eles “embora
fresca e potável era enjoativa e parecia ser um dos fatores da malária,
tão predominante e devastadora na grande região desse rio.”( Idem, ibidem,
p. 78)
Nada como um bom descanso ao ar livre para amenizar a opinião desses
naturalistas, pois nesse momento eles “nem sentiam a falta da agradável e
saudável água do rio São Francisco” (Idem, ibidem, p. 104).
As grandes cheias, assim como as grandes secas, os afluentes das duas
margens do rio São Francisco ocuparam muitas páginas de seus diários. Vale
ressaltarmos as anotações, os desenhos e comentários feitos com relação à
fauna e à flora brasileira e, em especial, as da região são franciscana.
Na flora dessa intensa e rica região eles notaram uma “decisiva predominância
das plantas das famílias das Nopáleas, Verbenáceas, Malváceas,
Terebintáceas, Rutáceas” (Idem, ibidem, p. 103), valei-nos São Francisco,
quantos nomes complicados! Destacaram mais uma vez estar encantados
com os buritizais, que segundo os dois bávaros, caracterizam e ornamentam
a bacia do velho Chico.
Nesse vai-e-vem, nesse sobe e desce o rio e seus afluentes, Spix e Martius
decidem demorar um pouco mais em Contendas. À margem do rio, os dois
botânicos encontraram uma melhor oportunidade para fazer as suas anotações
médicas. Relataram que em vários trechos às margens do São Francisco as
“febres são endêmicas e reina grande disposição para elas, além de inflamações
no peito e no abdome serem bem comuns nas proximidades do rio” (Idem,
ibidem, p. 96 ). Notaram também que na parte alta do sertão das Gerais a
população tinha um aspecto mais saudável .
Uma cena diferente distrai o olhar dos naturalistas e os fazem mudar de
assunto. Outra enorme tropa de mulas vindas das províncias do Sul e de São
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Vanessa Maria Brasil
Paulo, “geralmente são tocadas ao longo do rio São Francisco à província da
Bahia” (Idem, ibidem, p.199). A curiosidade aumentou, pois os naturalistas
queriam saber qual o conteúdo das cargas e, por isso, várias perguntas fizeram
aos tropeiros. Os produtos eram os mais diversos, como “açúcar bruto,
cachaça, farinha, fumo (Idem, ibidem, p.111)” que deveriam ser trocados com
o sal daquela localidade. Foram informados, ainda, que pelo leito do rio São
Francisco já era habitual, naquela época, o transporte de uma grande parte
desses produtos do sertão das Gerais para a Bahia, chegando até o Rio de
Janeiro e que os tropeiros preferiam “o transporte pelo rio ao invés de tropas
de mulas” (Idem, ibidem, p. 228).
Aproveitando o assunto acerca de transporte pelo rio, os naturalistas
emendaram, em seguida, o tema sobre navegação fluvial. E as funções de
separar, unir, dividir, transportar atribuídas ao São Francisco, ao longo de sua
história, foram brotando nos relatos de Spix e Martius. Notaram in loco que o
rio “separa as capitanias da Bahia e Pernambuco, e Registro, situado à margem
setentrional do São Francisco, frente a Juazeiro, faz parte de Pernambuco”
(Idem, ibidem, p. 221).
Em outra página do diário, anotaram que “estando em Juazeiro poderiam
continuar viagem por uma parte da província de Pernambuco, em direção a
Oeiras, capital do Piauí” (Idem, ibidem, p. 252).
Mais uma vez as funções de travessia e de fronteira atribuídas ao rio
surgem em seus inúmeros relatos, ao comentarem que “atravessaram um
lugar raso do Carinhanha e, ao meio-dia, voltamos outra vez ao rio, em cuja
margem setentrional tínhamos que prosseguir até a sua foz no São Francisco.
Este rio, que forma aqui a fronteira entre Minas e Pernambuco” (Idem,
ibidem, p. 113).
Voltando a narrar sobre a navegação nesse rio, os dois viajantes chamam a
atenção do leitor para os tipos de embarcações que conheceram, por exemplo,
as simples barcaças e ajoujos (canoas amarradas, uma ao lado da outra) . Para os
dois viajantes, a navegação fluvial se destaca não só pelos tipos de transporte,
mas, também, pela grande importância no crescimento da população e do
comércio, pois, “desde São Romão até Juazeiro, na província da Bahia e, com
o crescimento da população e do comércio, os poucos casebres do povoado
se transformarão brevemente em próspera cidade” (Idem, ibidem, p. 91).
A viagem prosseguia ora sertão adentro, ora pelas margens do rio. E ao
longo do percurso nenhum acontecimento alterou o humor dos estrangeiros?
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 25
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Nada de mosquitos? E os animais selvagens? Como diz o velho ditado, quem
procura, acha, fomos revirando as páginas dos diários e foram surgindo as
reclamações. Para debulhar o rosário de queixas os naturalistas escolheram uma
localidade, Malhada, “por sua posição insalubre, é entre as povoações do rio
São Francisco, a de pior reputação” (Idem, ibidem, p. 115). Agora aumentou
a nossa curiosidade. Por que será? Acabamos de descobrir ao virarmos mais
uma página do diário dos viajantes: “Malhada apresentava um número muito
grande de doentes de fígado e baço, calor insuportável e o pior, a quantidade
de roubos sem nenhum tipo de punição” (Idem, ibidem, p. 116).
Em outra parada para descanso, os dois estrangeiros relembraram a
época em que colonos europeus se espalharam da província da Bahia para a
província do Piauí, entre os anos de 1674 e 1700 e, pouco mais tarde, deram
início às viagens pelas Minas Gerais, pelo rio São Francisco abaixo. Nesses
percursos, os colonos europeus presenciaram a “fundação de muitas missões
pelos franciscanos, que já se encontravam na Bahia” (Idem, ibidem, p. 216).
Ao narrar sobre essas missões, os naturalistas comentaram ainda o papel
dos religiosos na catequese dos índios e desenharam cenas de “várias tribos
indígenas que, durante os meses secos, se direcionavam para as margens do
rio São Francisco, onde viviam principalmente da pesca, pois havia abundância
de peixes” (Idem, ibidem, p. 216).
Assim como Saint-Hilaire, os dois bávaros gastaram páginas e mais páginas
de seus diários, relatando acerca da produção de salinas e do comércio
de sal realizado nas feiras, com comerciantes de Minas Gerais, assim como
o despacho do produto para todo o interior do país via rio São Francisco. O
sal era importante não só para o comercio, mas também para alguns animais.
“O gado, que pasta em grandes rebanhos nestas campinas, procura o sal com
avidez, e lambe os barrancos, às vezes em longas filas, numa camaradagem
pacífica” (Idem, ibidem, p. 114). De acordo com Martius, esse comportamento
parece ter passado dos animais para os homens: “Quero referir-me à irreprimível
vontade que tem as crianças de comer terra” (Idem, ibidem, p. 87). Ele
viu meninos e meninas comerem a “terra margosa, às vezes o revestimento
calcário das paredes” (Idem, ibidem, p. 87) e, segundo o naturalista, só uma
vigilância constante poderia impedir tal hábito. Continua relatando que “parte
do material indigesto não pode ser eliminada, e ocorre a inchação das glândulas
abdominais”. As crianças são barrigudas, pálidas, raquíticas e, “quando não
morrem, sofrem de câimbras ou hidropisia” (Idem, ibidem, p. 87).
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Vanessa Maria Brasil
Ilustres naturalistas, esse mal é causado por vermes e lombrigas. Em
seguida ouvimos uma pergunta com sotaque carregado: Uma pessoa falar
alguma coisa?
Sim, nós leitores e moradores dessas regiões ribeirinhas acostumadas
que somos, com essa cena, crianças barrigudas comendo terra, resultado da
quantidade de vermes. Elas são tratadas com as plantas locais. Como os senhores
botânicos constataram em suas pesquisas, “a natureza daquela região
fornece-lhes a opulência de suas poderosas plantas medicinais, que merecem
a máxima consideração dos médicos, e muitas das quais deveriam, no futuro,
enriquecer a farmacopéia da Europa” (Idem, ibidem, p. 87).
Até aquele momento, o humor dos dois naturalistas não tinha sido
contaminado pelo sal, mas em outro trecho de suas narrativas, o paciência dos
estrangeiros nos pareceu bem menor. Notávamos que a impaciência dos dois
viajantes aumentava, à medida que erravam mais o nosso idioma. Ao descrever
o sertanejo dessa região são franciscana, não foram nada felizes, como veremos
a seguir. Para os naturalistas, o “sertanejo é criatura da natureza, sem instrução,
sem exigências, de costumes simples e rudes. Envergonhado de si próprio e
de todos que o cercam, falta-lhe o sentimento da delicadeza moral, o que já
se demonstra pela negligência no modo de vestir; porém é bem intencionado,
prestativo, nada egoísta e de gênio pacífico” (Idem, ibidem, p. 76).
Não nos parece um tanto precipitado, esse julgamento com relação ao
sertanejo? Os dois viajantes estiveram pouco tempo no país e, menos ainda,
nessa imensa parte dos sertões brasileiros? E não terminam aí as considerações
dos estrangeiros a respeito dessa figura complexa que é o sertanejo. Nas
páginas seguintes, eles continuam a narrar que a “solidão e a falta de ocupação
espiritual arrastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sensual, no
qual, incitado pelo seu temperamento insaciável e pelo calor do clima, goza
com requinte” (Idem, ibidem, p. 103).
Nesse momento, prefiro me lembrar do verso de uma canção: “não
existe pecado, do outro lado, do Equador...” (Francisco Buarque Holanda;
Ruy Guerra, 1978). Somos obrigados a retirar outro trecho de suas narrativas
onde os naturalistas falam: “o ciúme é quase a única paixão que o leva até ao
crime” e “ademais, só a mínima parte dos sertanejos é de origem puramente
européia; a maioria consta de mulatos, na quarta ou quinta geração; outros são
mestiços de índios com negros ou de europeus com índios...” (Idem, ibidem,
p. 102). Pensando melhor, Euclides da Cunha definiu sabiamente esse homem,
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 27
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
“o sertanejo é antes de tudo, um forte...” (CUNHA, 1994, p. 95)
Além de subir e descer várias vezes o rio São Francisco e seus afluentes,
os viajantes estrangeiros, por inúmeras vezes, levantaram e abaixaram os seus
olhares e, dessa vez de encantamento, para descrever e desenhar as aves e os
peixes dos rios.
Na fazenda Capão, às margens do rio São Francisco, mais especificamente
à beira de uma grande lagoa formada por esse rio, os dois naturalistas
foram “transportados a um país inteiramente diverso. Eram “matas virentes,
que orlavam extensas lagoas piscosas”(SPIX & MARTIUS, op.cit., p. 96). A
variedade e a quantidade de peixes eram assustadoras e, de acordo com os
naturalistas, páginas e páginas seriam necessárias para anotar os seus nomes,
como: “pacu, surubim, dourado, cascudo, pirá -tamanduá, acari, mandi, piau,
traira, bagre, sarapó, piranha ordinária e roduleira, curumatã , mandipintado”
(Idem, ibidem, p. 97) e mais, muito mais. Em outra lagoa, nessa mesma fazenda,
outra cena chamou-lhes atenção, pois contaram “mais de quarenta jacarés, uns
deitados nas margens, outros inquietos por nosso ruído. Os maiores desses
animais tinham oito a nove pés de comprimento, couraça esverdeada e focinho
rombudo” (Idem, ibidem, p. 83).
De repente, um estrondoso barulho mudou a direção de seus olhos, agora
voltados para o alto. Os dois botânicos disseram ainda extasiados: “Ressoam
aqui, na mais alvoroçada celeuma grasnada, chiados e gorjeios sem fim dos
mais diversos gêneros de aves, e, quanto mais observávamos o raro espetáculo
da natureza, menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros,
aquele cenário pacífico da natureza” (Idem, ibidem, p.84).
Papagaios!!! Em um cenário poético, pacífico, colorido e encantador, os
dois bávaros ainda pensaram em “mortíferos tiros”!
Felizmente um bando de marrecos, numerosos quero-queros voou rápido
por sobre suas cabeças, levando embora aqueles pensamentos ruins. E
a riquíssima variedade de animais volta a perturbar-lhes, anotando mais uma
vez que “viram mais de 10.000 animais reunidos. Parecia-nos ter-se renovado
o quadro da criação do mundo diante dos nossos olhos, e esse maravilhoso
espetáculo nos teria ainda agradavelmente impressionado, se não nos ocorresse
o pensamento de que a guerra, a eterna guerra, era a lei e misteriosa
condição de toda existência animal” (Idem, ibidem, p. 82). Pasmem senhores
leitores sobre esse comentário dos naturalistas. Realistas em excesso? Visões
de mundo distintas?
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Vanessa Maria Brasil
A viagem pela região são franciscana estava chegando ao final, por essa
razão escolhemos como último trecho do diário desses dois viajantes, um
momento mais ameno, mais descontraído: um dia de festa no coração do
sertão. Uma das fazendeiras ricas da região os convidou para participar de
uma solenidade religiosa muito tradicional. Lá os viajantes puderam constatar
que o comércio e a riqueza proporcionaram uma “sociabilidade e costumes
amenos. Solenizaram-se aqui, com decoro e pompa, várias festas da Igreja,
entre outras uma inteiramente nova para nós” (Idem, ibidem, p. 93).
A senhora rica tinha feito a Nossa Senhora, a promessa de uma procissão
e, qual não foi a surpresa dos bávaros, quando viram que a “dama, vestida de
gala, conduzia o séquito até a Igreja (Idem, ibidem, p. 93) O convite da ilustre
dama era para “assistirmos a missa, e de lá voltarmos todos a casa dela, onde
estava posta uma grande mesa com as mais finas iguarias e vinhos escolhidos
e, sobretudo, deliciosos doces, para serem deleitados o dia inteiro” ( Idem,
ibidem, p. 94).
Essas horas alegres decorridas na casa da gentil senhora só foram perturbadas
pelas preocupações com o prosseguimento da viagem. Para felicidade
dos dois naturalistas, um novo guia foi arranjado, um experiente paulista, para
acompanhá-los de volta ao mar.
Como foi a saída de cena desses bávaros naturalistas? Mais uma vez
recorremos aos seus diários e, nas últimas páginas amareladas e amarrotadas,
encontramos essa despedida. Os dois viajantes chegaram à conclusão que a
relação dos fatos de sua viagem ao Brasil e dos seus resultados científicos
gerais “corresponderam aos seus encargos relativos à botânica e à zoologia”
(Idem, ibidem, p. 320). Comentaram ainda, que o país de origem depois de
muitos séculos fechados às investigações dos europeus, deu–lhes uma rica
oportunidade de “enriquecer com fatos aquelas ciências “ (Idem, ibidem,
p.320). Pareceu-lhes também mais acertado “colecionar durante a viagem,
exemplares tanto de formações geológicas quanto etnográficas e, em particular,
de animais e plantas, dar assento em nosso diário, as descrições e noticias
minuciosas” (Idem, ibidem, p. 320), e, com isso, preparem uma exposição
científica quando de volta à pátria.
Por falar em horas e também em anos, já faz um bom tempo que não
nos deparamos, nem nas estradas de terra, nem sertão adentro, muito menos
nas margens dos rios, com viajantes esbaforidos, avermelhados, suados, reclamando
de calor e se comunicando mais com gestos do que com palavras.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 29
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
É verdade que estamos sentindo falta dessas cenas. Já estamos quase no final
da década de trinta dos oitocentos, na passagem de 1836 para o ano seguinte.
Será que vamos ter surpresas?
O último convid ado a percorr er o rio: o pontual viajante inglês
Santo Antônio das roças grandes! Leitores e leitoras! Esfreguem bem
os seus olhos e vejam mais adiante quem vem chegando, com sua tradicional
pontualidade britânica. É o botânico inglês George Gardner, quase 20 anos
após a saída dos dois naturalistas bávaros.
Além do peso de sua bagagem, sua mente também pesava com a quantidade
de informações adquiridas por outros viajantes, que aqui estiveram e
que lhes narrou, ainda na Europa, a beleza e a variedade de riquezas naturais,
a grandiosidade de cenários existentes nos países dos trópicos. Ele esperava
encontrar um campo vasto e inexplorado para as suas investigações, apesar
das informações de naturalistas que aqui estiveram antes de sua chegada.
Que surpresas nos aguardam? A primeira é que Gardner era um naturalista
de origem escocesa. Chegou ao Brasil em 1837, nos últimos anos do
período regencial, e aqui permaneceu até 1841.
O país se encontrava em ebulição com tantas mudanças. Tínhamos uma
Constituição desde 1824, o colégio Pedro II, O IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro); o Arquivo Público e, em 1840, deu-se o início do
Segundo Reinado, com o imperador Pedro II, enfim, o Brasil não era o mesmo
dos dois naturalistas bávaros e do francês, aqui estudados.
Em meio a todas essas transformações, George Gardner coletou vasto
material sobre a fauna e a flora brasileira, além de numerosos relatos dos
costumes e hábitos da população das províncias de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Piauí, Maranhão e Goiás. Fazem parte de suas anotações
ricas informações geográficas e históricas dessas províncias visitadas
e pesquisadas. Enfim, realizou quase o mesmo trabalho que os outros três
viajantes estrangeiros citados anteriormente. Nosso objetivo maior é observar
as pequenas nuances, ou seja, o que difere, nas páginas de seu diário, as
anotações sobre o rio São Francisco e seus afluentes, o viver das populações
ribeirinhas e as funções atribuídas ao rio no transcorrer de sua história. Enfim,
como George Gardner viu, sentiu, anotou, pesquisou esses mesmos assuntos,
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Vanessa Maria Brasil
uma vez que viajou pelas mesmas províncias visitadas pelos naturalistas que
o precederam.
De acordo com as palavras desse botânico, vários são os motivos de
sua viagem ao Brasil, mas a motivação inicial partiu das minuciosas descrições,
feitas por Humboldt e outros viajantes, sobre as belezas e variedades
de produtos naturais dos países dos trópicos e dos diferentes cenários das
montanhas. As ricas produções vegetais do Brasil, menos conhecidas dos
ingleses, aumentaram o seu desejo de viagem rumo a América do Sul e, não
menos importante, a orientação do seu professor de botânica, Sir William T.
Hooker, que foi o seu patrocinador.
O botânico inglês iniciou a sua viagem pelo rio São Francisco de forma
diferente dos seus antecessores, pela foz do rio, ao invés da nascente, portanto,
pela província de Alagoas, pelo menos é dessa forma que está divida a sua obra.
A partir daí vamos observar os seus relatos. O rio São Francisco seria o seu
guia, para atingir o interior das regiões banhadas por ele, especialmente por
ser navegável, sem interrupção, por um longo percurso em direção à primeira
província a ser conhecida Alagoas. A vontade desse viajante era fazer uma
excursão pelo velho Chico, rio acima até chegar à cachoeira de Paulo Afonso.
Assim foi ele com a sua equipe até atingir uma aldeia de nome Peba, “cerca
de 5 léguas ao norte da embocadura do rio São Francisco e término de sua
viagem marítima” (GARDNER, 1975, p. 63).
Uma fala em comum com os viajantes estrangeiros vem brotando, nas
páginas do seu diário, as diversas funções atribuídas ao rio e, nesse momento,
a função de separar é comentada: “como o São Francisco separa a província
de Alagoas da de Sergipe, é fácil ver que Vila Penedo pertence à primeira e
Vila Nova à última” (Idem, ibidem, p. 64).
Oh my God!!! Exclamava o viajante inglês. Preciso arranjar transporte
para continuar a minha viagem em direção a outros lugares. Uma preocupação
certamente inglesa, pois o botânico acabara de chegar à aldeia de Peba e já
pensava em dar continuidade às suas pesquisas. Sua ansiedade era tanta que
conseguiu tratar com o dono de um carro de boi, para lhe levar a bagagem
a Piassabuçu, pequena aldeia da margem norte do São Francisco. Pelo jeito
não gostou do local.
Em Vila Penedo, no ano de 1838, o viajante inglês observou e recolheu
espécimes de rocha de “arenito branco e grosso, semelhante às que vira na
costa entre o rio São Francisco e Pernambuco” (Idem, ibidem, p. 65). Outras
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 31
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
rochas de gnaisse e xisto micáceo lhe chamaram a atenção durante sua travessia,
tanto na costa quanto nas margens desse rio. As primeiras anotações
do botânico destacam as povoações e os tipos de rochas da região. Durante o
percurso, ainda em 1838, ele se depara, porém, com uma paisagem totalmente
distinta das firmes rochas: uma grande enchente.
Suas palavras são de espanto, uma vez que estava atravessando vários
trechos do rio em ajoujos, as canoas unidas, levando cavalos e pesadas bagagens.
Com a enchente, as águas do São Francisco “subiram cinco pés acima
do nível do assoalho e as paredes ainda conservavam os sinais evidentes do
fato” (Idem, ibidem, p. 69). Era impossível realizar a travessia.
O inglês, acostumado aos rígidos horários e compromissos, foi obrigado
a encher várias vezes o seu cachimbo, com um perfumado fumo, e dar boas
baforadas para não ficar estressado. Entre uma fumaça e outra, traçou novos
planos, ou melhor, começou a estudar os planos do governo imperial, com
relação à navegação a vapor. Seria viável?
Well! Bem! Vamos aos mapas. Gardner ouviu ainda no Rio de Janeiro,
que havia um plano de se estabelecer a navegação a vapor “entre a costa e
as províncias centrais do Brasil, pelo rio São Francisco e, só em observar os
mapas desta parte do império, lhe pareceu que a natureza oferecia todas as
facilidades para a realização desse feito” (Idem, ibidem, p. 73). Não são estudos
meus afirmou o inglês.
As águas do rio alheias a todos esses estudos, continuavam a subir. Mais
fumo no cachimbo e mais baforadas do botânico inglês. O jeito é continuar
a estudar esses planos do governo, mesmo sem muita convicção. Vamos
realizar esse plano, porque “uma comunicação fluvial, fácil e barata, embora
algo sinuosa pode ligar o mar dos confins da província de Pernambuco às
terras ricas e relativamente bem povoadas das zonas interiores de mineração
e diamantes...” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico inglês repetiu bem alto: my
God, my God, my God!!! Why, por que o governo imperial quer fazer isso? Uma
fumaça espessa saiu de sua boca. Os técnicos pretendiam unir aquelas zonas
porque estavam “separadas dos grandes mercados do Rio de Janeiro e Bahia
por altas barreiras de montanhas, sempre de acesso difícil e onde os meios de
transporte são cansativos e caros” (Idem, ibidem, p. 74).
No entanto, Gardner tinha grandes dúvidas e críticas que tal plano
pudesse dar certo e, em seguida, descreveu as razões. Esse foi um tema que
gastou páginas e mais páginas de seu diário. Passemos às suas explanações:
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Vanessa Maria Brasil
“em primeiro lugar, a barra na embocadura do rio, com cerca de duas léguas
de largura, é sempre batida por fortes vagas, e raro tem mais de quatro pés
de profundidade. Depois, na cachoeira de Paulo Afonso, uma série de corredeiras
e quedas, em extensão aproximada de 60 milhas, cria sérios obstáculos
ao progresso da navegação. Por fim, nas zonas intermediárias, a população é
muito escassa e não tem possibilidade de crescer, dada a natureza inóspita da
maior parte do interior!” (Idem, ibidem, p. 74)
O viajante inglês parecia entender do assunto, pois, virando mais algumas
páginas de seu diário, encontramos outras observações sobre a pouca
viabilidade dessa empresa de navegação a vapor. Para ele, essa “zona de terra
só é propícia à criação de gado” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico não acreditava
que naquele momento histórico, os brasileiros, fossem investir verbas
na tentativa de tornar o São Francisco navegável. Sua desconfiança pairava
nos obstáculos da natureza ou na capacidade dos brasileiros? A resposta vem
imediatamente: “Talvez possa aventurar-se em tal tentativa uma companhia
inglesa, uma vez que alguns recentes e mal sucedidos planos semelhantes no
Brasil foram ainda mais absurdos. Veja-se aquele monumento mais absurdo
que se chamou Companhia do Rio Doce” (Idem, ibidem, p. 74).
Não sabemos se a enchente já estava a lhe aumentar o mau humor, a lhe
atrasar os planos de viagem, mas ele foi implacável em suas críticas. Quem
sabe, mudando de ares, de província, de novas paisagens, o tempo perdido
desse viajante inglês seria recuperado? George Gardner atravessava com sua
equipe, pela Serra Geral, muito próximo a uma aldeia “contendo cerca de
quarenta casas” (Idem, ibidem, p. 176), onde pretendiam ficar até encontrar
um homem que os ajudasse no trato da tropa. Apesar de haver dezenas de
homens, nenhum deles estava disposto a realizar tal empreitada e o inglês, irritado,
faz a sua crítica: “É comum dizer aqui, que para cada dez que trabalham,
há noventa que nada fazem e sustentam uma existência mísera caçando ou
roubando seus semelhantes mais industriosos” (Idem, ibidem, p. 178).
Como não podia desistir desse tipo de serviço, Gardner acabou por
encontrar um homem que já havia percorrido e conhecia esses caminhos para
Minas Gerais. Nem bem tinha concluído seu acordo com o sujeito, o viajante
vê chegar uma senhora, “uma mulata grande, velha e feia” (Idem, ibidem, p.
175). Porém, o que mais o surpreendeu foi o fato dela ser escrava, ao passo
que o homem, mulato também, era livre e mais moço. A mulher insultou o
inglês por aliciar o marido para abandoná-la. Que coisa feia, mister Gardner!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 33
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Quanto preconceito! A mulher era esposa do homem e só o liberou para tal
empreitada depois de ouvir o esposo dizer que só ficaria fora por um mês. Os
comentários maldosos do botânico continuaram e, para sua alegria, o guia,
além de seguir com sua tropa por um tempo maior, “não se sentiu inclinado
a voltar e seguiu com eles até o distrito do ouro, onde obteve emprego em
uma das minas” (Idem, ibidem, p. 175).
O viajante estrangeiro e sua comitiva continuaram a viagem ao longo
da chapada, observando que os “pequenos regatos que vinham atravessando
desde algum tempo corriam todos para leste, desembocando no rio São Francisco”
(Idem, ibidem, p. 178). O viajante e sua tropa estavam se dirigindo de
Arraias para a vila de São Romão em Minas Gerais. Logo ao chegar trocou
o seu cavalo castanho por outro todo branco, de crina e caudas bastas, mas
infelizmente a alegria do botânico durou pouco, pois o cavalo branco não
ficou muito tempo em seu poder, porque o roubaram depois de atravessarem
o rio São Francisco.
Gardner e sua tropa viajavam ora uma légua ora jornadas de mais de três
léguas, dependendo das condições das viagens. Sempre teve muitas histórias
para narrar em seu diário, principalmente as mais pitorescas, como a do guia
índio ainda no norte de Minas Gerais. O índio tinha sofrido um acidente de
cavalo e estava muito machucado, então mister Gardner mandou sua tropa
seguir viagem e ficou par a ajudar o índio, que dizia sofrer de muita dor. Deulhe
água e levou-o até a casa mais próxima, tentando encontrar algum medicamento.
Após o índio tomar chá quente e forte, “único estimulante que se
podia obter, melhorou muito. Em seguida, o botânico fez-lhe uma sangria no
braço que o aliviou consideravelmente, tanto que poucos dias depois puderam
seguir viagem” (Idem, ibidem, p.178).
Léguas e léguas de viagem, quando chegaram a outra chapada, o viajante
notou que os pequenos regatos, de águas cristalinas e frias, certamente
desembocariam no rio São Francisco. “Sentimos muito frio à noite, além de
sermos molestados por uma espécie de mosquito grande, cuja picada era
bem dolorosa, e o que nos inchou o rosto e as mãos” (Idem, ibidem, p.179).
No outro dia cedo, notou que os cavalos tinham extraviado para muito longe
e, para não perder seu precioso tempo, realizou uma colheita botânica nos
arredores próximos à chapada.
Por onde passavam notavam os tipos de habitações, quase sempre
“míseras choças feitas de varas e barro cobertas de palmas” (Idem, ibidem,
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Vanessa Maria Brasil
p.177), muitas delas desabitada, mesmo a igreja local era construída do mesmo
material. Nunca deixava de relatar a preguiça dos habitantes dos distritos por
onde andava: “São desesperadamente preguiçosos, que mal plantam qualquer
coisa suficiente para o seu próprio uso, embora cada família possua terras
ilimitadas” (Idem, ibidem, p.178)
A fauna e flora compõem vários diários de Gardner. Os morcegos foram
insistentemente descritos por seus ataques a cavalos, porcos e, também, aos
homens. Segundo o viajante inglês, as “singulares criaturas produzem tamanhos
estragos e constituem o gênero Phyllostoma, assim chamados por causa
do apêndice em forma de folha de seu lábio superior” (Idem, ibidem, p.178).
Em uma noite que Gardner passou em Riachão, localidade mineira, toda a
sua tropa sofreu com os ataques desse animal e o viajante estrangeiro chegou
a matar morcegos que mediam “dois pés entre as pontas das asas”.
Jesus Crist! Vamos correr desses enormes vampiros!
Ainda em Minas Gerais, mas longe dos morcegos, e tendo como “único
conforto o chá, única bebida nesta longa e morosa jornada” (Idem, ibidem,
p.68), principalmente após uma cavalgada sob o sol ardente dos trópicos,
avistaram o rio “Urucuia, que corre da Serra Geral diretamente para o leste e
desemboca no rio São Francisco, pouco abaixo de São Romão, de considerável
largura e profundidade” (Idem, ibidem, p. 184). Tempos imemoriais! Certamente
nosso grande escritor Guimarães Rosa estaria feliz com essa observação,
pois o rio Urucuia , de tão volumoso, adentrava a casa de seu pai.
Na tarde da manhã seguinte seguiram viagem e tempos depois entravam
na vila de São Romão. O viajante se dirigiu à casa do juiz de paz para lhe
mostrar seu passaporte e, em seguida, conseguiram um local para descansar.
Nas próximas páginas de um dos seus muitos diários, George Gardner volta a
observar as variadas funções atribuídas ao rio São Francisco. A função de fixar
e povoar vem logo em seguida, ao ressaltar que a vila risonha de São Romão
está situada na margem sul do rio, no distrito de Paracatu. “É pequena, não
tendo mais de mil habitantes, e forma um quadrado com diversas ruas longas,
estreitas e irregulares”. Também descreve a sua população, comentando que
“quase toda de gente é de cor e não creio que haja na Vila intera uma dúzia
de famílias brancas” (Idem, ibidem, p. 188).
Uma vez descansados tropas e homens, era a hora de colocar os pés na
estrada rumo ao distrito dos diamantes, porque muitos estudos o botânico
tinha por lá. E, por falarmos em estrada, a mais freqüentada é a que corre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 35
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
na direção sul, ao longo da margem do rio São Francisco e ao norte do rio
das Velhas, “grande tributário daquele que nasce no distrito do ouro” (Idem,
ibidem, p.191).
O botânico inglês e sua equipe, sem perder tempo, começaram a jornada
até chegar a outra fazenda, das muitas que pernoitaram e descansaram,
ao longo dessa árdua tarefa de pesquisar. No caminho o viajante notou que a
mata era baixa e consistia principalmente de diferentes espécies de “mimosa,
acácia, bauhinia, caesalpina etc” (Idem, ibidem, p.192).
Quanto mais viajavam, mais as paisagens iam se modificando: de extensas
vegetações a pedregulhos, cascalhos, argila dura, rochas distintas contendo
diamantes encravados. Era um subir e descer serras, que parecia não ter fim.
A paisagem humana também era rica e diversa: escravos na mineração, tropeiros
ao longo das estradas, lavadeiras dentro dos rios, entoando canções
nem sempre alegres, homens forros trabalhando por conta própria, religiosos
conversando com senhoras nas escadarias das igrejas, artesãos esculpindo
figuras em madeira e barro e muitos negociantes.
Depois de muito pesquisar em Minas Gerais, Gardner seguiu viagem
pelo Ceará e Maranhão realizando ricos estudos e compondo frutíferos diários
de viagem. De acordo com esse botânico, nessas duas províncias a riqueza da
cultura do algodão, das palmeiras no Ceará, foi motivo de desenhos, escritos
e, não poderia deixar de lado, as muitas anotações sobre os peixes dos rios,
do mar e, em especial, os peixes voadores, que em “multidões se erguiam
rente ao navio” (Idem, ibidem, p. 248). Estava chegando o tempo de partir
e a viagem do botânico inglês nos pareceu rápida e agradável: “quanto mais
se aproximava da pátria, mais se intensificava meu desejo de estar entre meus
amigos” ( Idem, ibidem, p. 250).
Para nós aqui dos trópicos, esse sentimento tem um nome, saudade, sem
tradução para o inglês, no entanto, as palavras de despedida do botânico inglês
merecem tradução e registro. Em seu diário ele nos relata que cumpriu sua
missão de forma intensa e satisfatória, “não sofreu qualquer desengano quanto
aos prazeres que antecipara derivar de tal expedição, mesmo com os pequenos
aborrecimentos” (Idem, ibidem, p. 250). Fomos lendo e nos surpreendendo
com aquele cientista, a cada página que virávamos. Mais adiante, Gardner se
diz mais afortunado do que os outros naturalistas que o antecederam, porque
as suas numerosas coleções de espécimes “despachadas a intervalo para a Inglaterra
chegaram todas a salvo” e, por fim, ele nos presenteia, ressaltando que
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Vanessa Maria Brasil
deixou o Brasil com grande pesar, porque a “vida que lá vivi era independente
e livre e para a minha saúde, seu clima era melhor do que a Inglaterra; que o
país é belo e mais rico que qualquer outro do mundo nos objetos naturais a
cujo estudo devotei minha vida” (Idem, ibidem, p.250).
Tempo de despedidas: do rio São Francisco e dos viajantes
Mister George, agora que lemos suas últimas considerações sobre o
Brasil e os lugares por onde passou, sobre os resultados de suas pesquisas,
constatamos que o senhor é quase um lorde, pois soube reconsiderar as intempéries
que muitas vezes cruzaram os seus caminhos nos trópicos. Certamente,
um dia iríamos desfrutar dessas pesquisas, não só a do senhor, mister
Gardner, mas, também, de todos outros naturalistas que por aqui passaram.
Nossa contribuição com esse artigo surgiu a partir das narrativas encontradas
em seus diários.
Merci beaucoup, monsieur Sai nt-Hilaire; Thank you, very much, mister
Gardner; Vielen Dank, meine Herren Spix e Martius.
As voltas e as respectivas despedidas dos viajantes estrangeiros aqui
estudados tiveram percursos distintos: o botânico francês, com tons de lamento
à possível não realização de seus apelos, às vezes saia do leito do rio;
os dois bávaros cientes de suas pesquisas e dos planejamentos futuros, com
relação ao rico material coletado no Brasil, quase se afogaram nas águas de
suas vaidades; e o inglês, quem diria, foi o que não ficou à deriva, no barco de
pesquisas e coletas que deslizou sobre o rio. E, o mais importante para nós,
os três naturalistas estrangeiros não tiveram dúvida alguma sobre a beleza, a
grandeza, o esplendor, a majestade, a importância da navegação e as funções
atribuídas ao rio São Francisco ao longo de sua extensa história.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 37
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
BIBLIOGRAFIA
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HOLANDA,Sérgio Buarque de. “A herança colonial, sua desagregação. In: HOLANDA,
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Vanessa Maria Brasil
CANDIDO, Antônio. In: LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e
libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.
_____. Letras e idéias no Brasil colonial. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org)
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1972, v.2, t. 2.
Resumo: Neste presente artigo faremos a le itura do rio São Francisco
a partir dos relatos de viagem de quatro viajantes estrangeiros dos oitocentos.
A literatura de viagem constitui fonte inesgotável de informações a respeito
desse rio, seja de natureza técnica, literária e historiográfica. Muitas vezes
esses dados, mesmo os mais relevantes nos são fornecidos de maneira assistemática
e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas do rio, quando
resolvem emaranhar -se. Para torná-lo mais translúcido, tanto o artigo como
o São Francisco, ressaltaremos as obras dos naturalistas europeus, como
referenciais importantes, para o conhecimento da história do meio ambiente
e da natureza no Brasil. A contribuição de estudiosos que transitam entre a
história e a literatura também serão imprescindíveis para esse texto.
Palavras-Chave: rio São Francisco; meio ambiente; história; literatura
de viagem; Brasil oitocentista.
Abstract: In the following article we are going to study the São
Francisco river from the perspective found on the reports of four foreign
travelers from the 1800’s. The literature of travel and exploration constitutes
an inexhaustible source of information about this river, in both technical,
literary and historiografical way. In several occasions this data, even the most
relevant one, are supplied to us in a non-systematic and disorganized way,
similar to the water of different riverbeds when it decides to meet. To make
it translucent, both the article and the São Francisco, we shall take the work
of different european naturalists as an imp ortant reference to the knowledge
of environmental and natural history of Brazil. The contribution given by
intellectuals that transit between History and Literature are also indispensable
for this text.
Key-Words: São Francisco river, environment, History , travellers
literature. Brazil in the 1800’s.TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 11
Professora do Departamento de História da UnB
Vanessa Maria Brasil
Tantas águas, quantas histórias, diferentes
narrativas – o São Francisco dos viajantes
Iniciando a viagem pelo rio São Francisco
Era noite, e Saint-Hilaire
Parou na serra o seu cavalo,
Sob a chuva e a bofetada do trovão
Europicamente deslumbrado.
Carlos Drummond de Andrade .
Espetáculo. Menino antigo (Boitempo – II).
Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, [I]
Ressoam aqui, na mais alvoroçada celeuma,
chiados e gorjeios sem fim dos mais diversos gêneros de aves, e,
quanto mais observamos o raro espetáculo,
tanto menos vontade sentimos de perturbar
aquele cenário pacífico da natureza. (Spix e Martius, 1820)
Límpidas e abissais, turvas e transparentes, penetrantes e superficiais,
agitadas e sonolentas, ondulantes e deslizantes, calorosas e refrescantes, vívidas
e destruidoras, sombrias e luzentes, silenciosas e sonoras, rasas e transbordantes,
livres e aprisionadas, unificantes e limitantes, lá vão elas, as águas do
São Francisco.
Quem as conhece? Quem por elas navegou e em que épocas? Quem
pôde ter, nos olhos e no corpo, a sensação contagiante dessas águas?
Alguns viajantes estrangeiros por elas navegaram, estudaram e transitaram,
pois estiveram no Brasil dos oitocentos. Que emoções sentiram ao
entrarem nessas águas seus corpos, suas idéias, seus planos, suas ações?
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Vanessa Maria Brasil
Sensações de alumbramento, de reverência, de afetividade, de religiosidade,
de desencanto, de perplexidade, de riqueza, de pobreza. E contar
histórias desse povo ribeirinho faz parte de suas metas? Essas histórias estão
em seus relatos?
Pois bem, chegou o momento de darmos respostas a todas essas indagações.
Mas em que águas e em que paragens essas repostas foram se desaguar?
Após muitas braçadas, fomos encontrá-las num rio de papéis intitulados
– literatura de viagem – , que consiste nos relatos cotidianos de inúmeros
viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil e, em especial, os cinco estados
banhados pelo rio São Francisco, durante a primeira metade do século XIX.
Porém, para não ficarmos à deriva nessa imensidão de tempo e espaço, nós
traçamos um curso. Vamos navegar pelo rio São Francisco, beirando as duas
margens: a história e a literatura. A margem literária constitui fonte inesgotável
de informações a respeito do rio São Francisco, seja de natureza técnica e/ou
historiográfica. Com certeza, é um encontrar, um embolar, um emaranhar, um
distanciar de águas distintas, mas no final elas terão um porto seguro.
Muitas vezes esses dados, mesmo os mais relevantes, nos são fornecidos
de maneira assistemática e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas
do rio, quando resolvem emaranhar-se. Creio que chegou a hora de pedirmos
ajuda, porque nosso fôlego diminuiu e, quem vem de barco é o historiador e
literato Sérgio Buarque de Holanda, para nos informar sobre uma das mais
importantes contribuições dos diferentes viajantes estrangeiros, assim que
chegavam ao Brasil. Criar uma imagem do país, “uma vez que o olhar estrangeiro
acaba por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou
esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país”
(HOLANDA,1976, p.13,14).
Comprovamos que esse seu pensamento vai ao encontro dos relatos de
Spix e Martius na obra “Viagem ao Brasil”. De acordo com os dois naturalistas,
após recolherem vasto material de pesquisa, em várias localidades do Brasil,
sempre apresentavam às comunidades os seus resultados e, que ficavam surpresos,
pois este rico material era “alvo de admiração da gente da cidade, que
peregrinavam em multidão à nossa casa, para ver as riquezas de sua pátria, tão
pouco conhecida deles próprios” (Apud Lisboa , 1975, p. 115).
Nossa resistência aumentou? Nossas águas ficaram mais translúcidas? As
águas das margens literárias e históricas se distanciaram ou se emaranharam?
Só um pouco, é preciso mais luz. Afinal, quem escreveu essas narrativas sobre
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 13
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
o rio São Francisco abordou muitos assuntos. Além disso, os viajantes estrangeiros
atravessaram águas salgadas antes de cá desembarcar. Outra salva-vidas
trás mais uma bóia e diz: “Os depoimentos de viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida
compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na
armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a
única e própria realidade”. (Reichel, Heloisa Jochims, p. 2)
Nossa Senhora dos Afogados!!!
E agora? É melhor nadarmos diretamente em direção a essas fontes e
deixarmos emergi-las. Escolhemos as narrativas de quatro viajantes vindos
de outras plagas, indivíduos das mais diferentes origens e propósitos. Todos
eles são europeus, vivendo em contextos históricos distintos; alguns vieram
de países em pleno desenvolvimento capitalista, como a França e a Inglaterra,
outros são provenientes de regiões em processo de unificação, como o Império
Austro-Húngaro. Alguns acontecimentos auxiliaram e impeliram a viagem
desses naturalistas para outros mundos. Por exemplo, o estreitamento dos
vínculos comerciais entre Portugal e Inglaterra e a consequente abertura dos
Portos; o Congresso de Viena, o casamento de D. Pedro I, que favoreceu a
locomoção dos viajantes estrangeiros, precedentes de várias partes da Europa
continental.
As águas do rio São Francisco continuam revoltas. Mais uma vez contamos
com o esclarecimento de outra navegante, pois ela também circulou
pelas margens literárias e históricas dessas águas. É a Ana Maria Belluzo
quem nos socorre, dizendo que os relatos de viajantes estrangeiros são um
tipo de produção que só pode “dar a ver um Brasil e um rio pensado por
outro”(BELLUZO, 1995, p.170). Em seguida chega mais um salva vidas, dessa
vez um literato de peso, Antônio Candido nos alertando para o significado
dessa visão estrangeira. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente
como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções,
mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu”
(LEITE, 1996, p. 6-7).
É, precisamos ter cuidado para não afundarmos junto com esses estrangeiros,
portanto, vamos elencar o quê buscar em suas águas, ou seja, em suas
narrativas. Atentamos para os aspectos físicos, tais como o clima, a fauna, a
flora, a navegabilidade, o relevo, os recursos minerais e, também, os aspectos
sociais e culturais das populações ribeirinhas, sempre na perspectiva de que
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Vanessa Maria Brasil
esse tipo de literatura é fundamental para a apreensão da historicidade de um
evento dado, pois traz a possibilidade de novas aproximações com a história
do Brasil.
Durante uma parte do século XIX, os viajantes, mesmo os que desejavam
ir para outras províncias brasileiras, detinham-se no Rio de Janeiro para obter
licença e cartas de apresentação das autoridades e, em seguida, dar início às
suas pesquisas.
Viajantes estrangeiros convid ados: um francês mergulhando no rio
Entre os que chegaram elegemos ingleses, austríacos e um francês, que
percorreram o rio São Francisco, em suas respectivas províncias, na primeira
metade do século XIX. Quando eles irão emergir das águas? Qual vai ser o
primeiro a se apresentar?
E meio a um calor escaldante de um Brasil ainda Colônia, surge o botânico
francês Saint-Hilaire, que aportou em nosso país em 1816, junto com
a Missão Artística Francesa. Durante os seis anos de permanência no Brasil,
esse botânico viajou por várias províncias, como Minas Gerais, Goiás, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e Bahia, visitando inúmeras localidades. E quanto ao rio
São Francisco? Calma, lá vem o Saint -Hilaire, todo esbaforido e suado, carregando
uma porção de tralha e reclamando do calor : Merde, merde! Primeiro
preciso conhecer as nascentes do rio para depois emitir minhas opiniões.
Lá se foram Saint-Hilaire e seus ajudantes. Eles pretendiam ir à Comarca
de Paracatu e de lá a Goiás, mas se desviaram do caminho mais direto a fim de
conhecer o rio São Francisco. Embrenharam-se mata adentro e, após algumas
horas, começaram a ouvir um barulho ensurdecedor, logo identificado com o
de uma cachoeira, que despencava de um dos lados da Serra da Canastra. De
acordo com esse viajante, o “espetáculo arrancou dele um grito de admiração”
(SAINT-HILAIRE, 1975, p. 104). A cachoeira, de nome Casca d’Anta precipitava
sem violência , exibindo “um belo lençol de água branca e espumosa
que se expandia lentamente, parecendo formar flocos de neve. As suas águas
caiam desordenadamente, por uma encosta escarpada para formar o famoso
rio São Francisco”(Idem, ibidem, p. 104-105).
Saint-Hilaire continua a sua caminhada por uma vegetação composta só
de arbustos, mas logo adiante o terreno já se apresentava coberto de densas
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 15
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
matas, onde se viam numerosas palmeiras. A beleza da nascente do rio e dos
lugares por onde andava fez o viajante ter saudade de sua terra natal e, num
dado momento, comparou a paisagem local com a do seu país, comentando:
“o leitor deve imaginar estar vendo em conjunto tudo o que a natureza tem de
encantadora: um céu de azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma
cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das
folhagens e, as matas virgens, que exibem todo o tipo de vegetação tropical”
(Idem, ibidem, p. 104).
Coroadas, majestosas, cintilantes todos esses elogios narrados pelo
viajante francês nos fez lembrar as monarquias, francesa, portuguesa e quiçá
brasileira. De uma coisa temos certeza, na opinião de Saint-Hilaire a nossa
paisagem já era real.
Da nascente aos afluentes e enfim ao leito do rio, o São Francisco “é o
maior da província das Minas e um dos mais importantes do Brasil”(Idem, ibidem,
p. 279), assim comentou o botânico francês em parte de seus relatos. Mas
que sensações esse rio proporcionou aos povos que viviam em suas margens e
nos sertões adentro? O viajante narrador observou que em uma grande parte
dos terrenos situados próximos ao rio, criava-se gado em quantidade ainda mais
considerável do que nas partes altas do sertão. O botânico fez essa afirmação
a partir dos seus contatos em outras partes dos sertões das Gerais.
Nesse trecho é importante explicar o significado de sertão para o viajante
francês: “compreende, nas Minas a bacia do São Francisco e dos seus
afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira
ou, pelo menos, quase a partir dessa cadeia até os limites ocidentais da província”
(SAINT-HILAIRE, 1938, p. 248). Mon Dieu! Tantas águas e agora
tantos sertões!
No início dos oitocentos, lá em Portugal, a palavra sertão tornou -se sinônimo
de interior, daquilo que se opõe ao marítimo, ao costeiro, e nos trópicos,
as águas dos rios deram-lhe um novo banho. A navegante literária, Janaína
Amado, deixa transbordar mais informações a esse respeito ao acrescentar
que no início do século XIX o “sertão estava de tal modo integrado à língua
usada no Brasil, que os viajantes estrangeiros em visita ao país registravam a
palavra, utilizando-a várias vezes em seus relatos: Sain-Hilaire usou ‘sertão’
em mais de um livro, sempre designando as áreas despovoadas do interior do
Brasil”(AMADO, 1995, p. 05).
Saint-Hilaire quis reforçar seu entendimento sobre sertão e volta nos
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Vanessa Maria Brasil
informando, que ao dizer “despovoada, refiro -me aos habitantes civilizados,
pois de gentios e animais está povoada até em excesso” (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 256). Com certeza outros significados de sertão vão surgir nos variados
relatos escolhidos por nós, portanto, não podemos confiar nas primeiras aguadas.
Devemos mergulhar profundamente nos rios históricos e literários. Para
isso, convidamos o navegador histórico, Durval Muniz (ALBUQUERQUE
JR., 1999, p. 39), que, após muitas braçadas, nos alertou que é fundamental,
em nossas pesquisas, analisar os conceitos e as categorias conforme eles
emergiram em cada momento histórico.
Dando continuidade ao nosso percurso ao longo do rio São Francisco
e, voltando às narrativas de Saint-Hilaire, nos deparamos com esse botânico
preocupado com o sertão, com o gado e com o futuro desse rio. Em um dado
momento de sua narrativa, comenta que o sertão conhecerá novos recursos
e, ao mesmo tempo, “restar-lhe-ão sempre gordas pastagens, terras férteis, e
um rio que navegável em imensa extensão, estabelecerá uteis comunicações
entre o país e o oceano” (SAINT-HILAIRE, 1938, p. 278).
Ao falar do comércio realizado por essas bandas, se lembra de outras
províncias banhadas pelo São Francisco e as funções que lhe foram atribuídas,
ao longo da história, a de união, de terras e de gentes. Diz-nos que o algodão
pode ser exportado para “Pernambuco e Bahia pelo rio, e o feijão assim como
o milho podem ser permutados pelo sal trazido da região das salinas, situada à
margem do rio, e onde a excessiva seca se opõe ao cultivo dos cereais”(Idem,
ibidem, p. 320).
O pesquisador francês continua observando e conferindo as funções
atribuídas ao São Francisco e logo nos aponta mais uma delas, a de fixador,
de atração natural, ao descrever uma cena sobre os costumes das pessoas que
escolheram viver mais para o interior da região são-franciscana. “Felisberto
nos recebeu maravilhosamente bem. Morava num casebre humilde, desprovi
do de conforto. Leite e feijão no nosso jantar, e por leito me deram um colchão
de palha sem lençol. Mas tudo foi oferecido de bom coração” (SAINTHILAIRE,
1975, p. 103).
Nem sempre Saint-Hilaire via o rio, suas riquezas, seu povo e os lugares
por onde passava com tamanha benevolência. Às vezes, os mosquitos, os
infernais borrachudos, mudavam o seu humor e as suas opiniões. Em sua
passagem pela Comarca de Paracatu, depois de prolongada seca, o viajante
estrangeiro comenta que ficou privado de arroz durante três semanas, o calor
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 17
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
era excessivo, o capim estava seco, não tinha flores, “alojamentos detestáveis
e hospedeiros ignorantes e estúpidos”(Idem, ibidem, p.119). Enfim, a viagem
foi “penosa para ele e infrutífera para a ciência” (Idem, ibidem, p. 119).
Alguns parágrafos depois desses comentários, o botânico francês parece
se arrepender e nos informa que Paracatu “dispõe de todos os elementos
propícios à riqueza e à prosperidade. Não somente se encontram aí jazidas
de ouro e diamantes como também de ferro e estanho”(Idem, ibidem, p.123).
Com relação à sua especialidade, comenta que “diversas plantas fornecem
ao homem salutares remédios, as terras são férteis e as pastagens imensas”.
Diz ainda, que em vários pontos da Comarca pôde comprovar a existência
de “águas minerais de valor inestimável para a cura de várias doenças e que
permitia aos criadores de gado substituí-la pelo sal, gênero tão caro no interior
do país”(Idem, ibidem, p.142).
Saint-Hilaire continua a sua longa caminhada pelas margens do rio São
Francisco, observando minuciosamente tudo e todos que vê em seu caminho
e, é claro, sem deixar de emitir as suas opiniões, nem sempre coerentes, acerca
das habitações e das populações ribeirinhas. Quanto às habitações, ele nos
informa que eram “miseráveis palhoças. O que há de extraordinário em tudo
isso é que são homens brancos que moram nessas palhoças”(Idem, ibidem,
p. 120). Ao falar das populações locais, ele aproveita para analisar a questão
da ‘cor’ de seus habitantes e comenta: “Nem toda a população é composta
de homens de cor e, muitas vezes, a cor não corresponde aos bons costumes
e à educação”(Idem, ibidem).
Antes de partir rumo a Salgado ou brejo do Salgado, paróquia que tem
“quarenta léguas de comprimento por vinte de largura e cuja população atinge
8 mil almas”(Idem, ibidem, p.121), o botânico decide descansar, acampando a
margem desse rio. Pelo jeito descansar o corpo, pois a sua língua não parecia
cansada. Conseguiu ver que o local compunha-se de “meia dúzia de cabanas
cahindo em ruínas e, a maior parte dellas abandonada”(Idem, ibidem, p.
119).
Saint-Hilaire continua sua caminhada e, pouco depois comenta: “Ao
me aproximar de Paracatu encontrei finalmente uma pessoa com a casa bem
cuidada, mais do que a maioria das outras e com quem pude conversar. O
extraordinário no caso é que esse homem era um mulato”(Idem, ibidem, p.
123), diz ele. Parece que o sol claudicante da viagem esquentou a sua cabeça
e seus pensamentos.
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Vanessa Maria Brasil
Após um bom descanso, o viajante francês descreveu um por de sol admirável
e o rio São Francisco deslizando com extrema lentidão nessa localidade.
“O céu era da mais bela cor de púrpura, o rio refletia essa cor brilhante, uma
calma profunda reinava na natureza, algumas canoas pareciam voar sobre as
águas e nem sequer enrugavam-lhe a superfície”(SAINT-HILAIRE, 1938, p.
328). Que você descanse sempre, Sain-Hilaire!
Acreditamos que ele, infelizmente, deve ter passado a noite deitado sobre
suas malas e não em sua cabana, pois dentro desta os “bichos de pé são muito
numerosos”(Idem, ibidem, p. 362).
Em outro trecho de seu diário, ele relata que os “terrenos próximos as
duas margens do velho Chico apresentavam-se impregnados de sal e que os
habitantes de Salgado sabiam extraí-lo e dele faziam “um importante objeto
de comércio”(Idem, ibidem, p. 332).
O açúcar e a aguardente principais gêneros dessa localidade eram
constantemente oferecidos em troca de sal. Ele continua nos contando que
a prosperidade reina entre os habitantes de Salgado devido ao importante
comércio realizado por vários mercadores, possibilitando maiores oportunidades
de lazer, para alguns setores dessa comunidade. “Parece que vários
deles possuem grande quantidade de escravos, e meu proprio hospedeiro tinha
setenta”(Idem, ibidem, p. 333). Ali ele observou que as pessoas “jogavam cartas
e gamão, ouviam música e dançavam alegremente. Uma vez até ensaiaram e
apresentaram uma peça de teatro em sua homenagem “ (SAINT-HILAIRE,
1975, p. 133).
Enfim, um Sant-Hilaire menos ‘salgado’. Sua viagem segue para a província
de Goiás, mas não vamos acompanhá -lo nessa jornada, pois o rio São
Francisco não corta essa província. Quanto a sua despedida do Brasil, só vamos
entendê-la lendo as últimas partes de seu diário e, em particular, os ‘votos do
autor’. Saint-Hilaire deixou claro que gostaria de ter os seus apelos e conselhos
atendidos. Por quem? Onde? Tentemos compreender suas palavras: “Quanto
a mim, se vier, a saber, que meus fracos apelos foram ouvidos, que alguns conselhos
produziram frutos, jamais lamentarei ter passado perdidos nos sertões,
em meio a privações, longe de minha família e de minha pátria, os mais belos
dias da minha existência”(Idem, ibidem, p.189). Segue a sua narrativa, agora
lamentando sobre a perda de sua saúde, pois “paguei a dívida da hospitalidade,
e minha passagem pela terra não foi inútil”(Idem, ibidem, p.190).
Um tanto dramático esse monsieur Saint-Hilaire!
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 19
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Mudança de rumo – dois bávaros embarcam nessa vigem pelo velho
Chico
Atento a todos os movimentos, tanto em suas margens quanto dentro
de suas águas, o rio São Francisco continua o seu curso em direção ao mar.
Quem será o próximo a me visitar, a me desvendar? Atravessando o Atlântico
rumo ao Brasil, lá vem outro viajante, de língua enrolada, para conhecer o rio
de tantas histórias.
Valei-me meu São Francisco, dessa vez são dois, os bávaros Spix e Martius,
que pretendem passar uns três anos visitando várias províncias brasileiras,
no período de 1817 a 1820, e com certeza vão cruzar com o inequecível
viajante francês, que ainda continua seus estudos científicos pelo país. Eles
vêm a bordo do navio que traz a D. Leopoldina, arquiduquesa d’Áustria, para
se casar com D. Pedro I. De acordo com esses dois estudiosos, foi o amor
à ciência que os conduziu para terras tão longínquas e, em especial, para o
rio São Francisco. Eles irão percorrer as províncias do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piaui, Maranhão, Pará e Amazonas,
estudando a fauna e a flora brasileira. Quem sabe em dupla, o humor desses
dois viajantes seja mais agradável!
Vários aspectos observados por Saint-Hilaire, com relação ao rio São
Francisco, as províncias banhadas por ele e as cidades que o margeiam,
também serviram de pesquisa para Spix e Martius: a vegetação, os minerais,
os animais, a formação geológica, os afluentes desse rio, as doenças típicas
dessas regiões, a navegação e as embarcações, as populações ribeirinhas e seus
hábitos e costumes, enfim, a imponência desse rio impressionou tanto os dois
pesquisadores, que eles estudaram, relataram e desenharam muito mais do que
o previsto em suas profissões de naturalistas e zoológos.
Ao sair do Rio de Janeiro com as suas cartas de recomendação, os
viajantes bávaros adentraram o sertão rumo ao rio que tem nome de santo,
São Francisco. O início da viagem científica significa também o início das
observações, das anotações e coletas e dos comentários da dupla a respeito
de tudo que viam.
Depois de forçar o caminho através da mata intensa, “cheios de alegria,
avistamos o rio São Chico passar suas ondas espelhentas em majestosa calma
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Vanessa Maria Brasil
diante de nós” (SPIX&MARTIUS, 1981, p. 88). Dentro desse clima de admiração,
os naturalistas sentiram que a força das águas desse rio iriam reanimarlhes
os ânimos, para seguir viagem e finalmente alcançarem, “depois de tantas
atribuições e desventuras, a margem do abençoado rio hospitaleiro” (Idem,
ibidem, p. 218). A viagem prossegue nas Minas Gerais, com os dois viajantes
observando que o rio era, já naquela época, a “via usual do comércio” (Idem,
ibidem, p. 91) de uma grande parte do sertão das Gerais. O São Francisco
transportando os seus produtos para a Bahia “com facilidade maior do que
em lombo de mulas ao Rio de Janeiro e em troca recebendo o sal das salinas
situadas ao norte do rio, além de mercadorias européias” (Idem, ibidem, p.
91).
Tomara que o sal não amargue o humor desses naturalistas, até o momento
muito agradável. Felizmente eles continuam a viajar por trechos do
rio São Chico onde existe uma quantidade de pequenos engenhos, apesar de
“muito pouco açúcar ser produzido. A produção é “quase que exclusivamente
de rapadura parda, sendo a maioria despachada rio abaixo para a província da
Bahia”(Idem, ibidem, p. 91).
Além de relatarem que o São Francisco derrama as bênçãos de um grande
rio sobre toda a população ribeirinha, os dois naturalistas alemães matam
um pouco da saudade da terra natal ao afirmarem que o rio os faz lembrar
o “pátrio Reno na parte onde ele sai apertado dos montes, percorrendo de
Bonn em diante, férteis planícies” (Idem, ibidem, p. 221).
Ainda em Minas, ficam impressionados com a abundância e variedade de
peixes, tanto no rio São Francisco quanto em seus principais afluentes, e com
a riqueza das aves às margens desse rio. Já é hora de sair das Minas Gerais,
atravessar o sertão da Bahia até Juazeiro, às margens do rio São Francisco.
No transcorrer do caminho eles deparam com tropas de mulas e comentam
que elas saem das províncias do “Rio Grande do Sul e de São Paulo e que
geralmente são tocadas ao longo desse rio, em direção à província da Bahia”
(Idem, ibidem, p. 228).
Mais uma vez os bávaros ficam impressionados não só com a quantidade,
mas com a qualidade das “espécies de animais fantásticos, como os variados
tipos de morcegos que habitam as Minas Gerais, principalmente as regiões
das grutas que margeiam o rio São Francisco” (Idem, ibidem, p.81). Segundo
Spix e Martius, os morcegos em “numerosos bandos atacam o gado à noite e
muitas vezes obrigam os habitantes a abandonar as suas fazendas e retirar-se
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 21
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
para regiões mais sossegadas” (Idem, ibidem, p. 81).
Com relação à riqueza das aves que vivem às margens do velho Chico,
os dois viajantes gastaram páginas e páginas em seus diários, tanto em relatos
quanto em desenhos. As aves que lá e cá gorjeiam e falam, essas, então, foram
merecedoras de incontáveis elogios.
Mas qual não foi a nossa surpresa, ao depararmos, em uma das páginas
desse precioso diário, com uma cena no mínimo estarrecedora. O Sr. Dr. Spix,
não contente com a refeição frugal que lhe foi oferecida, em um dos trechos
da viagem decidiu contribuir, para completar o cardápio de feijão e toucinho,
com os produtos de sua vitoriosa caçada: alguns verdejantes papagaios. Pobres
louros, o que diriam eles a esse bávaro caçador, tão preocupado com a nossa
exuberante fauna? Curupaco, papaco...
E a expedição continua rumo às terras das Gerais. Novos gêneros de
caça iam surgindo, como caititus, veados, onças e antas. Spix, Martius e seus
companheiros de viagem comentam alegremente: “É muito agradável a caçada
a esta última, pois não tem perigo algum”( Idem, ibidem, p. 83). O perigo não
estava com as antas, pois elas cotidianamente saiam dos brejos em direção às
matas e mal sabiam que homens caçadores estavam atrás das grossas árvores,
tomando posição para atacá-las com balas de espingarda. Alguns mais arrojados
“arremessavam um facão largo no meio do peito da anta passando a toda
pressa” (Idem, ibidem, p. 84). Comentavam esses homens que essa atitude
era bem arriscada, “embora o animal não pudesse ferir com os dentes, nem
com as garras, só o formidável embate, que ele der com o focinho, basta para
ferir seriamente” (Idem, ibidem, p. 83). Relatam ainda, que tiveram a sorte de
matar duas antas grandes em um só dia, e de “capturar uma cria para amansar”
(Idem, ibidem, p. 83).
Pobre santo, o Francisco, não é à toa que ele decidiu ser o protetor dos
animais, além de dar nome ao rio.
As águas do velho Chico continuam a deslizar, as folhas das árvores a
balançar, algumas vezes fora do ritmo normal, incomodadas com o ruído das
armas. Numa pausa do dia, entre relatar e caçar, podem os caçadores europeus
abandonar-se às impressões do sossego da mata brasileira e apreciar os
buritizais, ornamento característico da bacia do rio São Francisco. O buriti,
“um dos mais belos produtos do mundo das plantas” (Idem, ibidem, p. 103)
fornece aos habitantes da região fios e fibras resistentes para a cobertura das
palhoças; a seiva dos caules produz uma bebida agradável, semelhante à água
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Vanessa Maria Brasil
da bétula” (Idem, ibidem, p. 103) e a polpa do fruto, misturada com outros
ingredientes, é doce apreciado e artigo de comércio do sertão de Minas com
a costa.
A natureza pródiga beneficia também as mulheres, pois a “fertilidade
delas e o crescimento da população no norte de Minas é um dos fenômenos
mais prodigiosos” (Idem, ibidem, p. 85). De acordo com Spix e Martius, um
hospedeiro de Contendas contou-lhes que o trecho “entre o rio Verde Grande
e o rio São Francisco conta com quase 10 mil almas” (Idem, ibidem, p. 87). Para
constatar a fertilidade da região, das mulheres e dos homens, esses viajantes
nos descrevem que “certa mulher de pouco mais de 50 anos, moradora de
Contendas, tem 204 descendentes vivos; outra, que aos setenta anos casou-se
com um velho da mesma idade, deu -lhe trigêmeos, que ainda vivem” (Idem,
ibidem, p. 86). Nem a bíblia explicaria tamanho milagre! Os viajantes também
ficaram admirados com as mulheres novas: “não é raro ali uma moça de
apenas 20 anos, já ser mãe de oito a dez filhos” (Idem, ibidem, p. 86). Entre
os homens, encontram- se velhos ativos, vigorosos, “de altura gigantesca, que
conservam todo o humor da virilidade”( Idem, ibidem, p. 86).
A mortalidade era muito pequena, “morrem apenas três a quatro pessoas
por ano, ao passo que nascem 70 a 80” (Idem, ibidem, p. 86). A prole
numerosa não constitui motivo de queixa e miséria.
Após tantas notícias, a expedição dirigida pelos dois viajantes força
caminho pela orla do mato, que o povo chama de alagadiço. Cheios de alegria
e ânimo, avistaram outro trecho do rio São Francisco: “o majestoso rio
resplandeceu, ondulando placidamente” (Idem, ibidem, p. 221), sob o olhar
atento dos dois naturalistas.
Em meio às andanças pelas matas, pelas margens do rio e diferentes
localidades, os bávaros comentaram que precisavam pesquisar e anotar muitos
dados sobre aquela expedição ao interior do Brasil, porque ao sair de seu país
teriam declarado o “amor a Vossa Majestade e à ciência” (Idem, ibidem, p.
02). Também não podiam esquecer que vieram na bagagem da D. Leopoldina
e que, ao chegar ao Rio de Janeiro, eles contaram com valiosos recursos de D.
Pedro I, para iniciar os trabalhos.
Hoje sabemos que a produção científica dos dois naturalistas bávaros,
resultado dessa expedição, é extremamente importante, com várias obras
publicadas e que os dois, em especial o Martius, não se limitou à taxonomia e
nem mesmo à botânica. Ele escreveu sobre as plantas medicinais brasileiras, fez
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 23
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
observações fitogeográficas, estudou etnografia, assuntos lingüísticos, o costume
dos indígenas brasileiros, organizou mapa fitogeográfico do Brasil, além
dos incontáveis desenhos de cenas da fauna, da flora e do povo ribeirinho.
Vamos observar detalhadamente as narrativas desses dois viajantes,
principalmente depois desses compromissos e preocupações assumidas. Sobre
o velho Chico e as comunidades ribeirinhas, as informações são riquíssimas e
variadas, porque de acordo com Spix e Martius, a “imponência e importância
do rio deixaram-nos impressionados” (Idem, ibidem, p. 70).
Ao viajarem do sertão até o rio São Francisco, uma soma enorme de
anotações foi realizada e, dentre elas, a qualidade da água, que para eles “embora
fresca e potável era enjoativa e parecia ser um dos fatores da malária,
tão predominante e devastadora na grande região desse rio.”( Idem, ibidem,
p. 78)
Nada como um bom descanso ao ar livre para amenizar a opinião desses
naturalistas, pois nesse momento eles “nem sentiam a falta da agradável e
saudável água do rio São Francisco” (Idem, ibidem, p. 104).
As grandes cheias, assim como as grandes secas, os afluentes das duas
margens do rio São Francisco ocuparam muitas páginas de seus diários. Vale
ressaltarmos as anotações, os desenhos e comentários feitos com relação à
fauna e à flora brasileira e, em especial, as da região são franciscana.
Na flora dessa intensa e rica região eles notaram uma “decisiva predominância
das plantas das famílias das Nopáleas, Verbenáceas, Malváceas,
Terebintáceas, Rutáceas” (Idem, ibidem, p. 103), valei-nos São Francisco,
quantos nomes complicados! Destacaram mais uma vez estar encantados
com os buritizais, que segundo os dois bávaros, caracterizam e ornamentam
a bacia do velho Chico.
Nesse vai-e-vem, nesse sobe e desce o rio e seus afluentes, Spix e Martius
decidem demorar um pouco mais em Contendas. À margem do rio, os dois
botânicos encontraram uma melhor oportunidade para fazer as suas anotações
médicas. Relataram que em vários trechos às margens do São Francisco as
“febres são endêmicas e reina grande disposição para elas, além de inflamações
no peito e no abdome serem bem comuns nas proximidades do rio” (Idem,
ibidem, p. 96 ). Notaram também que na parte alta do sertão das Gerais a
população tinha um aspecto mais saudável .
Uma cena diferente distrai o olhar dos naturalistas e os fazem mudar de
assunto. Outra enorme tropa de mulas vindas das províncias do Sul e de São
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Vanessa Maria Brasil
Paulo, “geralmente são tocadas ao longo do rio São Francisco à província da
Bahia” (Idem, ibidem, p.199). A curiosidade aumentou, pois os naturalistas
queriam saber qual o conteúdo das cargas e, por isso, várias perguntas fizeram
aos tropeiros. Os produtos eram os mais diversos, como “açúcar bruto,
cachaça, farinha, fumo (Idem, ibidem, p.111)” que deveriam ser trocados com
o sal daquela localidade. Foram informados, ainda, que pelo leito do rio São
Francisco já era habitual, naquela época, o transporte de uma grande parte
desses produtos do sertão das Gerais para a Bahia, chegando até o Rio de
Janeiro e que os tropeiros preferiam “o transporte pelo rio ao invés de tropas
de mulas” (Idem, ibidem, p. 228).
Aproveitando o assunto acerca de transporte pelo rio, os naturalistas
emendaram, em seguida, o tema sobre navegação fluvial. E as funções de
separar, unir, dividir, transportar atribuídas ao São Francisco, ao longo de sua
história, foram brotando nos relatos de Spix e Martius. Notaram in loco que o
rio “separa as capitanias da Bahia e Pernambuco, e Registro, situado à margem
setentrional do São Francisco, frente a Juazeiro, faz parte de Pernambuco”
(Idem, ibidem, p. 221).
Em outra página do diário, anotaram que “estando em Juazeiro poderiam
continuar viagem por uma parte da província de Pernambuco, em direção a
Oeiras, capital do Piauí” (Idem, ibidem, p. 252).
Mais uma vez as funções de travessia e de fronteira atribuídas ao rio
surgem em seus inúmeros relatos, ao comentarem que “atravessaram um
lugar raso do Carinhanha e, ao meio-dia, voltamos outra vez ao rio, em cuja
margem setentrional tínhamos que prosseguir até a sua foz no São Francisco.
Este rio, que forma aqui a fronteira entre Minas e Pernambuco” (Idem,
ibidem, p. 113).
Voltando a narrar sobre a navegação nesse rio, os dois viajantes chamam a
atenção do leitor para os tipos de embarcações que conheceram, por exemplo,
as simples barcaças e ajoujos (canoas amarradas, uma ao lado da outra) . Para os
dois viajantes, a navegação fluvial se destaca não só pelos tipos de transporte,
mas, também, pela grande importância no crescimento da população e do
comércio, pois, “desde São Romão até Juazeiro, na província da Bahia e, com
o crescimento da população e do comércio, os poucos casebres do povoado
se transformarão brevemente em próspera cidade” (Idem, ibidem, p. 91).
A viagem prosseguia ora sertão adentro, ora pelas margens do rio. E ao
longo do percurso nenhum acontecimento alterou o humor dos estrangeiros?
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 25
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Nada de mosquitos? E os animais selvagens? Como diz o velho ditado, quem
procura, acha, fomos revirando as páginas dos diários e foram surgindo as
reclamações. Para debulhar o rosário de queixas os naturalistas escolheram uma
localidade, Malhada, “por sua posição insalubre, é entre as povoações do rio
São Francisco, a de pior reputação” (Idem, ibidem, p. 115). Agora aumentou
a nossa curiosidade. Por que será? Acabamos de descobrir ao virarmos mais
uma página do diário dos viajantes: “Malhada apresentava um número muito
grande de doentes de fígado e baço, calor insuportável e o pior, a quantidade
de roubos sem nenhum tipo de punição” (Idem, ibidem, p. 116).
Em outra parada para descanso, os dois estrangeiros relembraram a
época em que colonos europeus se espalharam da província da Bahia para a
província do Piauí, entre os anos de 1674 e 1700 e, pouco mais tarde, deram
início às viagens pelas Minas Gerais, pelo rio São Francisco abaixo. Nesses
percursos, os colonos europeus presenciaram a “fundação de muitas missões
pelos franciscanos, que já se encontravam na Bahia” (Idem, ibidem, p. 216).
Ao narrar sobre essas missões, os naturalistas comentaram ainda o papel
dos religiosos na catequese dos índios e desenharam cenas de “várias tribos
indígenas que, durante os meses secos, se direcionavam para as margens do
rio São Francisco, onde viviam principalmente da pesca, pois havia abundância
de peixes” (Idem, ibidem, p. 216).
Assim como Saint-Hilaire, os dois bávaros gastaram páginas e mais páginas
de seus diários, relatando acerca da produção de salinas e do comércio
de sal realizado nas feiras, com comerciantes de Minas Gerais, assim como
o despacho do produto para todo o interior do país via rio São Francisco. O
sal era importante não só para o comercio, mas também para alguns animais.
“O gado, que pasta em grandes rebanhos nestas campinas, procura o sal com
avidez, e lambe os barrancos, às vezes em longas filas, numa camaradagem
pacífica” (Idem, ibidem, p. 114). De acordo com Martius, esse comportamento
parece ter passado dos animais para os homens: “Quero referir-me à irreprimível
vontade que tem as crianças de comer terra” (Idem, ibidem, p. 87). Ele
viu meninos e meninas comerem a “terra margosa, às vezes o revestimento
calcário das paredes” (Idem, ibidem, p. 87) e, segundo o naturalista, só uma
vigilância constante poderia impedir tal hábito. Continua relatando que “parte
do material indigesto não pode ser eliminada, e ocorre a inchação das glândulas
abdominais”. As crianças são barrigudas, pálidas, raquíticas e, “quando não
morrem, sofrem de câimbras ou hidropisia” (Idem, ibidem, p. 87).
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Vanessa Maria Brasil
Ilustres naturalistas, esse mal é causado por vermes e lombrigas. Em
seguida ouvimos uma pergunta com sotaque carregado: Uma pessoa falar
alguma coisa?
Sim, nós leitores e moradores dessas regiões ribeirinhas acostumadas
que somos, com essa cena, crianças barrigudas comendo terra, resultado da
quantidade de vermes. Elas são tratadas com as plantas locais. Como os senhores
botânicos constataram em suas pesquisas, “a natureza daquela região
fornece-lhes a opulência de suas poderosas plantas medicinais, que merecem
a máxima consideração dos médicos, e muitas das quais deveriam, no futuro,
enriquecer a farmacopéia da Europa” (Idem, ibidem, p. 87).
Até aquele momento, o humor dos dois naturalistas não tinha sido
contaminado pelo sal, mas em outro trecho de suas narrativas, o paciência dos
estrangeiros nos pareceu bem menor. Notávamos que a impaciência dos dois
viajantes aumentava, à medida que erravam mais o nosso idioma. Ao descrever
o sertanejo dessa região são franciscana, não foram nada felizes, como veremos
a seguir. Para os naturalistas, o “sertanejo é criatura da natureza, sem instrução,
sem exigências, de costumes simples e rudes. Envergonhado de si próprio e
de todos que o cercam, falta-lhe o sentimento da delicadeza moral, o que já
se demonstra pela negligência no modo de vestir; porém é bem intencionado,
prestativo, nada egoísta e de gênio pacífico” (Idem, ibidem, p. 76).
Não nos parece um tanto precipitado, esse julgamento com relação ao
sertanejo? Os dois viajantes estiveram pouco tempo no país e, menos ainda,
nessa imensa parte dos sertões brasileiros? E não terminam aí as considerações
dos estrangeiros a respeito dessa figura complexa que é o sertanejo. Nas
páginas seguintes, eles continuam a narrar que a “solidão e a falta de ocupação
espiritual arrastam-no para o jogo de cartas e dados e para o amor sensual, no
qual, incitado pelo seu temperamento insaciável e pelo calor do clima, goza
com requinte” (Idem, ibidem, p. 103).
Nesse momento, prefiro me lembrar do verso de uma canção: “não
existe pecado, do outro lado, do Equador...” (Francisco Buarque Holanda;
Ruy Guerra, 1978). Somos obrigados a retirar outro trecho de suas narrativas
onde os naturalistas falam: “o ciúme é quase a única paixão que o leva até ao
crime” e “ademais, só a mínima parte dos sertanejos é de origem puramente
européia; a maioria consta de mulatos, na quarta ou quinta geração; outros são
mestiços de índios com negros ou de europeus com índios...” (Idem, ibidem,
p. 102). Pensando melhor, Euclides da Cunha definiu sabiamente esse homem,
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 27
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
“o sertanejo é antes de tudo, um forte...” (CUNHA, 1994, p. 95)
Além de subir e descer várias vezes o rio São Francisco e seus afluentes,
os viajantes estrangeiros, por inúmeras vezes, levantaram e abaixaram os seus
olhares e, dessa vez de encantamento, para descrever e desenhar as aves e os
peixes dos rios.
Na fazenda Capão, às margens do rio São Francisco, mais especificamente
à beira de uma grande lagoa formada por esse rio, os dois naturalistas
foram “transportados a um país inteiramente diverso. Eram “matas virentes,
que orlavam extensas lagoas piscosas”(SPIX & MARTIUS, op.cit., p. 96). A
variedade e a quantidade de peixes eram assustadoras e, de acordo com os
naturalistas, páginas e páginas seriam necessárias para anotar os seus nomes,
como: “pacu, surubim, dourado, cascudo, pirá -tamanduá, acari, mandi, piau,
traira, bagre, sarapó, piranha ordinária e roduleira, curumatã , mandipintado”
(Idem, ibidem, p. 97) e mais, muito mais. Em outra lagoa, nessa mesma fazenda,
outra cena chamou-lhes atenção, pois contaram “mais de quarenta jacarés, uns
deitados nas margens, outros inquietos por nosso ruído. Os maiores desses
animais tinham oito a nove pés de comprimento, couraça esverdeada e focinho
rombudo” (Idem, ibidem, p. 83).
De repente, um estrondoso barulho mudou a direção de seus olhos, agora
voltados para o alto. Os dois botânicos disseram ainda extasiados: “Ressoam
aqui, na mais alvoroçada celeuma grasnada, chiados e gorjeios sem fim dos
mais diversos gêneros de aves, e, quanto mais observávamos o raro espetáculo
da natureza, menos vontade sentíamos de perturbar, com mortíferos tiros,
aquele cenário pacífico da natureza” (Idem, ibidem, p.84).
Papagaios!!! Em um cenário poético, pacífico, colorido e encantador, os
dois bávaros ainda pensaram em “mortíferos tiros”!
Felizmente um bando de marrecos, numerosos quero-queros voou rápido
por sobre suas cabeças, levando embora aqueles pensamentos ruins. E
a riquíssima variedade de animais volta a perturbar-lhes, anotando mais uma
vez que “viram mais de 10.000 animais reunidos. Parecia-nos ter-se renovado
o quadro da criação do mundo diante dos nossos olhos, e esse maravilhoso
espetáculo nos teria ainda agradavelmente impressionado, se não nos ocorresse
o pensamento de que a guerra, a eterna guerra, era a lei e misteriosa
condição de toda existência animal” (Idem, ibidem, p. 82). Pasmem senhores
leitores sobre esse comentário dos naturalistas. Realistas em excesso? Visões
de mundo distintas?
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Vanessa Maria Brasil
A viagem pela região são franciscana estava chegando ao final, por essa
razão escolhemos como último trecho do diário desses dois viajantes, um
momento mais ameno, mais descontraído: um dia de festa no coração do
sertão. Uma das fazendeiras ricas da região os convidou para participar de
uma solenidade religiosa muito tradicional. Lá os viajantes puderam constatar
que o comércio e a riqueza proporcionaram uma “sociabilidade e costumes
amenos. Solenizaram-se aqui, com decoro e pompa, várias festas da Igreja,
entre outras uma inteiramente nova para nós” (Idem, ibidem, p. 93).
A senhora rica tinha feito a Nossa Senhora, a promessa de uma procissão
e, qual não foi a surpresa dos bávaros, quando viram que a “dama, vestida de
gala, conduzia o séquito até a Igreja (Idem, ibidem, p. 93) O convite da ilustre
dama era para “assistirmos a missa, e de lá voltarmos todos a casa dela, onde
estava posta uma grande mesa com as mais finas iguarias e vinhos escolhidos
e, sobretudo, deliciosos doces, para serem deleitados o dia inteiro” ( Idem,
ibidem, p. 94).
Essas horas alegres decorridas na casa da gentil senhora só foram perturbadas
pelas preocupações com o prosseguimento da viagem. Para felicidade
dos dois naturalistas, um novo guia foi arranjado, um experiente paulista, para
acompanhá-los de volta ao mar.
Como foi a saída de cena desses bávaros naturalistas? Mais uma vez
recorremos aos seus diários e, nas últimas páginas amareladas e amarrotadas,
encontramos essa despedida. Os dois viajantes chegaram à conclusão que a
relação dos fatos de sua viagem ao Brasil e dos seus resultados científicos
gerais “corresponderam aos seus encargos relativos à botânica e à zoologia”
(Idem, ibidem, p. 320). Comentaram ainda, que o país de origem depois de
muitos séculos fechados às investigações dos europeus, deu–lhes uma rica
oportunidade de “enriquecer com fatos aquelas ciências “ (Idem, ibidem,
p.320). Pareceu-lhes também mais acertado “colecionar durante a viagem,
exemplares tanto de formações geológicas quanto etnográficas e, em particular,
de animais e plantas, dar assento em nosso diário, as descrições e noticias
minuciosas” (Idem, ibidem, p. 320), e, com isso, preparem uma exposição
científica quando de volta à pátria.
Por falar em horas e também em anos, já faz um bom tempo que não
nos deparamos, nem nas estradas de terra, nem sertão adentro, muito menos
nas margens dos rios, com viajantes esbaforidos, avermelhados, suados, reclamando
de calor e se comunicando mais com gestos do que com palavras.
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 29
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
É verdade que estamos sentindo falta dessas cenas. Já estamos quase no final
da década de trinta dos oitocentos, na passagem de 1836 para o ano seguinte.
Será que vamos ter surpresas?
O último convid ado a percorr er o rio: o pontual viajante inglês
Santo Antônio das roças grandes! Leitores e leitoras! Esfreguem bem
os seus olhos e vejam mais adiante quem vem chegando, com sua tradicional
pontualidade britânica. É o botânico inglês George Gardner, quase 20 anos
após a saída dos dois naturalistas bávaros.
Além do peso de sua bagagem, sua mente também pesava com a quantidade
de informações adquiridas por outros viajantes, que aqui estiveram e
que lhes narrou, ainda na Europa, a beleza e a variedade de riquezas naturais,
a grandiosidade de cenários existentes nos países dos trópicos. Ele esperava
encontrar um campo vasto e inexplorado para as suas investigações, apesar
das informações de naturalistas que aqui estiveram antes de sua chegada.
Que surpresas nos aguardam? A primeira é que Gardner era um naturalista
de origem escocesa. Chegou ao Brasil em 1837, nos últimos anos do
período regencial, e aqui permaneceu até 1841.
O país se encontrava em ebulição com tantas mudanças. Tínhamos uma
Constituição desde 1824, o colégio Pedro II, O IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro); o Arquivo Público e, em 1840, deu-se o início do
Segundo Reinado, com o imperador Pedro II, enfim, o Brasil não era o mesmo
dos dois naturalistas bávaros e do francês, aqui estudados.
Em meio a todas essas transformações, George Gardner coletou vasto
material sobre a fauna e a flora brasileira, além de numerosos relatos dos
costumes e hábitos da população das províncias de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Piauí, Maranhão e Goiás. Fazem parte de suas anotações
ricas informações geográficas e históricas dessas províncias visitadas
e pesquisadas. Enfim, realizou quase o mesmo trabalho que os outros três
viajantes estrangeiros citados anteriormente. Nosso objetivo maior é observar
as pequenas nuances, ou seja, o que difere, nas páginas de seu diário, as
anotações sobre o rio São Francisco e seus afluentes, o viver das populações
ribeirinhas e as funções atribuídas ao rio no transcorrer de sua história. Enfim,
como George Gardner viu, sentiu, anotou, pesquisou esses mesmos assuntos,
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Vanessa Maria Brasil
uma vez que viajou pelas mesmas províncias visitadas pelos naturalistas que
o precederam.
De acordo com as palavras desse botânico, vários são os motivos de
sua viagem ao Brasil, mas a motivação inicial partiu das minuciosas descrições,
feitas por Humboldt e outros viajantes, sobre as belezas e variedades
de produtos naturais dos países dos trópicos e dos diferentes cenários das
montanhas. As ricas produções vegetais do Brasil, menos conhecidas dos
ingleses, aumentaram o seu desejo de viagem rumo a América do Sul e, não
menos importante, a orientação do seu professor de botânica, Sir William T.
Hooker, que foi o seu patrocinador.
O botânico inglês iniciou a sua viagem pelo rio São Francisco de forma
diferente dos seus antecessores, pela foz do rio, ao invés da nascente, portanto,
pela província de Alagoas, pelo menos é dessa forma que está divida a sua obra.
A partir daí vamos observar os seus relatos. O rio São Francisco seria o seu
guia, para atingir o interior das regiões banhadas por ele, especialmente por
ser navegável, sem interrupção, por um longo percurso em direção à primeira
província a ser conhecida Alagoas. A vontade desse viajante era fazer uma
excursão pelo velho Chico, rio acima até chegar à cachoeira de Paulo Afonso.
Assim foi ele com a sua equipe até atingir uma aldeia de nome Peba, “cerca
de 5 léguas ao norte da embocadura do rio São Francisco e término de sua
viagem marítima” (GARDNER, 1975, p. 63).
Uma fala em comum com os viajantes estrangeiros vem brotando, nas
páginas do seu diário, as diversas funções atribuídas ao rio e, nesse momento,
a função de separar é comentada: “como o São Francisco separa a província
de Alagoas da de Sergipe, é fácil ver que Vila Penedo pertence à primeira e
Vila Nova à última” (Idem, ibidem, p. 64).
Oh my God!!! Exclamava o viajante inglês. Preciso arranjar transporte
para continuar a minha viagem em direção a outros lugares. Uma preocupação
certamente inglesa, pois o botânico acabara de chegar à aldeia de Peba e já
pensava em dar continuidade às suas pesquisas. Sua ansiedade era tanta que
conseguiu tratar com o dono de um carro de boi, para lhe levar a bagagem
a Piassabuçu, pequena aldeia da margem norte do São Francisco. Pelo jeito
não gostou do local.
Em Vila Penedo, no ano de 1838, o viajante inglês observou e recolheu
espécimes de rocha de “arenito branco e grosso, semelhante às que vira na
costa entre o rio São Francisco e Pernambuco” (Idem, ibidem, p. 65). Outras
TEXTOS DE HISTÓRIA, vol. 17, nº 1, 2009 31
Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
rochas de gnaisse e xisto micáceo lhe chamaram a atenção durante sua travessia,
tanto na costa quanto nas margens desse rio. As primeiras anotações
do botânico destacam as povoações e os tipos de rochas da região. Durante o
percurso, ainda em 1838, ele se depara, porém, com uma paisagem totalmente
distinta das firmes rochas: uma grande enchente.
Suas palavras são de espanto, uma vez que estava atravessando vários
trechos do rio em ajoujos, as canoas unidas, levando cavalos e pesadas bagagens.
Com a enchente, as águas do São Francisco “subiram cinco pés acima
do nível do assoalho e as paredes ainda conservavam os sinais evidentes do
fato” (Idem, ibidem, p. 69). Era impossível realizar a travessia.
O inglês, acostumado aos rígidos horários e compromissos, foi obrigado
a encher várias vezes o seu cachimbo, com um perfumado fumo, e dar boas
baforadas para não ficar estressado. Entre uma fumaça e outra, traçou novos
planos, ou melhor, começou a estudar os planos do governo imperial, com
relação à navegação a vapor. Seria viável?
Well! Bem! Vamos aos mapas. Gardner ouviu ainda no Rio de Janeiro,
que havia um plano de se estabelecer a navegação a vapor “entre a costa e
as províncias centrais do Brasil, pelo rio São Francisco e, só em observar os
mapas desta parte do império, lhe pareceu que a natureza oferecia todas as
facilidades para a realização desse feito” (Idem, ibidem, p. 73). Não são estudos
meus afirmou o inglês.
As águas do rio alheias a todos esses estudos, continuavam a subir. Mais
fumo no cachimbo e mais baforadas do botânico inglês. O jeito é continuar
a estudar esses planos do governo, mesmo sem muita convicção. Vamos
realizar esse plano, porque “uma comunicação fluvial, fácil e barata, embora
algo sinuosa pode ligar o mar dos confins da província de Pernambuco às
terras ricas e relativamente bem povoadas das zonas interiores de mineração
e diamantes...” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico inglês repetiu bem alto: my
God, my God, my God!!! Why, por que o governo imperial quer fazer isso? Uma
fumaça espessa saiu de sua boca. Os técnicos pretendiam unir aquelas zonas
porque estavam “separadas dos grandes mercados do Rio de Janeiro e Bahia
por altas barreiras de montanhas, sempre de acesso difícil e onde os meios de
transporte são cansativos e caros” (Idem, ibidem, p. 74).
No entanto, Gardner tinha grandes dúvidas e críticas que tal plano
pudesse dar certo e, em seguida, descreveu as razões. Esse foi um tema que
gastou páginas e mais páginas de seu diário. Passemos às suas explanações:
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Vanessa Maria Brasil
“em primeiro lugar, a barra na embocadura do rio, com cerca de duas léguas
de largura, é sempre batida por fortes vagas, e raro tem mais de quatro pés
de profundidade. Depois, na cachoeira de Paulo Afonso, uma série de corredeiras
e quedas, em extensão aproximada de 60 milhas, cria sérios obstáculos
ao progresso da navegação. Por fim, nas zonas intermediárias, a população é
muito escassa e não tem possibilidade de crescer, dada a natureza inóspita da
maior parte do interior!” (Idem, ibidem, p. 74)
O viajante inglês parecia entender do assunto, pois, virando mais algumas
páginas de seu diário, encontramos outras observações sobre a pouca
viabilidade dessa empresa de navegação a vapor. Para ele, essa “zona de terra
só é propícia à criação de gado” (Idem, ibidem, p. 74). O botânico não acreditava
que naquele momento histórico, os brasileiros, fossem investir verbas
na tentativa de tornar o São Francisco navegável. Sua desconfiança pairava
nos obstáculos da natureza ou na capacidade dos brasileiros? A resposta vem
imediatamente: “Talvez possa aventurar-se em tal tentativa uma companhia
inglesa, uma vez que alguns recentes e mal sucedidos planos semelhantes no
Brasil foram ainda mais absurdos. Veja-se aquele monumento mais absurdo
que se chamou Companhia do Rio Doce” (Idem, ibidem, p. 74).
Não sabemos se a enchente já estava a lhe aumentar o mau humor, a lhe
atrasar os planos de viagem, mas ele foi implacável em suas críticas. Quem
sabe, mudando de ares, de província, de novas paisagens, o tempo perdido
desse viajante inglês seria recuperado? George Gardner atravessava com sua
equipe, pela Serra Geral, muito próximo a uma aldeia “contendo cerca de
quarenta casas” (Idem, ibidem, p. 176), onde pretendiam ficar até encontrar
um homem que os ajudasse no trato da tropa. Apesar de haver dezenas de
homens, nenhum deles estava disposto a realizar tal empreitada e o inglês, irritado,
faz a sua crítica: “É comum dizer aqui, que para cada dez que trabalham,
há noventa que nada fazem e sustentam uma existência mísera caçando ou
roubando seus semelhantes mais industriosos” (Idem, ibidem, p. 178).
Como não podia desistir desse tipo de serviço, Gardner acabou por
encontrar um homem que já havia percorrido e conhecia esses caminhos para
Minas Gerais. Nem bem tinha concluído seu acordo com o sujeito, o viajante
vê chegar uma senhora, “uma mulata grande, velha e feia” (Idem, ibidem, p.
175). Porém, o que mais o surpreendeu foi o fato dela ser escrava, ao passo
que o homem, mulato também, era livre e mais moço. A mulher insultou o
inglês por aliciar o marido para abandoná-la. Que coisa feia, mister Gardner!
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Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
Quanto preconceito! A mulher era esposa do homem e só o liberou para tal
empreitada depois de ouvir o esposo dizer que só ficaria fora por um mês. Os
comentários maldosos do botânico continuaram e, para sua alegria, o guia,
além de seguir com sua tropa por um tempo maior, “não se sentiu inclinado
a voltar e seguiu com eles até o distrito do ouro, onde obteve emprego em
uma das minas” (Idem, ibidem, p. 175).
O viajante estrangeiro e sua comitiva continuaram a viagem ao longo
da chapada, observando que os “pequenos regatos que vinham atravessando
desde algum tempo corriam todos para leste, desembocando no rio São Francisco”
(Idem, ibidem, p. 178). O viajante e sua tropa estavam se dirigindo de
Arraias para a vila de São Romão em Minas Gerais. Logo ao chegar trocou
o seu cavalo castanho por outro todo branco, de crina e caudas bastas, mas
infelizmente a alegria do botânico durou pouco, pois o cavalo branco não
ficou muito tempo em seu poder, porque o roubaram depois de atravessarem
o rio São Francisco.
Gardner e sua tropa viajavam ora uma légua ora jornadas de mais de três
léguas, dependendo das condições das viagens. Sempre teve muitas histórias
para narrar em seu diário, principalmente as mais pitorescas, como a do guia
índio ainda no norte de Minas Gerais. O índio tinha sofrido um acidente de
cavalo e estava muito machucado, então mister Gardner mandou sua tropa
seguir viagem e ficou par a ajudar o índio, que dizia sofrer de muita dor. Deulhe
água e levou-o até a casa mais próxima, tentando encontrar algum medicamento.
Após o índio tomar chá quente e forte, “único estimulante que se
podia obter, melhorou muito. Em seguida, o botânico fez-lhe uma sangria no
braço que o aliviou consideravelmente, tanto que poucos dias depois puderam
seguir viagem” (Idem, ibidem, p.178).
Léguas e léguas de viagem, quando chegaram a outra chapada, o viajante
notou que os pequenos regatos, de águas cristalinas e frias, certamente
desembocariam no rio São Francisco. “Sentimos muito frio à noite, além de
sermos molestados por uma espécie de mosquito grande, cuja picada era
bem dolorosa, e o que nos inchou o rosto e as mãos” (Idem, ibidem, p.179).
No outro dia cedo, notou que os cavalos tinham extraviado para muito longe
e, para não perder seu precioso tempo, realizou uma colheita botânica nos
arredores próximos à chapada.
Por onde passavam notavam os tipos de habitações, quase sempre
“míseras choças feitas de varas e barro cobertas de palmas” (Idem, ibidem,
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p.177), muitas delas desabitada, mesmo a igreja local era construída do mesmo
material. Nunca deixava de relatar a preguiça dos habitantes dos distritos por
onde andava: “São desesperadamente preguiçosos, que mal plantam qualquer
coisa suficiente para o seu próprio uso, embora cada família possua terras
ilimitadas” (Idem, ibidem, p.178)
A fauna e flora compõem vários diários de Gardner. Os morcegos foram
insistentemente descritos por seus ataques a cavalos, porcos e, também, aos
homens. Segundo o viajante inglês, as “singulares criaturas produzem tamanhos
estragos e constituem o gênero Phyllostoma, assim chamados por causa
do apêndice em forma de folha de seu lábio superior” (Idem, ibidem, p.178).
Em uma noite que Gardner passou em Riachão, localidade mineira, toda a
sua tropa sofreu com os ataques desse animal e o viajante estrangeiro chegou
a matar morcegos que mediam “dois pés entre as pontas das asas”.
Jesus Crist! Vamos correr desses enormes vampiros!
Ainda em Minas Gerais, mas longe dos morcegos, e tendo como “único
conforto o chá, única bebida nesta longa e morosa jornada” (Idem, ibidem,
p.68), principalmente após uma cavalgada sob o sol ardente dos trópicos,
avistaram o rio “Urucuia, que corre da Serra Geral diretamente para o leste e
desemboca no rio São Francisco, pouco abaixo de São Romão, de considerável
largura e profundidade” (Idem, ibidem, p. 184). Tempos imemoriais! Certamente
nosso grande escritor Guimarães Rosa estaria feliz com essa observação,
pois o rio Urucuia , de tão volumoso, adentrava a casa de seu pai.
Na tarde da manhã seguinte seguiram viagem e tempos depois entravam
na vila de São Romão. O viajante se dirigiu à casa do juiz de paz para lhe
mostrar seu passaporte e, em seguida, conseguiram um local para descansar.
Nas próximas páginas de um dos seus muitos diários, George Gardner volta a
observar as variadas funções atribuídas ao rio São Francisco. A função de fixar
e povoar vem logo em seguida, ao ressaltar que a vila risonha de São Romão
está situada na margem sul do rio, no distrito de Paracatu. “É pequena, não
tendo mais de mil habitantes, e forma um quadrado com diversas ruas longas,
estreitas e irregulares”. Também descreve a sua população, comentando que
“quase toda de gente é de cor e não creio que haja na Vila intera uma dúzia
de famílias brancas” (Idem, ibidem, p. 188).
Uma vez descansados tropas e homens, era a hora de colocar os pés na
estrada rumo ao distrito dos diamantes, porque muitos estudos o botânico
tinha por lá. E, por falarmos em estrada, a mais freqüentada é a que corre
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Tantas águas, quantas histórias, diferentes narrativas...
na direção sul, ao longo da margem do rio São Francisco e ao norte do rio
das Velhas, “grande tributário daquele que nasce no distrito do ouro” (Idem,
ibidem, p.191).
O botânico inglês e sua equipe, sem perder tempo, começaram a jornada
até chegar a outra fazenda, das muitas que pernoitaram e descansaram,
ao longo dessa árdua tarefa de pesquisar. No caminho o viajante notou que a
mata era baixa e consistia principalmente de diferentes espécies de “mimosa,
acácia, bauhinia, caesalpina etc” (Idem, ibidem, p.192).
Quanto mais viajavam, mais as paisagens iam se modificando: de extensas
vegetações a pedregulhos, cascalhos, argila dura, rochas distintas contendo
diamantes encravados. Era um subir e descer serras, que parecia não ter fim.
A paisagem humana também era rica e diversa: escravos na mineração, tropeiros
ao longo das estradas, lavadeiras dentro dos rios, entoando canções
nem sempre alegres, homens forros trabalhando por conta própria, religiosos
conversando com senhoras nas escadarias das igrejas, artesãos esculpindo
figuras em madeira e barro e muitos negociantes.
Depois de muito pesquisar em Minas Gerais, Gardner seguiu viagem
pelo Ceará e Maranhão realizando ricos estudos e compondo frutíferos diários
de viagem. De acordo com esse botânico, nessas duas províncias a riqueza da
cultura do algodão, das palmeiras no Ceará, foi motivo de desenhos, escritos
e, não poderia deixar de lado, as muitas anotações sobre os peixes dos rios,
do mar e, em especial, os peixes voadores, que em “multidões se erguiam
rente ao navio” (Idem, ibidem, p. 248). Estava chegando o tempo de partir
e a viagem do botânico inglês nos pareceu rápida e agradável: “quanto mais
se aproximava da pátria, mais se intensificava meu desejo de estar entre meus
amigos” ( Idem, ibidem, p. 250).
Para nós aqui dos trópicos, esse sentimento tem um nome, saudade, sem
tradução para o inglês, no entanto, as palavras de despedida do botânico inglês
merecem tradução e registro. Em seu diário ele nos relata que cumpriu sua
missão de forma intensa e satisfatória, “não sofreu qualquer desengano quanto
aos prazeres que antecipara derivar de tal expedição, mesmo com os pequenos
aborrecimentos” (Idem, ibidem, p. 250). Fomos lendo e nos surpreendendo
com aquele cientista, a cada página que virávamos. Mais adiante, Gardner se
diz mais afortunado do que os outros naturalistas que o antecederam, porque
as suas numerosas coleções de espécimes “despachadas a intervalo para a Inglaterra
chegaram todas a salvo” e, por fim, ele nos presenteia, ressaltando que
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deixou o Brasil com grande pesar, porque a “vida que lá vivi era independente
e livre e para a minha saúde, seu clima era melhor do que a Inglaterra; que o
país é belo e mais rico que qualquer outro do mundo nos objetos naturais a
cujo estudo devotei minha vida” (Idem, ibidem, p.250).
Tempo de despedidas: do rio São Francisco e dos viajantes
Mister George, agora que lemos suas últimas considerações sobre o
Brasil e os lugares por onde passou, sobre os resultados de suas pesquisas,
constatamos que o senhor é quase um lorde, pois soube reconsiderar as intempéries
que muitas vezes cruzaram os seus caminhos nos trópicos. Certamente,
um dia iríamos desfrutar dessas pesquisas, não só a do senhor, mister
Gardner, mas, também, de todos outros naturalistas que por aqui passaram.
Nossa contribuição com esse artigo surgiu a partir das narrativas encontradas
em seus diários.
Merci beaucoup, monsieur Sai nt-Hilaire; Thank you, very much, mister
Gardner; Vielen Dank, meine Herren Spix e Martius.
As voltas e as respectivas despedidas dos viajantes estrangeiros aqui
estudados tiveram percursos distintos: o botânico francês, com tons de lamento
à possível não realização de seus apelos, às vezes saia do leito do rio;
os dois bávaros cientes de suas pesquisas e dos planejamentos futuros, com
relação ao rico material coletado no Brasil, quase se afogaram nas águas de
suas vaidades; e o inglês, quem diria, foi o que não ficou à deriva, no barco de
pesquisas e coletas que deslizou sobre o rio. E, o mais importante para nós,
os três naturalistas estrangeiros não tiveram dúvida alguma sobre a beleza, a
grandeza, o esplendor, a majestade, a importância da navegação e as funções
atribuídas ao rio São Francisco ao longo de sua extensa história.
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BIBLIOGRAFIA
SPIX, Johann Baptist Von, Viagem pelo Brasil: 1817-1820/Spix e Martius. Vol.2. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981.
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: ED.Itatiaia; São
Paulo, Edusp, 1975.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1975.
_____. Viagens pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tomo 2, São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1938.
HOLANDA,Sérgio Buarque de. “A herança colonial, sua desagregação. In: HOLANDA,
S. B(org.) História Geral da Civilização Brasileira. 4ª Ed., Tomo II, 1º volume. São
Paulo: Difel, 1975.
_____. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BELLUZZO, Ana Maria. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros, 1995.
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CANDIDO, Antônio. In: LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e
libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.
_____. Letras e idéias no Brasil colonial. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org)
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1972, v.2, t. 2.
Resumo: Neste presente artigo faremos a le itura do rio São Francisco
a partir dos relatos de viagem de quatro viajantes estrangeiros dos oitocentos.
A literatura de viagem constitui fonte inesgotável de informações a respeito
desse rio, seja de natureza técnica, literária e historiográfica. Muitas vezes
esses dados, mesmo os mais relevantes nos são fornecidos de maneira assistemática
e outras tantas vezes dispersas, assim como as águas do rio, quando
resolvem emaranhar -se. Para torná-lo mais translúcido, tanto o artigo como
o São Francisco, ressaltaremos as obras dos naturalistas europeus, como
referenciais importantes, para o conhecimento da história do meio ambiente
e da natureza no Brasil. A contribuição de estudiosos que transitam entre a
história e a literatura também serão imprescindíveis para esse texto.
Palavras-Chave: rio São Francisco; meio ambiente; história; literatura
de viagem; Brasil oitocentista.
Abstract: In the following article we are going to study the São
Francisco river from the perspective found on the reports of four foreign
travelers from the 1800’s. The literature of travel and exploration constitutes
an inexhaustible source of information about this river, in both technical,
literary and historiografical way. In several occasions this data, even the most
relevant one, are supplied to us in a non-systematic and disorganized way,
similar to the water of different riverbeds when it decides to meet. To make
it translucent, both the article and the São Francisco, we shall take the work
of different european naturalists as an imp ortant reference to the knowledge
of environmental and natural history of Brazil. The contribution given by
intellectuals that transit between History and Literature are also indispensable
for this text.
Key-Words: São Francisco river, environment, History , travellers
literature. Brazil in the 1800’s.
COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO
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