domingo, 1 de abril de 2012

LÍNGUAS DA AMAZÔNIA

peixe e pupunha, bebendo cerveja e vinho do Porto, ele viu navegar pelo rio um
moderno barco a vapor, ao lado de uma canoa indígena. Percebeu, então, os contrastes dessas
duas cidades fuscas, cujas vias de circulação se alternavam, “ora em ruas, ora em igarapés”,
onde se erguiam “sólidos edifícios europeus” ao lado de “primitivas casas tapuias de barro”,
que abrigavam brancos, índios e vários tipos de mestiços. Testemunhou o aparecimento das
primeiras fábricas, “cujas altas chaminés se elevam, com singular surpresa, diante da floresta
virgem, como um dedo escrevendo nela: Aqui há progresso! Aqui há Europa!”. A Europa
estava presente também, em Óbidos, onde viu “damas mais ou menos brancas” usando
espartilhos, em contraposição às leves anáguas e camisas brancas flutuantes das “fuscas
tapuias”. No entanto, observou que o encontro de culturas nem sempre propiciou um
diálogo entre esses dois mundos, e nem sempre favoreceu a construção mancomunada de
novos significados (Avé-Lallemant, 1980: 143,206):
“Vi índias espartilhadas, com vestidos de seda preta e calçadas. Mas como
pareciam desajeitadas, mortificadas e sufocadas! Como, ao contrário,
andavam leves e alegres as fuscas tapuias, só de camisa e saia, subindo a
encosta do rio com o pote de água na cabeça” (Avé-Lallemant: 82-83).
Nesse contexto é que se desenvolve o bilingüismo nas duas cidades, com data
marcada para desaparecer, porque, como observou Avé-Lallemant - mencionando o
português, o espanhol, o inglês, o francês e o holandês, falados no norte da Pan-Amazônia -
“as línguas européias já penetram profundamente na floresta. A língua geral é apenas uma
transição, ou antes a língua de uma transição”. Nessa transição, muitos tapuias que
aprenderam português, talvez tenham sentido o mesmo desconforto das índias
espartilhadas, porque a aquisição da língua européia foi feita, em geral, de forma
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desordenada e sob essa condição de tensão. Essa situação está caracterizada pela literatura
regional, cujo discurso representa o bilingüismo social, especialmente em suas duas
cidades, como uma situação de antagonismo e não de complementaridade, de tensão e de
conflito e não de harmonia, como podemos observar nas obras de Lourenço Amazonas e
Francisco Gomes de Amorim, que foram aqui discutidas.
Parte significativa da literatura oral e dos etnoconhecimentos, veiculados através da
LGA, foram banidos das duas cidades, junto com a língua. Na década de 1880, o botânico
Barbosa Rodrigues teve certa dificuldade de coletar, em Manaus, narrativas, poesias,
canções e conhecimentos sobre as plantas: “O fato de quase já não se falar a língua geral,
e de se ter a morte encarregado de chamar a si grande parte daqueles velhos, que sabiam
esses contos, tem feito com que poucas pessoas, no Amazonas, os saibam, e penso mesmo
que, fora da Província, são completamente desconhecidos”. Quanto às cantigas registradas,
ele as considerou meros “fragmentos de tantas que se perderam com o correr dos anos”
(Rodrigues 1890:121, 275). A atitude dos falantes de LGA, em relação à sua própria
situação, é exemplificada por um fato ocorrido em março de 1884, presenciado por Barbosa
Rodrigues, em Manaus, no igarapé em frente ao Museu, do qual era diretor. Ele viu uma
canoa atracar no local de desembarque, com um casal indígena e seus filhos, trazendo
dentro dela o chefe da família, “magro, cadavérico e gravemente enfermo”. Dois dias
depois, o botânico carioca encontrou acidentalmente a mulher, e perguntou dela, em Língua
Geral, se o seu marido havia tido melhoras em sua saúde. Ela respondeu: - Timaã! Umanu
uana uiky koema irumo (Não. Morreu hoje de manhã). É ele, então, que narra:
“Olhei para o interior da casa e pela porta vi sobre uma mesa, coberto com um
lençol o cadáver do marido, para o qual a tapuia me apontava. - Não choras?
Não sentes a sua morte? Respondeu-me, então, com ar tristonho: - Yané anga
yma uana, tapuya ceté pira nhô ana (Nós já não temos alma, os tapuias só têm
corpo)” (Rodrigues, 1890: 277-278).
Nas duas cidades, os poucos falantes de LGA que restaram, eram corpos sem alma,
não tinham mais com quem falar, nem sobre o que falar. A LGA perdeu não apenas
falantes, mas funções, devido a uma série de fatores: a crescente urbanização, a escola, a
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navegação a vapor, a emigração dos tapuios e a imigração de nordestinos, tudo isso dentro
de um processo de maior integração das duas cidades ao resto do país e de inserção da
Amazônia na divisão internacional do trabalho como produtora de borracha. Empurrados
progressivamente para fora das cidades, os tapuios levaram com eles a Língua Geral, que
foi ficando cada vez mais circunscrita ao oeste da Amazônia, com o seu emprego tornandose
“mais consistente à medida que se avança para o interior” (Wallace 1979: 291).
4.5. A LGA nas vilas e povoações
Nitio xa potar cunhang / Setuma sacai waá
Curumú ce mama-mamane / Baia sacai majaué
Nitio xa potar cunhang / Sakiva-açu
Curumú monto-montoque / Tiririca-tyva majaué. 22
Vilas e povoações eram aglomerados humanos, espalhados nas margens dos principais
rios da Amazônia, que se diferenciavam pelo tamanho: as povoações, como regra geral, eram
“núcleos em que se agrupavam de 50 a 300 pessoas, marginando os rios e lagos”, enquanto
as vilas possuíam, em princípio, um número muito maior de casas e de habitantes (Bittencourt
1925: 153). Na realidade, havia povoações que excediam em muito o teto estabelecido, mas
que não foram elevadas formalmente à categoria de vila, porque os critérios para isso não
eram apenas demográficos, mas políticos. No entanto, visto numa perspectiva mais moderna,
tanto vilas como povoações não passavam de pequenas aldeias semi-urbanizadas, onde eram
poucos os moradores que se dedicavam a atividades comerciais, administrativas, políticas,
militares, artesanais ou religiosas, típicas do mundo urbano. Em sua maioria, eles dependiam
diretamente, para sua subsistência, de atividades extrativas, agrícolas e pesqueiras e, por essa
razão, eram obrigados a residir fora, durante muitos meses do ano. De qualquer forma, embora
22 Esses versos foram coletados por Spix & Martius, em março de 1820, no rio Urariá, afluente do rio
Madeira, da boca de um comerciante paulista, capitão José Rodrigues Preto, diretor de índios da aldeia Mawé,
que“havia se familiarizado perfeitamente com a língua tupi, e, também por isso, parecia impor-se aos índios,
cujos versos singelos entoava com modulação esquisita”. Da tradução do alemão foi feita uma versão
portuguesa, reproduzida por Joaquim Norberto de Sousa Silva e, depois, por Sílvio Romero, em sua História
da Literatura Brasileira, conforme nota de Basílio de Magalhães (Spix & Martius 1881: 278). Optamos por
outra versão: “Não gosto de mulher / de perna muito fina / Porque pode me enroscar / como cobra viperina. /
Não gosto de mulher / de cabelo alongado / Porque pode me cortar/ como tiririca no roçado”.
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não constituíssem concentrações humanas densas e estáveis, esses lugares exerciam um certo
poder de atração sobre as populações ribeirinhas, graças às instituições que muitas vilas
sediavam - igreja, escola, botica, às vezes até um pequeno hospital, taberna, mercearia,
mercadinho, lojas de secos e molhados, polícia, cadeia, quartel, corpo de trabalhadores – e
graças, também, aos serviços, mesmo precários, que podiam oferecer. Era lá que os produtos
extrativos eram trocados por certos produtos industrializados. Era lá que as festas religiosas
eram celebradas, e as canoas e remeiros para o transporte fluvial eram contratados. No
universo amazônico do século XIX, caracterizado por densidade demográfica extremamente
baixa, as vilas e povoações desempenhavam funções essenciais, como pontos focais de uma
rede, que articulava a economia rural extrativista, de cunho artesanal, através do sistema de
comércio regional.
Às vésperas da Independência, no Grão-Pará, essa rede era formalmente composta por
44 vilas e 60 povoações, aonde viviam um pouco mais de dois terços da população
recenseada, de acordo com o arrolamento de 1820, reproduzido por Spix & Martius (1981:40-
41). No Pará, nessa época, além da Vila de Cametá e de Santarém, ambas com cerca de 6.000
habitantes, as maiores vilas tinham, cada uma, por volta de 2.000 habitantes: Bragança,
Macapá, Mazagão, Monte Alegre, Melgaço, Óbidos, Vigia, Moju e Abaeté. Na capitania do
Rio Negro, em 1814, os seis núcleos mais importantes, com exceção de Silves, não
ultrapassavam, cada um, os 1.000 moradores: Barcelos, Moura, Maués, Vila Nova da Rainha e
Vila de Ega. Na década de 1830, algumas dessas vilas passaram a ter um status mais
importante que outras, quando foram criadas as comarcas do Grão-Pará, do Baixo Amazonas e
do Alto Amazonas, como decorrência da entrada em vigor, em 1832, do novo código de
processo criminal. As comarcas foram divididas em ‘termos’, cada um com uma ‘cabeça’. As
vilas, que eram cabeças de termo, tinham um governo local, câmara municipal, comandante
militar, comandante dos trabalhadores – encarregado de distribuir os índios para as obras
públicas – juiz de direito ou juiz criminal e civil da comarca, delegado de polícia, vigário,
professor e alguns outros funcionários.
No entanto, para o desenho do mapa sociolingüístico, mais importante que esse dado
político-administrativo, era o tipo de relação que esses núcleos mantinham com as duas
cidades, especialmente com Belém, o que dependia, em grande medida, de sua localização. A
proximidade ou o distanciamento da capital significava um maior ou menor isolamento,
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sobretudo antes da navegação a vapor, quando todo o transporte era feito em canoas a remo,
implicando um gasto descomunal de energia e de tempo. Com esse critério, podemos
identificar três situações diferenciadas, do ponto de vista geográfico e lingüístico: o Baixo
Amazonas, cujas vilas e povoações mantinham relações permanentes e sistemáticas com
Belém; o Alto Amazonas, incluindo aqui os rios Solimões e Negro, cujas vilas tinham relações
esporádicas com a capital; e, finalmente, o Sertão, situado nos territórios dos afluentes mais
afastados, cabeceiras de rios e interior dos lagos, cujas povoações e sítios não diferiam muito
de uma aldeia indígena e permaneciam isoladas, recebendo visitas esparsas de um ou outro
comerciante ou funcionário governamental. Nas três regiões, havia um uso diferenciado da
Língua Geral, conforme explicitou o naturalista Alfred Russel Wallace, em 1852, no
momento em que regressava à Inglaterra, depois de uma experiência de quatro anos na
Amazônia:
“Nas vizinhanças das cidades e vilas mais povoadas, ouve-se tanto essa língua
[Geral] quanto o português. Longe daí, porém, existem locais nos quais ela é o
único idioma utilizado. Mas no interior, coexiste com as línguas nativas das
tribos, cujo alcance é apenas local. Assim, no baixo Amazonas, todos os índios
falam tanto o português como a língua geral; no Solimões e no Rio Negro,
geralmente falam apenas a língua geral; no interior, ao longo dos tributários do
Solimões e na região lacustre, utilizam-se desse idioma e das línguas Mura e Juri
para se comunicarem com os comerciantes que por ali passam” (Wallace 1979:
292-293).
Quanto mais próximo do litoral se encontrava o núcleo urbano, maior era a presença
da língua portuguesa e de índios ´civilizados´ bilíngües (LGA-LP). Na medida em que as vilas
e povoações iam se distanciando da costa e penetrando no interior da Amazônia, a Língua
Geral ia afirmando seu predomínio, com falantes monolingües - os ´tapuios´, e bilingües
(LGA-LV) - os ´índios mansos´.
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4.5.1 - No Baixo Amazonas: os ‘civilizados’
“Ao meu redor, treze índios nus tagarelavam numa linguagem desconhecida. Só dois sabiam
falar português, Fiquei conversando com eles, respondendo às mais diversas perguntas. De
onde vinha o ferro? Como se fazia a chita? No meu país nascia a planta que dava papel?
Havia lá muitas mandiocas e bananas? Eles ficaram espantadíssimos quando lhes contei que
lá só havia homens brancos.- Então, quem é que trabalha?” Wallace, em 1850 (1979:144).
A Comarca do Baixo Amazonas, com sede em Santarém, compreendia as vilas e
povoações, situadas na faixa que começa na zona dos estreitos do rio Amazonas e se
estende até os limites do atual estado do Pará, integrando os então municípios de Gurupá,
Porto de Mós, Macapá, Monte Alegre, Vila Franca, Pauxis (Óbidos) e Faro. Para efeitos
desse trabalho, incluiremos aqui a parte inferior de alguns afluentes, que embora não
pertencendo a esta comarca, estavam sob a zona de influência de Belém. Desta forma, esse
território assim ampliado, de mais de 1.200.000 km², abrangia cerca de 35 vilas e 25
povoações (Spix & Martius 1981: 40). O perfil sociolingüístico de seus habitantes pode ser
desenhado, hoje, graças às valiosas informações proporcionadas pelos naturalistas e
viajantes sobre as línguas faladas em cada localidade e sobre os contatos entre os seus
falantes. Essas informações serão tratadas aqui, com a ajuda de trabalhos recentes sobre
classificação de línguas indígenas, que permitem revelar as relações e os graus de
parentesco, por ventura existentes entre elas.23
Quando Spix e Martius passaram, em 1819, pelo Baixo Amazonas - incluindo a
parte inferior de alguns dos seus afluentes - os habitantes dos núcleos urbanos eram “quase
todos índios e mestiços”. Os primeiros, de procedências lingüísticas as mais variadas,
necessitando comunicar-se entre si, já haviam abandonado suas línguas vernáculas,
substituindo-as pela Língua Geral. No entanto, como precisavam, além disso, de interagir
com a população branca – minoritária - haviam adquirido também a língua portuguesa,
tornando-se bilíngües (LGA-LP), e, portanto, ‘civilizados’. O bilingüismo, porém, era
23
As informações sobre as línguas indígenas do século XIX, no baixo Amazonas, podem ser encontradas em
vários viajantes, especialmente em Spix & Martius (1981: t. III, 82-111e 282-284), Hércules Florence (1977:
290-311) e Henry Bates (1979: 95-102). Para a classificação dessas línguas, utilizaremos preferencialmente os
trabalhos de Aryon Rodrigues (2000), Queixalós & Renault-Lescure (2000) e Loukotka (1968).
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diferenciado, dependendo da forma como os índios se inseriam na produção e do local onde
residiam.
Os índios prestadores de serviços domésticos mantinham contato permanente com
os brancos, com quem moravam. Seguindo o modelo da arquitetura escravagista do resto
do Brasil, na vila de Santarém, sede da Comarca, eles viviam sob telheiros, erguidos pelos
portugueses nos fundos dos quintais de suas residências, que serviam de “senzalas para a
criadagem da casa, quase sempre índios, sendo raros os pretos ou mulatos” . (Spix &
Martius 1981: 99). Mas havia também, em “quase todas as povoações da província”, os
índios ligados diretamente à produção extrativa, aos trabalhos artesanais ou ao transporte
fluvial, que viviam relativamente afastados, em bairros próprios, cujos contatos com os
brancos se davam apenas durante eventuais relações de trabalho. Um desses bairros, em
Santarém, habitado exclusivamente por índios, foi visitado, em junho de 1828, pelos
integrantes da comissão científica, organizada pelo Barão de Langsdorff, cônsul russo no
Brasil. O desenhista da expedição, o francês Hercules Florence (1804-1879), chegou a fazer
um croqui, mostrando a disposição das casas e das ruas do bairro, por onde, mais de vinte
anos depois, os índios desfilariam com “magníficos cocares de penas” e “o corpo pintado
e lambuzado de urucu”, executando a Dança da Caça e a Dança do Diabo, conforme
descrição do naturalista Henry Bates, que presenciou as comemorações festivas. Quem
entrava nesse bairro – segundo Florence - não ouvia mais “os ásperos sons da palavra
portuguesa, porém os sons doces e incompletos da língua geral brasílica” (Florence 1876:
295).
Por outro lado, a relativa segregação dos brancos trazia também conseqüências no
uso das línguas. Havia vilas como Cametá, Faro e Monte Alegre, onde se podia encontrar
muitos mamelucos, como resultado de casamentos mistos com camponeses portugueses,
que rapidamente se adaptaram ao modo de vida amazônico. Mas em outras, como
Santarém, “não parecia haver ali, em grande escala, uma mistura das duas raças”. Os
brancos – brasileiros e portugueses – eram comerciantes, donos de lojas, proprietários de
escravos, fazendas de gado e plantações de cacau, “que gostam de aparentar que são
altamente civilizados”, não se misturando com os índios. (Bates 1979: 140-141). No caso
específico dos portugueses abastados, mais numerosos em Santarém do que em outras vilas,
a segregação repercutiu no seu modo de falar. A língua que falavam continuava a ser o
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português de além-mar. Hercules Florence estranhou “o sotaque carregado dos filhos
dalém Atlântico”, que conservavam “a pronúncia européia em sua integridade, sem sofrer
a modificação brasileira” (Florence 1876: 295).
Essas observações dos viajantes proporcionam alguns elementos para entender as
especificidades do bilingüismo na região. No início do século XIX, é certo, todos os índios
´civilizados´ do Baixo Amazonas eram bilíngües, da mesma forma que muitos brancos,
devendo, em princípio, usar alternadamente a Língua Geral e o português. No entanto, é
legítimo supor que os ‘índios de senzala’ tivessem uma prática cotidiana diferenciada dos
‘índios de bairro’. Além disso, nem todos eles herdaram o bilingüismo de seus
antepassados. Havia uma geração que adquirira muito recentemente a língua portuguesa, ou
estava ainda em processo de aquisição, a tal ponto que era possível identificar as línguas
vernáculas que haviam sido - ou estavam sendo - abandonadas. Essa geração era formada,
em grande parte, por descendentes de grupos locais, todos originalmente falantes de línguas
do tronco tupi, que ocupavam o território da margem direita do baixo Amazonas e de seus
afluentes e que foram remanejados de uma aldeia para outra, sempre nas cercanias. É o
caso dos moradores de Arapejó, Caviana, Alter do Chão e outras “povoações habitadas
exclusivamente por índios”, e de Porto de Moz, no Xingu, onde viviam remanescentes dos
Tacunhapé e Juruna. Na vila de Santarém, muitos índios da redondeza, empregados dos
colonos ou dos donos de pequenas roças, eram filhos e netos de casamentos interétnicos,
envolvendo falantes de línguas de famílias tupi: jacipoyá, juruna, curivere, munduruku e
cuzari, originários da região entre o Xingu e o Tapajós. Esse fato deve ter, seguramente,
facilitado a esses grupos a aquisição da Língua Geral, por ser uma língua do mesmo tronco.
No entanto, continuava em vigor a política de ‘descimentos’, instituída pela Carta
Régia de 12 de maio de 1798 que aboliu o Diretório de Índios e criou em seu lugar o Corpo
de Trabalhadores, com uma estrutura militarizada, obrigando o alistamento de todos os
índios aldeados e atribuindo ao governador o poder de determinar o número de anos de
serviço obrigatório dos índios, “passados os quais não ficarão obrigados a outro algum
que não seja o de Milícias, ao qual todos estão e devem ficar sujeitos” (Freire 1994:59).
Desta forma, muitos índios, de outras filiações lingüísticas, foram trazidos à força de
territórios mais distantes, situados a mais de dois mil quilômetros. Na povoação de
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Almerim, uma das mais antigas, formada por imigrantes europeus, Spix & Martius
registraram que “os seus atuais habitantes são, na maior parte, descendentes de Apamas e
Aracajus”, os primeiros de filiação tupi e os segundos, do tronco Karib. Na própria vila de
Santarém, aos grupos tupi já mencionados, se somaram aqueles trazidos do rio Japurá e da
região fronteira com a Colômbia, entre os quais os Passé, Uainumá, Marawá, pertencentes
ao tronco Arawak; os Apiacá, do tronco Karib; os Miranha, do tronco Huitoto; além de
falantes de línguas não classificadas como Cariberi, Guaruará, e Yuri. Os falantes dessas
línguas não-tupis provavelmente tiveram mais dificuldades em se apropriar da Língua
Geral. (Spix & Martius 1981: 99-100).
Essas informações sumárias constituem indícios de que o território do Baixo
Amazonas era uma encruzilhada, para onde convergiam culturas e línguas indígenas muito
diferenciadas – dos troncos Tupi, Arawak, Karib, Huitoto e outros - envolvendo ainda
imigrantes europeus, especialmente portugueses. Nesse encontro, as línguas vernáculas
foram substituídas por duas línguas, que serviam de ligação entre eles: a Língua Geral, de
comunicação interétnica, e a língua portuguesa, de relações com o colonizador, ambas
adquiridas de forma desordenada, a tal ponto que, na visão da época, apresentada por Spix
& Martius, a Língua Geral teve seus “vocábulos transformados, mutilados e viciados pelas
diversas tribos”, e quando falada, muitas vezes só era possível perceber “um indistinto
sussurro ou cicio”. Eles proporcionam informações sobre o resultado desse processo:
Todas essas tribos refundiram-se ao contato dos brancos, muitas vezes dentro
de poucos anos, numa população quase homogênea nos costumes e na língua.
Muitos poucos se recordavam ainda da sua primitiva fala; também poucos
haviam assimilado perfeitamente o português ou a língua geral; antes falavam
esta última estropiadamente, cada um a seu modo. Já aqui começa a ser
veículo preferido a língua geral, por meio da qual os colonos se comunicam
com os índios (Spix & Martius 1981:100).
Os dois viajantes alemães, que falavam o português, mas inicialmente
desconheciam a Língua Geral, foram obrigados a usar intérpretes para interagir com os
moradores, cuja condição bilíngüe (LGA-LP), surpreendentemente, não garantia a eficácia da
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comunicação em língua portuguesa, porque ela não havia sido ‘assimilada de modo perfeito’.
Atualizando esse discurso, podemos afirmar que muitos desses moradores não eram
necessariamente ‘bilíngües ativos’, ou seja, não desenvolviam, nas duas línguas, as quatro
habilidades lingüísticas básicas: entender, falar, ler e escrever. Os índios ´civilizados´, cuja
língua principal era a Geral, exercitavam, em português, apenas a primeira destreza: entender,
de acordo a informações dos observadores da época. Por outro lado, muitos moradores
brancos, cuja língua materna era o português, não falavam, mas entendiam a Língua Geral, o
que caracterizava, em ambos os casos, um tipo de bilingüismo, denominado por alguns
sociolingüistas como ´bilingüismo passivo’ ou ‘bilingüismo incompleto’ (Moreno 1998: 221).
O resultado dessa situação era que todos os moradores entendiam as duas línguas, mas a
maioria falava com facilidade e eficácia apenas uma delas. Quando os dois segmentos
interagiam, numa conversação coloquial, a estratégia para transmitir informação ou provocar
reação no interlocutor era cada um falar a sua, conforme testemunho de Lourenço Amazonas,
em passagem já citada, como epígrafe do capítulo:
“A Língua Geral [...] é a única, não por se ignorar a portuguesa, mas porque,
constrangidos os indígenas e os Mamelucos em falá-la, pela dificuldade de
formarem os tempos dos verbos, do que os dispensa a Geral, respondem por
esta se lhes pergunta por aquela” (Amazonas 1852:104).
Efetivamente, como corresponde à família Tupi, “os verbos da língua brasílica nunca
mudam de terminação” (Sympson 1877:39), ao contrário do sistema verbal português. No
entanto, a explicação referente à maior facilidade de conjugá-los em uma língua do que em
outra é improcedente. Se assim fosse, todos os nativos em língua portuguesa também
compartilhariam tal vantagem no uso da Língua Geral. Na verdade, trata-se de uma forma de
caracterizar a LGA como uma língua simplificada frente ao português.
Asituação comunicativa descrita por Lourenço Amazonas, bastante freqüente nas vilas
da região, tinha raízes mais profundas, relacionadas às formas desordenadas e não planejadas
de aquisição de segunda língua, responsáveis por aquilo que alguns autores, interessados em
etnografia da comunicação, denominaram de ‘semilinguismo’, caracterizado pelo uso precário
de, pelo menos, umas das duas línguas que estão em contato. Possivelmente, essa situação
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reproduzia o modelo colonial, em que esses ‘neofalantes’ não tinham acesso a um modelo da
língua portuguesa, em função do contato escasso e, em lugar dela, a solução é o recurso de
uma língua ‘intermédia’. A situação ideal seria o seu oposto, o bilingüismo equilibrado, que
ocorre quando os interlocutores usam as quatro destrezas lingüísticas básicas nas duas línguas,
com similar facilidade e eficácia.24
A rigor, essas destrezas, numa sociedade como a amazônica, com fortes marcas de
oralidade, se limitavam basicamente às duas primeiras – entender e falar – porque os altos
índices de analfabetismo indicam que as práticas de leitura e escrita não eram exercitadas
pelos falantes, índios ou brancos, sequer em suas próprias línguas maternas. Ficou bastante
conhecido o episódio da Câmara de Vila de Boim, no rio Tapajós, cujos vereadores, todos
eles iletrados, para tomarem conhecimento do conteúdo de um ofício enviado pelo
presidente da Província, em 1827, tiveram de esperar vários dias, até a chegada de um
negociante, vindo de Santarém, que numa sessão convocada especialmente para isso, leu o
ofício e foi obrigado a redigir a resposta. “O negociante para se ver livre deles, escreveu o
que lhe pareceu, e cada um dos vereadores se prestou prontamente com a sua cruz, sem
que soubesse o que continha a resposta” .25
No entanto, ao contrário do que se possa imaginar, o iletramento não era
necessariamente maior na população indígena do que na branca. Navegando no baixo
Amazonas em setembro de 1849, o naturalista inglês Henry Bates constatou esse fato, tendo
como amostragem a sua própria tripulação, formada por nove índios, um mestiço e dois
brancos, no total de doze pessoas:
“Uma delas era um rapaz português da Províincia de Trás-os-Montes, o qual
constituía um bom exemplo do tipo de imigrante que Portugal manda para o
24 As noções de acontecimento comunicativo, ato comunicativo, situação comunicativa, interação
comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental,
semilingüismo são usadas aqui no sentido proposto por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de
sociolingüística y sociología del lenguaje´ (Moreno 1998).
25 Os detalhes deste fato, narrado pelo comandante militar da Comarca, podem ser encontrados no códice 451,
da seção de manuscritos da Biblioteca e Arquivo Públicos do Pará, intitulado Informação sobre Santarém e
demais núcleos do Baixo Amazonas, apresentada ao Presidente da Província pelo Coronel João Roberto
Aires Carneiro, a oito de janeiro de 1828, transcrito por Reis (1979: 103-105)
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Brasil. Tinha pouco mais de vinte anos, e fazia dois anos que estava no país.
Vestia-se e vivia como os índios, aos quais evidentemente era inferior quanto
às suas maneiras. Não sabia ler nem escrever, ao passo que pelo menos um de
nossos tapuios sabia fazer as duas coisas” (Bates 1979: 94).
Bates não exagera quando considera esse exemplo representativo, pois outros
depoimentos demonstram que não era nada raro encontrar, no século XIX, na Amazônia,
imigrantes portugueses analfabetos. As referências ao iletramento dos imigrantes
portugueses, nesse período, são abundantes, e foram estudadas justamente por um deles:
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), que com dez anos de idade, deixou o seu
povoado natal, próximo a Póvoa de Varzim, no norte de Portugal, e viajou para o Pará,
onde viveu durante nove anos. Trabalhou, sobretudo na região do Baixo Amazonas,
coletando produtos da floresta ao lado dos tapuios, com quem aprendeu a falar a Língua
Geral. Ele conta que já era bilíngüe, quando encontrou, numa modesta casa de índios, em
Alenquer, uma mini-biblioteca, com vários livros velhos, conservados não numa estante,
mas dentro de um cesto forrado com folhas de bananeira brava: “Ao completar os meus
doze anos, envergonhei-me por não saber ler”. Foi tentando decifrar o conteúdo de um
deles - o poema Camões, de autoria de Almeida Garrett - que aprendeu, por conta própria, a
eliminar sua vergonha. Emocionado, escreveu, então, duas cartas ao escritor português,
cujos originais decidiu posteriormente conservar, por se tratarem de documentos de sua
“infância dramática”. As cartas, publicadas recentemente,26 foram “boçalmente escritas”,
nas palavras do seu próprio autor, apresentando muitas “faltas de gramática, pontuação
erradíssima, ortografia estapafúrdia, incongruências e erros palmares contra a história e
contra o senso comum”. Algumas vacilações visíveis na ortografia e na segmentação das
palavras são similares às encontradas nos textos, da mesma época, de autoria dos tapuios
cabanos, já mencionados aqui, no segundo capítulo.
Entre a população do Baixo Amazonas, nessa época, as raras pessoas capazes de ler
e escrever fluentemente transformavam a leitura num ato coletivo, compartilhando-a com
26 As duas cartas a Almeida Garrett, de janeiro e julho de 1845 respectivamente, foram reproduzidas na
biografia de Francisco Gomes de Amorim, de autoria de José Rodrigo Carneiro da Costa Carvalho, intitulada
“Aprendiz de Selvagem” (Carvalho 2000: 229-233). Sobre o processo de alfabetização e o encontro com a
obra de Garret, ver Amorim (1881, t.I: 2).
193
grupos iletrados. Sobre essa prática, Gomes de Amorim nos dá indicações, relatando que,
mesmo depois de mudar para Belém, onde trabalhou como caixeiro, continuava
organizando sessões de leitura, durante as quais lia em voz alta a História de Carlos Magno
para um auditório de “pretos, tapuios e mulatos”, e todos compreendiam tão bem o seu
conteúdo, que no relato da morte de Roldão, “desatavam num berreiro de choro”.
(Carvalho 2000: 75, 233). O português Amorim, bilíngüe (LP-LGA), que aprendeu a ler e
escrever em Alenquer, como um bom contador de histórias, tornou-se o primeiro escritor
português de verdadeira inspiração amazônica, precursor de Ferreira de Castro.27 A sua
obra, pouco conhecida no Brasil, está impregnada de elementos interculturais e bilíngües.
Por outro lado, o tapuio da tripulação de Bates que, ao contrário do imigrante
português, sabia ler e escrever, também não era um caso isolado. É possível encontrar
registros, embora raros e fragmentados, referentes a um certo exercício de leitura e de
escrita, em Língua Geral e em português, por parte de tapuios. Eles desenvolveram
sobretudo o gênero epistolar – bilhetes e cartas – que por não terem sido impressos,
acabaram se perdendo. Conservou-se, apenas, a literatura de caráter religioso, algumas
poesias, letras de canções anônimas e narrativas. Alguns desses manuscritos foram
recolhidos pelo cônego Francisco Bernardino de Souza, 28 em suas viagens pelo Pará e
Amazonas, entre outros, uma breve carta do tuxaua Vicente, dando os pêsames e tentando
consolar um amigo branco, cuja filha havia falecido. A transcrição de um trecho pode dar
uma idéia de como a Língua Geral chegou a desempenhar, embora precariamente, a função
de comunicação corrente, através da escrita. A tradução é de responsabilidade do cônego:
27 José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) nasceu em São Pedro de Osselas, no norte de Portugal. Da
mesma forma que Amorim, com dez anos de idade, orfão de pai, emigrou para Belém do Pará. Embarcou para
um seringal no rio Madeira, onde trabalhou durante alguns anos como seringueiro. De retorno a Belém, editou
um jornal intitulado ‘Portugal’, destinado à colônia lusa. Finalmente, voltou ao seu país natal e publicou o
romance ‘A Selva’, recriando a experiência que viveu no seringal. “Com ele, a literatura amazônica marcou
o seu primeiro encontro público com os leitores do mundo” (Souza 1978: 127). Escreveu ainda outros
romances , o último dos quais intitulado ‘Instinto Supremo’, onde relata a pacificação dos índios Parintintin.
28
Francisco Bernardino de Souza (1831- ?) nascido na ilha de Itaparica, na Bahia, foi ordenado padre em 1854,
transferindo-se seis anos depois para o Rio de Janeiro, onde exerceu as funções de professor do Colégio Pedro
II e do Seminário Episcopal São José. Viajou pela Amazônia, como responsável pelos trabalhos etnográficos
da Comissão do Madeira, Pará e Amazonas. Os resultados dessas viagens foram inúmeros artigos, publicados
em jornais, e dois livros (Souza: 1873 e Souza: 1874/1875). Neles, reproduziu, entre outros textos em Língua
Geral, a letra do hino da festa popular do Sahiré, de caráter religioso, canções de ninar e trechos do catecismo
inédito do padre Manoel Justiniano Seixas. Publicou, além disso, um léxico em língua Bonari e a íntegra do
discurso, em português, do líder cabano, Maparajuba Miguel Apolinário, comandante geral das forças do
Baixo e Alto Amazonas, datado de 23 de abril de 1836.
194
“Aiana re iassiú, cariuá, ne ra era umanú, iché chaquá, chasse ne peá, tenupã
moiramé. Tupana u´senú iné aé perê, ne raiera miri, ussuanti iné: aiana re
iãssiu!. A tradução é: Basta de chorar, branco; tua filha morreu; eu sei que
muito deve doer-te o coração. Deixa, porém, quando Deus chamar-te a si, tua
filhinha correrá a encontrar-se contigo. Basta de chorar” (Souza 1875, II: 93).
De qualquer forma, essa prática de leitura e escrita em Língua Geral, de reduzido
alcance, não foi suficiente para garantir sua sobrevivência, num contexto definido por
alguns sociolingüistas como sendo de ‘bilingüismo ambiental’, conseqüência do contato
entre duas línguas, “cuando una de ellas, generalmente la del Estado, tiene un carácter
expansivo por su mayor peso demográfico y cultural” (Moreno 1998: 346). No caso
específico das vilas e povoações do Baixo Amazonas, os falantes de português adquiriram
um maior peso demográfico, depois da abertura de várias linhas de navegação a vapor, que
facilitou a imigração. Com o rush da borracha, os nordestinos, perseguidos pelos rigores
das secas, começaram a chegar, transformando os núcleos urbanos em passagem
obrigatória para os seringais, que eram “centros demográficos em movimento e em
crescimento constante”. O Censo de 1872 indica que algumas vilas ultrapassaram o teto de
25.000 habitantes, como Santarém, Cametá, Breves e Vigia. Várias delas ascenderam à
condição político-administrativa de cidade, como ocorreu, desde meados do século, com
Santarém, cujo bairro tapuio começou a ser demolido em 1869, substituindo “as cabanas
de palhas dos velhos indígenas” por construções mais sólidas, e os moradores
“descendentes de índios” pelos novos imigrantes. Os tapuios, ano após ano, abandonavam
esses espaços urbanos, que se tornavam “civilizados demais” para eles. Os que teimaram
em ficar, acabaram sendo compulsoriamente recrutados como ‘voluntários’ para a Guerra
do Paraguai, para a qual “o Baixo Amazonas, com seus municípios, comparecera com 746
homens”, sendo a maioria deles falantes de Língua Geral (Reis 1979: 122, 144,155).
Ao crescente peso demográfico dos falantes de português, somou-se o peso cultural
e político de uma língua, falada em todo o território nacional, cujo uso era garantido pelo
sistema de educação escolar. No seu retorno para a Europa, depois de viver mais de dez
anos na Amazônia, Henry Bates observou que havia “uma escola primária para meninos
195
em cada cidadezinha, desde o Pará até às fronteiras do Império”, mantida totalmente pelo
governo. Os moradores “pareciam bastante conscientes das vantagens que a educação
proporcionava aos seus filhos”. Uma delas, era justamente o uso obrigatório da língua
portuguesa e a alfabetização nessa língua, cujos resultados surpreendiam os observadores,
que registraram “a rapidez com que os meninos, tanto brancos, quanto de cor, aprendem a
ler, escrever e contar”. O próprio Bates, depois de participar de uma banca examinadora
para a escola secundária, em Santarém, reconheceu que “os conhecimentos demonstrados
pelos jovens, a maioria dos quais não tinha completado 14 anos, eram apreciáveis,
principalmente em gramática, e a facilidade com que aprendiam as coisas teria enchido de
satisfação um mestre europeu (Bates 1979: 142-143, 312-314).
Fragilizada demograficamente, banida da escola e das cidades, a Língua Geral
agonizava também nas vilas e nas povoações do Baixo Amazonas. Quando Charles
Frederick Hartt, na década de 1870, coletou narrativas na região, provavelmente estava
ouvindo os derradeiros guardiões da tradição oral em Monte Alegre, Óbidos e Santarém.
“A língua geral ainda falada pela gente velha, vai pouco a pouco cedendo terreno à
portuguesa, e a próxima geração achá-la-á extinta entre eles” (Hartt 1885: 133). Foi o que
efetivamente ocorreu no final do século XIX, quando a Língua Geral ficou circunscrita à
região do Alto Amazonas.
4.5.2 - No Alto Amazonas: os ‘tapuios’
“O fato é que esses índios pertenciam a diversas tribos e não sabiam falar todos
a mesma língua. Assim, era virtualmente impossível fazê-los obedecer a um líder
e trabalhar eficientemente em conjunto. É a única explicação que me ocorre”.
Wallace (1979:219), tentando esclarecer o comportamento dos tripulantes
indígenas, na travessia de uma cachoeira no alto rio Uaupés, em março de 1851.
A Comarca do Alto Amazonas, criada em 1833, com sua sede em Manaus,
correspondia ao território da antiga Capitania de São José do Rio Negro, que depois, em
1850, se transformou em província, e hoje é, grosso modo, o atual estado do Amazonas,
com uma área superior a 1.500.000 km². Na época, esta Comarca foi subdividida em quatro
196
termos (ou municípios): Manaus, que incluía a zona da Guiana, a partir do rio Nhamundá;
Tefé, que cobria toda a área dos rios Solimões e Japurá; Luséa, abrangendo o rio Madeira e
a região conhecida como mundurucânia; e, finalmente, Mariuá, envolvendo parte do rio
Negro e seus afluentes. Esses territórios abrigavam 1 cidade, 3 vilas e 35 povoações,
organizadas em 18 freguesias, com uma população recenseada total de 40.584 habitantes,
segundo o censo de 1840, além de centenas de aldeias indígenas excluídas dos censos
(Amazonas 1852:30). A única cidade era Manaus, habitada por 9% da população, cuja
situação sociolingüística já foi anteriormente abordada. O interesse, agora, é sobre os 91%
dos habitantes, que viviam no interior e que falavam, majoritariamente a Língua Geral,
quase sempre como monolingües.
De acordo com o censo de 1814, mamelucos, mestiços e brancos – juntos -
representavam 18% dos moradores das vilas e povoações, os negros constituíam 4.0%,
enquanto os índios eram a indiscutível maioria: 78% (Spix & Martius 1981: 41). Retirados
de suas aldeias de origem e levados, compulsoriamente, para as povoações, os índios
passavam a residir com outros índios provenientes das mais variadas famílias lingüísticas.
Nessas condições, os casamentos interétnicos eram a regra geral. Destribalizados, sem
interlocutores em suas línguas maternas, ocorreu o que foi registrado, em 1820, pelos dois
naturalistas alemães:
“E essa mistura de gente, primitivamente moradora quase toda das margens do
Solimões, entre Coari, e o Jutaí, mas também do Japurá e rio Negro, se foi
fundindo numa população atualmente de língua e costumes uniformes” (Spix &
Martius 1981: 179)
A língua uniforme era a Geral, e os costumes eram os da sociedade ‘fusca’, que se
formava no Alto Amazonas, num processo iniciado no século XVII, com o sistema de
aldeamento jesuítico. No século XIX, embora o processo já estivesse consolidado,
continuava o fluxo ininterrupto de índios ‘selvagens’, de suas aldeias para as vilas e
povoações, que desta forma exerciam, com a LGA, função similar à que as cidades
desempenhavam em relação à língua portuguesa. Era lá, que os índios ‘selvagens’ ficavam
‘mansos’ e aprendiam a Língua Geral, tornando-se bilíngües (LV-LGA). Era lá que, em
197
uma ou duas gerações, se perdiam as línguas vernáculas e, desta forma, predominava o
monolinguismo (LGA), passando esses falantes à condição de ‘tapuios’. Esse processo foi
acompanhado por Spix & Martius, em cada vila e em cada povoação, como na freguesia de
Serpa, atual Itacoatiara, próximo à foz do rio Madeira, onde os moradores índios, que
“falavam a língua geral, tinham perdido todo o vestígio de suas diferentes origens”; em
Silves, no lago Saracá, “nenhum deles tinha distintivo nacional e não sabiam dizer de que
tribo descendiam”; em Fonte Boa, no alto Solimões, “só restam poucos vestígios” de sua
antiga filiação lingüística (Spix & Martius 1981: 127,130, 202).
A identificação da procedência lingüística dos moradores indígenas é importante,
porque pode fornecer pistas para explicar as variedades dialetais da Língua Geral. Embora
eles tivessem esquecido as línguas que falavam seus pais e avós, existem documentos que
registraram essas informações, alguns do século XVIII, 29 usados como fontes por Spix &
Martius, que além disso fizeram, em campo, um levantamento minucioso, indicando,
povoação por povoação, as línguas vernáculas que aí foram um dia faladas. Através dessa
documentação, ficamos sabendo que em cada localidade, os seus falantes eram originários
de uma grande diversidade de línguas, das mais distintas famílias: Tupi, Karib, Arawak,
Tukano, Pano, Katukina, Huitoto, Mura e de um sem-número de línguas não-classificadas.
No entanto, eles encontraram um “veículo para entendimento mútuo” - a Língua Geral - que
se viabilizou “por sua grande correspondência com os demais idiomas indianos na estrutura
das palavras, na sintaxe e em toda a espiritualidade prática” (Spix & Martius 1981: 44).
Na realidade, sabemos que a correspondência lexical e sintática da LGA ocorre apenas
com línguas do mesmo tronco – o tupi. Com línguas de outros troncos, isso não acontece,
como verificou um observador europeu, Henry Bates, que viveu mais de três anos na vila de
Ega (atual Tefé), no alto Solimões, para onde convergiam índios dos rios Japurá, Içá e
Solimões, falantes de múltiplas línguas e, até mesmo, negociantes ingleses e brasileiros do
Pará. Lá, ele encontrou, entre os empregados domésticos, “indivíduos de pelo menos dezesseis
29
Destacam-se três relatos do século XVIII: o Roteiro de Viagem da cidade do Pará até às últimas colônias dos
domínios português em os rios Amazonas e Negro, escrito em 1768, pelo cônego Monteiro de Noronha
(Noronha: 1997); o Diário de Viagem do ouvidor Sampaio, pelas povoações da Capitania do Rio Negro, em
1774-1775 (Sampaio: 1985) e as Memórias do bispo diocesano do Pará, D. Frei Caetano Brandão, contendo
as crônicas das visitas pastorais realizadas no período de 1783 a 1789, transcritas em dois tomos, por um autor
anônimo, sob o título Memórias para a História da Vida do Venerável Arcebispo de Braga, D. Frei Caetano
Brandão. Braga, Tip. Dos Órfãos, 1868.
198
tribos diferentes”, notando que “bandos de indígenas, pertencentes a uma mesma tribo e
vivendo à margem do mesmo braço de rio, costumam falar línguas mutuamente
incompreensíveis” , como era o caso dos Miranha, no Japurá, e dos Kulina, no Juruá. Para ele,
a vila de Ega, da mesma forma que outras do Alto Amazonas, era um centro onde aqueles
índios tipificados como ‘selvagens’ acabavam adquirindo a Língua Geral. Suas observações
foram, em grande medida, resultado de tentativas malogradas de interação com uma criança
doente, que ele acolheu, como hóspede, em sua casa. Era uma índia monolingüe, que falava
miranha, uma língua do tronco Huitoto, com quem não conseguiu comunicar-se, nem ele, nem
moradores índios bilíngües (LV-LGA), que falavam passé – língua do tronco Aruak, ou juma,
do tronco Karib, ou ainda coretu, do tronco Tukano. Uma velha índia, bilíngüe em língua
miranha e LGA, serviu, então, de tradutora, evidenciando que a força da Língua Geral residia
no fato de permitir comunicação permanente entre os índios, “de uma ponta à outra do grande
rio, numa extensão de 3.800 quilômetros”. (Bates 1979: 205-209). Quanto à sua
aprendizagem e viabilidade, ele esclareceu, de forma mais objetiva, aquilo que Spix & Martius
definiram como espiritualidade prática:
“É notável a facilidade com que indígenas de nações diversas, que têm sua
própria língua – ao que tudo indica muito distintas umas das outras – aprendem o
tupi quando chegam a Ega, onde é esse o idioma comum. Isso talvez possa ser
atribuído, em grande parte, ao fato de serem as mesmas as formas gramaticais de
todas as línguas indígenas, embora as palavras sejam diferentes. Além do mais,
todos os indígenas têm a mesma maneira de pensar, e os assuntos sobre os quais
falam são sempre os mesmos. Essas circunstâncias também contribuem para
tornar fácil o aprendizado das outras línguas” (Bates 1979: 209).
No censo de 1840, o número de índios moradores nas vilas e povoações caiu de
78% para 58%, com os brancos representando 9%, os mamelucos 26%, os mestiços 4% e
os negros 3%, mas todos eles continuavam falando a Língua Geral (Amazonas 1852:24).
As vilas permaneciam como núcleos, onde não apenas os índios, mas também os viajantes e
os residentes europeus se iniciavam nessa língua de expressão regional. O naturalista
inglês, Henry Bates, aprendeu noções básicas dela com um mestiço, tripulante do barco,
199
durante suas viagens pela Amazônia, o que lhe foi extremamente útil para coletar os dados
que necessitava para a descrição de duas festas religiosas, uma em Ega e outra em Vila
Nova, ambas com fortes marcas interculturais. Na primeira, “misturavam-se os rudes jogos
indígenas com as cerimônias introduzidas pelos portugueses”. Na segunda, em honra de
Nossa Senhora da Conceição, a bebida era “mandioca fermentada”; a dança, “uma
modalidade de lundu português”; o dono da casa “um tapuio civilizado”, isto é, bilíngüe
(LGA-LP), e entre todos os convidados, cerca de sessenta índios e mamelucos, “alguns deles
sabiam português, mas a língua tupi era a única que falavam entre si” (Bates 1979: 120,
210,195).
Nessa mesma época, o colega de Bates, Alfred Wallace, encontrou, no alto
Solimões, famílias européias que haviam optado pelo uso da Língua Geral no espaço
doméstico, entre elas a de um francês, residente há mais de vinte anos na região, que “criou
o hábito de conversar com a mulher e os filhos em língua geral, achando-o preferível ao
francês ou ao português”. Encontrou ainda diversos colonos portugueses, cujos filhos
eram monolíngües em Língua Geral. No alto rio Negro, na vila de Marabitanas, assistiu a
celebração de casamentos oficiada por frei José dos Santos Inocentes, seguida de um
sermão, que “teria sido extremamente útil para os noivos se eles tivessem compreendido.
Mas como o sacerdote falou em português, de nada adiantou” (Wallace: 1979:
146,147,293).
No entanto, essa situação começou a mudar, a partir da segunda metade do século
XIX, quando a navegação a vapor facilitou a entrada de imigrantes provenientes de outras
regiões do Brasil e de Portugal, trazendo com eles a língua portuguesa, que iniciou sua
subida pelo rio Amazonas e seus afluentes, instalando-se em suas vilas e povoados.
Notícias sobre o início dessa mudança foram dadas pelo capitão de artilharia Joaquim
Firmino Xavier, um paulista que comandou os fortes de Tabatinga, no alto Solimões, e o de
São José de Marabitanas, no Rio Negro. Em relatório de 1858, reproduzido por Avé-
Lallemant, o capitão Firmino atesta que a população ticuna do alto Solimões, que vivia em
Tefé, Amaturá e São Paulo de Olivença, já começava a falar “um péssimo português”. No
rio Negro, em cerca de vinte povoações e aldeias, nominalmente citadas, a língua portuguesa
era falada, “muito mal” pelos homens adultos, mas era desconhecida das mulheres - bilíngües
em LGA e língua vernácula - e das crianças, em geral monolíngües em baré, warekena,
200
baniwa, tukano, mutum e outras línguas. Numa povoação, São Felipe, ele observou um
caso singular de bilingüismo: “Os homens são quase todos mamelucos e falam bem o
Português; as mulheres, ao contrário, são bronzeadas e só falam a língua geral” (Avé-
Lallemant 1980: 124-137).
A situação de São Felipe e de outras povoações do rio Negro obrigava os homens a
usar o português apenas para alguns tipos de contatos externos e situações especiais,
destinando a Língua Geral para o uso doméstico, cotidiano. A reprodução das línguas se fazia
basicamente através do núcleo familiar, mas eram as mulheres que desempenhavam o papel
preponderante. Na medida em que elas não falavam o português, as crianças acabavam
reproduzindo a situação de suas mães, tornando-se ou bilíngües (LGA-LV) ou monolingües
(LGA). Um caso relatado por Wallace, ocorrido num vilarejo chamado Nossa Senhora da
Guia, próximo a São Gabriel, no rio Negro, habitado por índios baré, warekena e baniwa
ilustra o papel que a língua portuguesa estava desempenhando na nova ordem social. Lá,
ele ficou hospedado na casa de um português, pai de cinco filhas, que se separou da mulher,
porque ela “mostrou-se incapaz de educá-las adequadamente, visto que nem sequer sabia
falar o português. Sem hesitar, ele a pôs para fora de casa e arranjou outra mulher mais
jovem e educada”, justificando:
- Ela era índia e só sabia falar língua de índio. Enquanto minhas filhas
ficassem em sua companhia, nunca iriam aprender o português! (Wallace
1979: 136).
Este episódio evidencia não só a perda de funções da LGA, mas a importância e o
prestígio que, para as práticas sociais mais valorizadas, vai ganhando a língua portuguesa.
Neste sentido, o papel da escrita compõe esse quadro de referência. A quase totalidade da
população das vilas do rio Negro nunca havia visto um livro, como atesta o capitão Firmino:
“Em Marabitanas apenas dois habitantes sabiam ler e escrever, em Guia um, e nas outras
nenhum” (Avé-Lallemant 1980: 130). Essa situação podia ser generalizada para o Alto
Amazonas. De tradição basicamente oral, a Língua Geral se sustentava, num contexto em que
93% da população, em 1850, eram iletrados, 6,5% sabiam ler e escrever, e apenas 0,5% tinha
“mais instrução que a ordinária”. Segundo o comandante militar Lourenço Amazonas, nessa
201
época, “só existiam em toda a Comarca três cadeiras de primeiras letras” e assim mesmo,
muitas vezes ficavam sem professor, levando-o a concluir: “o desleixo pela instrução não
direi que admira, mas que espanta” (Amazonas 1852: 25). Depois que o Amazonas foi
elevado à categoria de província, em 1850, as vilas e muitas povoações ganharam uma escola,
cujo funcionamento foi avaliado, em 1861, pelo poeta Gonçalves Dias. Nomeado visitador das
escolas da província, ele constatou, como vimos no primeiro capítulo, que o sistema não
funcionava, porque na sala de aula era usado o português, quando a língua falada em casa, na
rua e em todos os lugares, era a Geral. O poeta recomendou, no entanto, a continuidade do uso
obrigatório do português, para habituar as pessoas a falá-lo, e ao mesmo tempo desabituá-las
com a LGA (Dias 1861:16), o que passou a ser feito, em escala cada vez maior. O número de
escolas públicas oficiais duplicou, em doze anos, subindo de 25, em 1864, para 49, em 1876, e
atingindo, dez anos depois, o total de 109 escolas primárias, em toda a província do Amazonas
(Bittencourt 1925: 281-287).
A escola, transformando índios tapuios em civilizados, em muito contribuiu para que
as vilas e povoações do Amazonas deixassem de ser monolingües em Língua Geral,
passando por uma fase de transição onde predominou o bilingüismo (LGA-LP). Mas foi,
sobretudo, o fluxo migratório contínuo de nordestinos, que provocou mudanças no quadro
sociolingüistico. O total da população de vilas e povoações, muitas das quais foram
convertidas em cidades, pulou de 53.012 habitantes, em 1872, para 147.915 indivíduos
em 1890, daí para 249.756, em 1900. Em 1920, o total da população dos 28 municípios
nos quais se dividia o estado do Amazonas já era de 361.166 (Bittencourt 1925: 151).
Aconteceu no Alto Amazonas, o que já havia sido observado no Pará: “Os costumes
mudaram rapidamente depois que os navios começaram a subir o Amazonas (1853),
trazendo uma infinidade de idéias e de modas novas” (Bates 1979: 141). Com elas vieram
também muitos produtos de consumo, transportados da Europa pelos navios que voltavam
carregados de borracha. O comércio cresceu, de 1850 a 1865, em mais de 300%, segundo
Tavares Bastos (1866: 209). Num castanhal perdido nas matas do rio Arapecú, afluente do
Trombetas, José Veríssimo viu, em 1877, dentro de uma cabana ou barraca, “uma
máquina de costura da fábrica Singer”. Não era um caso isolado. Ele mesmo comenta:
“Esse invento, por ventura o mais importante do século, tem entrado por toda a parte e
não é raro encontrá-lo em lugares tão inferiores como os castanhais” (Verissimo 1878:
202
51). Ali onde entravam os produtos europeus industrializados, operava-se uma ruptura na
rede tradicional de comércio - base de sustentação da Língua Geral - e eram criadas as
condições objetivas para a hegemonia da língua portuguesa. Foi o que aconteceu no rio
Solimões e nos principais afluentes do Amazonas onde predominou a exploração da
borracha, e onde, na virada do século, o português tornara-se hegemônico. A Língua
Geral permaneceu com certa força apenas nas povoações do rio Negro - onde coexistia
com outras línguas indígenas e com o próprio português - nas cabeceiras dos rios mais
afastados e nos sertões onde o navio a vapor não entrava. 30
4.6 - Nas aldeias, os ´índios mansos´
“Cada nação fala sua gíria, e he muito raro achar-se alguma que com outra
se assemelhe, (...) porém todas as nações que se relacionão com os
estabelecimentos christãos fallão a lingoa geral ou túpica” (Lourenço
Amazonas 1852: 90).
Com exceção de cidades, vilas e povoações, onde era possível, em 1820, encontrar
“gente de origem européia”, os demais aglomerados humanos existentes no espaço
amazônico eram ocupados apenas por povos originários da região. Segundo o testemunho
de viajantes, “todo o vasto território, até imensa distância, é exclusivamente habitado por
tribos de índios muito espaçadas, entre as quais nenhuma família européia tomou pé”
(Spix & Martius 1981: 97). Esses índios, monolingües (LV), eram designados como
‘selvagens’, ‘errantes’, ‘boçais’ ou ‘bravios’, quando viviam em aldeias autônomas,
afastadas de qualquer contato com a sociedade regional; e de ´índios mansos´, quando
abandonavam essas aldeias de origem para residir em aldeamentos dependentes da Igreja
30 Uma boa descrição do funcionamento da rede de comércio tradicional, baseada no regatão ou ‘ambulante’,
que circulava em pequenas embarcações movidas a remo, encontra-se no relatório do capitão Firmino sobre a
situação do Rio Negro, datado de 1858: “Um desses ambulantes adianta a um índio não civilizado 100, 200,
300 mil-réis de artigos que, pagos pelo seu valor real, mal perfaziam 10, 20 ou 30 mil-réis. E a fim de pagálos,
o índio tem de trabalhar anos inteiros, evitar a atenção das autoridades, deixar a aldeia e não empregarse
em serviço público. [...] Esses ambulantes são cancros, que infestam as margens do Rio Negro, e
causadores do atraso dos índios” (Avé-Lallemant 1980 : 131)
203
ou do Estado, onde se tornavam bilíngües (LV-LGA), em contatos esporádicos com a
sociedade regional envolvente.
No final da Cabanagem, em 1839, o presidente da província do Pará, Bernardo de
Souza Franco, embora reconhecendo a impossibilidade de determinar o número de índios
‘selvagens’, admitiu que eles podiam chegar até a 200.000 - uma população ligeiramente
superior ao total dos habitantes de cidades, vilas e povoações amazônicas da época. Essa
estimativa parece acanhada, se confrontada com o cálculo da população de alguns grupos
étnicos: os Mura, por exemplo, que haviam se expandido do rio Madeira para outras áreas
dos rios Negro, Amazonas e Solimões, tinham uma população considerada entre 30.000 a
40.000 indivíduos; os Munduruku do rio Tapajós foram avaliados entre, no mínimo, 18.000
e no máximo 40.000 pessoas; os Mawé, que viviam em centenas de malocas redondas entre
os rios Tapajós e Madeira, somavam, no mínimo, 16.000 índios (Spix & Martius 1981:
120,276,279). Esses eram, no século XIX, os três grupos demograficamente mais
importantes. No entanto, havia, em 1840, só no Alto Amazonas, outras 213 ‘nações
indígenas’, segundo Lourenço da Silva Amazonas, que apresentou uma longa lista, em
ordem alfabética, nomeando cada uma delas e indicando os rios, regiões, aldeias e lugares
onde se localizavam (Amazonas 1852: 93-99). Se considerarmos uma média de 1.500
índios por nação, o total se aproximaria bastante dos 350.000 índios ‘selvagens’, calculados
para toda a Amazônia, em 1876, pelo ex-presidente da província do Pará, o general Couto
de Magalhães, para quem os brasileiros “não tem idéias precisas das grandes extensões do
nosso país que são ainda dominadas pelos aborígines”. Depois de estudar a densidade
demográfica da região, ele atribuiu tal desinformação a uma generalização equivocada:
“como os índios desapareceram da costa, muitos os supõem quase extintos, julgando que a
área povoada pelo brasileiro cristão é a quase totalidade de nosso país. A verdade é
justamente o contrário, como ficou demonstrado” (Magalhães 1975: 30).
A quantidade incalculável de índios ‘selvagens’, falando mais de duzentas línguas
diferentes, constituía o reservatório de onde eram retirados os moradores dos aldeamentos,
organizados com a colaboração da Igreja, porém sob o controle do Estado. Durante a
primeira metade do século XIX, essas aldeias, relativamente esvaziadas, ficaram sob a
responsabilidade do Juiz de Órfãos e, depois, do Ouvidor da Comarca, com intervenção
esporádica de missionários. Mas em 1845, o Decreto Imperial nº 426 regulamentou, para
204
todo o Brasil, a catequese e civilização dos índios, determinando como deviam ser feitos o
recrutamento, a formação dos aldeamentos e o funcionamento das missões; cada província
contaria com um diretor geral de índios, nomeado pelo Imperador, e cada aldeia, com um
diretor parcial e um missionário, responsável, entre outras funções, pela escola de primeiras
letras, que devia “ensinar a ler, escrever e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que
sem violência se dispuserem a adquirir essa instrução” (Regulamento das Missões em
Beozzo 1983: 169-178).31
Depois de criada a província do Amazonas, em 1850, o governo desenvolveu uma
política de aldeamentos, caracterizando-os nitidamente como ‘depósitos’ ou ‘currais’ de
índios, que funcionavam como reserva de mão-de-obra, tanto para as obras públicas como
para o serviço de particulares. O sistema de trabalho, de acordo com o regulamento vigente,
era baseado no rodízio: o presidente da província requisitava dos diretores parciais de
aldeias o envio de um número determinado de índios, que eram, então, transportados para a
capital ou para as vilas e povoações, e lá permaneciam durante dois ou três meses, findos os
quais retornavam ao aldeamento, sendo substituídos por outro contingente. Eles eram
empregados em calçamento de ruas, praças, aterros, construção de igrejas, cadeias, quartéis,
mercados, edifícios públicos, tripulação de canoas das comitivas oficiais e do correio
oficial, ou na extração de produtos da floresta. Nas leis orçamentárias, ano após ano, são
abertas verbas do crédito governamental para a alimentação e o vestuário dos índios que
trabalhavam nas obras públicas.
No ano de 1853, por exemplo, os índios participaram, nesse sistema de rodízio,
trabalhando, em Manaus, na construção do quartel, na olaria provincial e na serraria,
merecendo os elogios do presidente da província, Ferreira Pena:
“Quase todos os trabalhadores são índios do alto Rio Negro, que recebendo
pontualmente os seus jornais no fim de cada semana (...) tem-se prestado ao
serviço de melhor vontade que dantes” (RP – Pena 1854: 14).
31 O Regulamento das Missões, promulgado em 1845, “é o único documento indigenista geral do Império.
Detalhado ao extremo, é mais um documento administrativo do que um plano político. Prolonga o sistema de
aldeamentos e explicitamente o entende como uma transição para a assimilação completa dos índios. Depois
dele, a única inovação perceptível é, nos anos 70, a experiência de Couto de Magalhães no vale do rio
Araguaia, que o governo pretendeu estender ao Amazonas e ao Mucuri ou ao rio Doce”... (Cunha 1992:141).
205
O pagamento dos jornais, na realidade, era um prato diário de comida e poucos
metros de pano de algodão no final da empreitada. Contrariando a imagem de ´indolente’
difundida na região, o presidente da Província elogiou a “conduta pacífica e laboriosa”
dos índios das aldeias do rio Negro, diferente dos mura, considerados como ‘rixosos’,
porque resistiam ao trabalho compulsório. No entanto, ele lamenta que nenhum índio queria
fixar-se na capital, preferindo voltar ao local de origem, logo no final do prazo do rodízio, o
que dificultava a capacitação nos ofícios mecânicos, porque quando começavam a adaptarse
ao trabalho, já era o momento de retornar: “Nem me parece conveniente obrigá-los a
ficar, para que não se desgostem” ( RP – Pena: 1854: 15).
A política de aldeamentos ou de formação de ‘currais de índios’ teve um notável
êxito do ponto de vista quantitativo. Ela foi precedida de várias viagens exploratórias, 32
organizadas pelo governo, com o objetivo de “entender-se com as tribos indígenas para se
informar das suas inclinações e disposições para a vida civilizada” (RP - Cunha 1862: 5).
A idéia, também, era avaliar o potencial de mão-de-obra e escolher os lugares considerados
mais propícios para os novos aldeamentos, o que foi feito. Milhares de índios abandonaram
compulsoriamente suas aldeias de origem, ano após ano, num processo relativamente bem
documentado para a Província do Amazonas, durante pelo menos uma década, na qual os
diretores obedeceram a legislação, confeccionando mapas estatísticos de cada aldeamento.
Esses mapas, publicados como anexos nas falas dos presidentes de província e nos
relatórios da Diretoria Geral de Índios, discriminam - aldeia por aldeia - o número de casas,
fogos ou malocas, o número de igrejas, o total de homens e mulheres, de adultos e de
menores, bem como a origem tribal de seus habitantes e o nome do diretor da aldeia; há
ainda um campo para observações, que era ocupado quase sempre com dados sobre as
atividades econômicas ali realizadas. Vale a pena reproduzir aqui pelo menos um quadro
resumido de seu conteúdo, apresentando os totais gerais:
32 Os relatos dessas expedições constituem fontes indispensáveis para tratar da situação dos índios aldeados,
classificados como ‘mansos’. Duas expedições foram feitas no Solimões, saindo de Manaus até o Peru: a
primeira, sob a responsabilidade do engenheiro militar Conde Rozwadowski(1854) e a segunda, por Wilkens
de Mattos (1854). No rio Negro, igualmente duas viagens exploratórias: Hilário de Gurjão (1854) e
Leovigildo Coelho (1861); o rio Madeira foi explorado por Silva Coutinho (1861), e, o rio Purus por Manuel
Urbano da Encarnação (1861).
206
ÍNDIOS ALDEADOS NA PROVÍNCIA DO AMAZONAS
1856 1857 1858 1860 1862 1866
Habitantes 6.748 10.260 8.878 15.832 13.676 17.385
Aldeamentos 104 139 - - 160 196
Casas, fogos ou malocas 510 671 686 1.013 - 757
Igrejas 13 16 9 - - 21
Sedes de Diretorias 24 24 27 49 40 38
Fontes: Relatórios da Diretoria Geral dos Índios no Amazonas: Wilkens de Mattos (1856); Wilkens de
Mattos (1858);Guimarães (1866); Livro 1856-1857 de Ofícios da Diretoria de Índios. Relatórios dos
Presidentes da Província do Amazonas: Vieira (1856); Amaral (1857); Furtado (1858); Cunha (1861);
Cunha (1863) e Mello (1866).
A diminuição, em 1858, dos índios aldeados, ocorreu porque, no rio Negro, mais de
3.000 índios abandonaram suas aldeias e fugiram para a Venezuela, em decorrência da
violenta repressão que sobre eles se abateu, quando da tentativa de aniquilamento do
movimento messiânico do ´falso Christo´.33 Já a redução, em 1862, reflete o fato de que os
mapas estatísticos estavam incompletos, deixando de fora muitos aldeamentos. De qualquer
forma, em apenas dez anos – de 1856 a 1866 – o número de aldeias quase duplicou,
aumentando de 104 para 196, e o número de índios aldeados quase triplicou, subindo de
6.748 para 17.385, disponibilizando uma considerável reserva de mão-de-obra indígena.
Do ponto de vista sociolingüístico, o sistema de rodízio permitia que esses índios
aprendessem a interagir, embora de forma elementar, em Língua Geral, ao obrigá-los a se
deslocar durante um período do ano para as cidades, vilas e povoações, contribuindo, em
grande medida, para torná-los bilíngües (LV e LGA). O que predominou foi essa
aprendizagem, por imersão, já que as escolas, previstas em lei, não chegaram a ser criadas
nos aldeamentos, mesmo porque, durante o resto do ano, seus moradores se dedicavam ao
extrativismo, cujos produtos eram trocados com comerciantes, para o qual também era
33
Na região do rio Negro, a partir da década de 1850, eclodiram vários movimentos messiânicos e milenaristas,
começando com Venâncio Kamiko, conhecido como ‘Cristo do Içana’, em 1857, seguido por Basílio
Melgueiro, que se dizia um novo Cristo, até os últimos messias no começo do século XX. Esses movimentos
estão bem documentados na revista do Arquivo Público do Amazonas (APA), no registro de viajantes como
Avé-Lallemant, na tradição oral dos índios e no trabalho de Wright (1981).
207
indispensável o uso desta segunda língua. Mas nem todos os índios aldeados eram
bilíngües, e nem todos os bilíngües usavam a LGA com igual fluência, como notou Bates,
numa excursão aos arredores de Ega, no rio Catuá. Lá, numa ilha do mesmo nome, ele
encontrou uma população, da qual fazia parte uma família de índios Xumana, que “tinha
sido vergonhosamente lograda por um mercador velhaco, numa outra praia, e quando nós
chegamos, veio apresentar queixa ao sr. Cardoso, que era o delegado de polícia do
distrito. A maneira branda como o velho chefe da família expôs o seu caso, num tupi
estropiado, sem o mais leve traço de raiva na voz, conquistou nossas simpatias para a sua
causa” (Bates 1979: 244).
A Língua Geral era, assim, um instrumento indispensável para as relações
comerciais e políticas dos índios e até para funções administrativas, permitindo registrar
queixas, fazer requerimentos, trocar seus produtos e comunicar-se com as autoridades
locais, ainda que apenas através do registro oral. De qualquer forma, nesse contexto,
aparecia como ‘língua de civilização’, porque servia de contato com a administração local,
mas também de elo com os visitantes forasteiros, o que foi percebido por vários viajantes,
que manifestavam seu desconforto diante das línguas vernáculas, e seu alívio, quando
encontravam nas aldeias algum falante de LGA, com quem podiam interagir. Nesse caso,
isso significava que era dispensável o conhecimento de todas as línguas de uma região,
indicando que ali onde havia chegado a Língua Geral, havia chegado a ‘civilização’.
Martius, ao subir o rio Japurá, visitou aldeias miranha, cujos habitantes eram monolingües
(LV), e, por isso, foram considerados ‘rudes’ e ‘selvagens’. Já os moradores de outra aldeia,
dos juri, foram reputados como “um povinho civilizado”, porque a maioria falava a Língua
Geral, o que permitiu inclusive solucionar problemas de saúde de alguns membros da comitiva
(Spix & Martius 1981:248). Similar atitude teve Avé-Lallemant, para quem as “gírias e
jargões” dos índios ‘selvagens’, não constituíam línguas “perfeitamente articuladas”, o que
representava “grande obstáculo para a civilização” (Avé-Lallemant 1980: 142). Reeditando
antigos discursos coloniais, o príncipe Adalberto, da Prússia, registrou os mesmos
comentários, quando viajando pelo rio Xingu, em 1842, conseguiu estabelecer
comunicação com os Juruna, através da Língua Geral (Adalberto 1977: 170).
208
A situação sociolingüística dos índios ‘mansos’ dos aldeamentos talvez possa ser
generalizada, a partir das observações feitas por Wallace sobre os Mura, cuja língua está
absolutamente distanciada do tronco tupi:
“Os muras (...) utilizam-se ainda de sua linguagem particular quando conversam
entre si, mas já compreendem e dominam suficientemente a língua geral,
empregando-a em seus contatos com os comerciantes, aos quais fornecem
salsaparrilha, óleo extraído dos ovos de tartaruga, azeite de peixe-boi, castanhasdo-
pará e estopa, que é o córtice das castanheiras jovens, sendo utilizada em
ampla escala na região para a calafetagem de canoas. Em troca, recebem tecidos
de algodão, arpões, pontas de flechas, anzóis, contas, facas, machadinhas, etc”.
(Wallace 1979: 313).
A política em relação aos índios ditos ‘selvagens’ sofreu mudanças radicais, a partir
da década de 1870, quando os novos índios contatados passaram a ser canalizados, já não
mais para os aldeamentos, mas diretamente para os seringais, destinados ao trabalho de
extração da borracha, como ocorreu com os que habitavam os rios Purús e Juruá, em seus
cursos médio e alto. Com o esvaziamento dos aldeamentos, e a conseqüente extinção do
sistema de rodízio em obras públicas, coube aos seringais o papel de converter os índios
denominados de ´selvagens´ em índios ´mansos´. No entanto, a Língua Geral ficou de fora
desse processo. Uma vez que o português, falado por milhares de nordestinos, predominava
nos seringais, os índios passaram a usá-lo como segunda língua, tornando-se bilingües (LVLP),
sem nunca haverem sido usuários da Língua Geral. Essa última cedia ao português a
função de língua de comunicação regional.
209
4.7 - O declínio da LGA
“Na hora em que escrevo isto, tenho como auxiliar do trabalho das lendas, que vai
adiante, um soldado do 2º Regimento de Artilharia, que quase não fala o português, e me
diz que desde seus bisavós a sua família é cristã. Asseverou-me um médico do exército
que, aqui na Côrte, morreu este ano de nostalgia um soldado que não falava o português
e chamava-se Patrocínio, do 2º Regimento de Artilharia. Em Mato-Grosso, Goiás, Pará e
Amazonas estes exemplos são numerosos. (Couto de Magalhães 1876: 138)
Procuramos demonstrar aqui, com a ajuda da documentação histórica, que a
população da Amazônia entrou no século XIX falando, majoritariamente, a Língua Geral,
de forma diferenciada nas cidades, nas vilas e povoações, e nos próprios aldeamentos
indígenas. No Baixo Amazonas, o uso da LGA era alternado com o português, e, no Alto
Amazonas, com línguas vernáculas, numa situação de bilingüísmo, que variava em função
da localização geográfica e da dimensão histórica e demográfica dos núcleos onde essas
línguas eram faladas. No entanto, na passagem para o século XX, a língua portuguesa já
era hegemônica, ficando a LGA confinada à região do rio Negro. É que, em 1823, depois
da adesão do Pará ao Brasil, já independente, iniciou-se um processo que, por um lado,
diminuiu o número de falantes da LGA - seja na categoria de monolingües, seja na de
bilingües – e, por outro, aumentou o número de falantes monolingües de português. Esse
processo, que ocorreu ao longo do século XIX, obedeceu a um ritmo e a uma cronologia,
que não foram os mesmos para todo o território. Ele foi, inicialmente, lento e gradual,
acelerando-se posteriormente em decorrência de vários fatores, que foram aqui assinalados:
a Cabanagem, a Guerra do Paraguai, a escolarização, a mudança do sistema de transporte e
comércio, a inserção da Amazônia na divisão internacional do trabalho como produtora de
borracha, o que provocou a entrada de grandes contingentes de nordestinos.
O número de falantes de Língua Geral diminuiu consideravelmente, em decorrência
de dois conflitos bélicos, cujas conseqüências demográficas para a região foram
catástroficas: a revolta popular da Cabanagem (1835-1840), e a Guerra do Paraguai (1864-
1870).
Na Cabanagem, morreram 40.000 pessoas, ou seja, um quarto de toda a população
recenseada do Grão-Pará, que compreendia a área dos atuais estados do Amazonas e Pará.
210
O número de mortos - quase todos falantes de LGA - equivalia, na época, a toda população
da Comarca do Alto Amazonas. Os cabanos eram, em sua maioria, tapuios e, portanto,
falantes de Língua Geral, geralmente na condição de monolíngües. A participação deles no
movimento foi tão maciça, que “tornou o nome ´tapuio´ um sinônimo freqüente para
cabano”, usado até mesmo na documentação oficial – inquéritos, atas e relatórios. Um
desses documentos, estudado por Moreira Neto - uma relação cuidadosa de presos na
corveta Defensora - identifica a procedência étnica dos mortos no período de agosto de
1837 a dezembro de 1838, 34 tornando-se uma amostragem bastante representativa. Do total
de 229 cabanos, apenas 6,9% foram identificados como brancos, 39.7% como tapuios, e os
demais foram enquadrados no item ´populações de cor´: índios (5.6%), mamelucos (9.1%),
mestiços (6.1%), mulatos (15.7%), cafusos (7.8%), pretos (4.3%) e pardos (3.9%). “Os
tapuios representam, como seria de esperar, a categoria mais numerosa” (Moreira 1988:
66-67).
A Cabanagem, talvez, tenha sido a última oportunidade histórica de sobrevivência
de uma sociedade tapuia, falante de LGA. A derrota dos cabanos marca o início do
processo de declínio de uma língua, que durante dois séculos e meio se expandiu por todo o
vale amazônico e que, a partir de então, começou a perder falantes e funções.
O outro acontecimento, várias vezes mencionado nesse capítulo, foi a Guerra do
Paraguai, que deixou a floresta “mergulhada em profunda tristeza”, e golpeou mortalmente
a economia regional, retirando dela grande número de homens, tanto os que foram
recrutados, como os que fugiram do recrutamento. Durante cinco anos, tropas do governo
vasculharam a região, agarrando índios ‘mansos’ e ‘tapuios’, “em qualquer lugar em que
fossem encontrados, sem considerações de idade ou circunstâncias”, e no caso de
resistência, “levavam-nos à força, muitas vezes com algemas e pesados ferros nos pés”. A
Província do Amazonas, a mais despovoada do Império, forneceu, proporcionalmente,
mais ‘voluntários’ do que qualquer outra província, suportando “parte maior do que a que
lhe devia caber no pesado encargo da guerra”. Segundo o casal Agassiz, que testemunhou
vários recrutamentos violentos, “os índios sem defesa, espalhados pelos seus aldeamentos
34 Trata-se de um manuscrito, assinado em 1º de Janeiro de 1839, pelo brigadeiro português Soares d´Andréa,
responsável pela repressão à Cabanagem, intitulado ´Rellação dos Prezos Rebeldes, fallecidos a bordo da
Corveta Defençora desde 4 d´Agosto do 1837, the 31 de Dezembro de 1838”. O original, pertencente ao
acervo do Arquivo Nacional – Rio de Janeiro, foi transcrito e publicado por Moreira Neto (1988:281-314).


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