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DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
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Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
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SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
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“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
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3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
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RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
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RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
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ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
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1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
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1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
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potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
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No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
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das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
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a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
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como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
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1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
22
em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
28
catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
36
O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.3
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4
INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
5
Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
7
SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
8
“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
10
3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
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RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
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RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
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ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
14
1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
15
1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
16
potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
17
No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
18
das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
19
a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
20
como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
21
1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
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em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
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catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
36
O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.3
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4
INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
5
Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
7
SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
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“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
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3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
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RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
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RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
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ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
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1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
15
1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
16
potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
17
No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
18
das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
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a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
20
como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
21
1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
22
em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
28
catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
36
O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.3
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4
INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
5
Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
7
SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
8
“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
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3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
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RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
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RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
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ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
14
1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
15
1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
16
potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
17
No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
18
das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
19
a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
20
como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
21
1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
22
em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
28
catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
36
O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.3
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4
INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
5
Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
7
SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
8
“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
10
3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
11
RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
12
RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
13
ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
14
1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
15
1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
16
potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
17
No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
18
das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
19
a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
20
como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
21
1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
22
em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
28
catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
36
O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.3
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS
LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
INSTITUTO DE LETRAS
UERJ
2003
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4
INSTITUTO DE LETRAS
DA LÍNGUA GERAL AO PORTUGUÊS:
PARA UMA HISTÓRIA DOS USOS SOCIAIS DAS LÍNGUAS NA AMAZÔNIA
por
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Orientador
Professor Ivo Biasio Barbieri
UERJ
1o Semestre de 2003
5
Para Elisa, que foi embora, sem conhecer essa história,
que era sua.
Para Maria José, que para torná-la sua, precisava
conhecê-la.
Para Consuelo, que vindo de outra história,
ajudou a construir essa.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Ivo Barbieri, que a partir da leitura de um artigo de minha autoria,
publicado na França, em 1983, sugeriu, incentivou e acompanhou a produção dessa tese.
A Aryon Rodrigues, pela leitura crítica e generosa de alguns textos por mim produzidos relacionados
ao tema, e pelos comentários valiosos, muitos dos quais foram aqui incorporados.
A Jurgen Heye (UFRJ), em cujo seminário de Sociolingüistica foi possível discutir alguns princípios
que norteiam esse trabalho, e a José Luís Jobim, cuja disciplina motivou a reflexão sobre literatura e
identidade.
Aos colegas do GT Historiografia da Lingüistica Brasileira da ANPOLL, pelo espaço criado para o
debate sobre Língua Geral, onde alguns tópicos desse trabalho foram apresentados e discutidos.
Ao historiador Ruggiero Romano, em cujo seminário na École Des Hautes Études en Sciences
Sociales tive a oportunidade de discutir a relação entre as políticas de línguas e de mão-de-obra.
A CAPES, que me permitiu participar das disciplinas ministradas por Maurice Godelier, Pierre
Villar e M. Leenhardt., na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e desenvolver pesquisas
em arquivos franceses, portugueses e espanhóis.
A Maria Yedda Linhares, que como professora me despertou o gosto pela história, e como
pesquisadora, me permitiu descobrir os índios nos arquivos regionais.
Ao historiador Marcelo Abreu, pela leitura atenta desta tese e pelas valiosas sugestões oferecidas.
Aos meus ex-alunos do Curso de História da Universidade do Amazonas, simbolizados na pessoa
de Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, agradeço a amizade, os sonhos compartilhados e a interlocução
inteligente durante o tempo de convivência acadêmica.
Às bibliotecárias do Museu do Indio: Maria da Penha Ferreira, Maria Inês Fraga e Lídia de
Oliveira; ao Sr. Eliseu, do Arquivo Nacional; ao Pedro, da biblioteca do IHGB; ao Luís, da
biblioteca da ABL e aos funcionários do Gabinete Português de Leitura, que me facilitaram o
acesso à documentação.
A Helena Cardoso, Valéria Luz da Silva e Blanca Dian, cujo trabalho no Programa de Estudos dos
Povos Indígenas, deu condições para a finalização dessa tese.
A Marlene da Silva Mattos, pelo trabalho temperado de dedicação, que me liberou para a pesquisa.
Um agradecimento todo especial a Therezinha Valadares, pela confiança depositada, que lhe deu o
direito de cobrar implacavelmente os resultados.
Aos falantes de Nheengatu, na pessoa de José Parel, índio saterê-mawé, perdido na periferia de
Manaus, com quem convivi na minha infância, e de quem ouvi as primeiras palavras nessa língua.
7
SINOPSE
Análise da trajetória das línguas na Amazônia brasileira e da situação de
contato entre elas, com uma proposta de periodização das diferentes políticas de
línguas, destacando a expansão da LGA – Língua Geral Amazônica no período
colonial, e seu declínio no século XIX, em detrimento da língua portuguesa, que se
torna, então, hegemônica.
8
“Y entonces, coléricos,
nos desposeyeron,
nos arrebataron lo que habíamos atesorado:
la palabra, que es el arco de la memoria” .
(Autor anônimo de Tlatelolco – México)
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1 - O tema e o problema
1.2 - Os objetivos e o campo de estudo
1.3 - Revisão das fontes
1.4 - O estado da questão
1.5 - A estrutura do trabalho
2. AS LÍNGUAS NA AMAZÕNIA E SUA HISTÓRIA SOCIAL
2.1 - A história do uso da língua
2.2 - O quadro de línguas na Amazônia
2.2.1 - As línguas indígenas: o rio Babel
2.2.2 - A introdução da língua portuguesa
2.2.3 - A formação da Língua Geral
2.3 - Línguas em contato: as mudanças
2.3.1 - A LGA: uma língua supraétnica
2.3.2 - As línguas locais ou vernáculas
2.3.3 - O português regional: a ‘meia-língua’
2.4 - Línguas em expansão e ‘línguas anêmicas’
3. A POLITICA E O REORDENAMENTO DE LÍNGUAS
3.1 - O campo da política de línguas
3.2 - A extensão da Língua Geral Amazônica
3.2.1 - A visão dos viajantes
3.2.2 – A representação dos tupinólogos
3.2.3 – O debate lingüístico
3.3 - A trajetória histórica: proposta de periodização
3.3.1 - Os intérpretes e as ‘línguas travadas’
3.3.2 - Tupinambá: o latim da terra
3.3.3 - A Língua Geral: língua da catequese
10
3.3.4 - As tentativas de portugalização
3.3.5 - A hegemonia do português e a escola
3.4 - As línguas e o Estado
3.5 - As línguas e suas funções
4. A LGA NO SÉCULO XIX: A HEGEMONIA PERDIDA
4.1 - De volta à aldeia
4.2 - A questão demográfica
4.3 - O mapa da LGA
4.4 - No meio urbano, o bilingüismo
4.4.1 - Belém, uma cidade cabocla
4.4.2 - Manaus, uma cidade tapuia
4.4.3 - Os usos e os espaços
4.5 - A LGA nas vilas e povoações
4.5.1 - No Baixo Amazonas, os ‘civilizados’
4.5.2 - No Alto Amazonas, os ‘tapuios’
4.6 – Nas aldeias: os ‘índios mansos’
4.7 – O declínio da LGA
5. CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
11
RESUMO
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tese aborda a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira, com uma
avaliação do contato entre elas, discutindo as tensões entre as línguas indígenas, a Língua
Geral Amazônica (LGA) e a língua portuguesa. Busca desenhar o mapa do deslocamento
lingüístico ocorrido com a população regional ao longo do período colonial, quando a LGA
desempenhava funções de comunicação interétnica e se encontrava em pleno processo de
expansão. Utiliza dados de demografia histórica para demonstrar como o declínio da LGA
ocorre somente no século XIX, perdendo então a sua hegemonia para a língua portuguesa.
Para dar inteligibilidade a esse processo, o trabalho identifica as linhas gerais das
diversas políticas de línguas, analisando como as diferentes instâncias de poder interferiram
nos destinos delas. Esta identificação serviu para estabelecer uma proposta de periodização,
acompanhando o processo de reordenamento lingüístico da Amazônia, no qual a LGA
desempenha um papel fundamental por estar presente em todas as fases do processo.
A abordagem se situa no campo da história social da linguagem, uma área
transdiciplinar, que trabalha as fontes históricas, usando conceitos formulados pela
sociolingüística.. Seu foco central incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de
suas funções, buscando identificar as razões do processo de expansão de umas, em detrimento
da extinção de outras.
12
RESUMEN
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de
Doutorado em Literatura Comparada.
Esta tesis aborda la trayectoria histórica de las lenguas en la Amazonía brasileña, con
una evaluación del contacto entre ellas, discutiendo las tensiones entre las lenguas indígenas,
la Língua Geral Amazônica (LGA) y la lengua portuguesa. Se propone esbozar el mapa del
desplazamiento lingüístico ocurrido en la población regional a lo largo del período colonial,
cuando la LGA desempeñaba funciones de comunicación interétnica y se encontraba en pleno
proceso de expansión. Utiliza datos de demografía histórica para demostrar como el declive de
la LGA ocurre solamente en el siglo XIX, al perder entonces su hegemonía para la lengua
portuguesa.
Para dar inteligibilidad a ese proceso, el trabajo identifica las líneas generales de las
diversas políticas de lenguas, analizando como las diferentes instancias de poder interfirieron
en sus destinos. Esta identificación sirvió para establecer una propuesta de distintos períodos,
observando el proceso de reordenamiento lingüístico de la Amazonía, en el que la LGA
desempeña un papel fundamental por estar presente en todas las fases del proceso.
El enfoque se ubica en el campo de la historia social del lenguaje, un área
transdiciplinar, que trabaja las fuentes históricas, usando conceptos formulados por la
sociolingüística. Su foco central incide sobre la historia externa de las lenguas, de sus usos y
de sus funciones, buscando identificar las razones del proceso de expansión de unas, en
detrimento de la extinción de otras.
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ABSTRACT
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos sociais das
línguas na Amazônia. Rio de Janeiro, UERJ – Instituto de Letras, 2003. Tese de Doutorado em Literatura
Comparada.
This dissertation deals with the historical trajectory of the languages in the Brazilian Amazon region. It
analyzes the contact processes among them, focusing on the tensions involving indigenous languages, the
Amazon General Language - Língua Geral Amâzonica (LGA)-, and the Portuguese language. It aims at
drawing a map of the linguitic movement made by natives during the Brazilian colonial period, when the
LGA functioned as a means to achieve interethnic communication at the same time it was rapidly spreading.
The research makes use of historical demography data to show that the fall of the LGA started taking place
only in the 19th century, when it lost its hegemony to the Portuguese
Language.
In order to provide inteligibility to this process, the research tries to identify the guidelines of the
several language policies, analyzing the ways the different power levels influenced the destiny of these
languages. This identification process helped in determining a suggestion of periods, which is based upon the
linguistic rearrangement in the Amazon, considering that the LGA played a decisive role throughout the entire
process.
The approach developed here may be located within the field of the social history of the language, a
transdisciplinary area, which deals with historical sources through the concepts of sociolinguistics. Its main
focus is on the external history of the languages, their uses and functions, trying to identify why some of these
languages spread out while some die out.
14
1. INTRODUÇÃO
“Soberbo Tejo, nem padrão ao menos
ficará de tua glória? Nem herdeiro
De teu renome? – Sim, recebe-o, guarda-o,
Generoso Amazonas, o legado
De honra, de fama e brio: não se acabe
A língua, o nome português na terra”.
Almeida Garrett, 1825 (‘Camões’, X, 21)
15
1.1 – O tema e o problema
Uma herança européia - a língua portuguesa - foi legada ao Amazonas, através de um
testamento feito em 1580, num cenário imaginário, onde o poeta Luiz Vaz de Camões
agonizava em seu leito de morte. A ‘abertura do testamento’ só ocorreu em 1825, quando o
‘inventariante’, João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), o primeiro
representante do Romantismo em Portugal, fez a leitura pública do seu poema intitulado
Camões. Nele, constam as disposições testamentárias, estabelecendo os direitos e os deveres
do herdeiro, que devia guardar, conservar e usar o bem que lhe era transmitido, para impedir
que fosse varrido da face da terra.
No momento em que Camões morria, no século XVI, não havia um único falante de
português na Amazônia, mas em seu território eram faladas cerca de 700 línguas indígenas,
todas elas ágrafas, depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas
etnociências, da técnica e das manifestações artísticas, que eram transmitidos através da
tradição oral e de diversos tipos de narrativas. Isso demonstra que o herdeiro instituído havia
vivido, até então, sem necessidade do bem europeu que lhe era legado, já que possuía
patrimônio eqüivalente a ele, capaz de cumprir as funções básicas de qualquer língua. O
testamento era, por enquanto, uma decisão unilateral do autor da sucessão.
Trinta e seis anos após a morte de Camões, já no século XVII, a língua portuguesa
entrou no Grão-Pará, levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento lingüístico em toda a Amazônia. Desde então, os falantes de português na região
se tornaram bilingües, desenvolvendo contatos permanentes com várias línguas indígenas, o
que deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Durante todo o período
colonial, no entanto, a língua portuguesa, cujas categorias não davam inteligibilidade à
realidade cultural e ecológica da região, permaneceu minoritária, como língua exclusiva da
administração, mas não da população. Esta situação só mudou a partir da segunda metade do
século XIX, quando passou a predominar o monolingüismo na língua européia. Nesse
processo, cada novo falante indígena do português implicava vários falantes a menos em
língua vernácula, que era abandonada, em uma ou duas gerações, pelos seus usuários
16
potenciais. Então, centenas de línguas se acabaram na terra, para que o português pudesse
emergir.
Hoje, no início do século XXI, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda
convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos
usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas,
mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilingües, com diferentes níveis de
competência na língua portuguesa, e outros continuam monolingües em língua indígena.
Uma dessas línguas, denominada Língua Geral ou Nheengatu, teve papel histórico
marcante, como meio de comunicação interétnica, porque foi ela, e não o português, a
principal língua da Amazônia, presente nas aldeias, povoações, vilas e cidades de toda a
região. Durante dois séculos e meio, índios, mestiços, negros e portugueses trocaram
experiências e bens, e desenvolveram a maioria das suas práticas sociais, trabalhando,
narrando, cantando, rezando, amando, sonhando, sofrendo, reclamando, rindo e se divertindo
nessa língua indígena, que se firmou como língua supraétnica, difundida amplamente pelos
missionários, através da catequese. Contou para isso, inicialmente, com o apoio do próprio
Estado monárquico, que depois, em meados do século XVIII, modificando sua política,
proibiu a Língua Geral e tornou obrigatório o uso da língua portuguesa.
No entanto, apesar da decisão política, a Língua Geral continuou crescendo, e entrou
no século XIX como língua majoritária da população regional. Com a adesão do Grão-Pará à
Independência do Brasil, cessou sua expansão, e ela começou a se retrair progressivamente,
abandonando o espaço urbano e as próprias margens do rio Amazonas, cedendo sua
hegemonia, só em meados do século XIX, para a língua portuguesa. Daí em diante, entrou em
declínio. Passou então, gradativamente, a ter menos falantes e viu suas funções reduzidas.
Demograficamente fragilizada, tornou-se, no século XX, uma ‘língua anêmica’, carente do
‘sangue’ de usuários (Rodrigues, A. 2000:22). Deixou de ser uma língua de expressão regional
para cobrir uma área bem menor, limitada ao alto Rio Negro, onde continuou sendo falada,
sempre, por índios de diferentes línguas e por representantes da sociedade regional que com
eles interagem. A população regional chegou a considerá-la como ‘língua de índio’, devido à
sua origem e procedência, enquanto os índios a viam como ‘língua de branco’, já que foram
os missionários europeus que a introduziram no rio Negro, onde anteriormente não havia
nenhuma língua tupi (Nimuendaju 1950: 131).
17
No final do século XX, os falantes de Nheengatu e das demais línguas indígenas
conquistaram direitos, que foram consolidados na Constituição Federal promulgada em 1988.
O poder político, pela primeira vez na história do país, depois de cinco séculos de relação com
os índios, deixou de considerá-los como categoria social em vias de extinção, para reconhecer
o direito que têm de manter suas identidades, e de viver de acordo com “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Art. 231). O mesmo texto constitucional
obriga o Estado a proteger as manifestações dessas culturas, assegurando às comunidades
indígenas o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem nas escolas
(Art. 215).
Nesse contexto, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
congregando 42 associações da região, realizou uma assembléia geral, em janeiro de 2000,
com a participação de 513 delegados índios, que reivindicaram a oficialização das três línguas
indígenas mais usadas na área: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa. Essas línguas, antes
tratadas como ‘moribundas’, foram, então, tonificadas pela vontade organizada de seus
falantes, passando por um processo de revalorização e revitalização.
Agora, no século XXI, a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão
realizada no dia 22 de novembro de 2002, aprovou projeto do vereador índio Kamico Baniwa,
formulado com assessoria do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política
Lingüística, declarando o Nheengatu língua co-oficial de São Gabriel da Cachoeira, um
município de 112.000 km², maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O
Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada do 11 ao 13 de
março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da
medida. Os órgãos da Prefeitura de São Gabriel e os demais poderes sediados no município
são obrigados a usá-la na documentação oficial, juntamente com o português, com prazo de
cinco anos para implementá-la. O Nheengatu é, assim, a primeira língua indígena a se tornar
oficial numa unidade do território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa,
contemplados pela mesma lei. Neste processo de revitalização, ao Nheengatu são atribuídas
novas funções, que podem significar novos falantes (Oliveira 2003: 2).
Os fatos aqui expostos demonstram que a partilha do bem herdado – a língua
portuguesa - não foi feita em partes iguais, pois nem todos os herdeiros se tornaram titulares
18
das relações jurídicas concentradas na herança, não havendo, portanto, uma transferência de
pleno direito do domínio e da posse do patrimônio legado. A rigor, os ‘herdeiros’ sequer
foram consultados para decidirem se queriam recebê-la e substitui-la pelo patrimônio
tradicional que já possuíam. Não foram ao cartório, nem sequer tiveram a oportunidade de
renunciar ao bem legado, entre outras razões, porque lhes foi vedado o acesso ao conteúdo do
testamento, redigido numa língua que desconheciam. Ninguém, porém, é herdeiro contra sua
própria vontade, e essa vontade mudou nas duas últimas décadas. Os movimentos indígenas
em todo o país, sentindo-se deserdados, estão reclamando o usufruto e a administração da
herança, querendo apropriar-se do português, não mais para substituir suas línguas maternas -
cujas funções locais de comunicação corrente eles querem manter - mas na condição de uma
segunda língua, que permita contato direto com a sociedade nacional e possibilite a interação
entre as próprias lideranças indígenas, cujas origens lingüísticas são muito diversificadas. Por
isso, as escolas indígenas reivindicam a alfabetização em língua materna, mas querem que
seus alunos aprendam a falar, ler e escrever também em português. Dessa forma, o rio Negro –
último reduto da Língua Geral – aceita, a partir de agora, apoderar-se da herança deixada pelo
soberbo Tejo, desde que isso não implique o desaparecimento da face da terra de qualquer
outra língua indígena, como ocorreu no passado e ainda vem ocorrendo no presente.
1.2 – Os objetivos e o campo de estudo
Os objetivos deste trabalho – se retomamos a metáfora formulada por Almeida Garrett
- são, entre outros: a) investigar como e em que medida essa herança européia foi transferida
para a Amazônia e o que aconteceu com o patrimônio lingüístico local; b) identificar as
razões pelas quais muitos herdeiros não foram plenamente investidos na sucessão; c) conferir
o estado de conservação do bem herdado e as alterações que sofreu com o uso; d) e,
finalmente, verificar o papel do Estado e da Igreja nesse processo, as circunstâncias históricas,
as fases e o tempo de sua duração
Trata-se, portanto, de abordar a trajetória histórica das línguas na Amazônia brasileira,
com uma avaliação do contato entre elas, explicitando, de um lado, o processo de tensões entre
19
a língua portuguesa e as línguas indígenas, e de outro, as políticas de línguas e as formas como
as diferentes instâncias de poder interferiram no destino delas, com conseqüências sobre as
marcas identitárias étnica e regional. Dessa forma, se buscará compreender os mecanismos do
deslocamento lingüístico ocorrido com a população em várias gerações, para explicar como o
índio tribal - monolíngüe em língua vernácula, transformou-se em caboclo - monolíngüe em
português, depois de percorrer caminhos diversos, trocando várias vezes de língua e de
identidade durante o percurso, assumindo o bilingüismo e diferentes marcas identitárias -
índio manso, tapuia, ´civilizado´. A ‘certidão de nascimento’ do amazonense e do paraense,
como identidade regional, poderá assim ser encontrada, mas para isso é preciso destacar aqui
uma das línguas de base indígena - a Língua Geral - cuja extensão será dimensionada e cujo
mapa será desenhado, localizando o seu raio de ação até o seu declínio, do ponto de vista
demográfico, no século XIX.
A formulação desses objetivos obedece a uma abordagem que se situa num domínio
relativamente novo do conhecimento, denominado pelo historiador inglês Peter Burke de
‘história social da linguagem’ ou ‘história social do falar’, que ele considera como “um
campo promissor para a cooperação interdisciplinar” (Burke 1995: 26). O seu foco central
incide sobre a história externa das línguas, de seus usos e de suas funções, buscando identificar
as razões do processo de expansão de umas, em detrimento da extinção de outras. Pesquisas
sistemáticas começaram a ser realizadas, com essa perspectiva, na década de 1960, no mundo
anglo-saxão, graças ao desenvolvimento de disciplinas que têm sido chamadas diversamente
de ‘sociolingüística’, ‘etnolingüística’, ‘sociologia da linguagem’, ‘etnografia da fala’ ou
‘etnografia da comunicação’. Essas disciplinas criaram um conjunto de categorias e
formularam diversas teorias que vêm sendo ultimamente testadas por vários historiadores,
sobretudo europeus, demonstrando que “a língua é uma força ativa na sociedade, um meio
pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou resistem a esse controle, um meio
para mudar a sociedade ou para impedir a mudança, para afirmar ou suprimir as identidades
culturais” (Burke 1995: 41).
No Brasil, esse novo campo ainda não foi suficientemente explorado. A historiografia
brasileira tem se dedicado, com sucesso, aos aspectos administrativos, políticos e econômicos,
sem incorporar, no entanto, a trajetória histórica das línguas ou a evolução de suas funções,
20
como objeto de preocupação e de análise. As formas e as dificuldades de reprodução da língua
portuguesa e das línguas indígenas em território brasileiro, e sobretudo a situação de contato
entre elas, também não mereceram uma atenção maior dos historiadores, para quem o tema
não tem sido considerado relevante, embora sem ele não seja possível compreender o processo
de interação conflituosa entre índios e colonizadores, ou revelar determinados componentes
das matrizes formadoras da nacionalidade.
A própria história da literatura não tem problematizado a questão, deixando de fora as
manifestações literárias orais e até mesmo as escritas em Língua Geral e em outras línguas
indígenas. É que o preconceito em relação às línguas indígenas, presente no discurso fundador
da nacionalidade brasileira, se estende às manifestações literárias orais, consideradas como
‘tecnicamente subdesenvolvidas’ e ‘culturalmente atrasadas’, ficando desta forma de fora da
história da literatura nacional. Esse discurso só continua sendo hegemônico ainda hoje,
devido, entre outras razões, ao fato de não ter sido ainda avaliado o lugar da língua no
ordenamento social, e ao desconhecimento das trajetórias da língua portuguesa e das línguas
indígenas em solo brasileiro. Daí a importância de desenvolver o campo de estudo da história
social das línguas, que discuta suas relações com as manifestações literárias, sejam elas
escritas ou orais.
1.3 – Revisão das fontes
As fontes para uma história social das línguas no Brasil, manuscritas e impressas, estão
dispersas pelos arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiros. Para apresentá-las de forma
organizada e concisa pode ser útil recorrer à periodização proposta por Francisco Iglésias
(2000), embora como adverte o próprio autor, não se possa fugir de um certo esquematismo,
comum em todas as tentativas de tal natureza. Ele sugere a existência de três grandes
momentos da historiografia brasileira, cujos recortes cronológicos estão relacionados com os
procedimentos metodológicos da disciplina e o processo de sua institucionalização. Neles,
podemos situar as obras de referência sobre o tema:
21
1) O período de 1500 a 1838 começa com a chegada dos primeiros europeus e termina
com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Cobre, portanto, toda a
época colonial e o início do estado nacional brasileiro. São três séculos e mais de três décadas,
marcados por uma produção caracterizada, no que diz respeito à historiografia, “por certo
número de livros que são mais crônicas históricas que história, mais fontes que obras
elaboradas” (Iglésias 2000: 23).
Do ponto de vista da história social das línguas na Amazônia, o período abarca um
sem-número de tópicos: os primeiros contatos dos índios com várias línguas européias, o uso
dos intérpretes, a escolha de uma língua de comunicação interétnica, a expansão e o apogeu da
Língua Geral, as tensões com o idioma português e a extinção de muitas línguas indígenas. As
crônicas, no entanto, trazem informações dispersas e fragmentadas sobre esse processo, cujo
teor depende em grande medida do interesse e da formação do observador. Os relatos dos
missionários jesuítas, as narrativas dos capuchinhos franceses e até mesmo os registros dos
cronistas das expedições espanholas são particularmente ricos quanto aos dados sobre os usos
de algumas línguas. Da mesma forma que o são as notícias geográficas, as relações históricas
e os roteiros de viagens de funcionários da Coroa Portuguesa – ouvidores, intendentes,
governadores, além dos diários e itinerários das visitas pastorais de vários bispos do Pará.
Seus autores, porém, como regra geral, refletiando o pensamento dominante da época,
manifestam uma visão etnocêntrica sobre os índios e suas formas de expressão.
Algumas crônicas relevantes sobre o tema estão indicadas na ‘Bibliographia da
Língua Tupi ou Guarani também chamada Língua Geral do Brazil’, organizada em 1880 por
Alfredo Valle Cabral, onde constam 302 obras impressas e manuscritas, elaboradas no período
de 1555 a 1880, quase todas relacionadas à produção de gramáticas, vocabulários, dicionários,
listas de palavras, catecismos, sermões, orações e hinários (Cabral: 1880). O catálogo, no
entanto, dirige seu foco para o litoral brasileiro e o Estado do Brasil, alcançando o Grão-Pará
só marginalmente. Dessa forma, omite as crônicas espanholas do século XVI, algumas das
quais – é verdade – acabavam de ser publicadas naquele momento, graças às pesquisas de
Jimenez de la Espada, que as havia localizado no Archivo General de Indias, em Sevilha, do
qual era diretor. Deixa também de mencionar muitas fontes francesas, inglesas e holandesas
dos séculos XVI e XVII, indispensáveis para compor o quadro de contato das línguas
indígenas com as línguas européias. Ficou de fora ainda toda a documentação administrativa,
22
em grande parte manuscrita, valiosa para acompanhar a política de línguas de Portugal,
composta pela correspondência dos governadores com a Metrópole, e pelo arcabouço jurídico
colonial representado por alvarás, cartas régias, ordenações, cédulas reais, decisões, que fazem
parte dos acervos, entre outros, da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, do Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. De qualquer
forma, o catálogo de Valle Cabral significou uma contribuição importante porque, embora
com lacunas, constitui a primeira tentativa de ordenamento da bibliografia sobre o tema,
facilitando o acesso do pesquisador a um conjunto de trabalhos. Uma parte deles será usada
aqui nos capítulos segundo e terceiro.
2) O período de 1838 a 1931 é marcado pela forte influência exercida pelo IHGB, que
organizou a busca sistemática de documentos históricos em todo o Brasil e no exterior,
mandando fazer cópias de muitos deles em arquivos europeus, repatriando outros e
divulgando os mais importantes em sua Revista publicada com rigorosa periodicidade desde
1839. Promoveu ainda vários congressos, reunindo muitos historiadores, entre os quais os de
maior destaque foram o Primeiro Congresso de História Nacional (1914), cujos Anais têm
cinco tomos, e o Quarto Congresso (1949), que gerou uma publicação de 13 tomos. Nesse
período, portanto, se constituem os fundamentos da historiografia nacional, que reservou um
lugar de destaque para os estudos relativos às línguas, criando um espaço acadêmico dedicado
à tupinologia, o que se torna .particularmente significativo, se considerarmos a
descontinuidade do processo.
Quanto à história social da língua, é neste período que a Língua Geral perde a
hegemonia para o português em toda a Amazônia, mas também é nesse momento que se
discute a questão da identidade nacional vinculada à língua falada e escrita pelos brasileiros.
Talvez, por isso, ele seja um período particularmente fértil. O próprio Imperador D. Pedro II,
autor do artigo ‘Quelques notes sur la langue tupi’, redigido em francês e publicado em Paris,
retomando iniciativa anterior de Varnhagen, recomendou ao IHGB que reunisse “todas as
notícias referentes à língua indígena, interessantes e úteis pela originalidade e pelos
preciosos dados que pudessem administrar à Etnografia do Brasil”. A língua indígena, assim
no singular, era a Língua Geral. As demais, consideradas meros ‘dialetos’, mereceram
também uma recomendação especial. O Imperador indicou que “se elaborassem gramáticas e
23
um Dicionário Geral dos diferentes dialetos falados pelos índios brasileiros” (Silva 1966:
24). Os resultados foram a imediata recuperação e circulação de informações sobre as línguas,
com produção de conhecimentos através de inúmeras contribuições originais, a descoberta de
documentos até então desconhecidos, e a reedição de alguns textos clássicos: dicionários,
gramáticas e catecismos, que foram inventariados pelo trabalho citado de Valle Cabral,
complementado posteriormente por Ayrosa (1943) e J. Romão da Silva (1966).
Entre os trabalhos originais, podemos encontrar a literatura dos viajantes e naturalistas
que percorreram a Amazônia no século XIX, além da produção de um grupo de tupinólogos
vinculados direta ou indiretamente ao IHGB, muitos dos quais recolheram narrativas orais em
Língua Geral, como Von Martius (1794-1868), Freire Alemão (1797-1874) Batista Caetano
(1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Pedro Sympson
(1840-1892), Barbosa Rodrigues (1842-1909), Stradelli (1852-1926) e Brandão Amorim
(1865-1926). Alguns deles estudaram as crônicas do século XVI, redigindo notas preliminares
sobre aspectos lingüísticos que muito auxiliaram os historiadores, como o fez Batista Caetano
com os relatos de Jean de Léry e Fernão Cardim. Suas obras estão referenciadas no
‘Apontamentos para a Bibliografia da língua tupi-guarani’, organizado em 1943 por Plínio
Ayrosa, que ampliou a lista de Cabral, acrescentando livros editados em vários países e em
várias línguas, num total de 585 títulos. Ayrosa concluiu que a língua por ele denominada de
tupi-guarani era ‘bibliograficamente pobre’, em relação à importância que teve para a história
do país (Ayrosa 1943: 7).
No período que coincide com o ciclo do Império, é possível também localizar as fontes
clássicas dos estudos literários, que foram trabalhadas recentemente por Acízelo de Souza
(1999), constituídas sob as designações disciplinares de retórica e poética. Entre elas, há um
destaque para Joaquim Norberto Sousa Silva (1820-1891), um dos primeiros estudiosos de
história da literatura no país, autor de vários textos sobre poesia, catequese e educação
indígenas, além de um ensaio intitulado ‘A língua brasileira’. É também o momento em que
redobra o interesse pelas narrativas orais, em Nheengatu, que foram coletadas, mas muito
pouco estudadas, e em que o paraense José Veríssimo (1857-1916), publica seis volumes de
Estudos da literatura brasileira, entre 1901 e 1907, com reflexões sobre o português regional
e sobre a Língua Geral. Na mesma época, o engenheiro e tupinólogo baiano, Teodoro
Sampaio (1855-1937), publicava ‘O Tupi na Geografia Nacional’, cuja primeira edição é de
24
1901, seguido anos depois do artigo ‘A língua portuguesa no Brasil’ (1931). Alguns dos
trabalhos desse período nos serão aqui úteis, sobretudo nos capítulos terceiro e quarto.
3. O terceiro período da historiografia brasileira se estende até os nossos dias,
começando em 1931, com a reforma do ensino feita pelo ministro Francisco Campos, cuja
repercussão se fez sentir em todos os níveis da educação escolar. No grau superior, surgem as
universidades e as faculdades de letras, educação, filosofia, ciências econômicas e ciências
sociais, que abrigam cursos de história, dispostos a combater o “amadorismo ou beletrismo”
ainda dominantes. Apesar da precariedade inicial dos cursos, dirigidos muito mais à didática
do ensino de história do que à formação de pesquisadores, a pesquisa histórica vai
paulatinamente deixando de ser “lazer de intelectuais”, interessados no culto idealizado do
passado, patriótico ou genealógico, para ser realizada por especialistas com formação mais
rigorosa, que buscam o “entendimento do real sentido da história”. É quando aparecem em
livro os dois maiores historiadores de sua geração - Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda, cujas obras marcaram o pensamento e a historiografia brasileira (Iglésias 2000:188,
200).
No que diz respeito à história social da língua, vale salientar a série de publicações de
fontes coloniais manuscritas, até então inéditas, organizadas pela Universidade de São Paulo
(USP), que criou, em 1935, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a cadeira de
Etnografia e Língua tupi-guarani, cujo primeiro titular foi Plínio Ayrosa (1895-1961), autor
de uma obra copiosa, iniciada com Primeiras Noções de Tupi (1933). Movimento idêntico
ocorreu em várias outras instituições do país, como a Universidade Federal do Paraná, a
Universidade Federal da Bahia e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Na Bahia, o professor de Língua Tupi foi Frederico G. Edelweiss (1892-1974), que estudou na
década de 1940 a etnonímia tupi e publicou, entre outros, um ensaio esclarecedor - Estudos
tupis e tupi-guaranis (1969) - onde polemiza com Plínio Ayrosa sobre vários aspectos
relacionados ao tupinambá, à língua geral e ao guarani. Na PUC do Rio de Janeiro, o regente
da disciplina foi o padre A. Lemos Barbosa, autor de um Curso de Tupi Antigo (1956) e do
Pequeno Vocabulário Tupi-Português (1951). As obras editadas até 1953 constam da
bibliografia de tupi-guarani de Plínio Ayrosa, que foi então atualizada, com a colaboração de
vários estudiosos, entre os quais, Aryon Rodrigues, Carlos Drummond e Lourdes Joyce,
25
identificando um total de 897 trabalhos impressos e 54 manuscritos, elaborados no período de
1500 a 1953 (Ayrosa 1954).
Depois deste último levantamento de Plínio Ayrosa, foi publicado, em 1987, O
Guarani - uma bibliografia etnológica, com 1163 títulos, cobrindo o período de cinco séculos,
referentes especificamente à cultura guarani. Eles foram ordenados em cinco categorias, de
acordo com a natureza de sua produção, discriminando as fontes - conquista, missionária, dos
viajantes, antropológica e etno-histórica - com dados também sobre a produção originária do
mundo hispânico e, mais precisamente, do Paraguai (Meliá et alii: 1987). Trata-se de um
instrumento de pesquisa de grande utilidade, que ajudou a localizar alguns relatos usados aqui,
particularmente no que se refere à extensão da Língua Geral.
Nenhuma outra bibliografia comentada de obras sobre línguas de filiação tupi foi
publicada posteriormente. No entanto, a produção nesse campo cresceu amplamente com a
criação do Setor de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional
(UFRJ), em 1961, e de áreas de estudos das línguas indígenas em outras instituições do país
como a UNICAMP e diversas universidades federais: de Brasília, Goiás, Pernambuco, Pará,
Santa Catarina e no Museu Goeldi, no Pará. Em 1987 é lançado o Programa de Pesquisa
Científica sobre Línguas Indígenas Brasileiras (PPCLIB), formalizado dentro do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dá um novo impulso aos
estudos lingüísticos (Franchetto: 2000).
Usando critérios similares aos de Ayrosa, podemos estimar em mais de 3.000 os títulos
de livros e artigos relacionados ao tema, publicados em cinco séculos. No entanto, uma
avaliação sumária dessas obras mostra que elas são basicamente de cunho filológicolingüístico,
pertencentes ao campo da dialetologia, ou do que poderia ser denominado como
‘história interna’ da língua, compreendendo noções gramaticais, vocabulários, catecismos e
doutrinas. Aryon Rodrigues, realizando balanço do que foi publicado até 1996, concluiu que
“afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos, e algumas coletâneas de textos, quase
nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas línguas, nem do ponto de vista
sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico” (Rodrigues 1996: 13).
A ausência de pesquisas sobre a história externa das línguas não se deve, porém, à
inexistência de fontes primárias, como demonstram os guias, catálogos, inventários, índices e
outros instrumentos de pesquisa que se multiplicaram em todo o continente americano,
26
sobretudo na última década, como parte dos projetos desenvolvidos pela comemoração do
Quinto Centenário. No Brasil, o projeto Guia de Fontes para a História Indígena e do
Indigenismo em arquivos brasileiros, de caráter interinstitucional e interdisciplinar, elaborado
pela USP, mapeou a documentação em 140 arquivos localizados em acervos das capitais dos
estados brasileiros, com exceção de Tocantins, Amapá e Roraima Durante três anos, equipes
de pesquisadores vinculados a universidades públicas, vasculharam 673 coleções e fundos,
buscando agregar informações documentais sobre a temática da história dos índios no Brasil
(Monteiro: 1994). Uma parte significativa da documentação encontrada se refere ao uso da
força de trabalho indígena, que tanta repercussão teve sobre os destinos das línguas, mas existe
também um material específico sobre as línguas indígenas e a política de línguas, tanto da
Coroa Portuguesa, quanto do Estado brasileiro. Ela é expressiva, sobretudo, em 25 arquivos do
Rio de Janeiro, quase todos de porte nacional, onde uma equipe de dez pesquisadores,
coordenada pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, trabalhou no período de
1992-1994, encontrando uma vasta documentação, ainda que dispersa, de interesse
etnohistórico e etnolingüístico, que foi objeto de uma publicação – Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro (Freire 1995-1996).
Os acervos mais ricos no que se refere às línguas indígenas pertencem ao Arquivo
Nacional, à Biblioteca Nacional, ao IHGB e ao Museu do Índio. São originais manuscritos e
datilografados, produzidos nos três períodos citados e cópias em microfilmes, de trabalhos
clássicos na área de etnolingüistica e da etnohistória, que foram reproduzidos de arquivos
europeus, como dicionários, gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias, hinários,
compêndios de doutrina cristã, apontamentos, artigos e estudos diversos sobre as línguas
indígenas, além de, no caso do IHGB, artigos manuscritos enviados para a Revista da
instituição, alguns deles publicados e outros inéditos. Uma notícia sobre esses documentos foi
tema de uma comunicação apresentada no XIII Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL), no Grupo de Trabalho
Historiografia da Lingüística Brasileira (Freire 1998).
Em arquivos de Portugal – sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino e na
Biblioteca e Arquivo de Évora existe uma expressiva documentação relacionada à política de
línguas: alvarás, cartas régias, decretos, ordenações que compõem o discurso legislativo da
Coroa Portuguesa sobre as línguas indígenas e a Língua Geral Amazônica, além de informes e
27
relatos de missionários com registros lingüísticos produzidos no período. Material similar
pode ser encontrado na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Uma parte dele já foi trabalhada
para um artigo publicado na revista Amerindia, da Universidade Paris VIII (FREIRE:1983).
Outra pequena parte foi incorporada neste trabalho, conforme consta nas citações no corpo do
trabalho.
No entanto, nem no Brasil nem em Portugal houve resultado similar ao obtido pelo
Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha, que selecionou, transcreveu e
publicou Documentos sobre Política Lingüística en Hispano América (1492-1800), criando
um instrumento de pesquisa, que coloca o conteúdo de 129 documentos valiosos ao acesso dos
pesquisadores (Solano 1991). Mas um esforço sistemático começa a ser feito, a partir do 1º
Colóquio sobre Línguas Gerais, realizado em agosto de 2000, no Rio de Janeiro. O evento
discutiu a política lingüística e a catequese na América do Sul no período colonial, reunindo
comunicações de pesquisadores de várias instituições que estão trabalhando sobre o tema,
como a Universidade de Munique, o Museu Goeldi, a USP e as duas universidades
organizadoras – a UERJ, através da Coordenação de Pós-Graduação em Letras e do Programa
de Estudos dos Povos Indígenas, e a UFRJ, através do Programa de Pós-Graduação em
Lingüística. (Freire & Rosa 2003). Finalmente, cabe registrar também que no mês de maio de
2003, uma instituição inglesa - Endangered Languages Documentation Programme – aprovou
o projeto ‘Documentação de cinco línguas tupi urgentemente ameaçadas’, elaborado por
Denny Moore, coordenador da área de lingüística do Museu Paraense Emilio Goeldi,
destinando recursos substanciais para o estudo das línguas Mekens (23 falantes atuais), Ayuru
(10 falantes), Purobora e Mondé (3 semi-falanmtes cada uma) e Xipayá (1 falante)
(Moore:2003).
1.4 – O estado da questão
As fontes primárias para uma história social das línguas no Brasil, embora
fragmentadas e dispersas, são ricas, mas não foram ainda suficientemente interrogadas. Os
trabalhos nessa linha de pesquisa são raros, conforme pode ser constatado nos repertórios,
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catálogos bibliográficos e guias de fontes acima citados. Esses trabalhos podem ser
classificados em estudos preliminares – quando deslocam o foco de preocupação quase
exclusivamente sobre a trajetória da língua portuguesa em solo nacional ou regional,
desinteressando-se pelas línguas indígenas; e estudos circunstanciados, quando procuram
avaliar a evolução das diversas línguas em contato.
Os estudos preliminares manifestam, como regra geral, uma certa tendência a
generalizar, para todo o território brasileiro, aspectos que se limitaram ao litoral ou à região
centro-sul, considerando os estados do Brasil e do Grão-Pará como se fossem uma única
entidade. Assim, quando se referem à Língua Geral, confundem algumas vezes a Língua
Geral Paulista, com a Língua Geral Amazônica, numa perspectiva de ‘unidade nacional’ e
lingüística, que é, no mínimo, discutível.
Vários desses autores que se preocuparam com a trajetória do português no Brasil
publicaram estudos, em momentos diferentes, com uma certa repercussão no meio acadêmico.
Entre eles, as contribuições mais importantes foram as de Serafim da Silva Neto (1917-1960),
Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), Silvio Elia (1913-1998) e Antônio Houaiss (1915-
1999). Eles chamaram a atenção para alguns aspectos relevantes, como o papel das cidades na
difusão da língua portuguesa (Elia 1979). No entanto, no recorte deles, as línguas indígenas só
aparecem marginalmente, quando aparecem, e às vezes dentro de um enquadramento em que a
hegemonia do português é apresentada como resultado de qualidades inerentes à própria
língua européia, que seriam superiores às das línguas americanas. Não consideram, assim, o
peso que tiveram nesse processo os fatores econômicos, sociais e políticos. A visão triunfalista
e reducionista de Serafim da Silva Neto é a mais representativa de tal postura:
“A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe
dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos
ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (Silva Neto1950:
61).
Silvio Elia reforça esse enfoque, quando não reconhece - nos campos da fonologia, da
morfologia e da sintaxe - as influências da língua geral sobre a língua portuguesa
transplantada da Europa e implantada no Brasil. Para ele, “as línguas indígenas estariam no
29
estado tribal, sem nenhuma repercussão na vida cultural do país”, considerando-as como
“ilhotas que tendem a desaparecer, num processo de ‘glotofagia’ (Ranauro 1999: 26)
Essa mesma ideologia está representada em outros autores, de âmbito mais regional,
cujos trabalhos também nem sempre dialogaram com as disciplinas do campo da lingüística,
da etnografia e da antropologia, permanecendo, desta forma, dependentes do discurso
colonialista, do qual herdaram o preconceito e o glotocentrismo. Nem sequer o meio
acadêmico escapou de tal influência. Nesse caso, estão os conhecimentos produzidos por três
importantes estudiosos regionais contemporâneos. O primeiro deles, o médico baiano Alfredo
Augusto da Matta (1870-1954), que viveu mais de cinco décadas na Amazônia, publicou na
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas vários trabalhos sobre o português
regional, onde as línguas indígenas são tratadas como dialetos “embrulhados, imperfeitos, mal
elaborados, pobres, deselegantes, confusos, incapazes de exprimir idéias universais”,
enquanto o português é apresentado como “a língua imortal de Camões” (Matta 1939: 7). Os
outros dois assumiram, em momentos diferentes, a direção de uma das mais respeitáveis
instituições de pesquisa da região, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
criado em 1952 e instalado em Manaus em 1954, com cursos de pós-graduação em várias
áreas e uma equipe de cientistas nacionais e estrangeiros. Um deles, o médico acreano Djalma
Batista (1916-1979), dirigiu o INPA de 1959 a 1968 e construiu uma obra valiosa, sem a qual
não é possível entender a região. Seu olhar é de extrema simpatia em relação aos povos
indígenas. Porém, quando trata do choque cultural, ele aborda tangencialmente as línguas,
opondo, de um lado, o português, “uma língua estruturada” que representava “a supremacia
de sua cultura”, e de outro, “os mil e um dialetos monossilábicos usados pelos íncolas”
(Batista, 1976: 43). O outro, o historiador amazonense Artur César Ferreira Reis (1906-1989),
cuja vasta obra tem inegável valor heurístico, manifesta a crença na existência de ‘línguas
ricas’ e ‘línguas pobres’, ‘línguas superiores’ e ‘línguas inferiores’, tratando as línguas
indígenas como ‘rústicas e pobres’ (Reis 1940: 43).
Esses e outros trabalhos, quando desconsideram a importância da Língua Geral e das
línguas indígenas na história do Brasil e da Amazônia, tornam procedente a idéia postulada
por Renan (1882:20) de que a construção de uma nação depende, em grande medida, da
possibilidade e da disposição de seus integrantes para esquecerem aqueles aspectos da história,
30
que podem prejudicar a construção da identidade nacional. Assim, podemos pensar que a
historiografia brasileira, no seu afã de imaginar uma comunidade nacional, organizou, entre
outros, dois esquecimentos relacionados diretamente com a perspectiva deste trabalho:
1. Construiu uma unidade territorial e política da nação brasileira já a partir de 1500,
apagando da lembrança o fato de que Portugal teve duas colônias na América, cada uma
autônoma em relação à outra, com seus próprios governadores, seu corpo de funcionários, sua
administração, suas leis e sua dinâmica histórica, e que essa unidade só vai se consolidar com
a adesão do Grão Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano depois da Independência.
2. Construiu uma unidade lingüística desde 1500, com base no português transformado
na única língua dos “brasileiros”, desconsiderando a ampla difusão, no tempo e no espaço, da
Língua Geral Amazônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante todo o período
colonial em partes expressivas do que é hoje o território nacional, de uso mais corrente, em
verdade, do que o próprio português. (Holanda 1976:90) Desconheceu ainda informações
sobre o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 – são faladas ainda
hoje no Brasil e continuam a ser instrumentos de criação literária.
Os estudos circunstanciados da história externa das línguas no Brasil, com
preocupação em acompanhar também a trajetória das línguas indígenas, tentaram, numa certa
medida, contrariar esses esquecimentos organizados. Eles estão representados pelos trabalhos
de três historiadores. Cada um deles deixou algumas reflexões significativas sobre o conflito e
o contato entre línguas indígenas e o português, embora o diálogo que mantiveram com as
disciplinas lingüísticas tenha sido desigual e nem sempre fecundo. O primeiro deles, Sérgio
Buarque de Holanda, centrou seu foco sobre a Língua Geral Paulista (LGP); o segundo, José
Honório Rodrigues, trabalhou a evolução da língua geral no Brasil, enquanto o terceiro, Artur
Reis, já citado, discutiu o processo de hegemonia lingüística ocorrido na Amazônia.
Buarque de Holanda, referência obrigatória para os estudiosos da matéria, foi o
primeiro historiador a tratar da questão, em três artigos publicados, em 1945, no jornal O
Estado de São Paulo, que foram inseridos no seu livro Raízes do Brasil, a partir da segunda
edição revista e ampliada de 1948. A inserção foi feita como apêndice do capítulo IV, numa
extensa nota com o título A Língua Geral em São Paulo. Sua maior contribuição talvez tenha
sido desconstruir a representação que se tinha, até então, de uma unidade lingüística nacional
31
desde 1500, com base no português. Apoiado em seleta documentação, ele concluiu que ”o
processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizerse
que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII” .
Forneceu dados que comprovam como na Província de São Paulo, mesmo após a
Independência do Brasil, era possível “ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos”
(Holanda 1976: 93-94). Do ponto de vista teórico e metodológico, teve ainda o mérito de
apontar alguns caminhos, vinculando a expansão da Língua Geral Paulista (LGP) ao
recrutamento da força de trabalho indígena, através da ação dos bandeirantes, usando para isso
alguns documentos importantes, como inventários e testamentos do Arquivo Público de São
Paulo, relatórios de governadores, missionários, bispos e outras autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além dos relatos de viajantes.
José Honório Rodrigues, responsável por dezenas de edições de textos e
reconhecidamente o pesquisador com maior conhecimento da documentação histórica,
publicou, em 1983, o artigo “A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial”, onde
retomou a questão do ponto onde a havia deixado Buarque de Holanda em 1945, ampliando,
no entanto, o recorte geográfico para outras áreas do nordeste e da região amazônica e
enriquecendo-o com outros documentos. Ele questiona os autores que tentam explicar a
preponderância do português sobre outras línguas com argumentos de ordem lingüística,
desconsiderando os fatores históricos. Defende a idéia de que a vitória da língua européia em
território americano não se deu num processo pacífico, como comumente se apresenta: ‘custou
esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas’. Seu artigo é
esclarecedor quanto ao aspecto das línguas em contato no Brasil, porque incorpora
informações sobre as línguas africanas e sobre a existência de ‘uma língua geral negra para o
entendimento entre os vários grupos africanos’, que na Bahia era o nagô ou ioruba, e no Norte
e no Sul, o quimbundo. Usa com muita propriedade as crônicas e os relatos de viajantes e
missionários, cruzando as informações com documentação manuscrita da Biblioteca Nacional
e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No entanto, do ponto de vista conceitual,
baseia parte de sua argumentação num pressuposto reproduzido por alguns historiadores, mas
que é vigorosamente questionado pelos lingüistas: o de que a língua geral indígena foi criada
pelos jesuítas (Rodrigues, J.H. 1983: 20, 21,30).
32
Dos três, o historiador amazonense Artur Reis, já citado, foi o que mais trabalhou com
fontes primárias relativas à Amazônia, representadas pelos códices da Seção de Manuscritos
da Biblioteca Pública do Estado do Pará e por documentação do Arquivo Histórico e
Ultramarino. Publicou, em Lisboa, em 1961, um artigo com o sugestivo título A Língua
Portuguesa e a sua imposição na Amazônia, onde discute os mecanismos através dos quais o
português se tornou hegemônico na região, explorando essas fontes primárias, algumas delas
até então inéditas, embora adotando a perspectiva idealizada do colonizador. Manifesta o seu
lugar de enunciador pró-luso, quando avalia como “uma admirável página de trabalho” a
colonização na Amazônia, exaltando “as qualidades dos portugueses, no seu destino histórico
de criar uma nova humanidade, fundindo-se com as multidões nativas...” Quanto às línguas
indígenas, ele anuncia, logo no início do artigo, que renuncia “examinar em minúcias o que
seria essa ‘babel’, porque ainda não havia sido feito “um levantamento seguro dos falares
dos primitivos regionais”. Apesar de todas essas limitações, ele dá uma contribuição
importante, ao desconstruir essa representação de unidade territorial e política do Brasil, da
mesma forma que Buarque de Holanda o fizera em relação à unidade lingüística, chamando a
atenção para o fato de que a Amazônia “era uma grande província de Portugal, destacada do
Brasil, a que se não vinculara ainda” (Reis 1961: 492,493).
Outros estudos que oferecem mais informações históricas sobre a Língua Geral vêm
sendo feitos por lingüistas, que em alguns casos acabaram realizando com êxito tarefas que
competiam aos historiadores. O mais importante deles, sem os quais os demais não poderiam
existir, é Aryon Rodrigues, cuja tese de doutorado na Universidade de Hamburgo, em 1959,
trata da fonologia do Tupinambá. Ligado a várias universidades brasileiras, ele construiu nos
últimos sessenta anos uma respeitável obra, desde seu artigo sobre o histórico das diferenças
fonéticas entre tupi e o guarani, em 1940, até outros trabalhos conclusivos sobre aspectos
históricos da língua geral, diferenciando definitivamente a Língua Geral Amazônica (LGA) da
Língua Geral Paulista (LGP). Esclareceu conceitos, indicou caminhos, e submeteu a
documentação histórica à crítica, usando para isso critérios sociolingüísticos. Continua ainda
em plena atividade na Universidade de Brasília, pesquisando e formando especialistas
(Rodrigues, A. 2000,1998, 1996, 1992, 1986, 1984/85, 1964, 1955). Duas lingüistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Yonne Leite e Ruth Monserrat – que trabalharam
com línguas atualmente faladas por grupos de filiação tupi, reinterpretaram os dados presentes
33
nas descrições jesuíticas do período coloniual; a primeira discutiu a precisão e o rigor da
gramática de José de Anchieta (Leite 2003) e a segunda estudou as mudanças no campo
fonológico do tupi do séc. XVIII, a partir de documentação até então inédita (Monserrat
2003).
Alguns outros lingüistas usaram documentação histórica para analisar a trajetória das
línguas: Maria Cândida Drummond de Barros, do Museu Goeldi, cuja dissertação de mestrado
aborda de forma original a política de línguas no Brasil colonial, discutindo
pormenorizadamente as formas de reprodução da Língua Geral, a sua transformação em uma
língua supraétnica, a sua padronização como parte do processo de dominação e, finalmente, o
processo de tupinização dos tapuias e dos portugueses. Publicou ainda vários artigos sobre o
tema em revistas especializadas (Barros 1994 a, 1994 b, 1990, 1986, 1982,1980); Maria
Carlota Rosa, da UFRJ, que analisou as descrições da Língua Geral a partir de documentos
jesuítas do século XVI e XVII (Rosa 1997,1992, 1991); Denny Moore, do Museu Goeldi, que
trabalhou o desenvolvimento histórico do Nheengatu e as marcas do contato com outras
línguas (Moore 1993, 1990 a, 1990 b); e Luiz Borges, originalmente ligado ao Museu Goeldi,
que se preocupou com a fonêmica da Língua Geral.
Os autores aqui mencionados, tanto os historiadores como os lingüístas, esclareceram
aspectos importantes sobre o tema, que serão explicitados ao longo deste trabalho. Até então,
predominava uma representação produzida pela historiografia brasileira, referente ao contato
dos índios com os colonizadores, cuja circulação foi feita de forma tão eficaz e tão difundida,
que acabou por se naturalizar. Seus pressupostos eram o de que o Brasil começara a falar
português imediatamente depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando as línguas
indígenas teriam deixado de ser usadas. Nenhum estudioso interessado no período colonial ou
na própria construção do estado brasileiro e da identidade nacional se havia questionado sobre
a história social das línguas usadas no Brasil, que desta forma não constituía um problema
suscetível de ser investigado. Na medida em que as perguntas não eram formuladas, a
documentação permanecia em silêncio. A grande contribuição dos três historiadores citados –
Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues e Artur Reis - foi justamente interrogar
os documentos sobre essa questão, tornando visível aquilo que não havia sido ainda revelado
pela historiografia, ou seja, que o português não foi a língua falada pelos primeiros brasileiros.
A supremacia do português no Brasil foi o resultado de um processo longo e conflituoso, que
34
se desenvolveu durante todo o período colonial, de forma desigual nas diferentes regiões do
país. O trabalho desses linguistas consistiu em demonstrar que a implantação do português em
terras americanas ocorreu em contato com muitas línguas indígenas, produzindo situações
lingüísticas, caracterizadas pelo desenvolvimento de línguas gerais, entre as quais, a Língua
Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica. A estratégia de ‘garimpar’ informações sobre o
uso da Língua Geral em crônicas do período colonial, nos relatos dos viajantes do século XIX
e na documentação oficial, foi a lição mais importante aprendida com os estudiosos citados, de
quem esse trabalho é tributário, assim como do artigo publicado pela revista Ameríndia, em
Paris (Freire 1983).
1.5 – A estrutura do trabalho
O desenvolvimento deste trabalho requer enfoque interdisciplinar, uma vez que
pretende estabelecer alguns critérios relacionais entre língua e história, na abordagem que será
feita da história social das línguas na Amazônia no período de três séculos, com especial
ênfase no século XIX. Neste primeiro capítulo introdutório, o tema foi problematizado, os
objetivos apresentados e o campo de estudo definido. Foi feita, ainda, uma revisão das
principais fontes, seguida de uma avaliação do estado atual da questão, onde foram
identificados alguns instrumentos de pesquisa.
O segundo capítulo – As línguas na Amazônia e sua história social – vai delinear o
tratamento dispensado pela historiografia à trajetória das línguas, discutindo o lugar que
ocupam na construção da identidade nacional e regional. Apresentará, em seguida, o quadro
multilingüe da Amazônia, no momento da chegada do colonizador europeu, numa proposta
construída a partir das crônicas dos primeiros viajantes, cujos dados serão tratados
criticamente com o apoio de trabalhos contemporâneos de etnolingüistica e de classificação de
línguas indígenas. Acompanhará a evolução desse quadro, através do processo de formação da
Língua Geral e do transplante da língua portuguesa para o Grão-Pará, incluindo um
fluxograma do sistema de exploração da força de trabalho indígena no período colonial, uma
vez que é dentro desse sistema que os usuários das diferentes línguas interagem. Os contatos
35
sistemáticos entre as línguas usadas na Amazônia, através de seus falantes, e as influências
mútuas que umas exerceram sobre as outras, serão analisados com o emprego de algumas
noções do domínio da sociolingüística, como línguas em contato, bilingüismo individual e
social, meia-língua, língua minoritária, empréstimo, substrato e adstrato. As marcas deixadas
no português regional serão examinadas a partir de alguns documentos escritos por
participantes do movimento da Cabanagem, e de atas de câmaras municipais do mesmo
período.
O terceiro capítulo buscará na sociolingüística a categoria ‘política de línguas’ para
avaliar as grandes diretrizes gerais elaboradas pelo Estado e pela Igreja, cuja interferência nos
destinos das línguas na Amazônia, foi responsável, em grande medida, pela expansão da
Língua Geral, provocando um reordenamento da região. A extensão da Língua Geral será
demarcada, com a ajuda dos relatos de viajantes do século XIX, complementados
tangencialmente por documentação de arquivos. Esses dados serão cruzados com a produção
dos tupinólogos, e ambos passarão por crivo crítico, graças às contribuições dos debates
travados pela lingüística em torno dos próprios conceitos de ‘língua’ e de ‘dialeto’. Uma vez
definido o raio de ação da Língua Geral, será analisada a intervenção do Estado e da Igreja
nesse processo, com uma discussão sobre as normas jurídicas, as ações desenvolvidas e o
conjunto de atividades sociais que procuraram resolver os problemas comunicativos da região
e disciplinar a força de trabalho indígena. A partir da correspondência dos governadores do
Grão-Pará com a Coroa Portuguesa, da legislação, das crônicas e de relatórios administrativos,
o capítulo retomará uma proposta de periodização das políticas de línguas, delimitando fases
históricas, localização, funções, expansão e retração do português, da Língua Geral e das
línguas indígenas. Acompanhará ainda o seu desdobramento nas três áreas de atuação: na
externa, onde são definidos os papéis, usos e funções das línguas; na interna, com a produção
de normas, gramáticas e dicionários e, finalmente, na pedagógica, que inclui a catequese e a
escola. Trata-se de averiguar porque a Coroa Portuguesa primeiramente estimulou e depois
proibiu o uso da Língua Geral, e porque fracassaram as tentativas de portugalização no século
XVIII. O modelo formulado por Anderson (1983), que diferencia a ação dos reinos dinásticos,
de um lado, e dos Estados nacionais modernos, de outro, ajudarão a avaliar o papel da Coroa
Portuguesa e do Estado nacional brasileiro nessa questão.
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O capítulo quarto se centrará no século XIX, com o objetivo de verificar como a
Língua Geral perdeu progressivamente funções e usuários para a língua portuguesa,
ressaltando quando e de que maneira a população regional passou a falar majoritariamente o
português. Para isso, a questão demográfica será tratada de forma circunstanciada, com base
sobretudo nos censos paroquiais e provinciais e nos relatórios dos presidentes de província do
Pará e do Amazonas, correlacionando esses dados com os usos das línguas. O desenho do
mapa da LGA vai projetar a distribuição de seus falantes pelas aldeias, povoações, vilas e
cidades, considerando as diferenças regionais do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, com
base em informações que se encontram dispersas nos relatos dos viajantes e naturalistas. Dessa
forma, será composto um cenário provável do processo de deslocamento lingüístico, no qual a
situação lingüística dos grupos sociais estará relacionada diretamente às referências
identitárias. Para isso serão usadas as noções de acontecimento comunicativo, ato
comunicativo, situação comunicativa, interação comunicativa, bilingüismo ativo, bilingüismo
passivo, bilingüismo equilibrado, bilingüismo ambiental, semilingüismo, no sentido proposto
por Francisco Moreno Fernández, em ´Princípios de sociolingüística y sociología del
lenguaje´ (Moreno 1998). O acompanhamento da evolução do quadro sociolingüístico e dos
espaços ocupados pelas línguas amazônicas permitirá caracterizar as fases de expansão e
declínio da Língua Geral, com destaque para alguns fatores que interferiram nesse processo: a
urbanização, as migrações, a escola e a revolução nos meios de transporte, com a introdução
da navegação a vapor.
COPYRIGHT JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
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