domingo, 29 de abril de 2012

O DIÁRIO DE LANGSDORFF

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA O DIÁRIO DE LANGSDORFF O ÉTHOS DO CIENTISTA-VIAJANTE Rodrigo Luvizotto São Paulo 2007 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA O DIÁRIO DE LANGSDORFF: O ÉTHOS DO CIENTISTAVIAJANTE Rodrigo Luvizotto São Paulo 2007 2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA O DIÁRIO DE LANGSDORFF: O ÉTHOS DO CIENTISTAVIAJANTE Rodrigo Luvizotto Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Lingüística do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Norma Discini de Campos São Paulo 2007 3 Para George Henrique de Langsdorff: ao seu trabalho científico no Brasil. 4 SUMÁRIO Introdução -------------------------------------------------------------------------------------------- 11 Capítulo I: O diário de Langsdorff: questões concernentes ao gênero---------------- 21 Capítulo II: O diário de Langsdorff: circunvolução do olhar enunciativo -------------- 64 Capítulo III: O diário de Langsdorff: o éthos da cientificidade --------------------------- 129 Considerações finais ------------------------------------------------------------------------------- 171 Bibliografia -------------------------------------------------------------------------------------------- 176 5 AGRADECIMENTOS Há muitas pessoas que participam, direta ou indiretamente, desta dissertação, colaborando de alguma forma para que eu conseguisse realizar o trabalho a contento. Por isso, gostaria de agradecê-los e reforçar a importância delas em meu percurso. Meu primeiro e maior agradecimento é para Norma Discini de Campos, que com muito empenho e dedicação mostrou-me caminhos necessários a serem percorridos nesta trajetória de pesquisa, incluindo aqueles que levam a análises semióticas e, primordialmente, ao estilo. Agradeço também aos professores que contribuíram para a realização deste trabalho: ao professor José Luiz Fiorin, que ajudou iluminar o diário de Langsdorff; ao professor Ivã Carlos Lopes, pelas orientações analíticas sobre o tamanduá e pelas leituras desta dissertação; ao professor Antonio Vicente Pietroforte, pelas contribuições acerca da tipologia dos diários; ao professor Luiz Tatit, pela “trilha sonora” desta dissertação. Em particular, sou grato a meus pais: Dona Cheila e Seu Fiori e a todos os meus familiares, sobretudo, os sobrinhos: Ri, Bia, Pedro Henrique, João Pedro, Rafael e Victor Hugo. Em especial, agradeço: Ao Leandro de Oliveira Neris, pelo apoio e pelo abstract. A todos os “Normandos”: Sueli Maria Ramos da Silva, Margarete Aparecida Ticianel, Luciana Arruda Migliaccio e Cleonice Men da Silva Ramos. A todos da At home: só quem sabe... À família Sakamoto, em especial ao Cid e Cleber. À família Aoki, particularmente, ao Eduardo e Marcelo Aoki. À família Shibuya, primordialmente, ao pequeno Eduardo Kenzo e Ao Alfeu, pelas preciosas sugestões a respeito da vida. Aos amigos do apartamento 605 do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP): Glauco e Adrilayne. Aos amigos do apartamento 607 (bloco D): Denis e Gilberto. Ao equatoriano Wilfrido, pela inestimável amizade. A Oriana, pela preciosa revisão desta dissertação. 6 Ao André Arruda Oliveira da Silva, mensageiro do saber da professora Norma Discini. A Josie pelas orientações, pelas poesias, pelos mantras. Ao Danuzio Gil Bernardino da Silva, pela atenção nos últimos anos. À professora Marlene Holtzhausen, pela iniciação aos estudos da Expedição Langsdorff. 7 RESUMO Temos à mão um diário, que constrói pelo discurso as províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sob o olhar de um cientista. É o diário de Georg Heinrich von Langsdorff, diplomata, médico, naturalista e chefe da expedição russa, que esteve no Brasil na primeira metade do século XIX. Para entender não apenas o que é dito no diário, mas o porquê e o como do ato de dizer, esta dissertação analisa o éthos do enunciador, o Barão Langsdorff, depreensível da totalidade de discursos, como um efeito de sentido de individualidade. As questões relativas à biografia de Langsdorff, ao longo de sua participação na expedição que chefiou no Brasil, emerge então como efeito de sentido dos próprios textos analisados. Tais procedimentos se tornam possíveis, já que a base teórica que nos dá respaldo é a teoria do texto e do discurso, tomando como ponto de partida a semiótica de linha francesa. Sob tais parâmetros teóricos, herdamos ainda o conceito de gênero do discurso, de Bakhtin, o que permite que a análise identifique as regras do gênero diário, tendo como foco o diário de campo de Langsdorff. Com base nesse suporte teórico, foram descritos os elementos temáticos, estruturais e estilísticos do diário do naturalista alemão, em relação a outros diários, de modo a se depreender o ator da enunciação, Langsdorff, da totalidade de páginas que registram o dia-a-dia da expedição: um ator da enunciação dado na relação de diferença diante de outros atores, pressupostos a outros diários. Respeitando a relação entre plano da expressão e plano do conteúdo dos textos, a leitura do plano do conteúdo do diário de Langsdorff beneficiou-se da operacionalização analítica viabilizada pelo percurso gerativo do sentido, principalmente, no que diz respeito ao nível discursivo, para que se pudesse descrever e explicar o ator da enunciação, que se consolida por um modo recorrente de temporalizar, espacializar e actorializar o mundo construído: no caso, um Brasil da primeira metade do século XIX, tal como construído pelo olhar meticuloso e estrangeiro. Com atenção a um modo próprio de relatar o encadeamento dos fatos, na efemeridade de cada dia, depreende-se a imagem ou o éthos do enunciador, por meio da análise, descrição e explicação de um modo próprio de relatar. Esse sujeito dado pelo modo de dizer apresenta-se ao analista com um corpo ereto, uma voz sem hesitações, um tom de voz e um caráter firmemente postos no mundo. Sob 8 esse olhar se constrói o espaço das terras brasileiras, espaço este articulado aos atores e vinculados ambos ao tempo que flui em sistemas temporais próprios: enuncivos e enunciativos, para erigir a imagem de quem diz, expressa pelo modo científico de dizer. 9 ABSTRACT We have in hand a diary that creates the provinces of Rio de Janeiro and Minas Gerais by the discourse and from a scientist’s look. It is Georg Heinrich Langsdorff’s diary, diplomat, doctor, naturalist and leader of the Russian expedition which was in Brazil in the early 19th century. To understand not only what is told in the diary, but also why and how, this dissertation analyses the ethos of the enunciator, Baron Langsdorff, built from a totality of discourses as an individuality meaning effect. The topics related to Langsdorff’s biography, during his participation in the expedition which he headed in Brazil, arise as a meaning effect from the analyzed texts. Such procedures are possible because the theoretical basis that gives us support comes from the text and discourse theory, having as a starting-point the French semiotics. Yet, we make use of the concept of Bakhtin’s discourse genre, what permits that the analysis identifies the rules of the genre diary, having as focus on the Langsdorff’s diary. Based on this theoretical support, we described the thematic, structural and stylistic elements from the diary of the German naturalist, in relation to other diaries so that we could make emerge the actor of the enunciation, Langsdorff, from the totality of pages which registered day by day the expedition: an actor of the enunciation established in the relation of difference to other actors, belonging to other diaries. Concerning to the relation between the expression plan and the content plan of texts, the content plan reading of Langsdorff’s diary benefited from the analytical operationalization made possible by the generative process, mainly, in what refers to the discursive level so that we could describe and explain the actor of the enunciation consolidated by a recurrent way of using the temporalization, spatialization and actorialization to construct a world: as Brazil in the early 19th century, such as constructed by a meticulous and foreign look. Giving attention to a particular way of narrating the connection of facts, in the ephemerality of each day, we depict the image or ethos of the enunciator by the analysis, description and explanation of a particular way of narrating. This subject is shown to the analyst as an erected body, a voice with no hesitations, a voice tone 10 and a character set firmly in the world. From this look, the space of the Brazilian lands is built, space organized with the actors and both linked to the time that flows in peculiar temporal systems: enuncives and enunciatives, to create an image of who says, expressed by the scientific way of telling. 11 INTRODUÇÃO 12 Notas sobre a biografia de Langsdorff O Barão Georg Henrich von Langsdorff, chefe da expedição russa que esteve no Brasil na primeira metade do século XIX, nasceu no reino de Hessen em 1774, na localidade de Wöllstein, Alemanha. Em 29 de junho de 1852, aos 78 anos, ele faleceu na cidade de Freiburg, em Breisgau. De 1783 a 1793, estudou nos ginásios de Buchsweiler (Alsácia) e de Idstein (Hessen-Nassau). Na Universidade de Göttingen estudou Ciências Naturais e Medicina, doutorando-se aos 23 anos em Medicina. Logo após a titulação, partiu para Portugal como médico particular do príncipe von Waldeck, comandante do exército português. Com a morte do príncipe, Langsdorff começa a trabalhar no hospital da ordem das noviças de Bartholomeu, em Lisboa, onde ele introduziu a vacina contra a varíola (cf. Fauser, 1995, p. 32). Nas horas vagas, dedicava-se a pesquisas no terreno da História Natural. Langsdorff formou rapidamente amplo círculo de conhecidos em Portugal. Na qualidade de membro-correspondente da Academia de Ciências da então União Soviética, interessou-se pela preparação do primeiro empreendimento russo de circunavegação do globo, a expedição do capitão von Krusenstein. Langsdorff solicitou sua candidatura para exercer a função de naturalista nessa expedição. Inicialmente seu pedido foi negado, como apresenta Manizer: “A 18 de agôsto de 1803, recebeu resposta do acadêmico Kraft comunicando-lhe que sua proposta chegara tarde, pois os navios Nadiejda (esperança) e Nieva (Neve) deviam partir logo com os primeiros ventos” (1967, p. 35). Langsdorff partiu para Warnemünde ao encontro da expedição e ali foi aceito para exercer a função de ictiólogo e mineralogista. As embarcações Nadiejda e Nieva da expedição Krusenstein, após breve estada em Falmouth e nas Ilhas Canárias, chegaram nas proximidades de São Miguel, em Santa Catarina, para conserto de mastro avariado e reabastecimento dos estoques de água doce. Nessa região, Langsdorff pôde fazer uma série de observações científicas, tais como: 13 dedicar-se atentamente à caça de mariposas e realizar freqüentes excursões à beira da floreta. O conhecimento da língua portuguêsa permitiu-lhe, em um mês e pouco, não só fartar-se de admirar as riquezas naturais, o canto de pássaros desconhecidos, como também conhecer de perto a população e seus hábitos que, em muitos pontos, o surpreenderam pela diferença em relação aos hábitos da metrópole (Manizer, 1967, p. 37).1 Em 16 de março de 1808, chega ao fim a viagem ao redor do mundo. Ao término da expedição, em São Petersburgo, Langsdorff foi nomeado assistente em botânica, na Academia de Ciências de São Petersburgo. Em 1812, pelo seu próprio desejo, uma segunda nomeação: Cônsul-geral da Rússia no Rio de Janeiro, conservando seu título e seus honorários de acadêmico. O Barão Langsdorff chegou ao Rio de Janeiro em 5 de abril de 1813. Ele exercia sua função de cônsul e nas horas livres se dedicava à pesquisa pelas proximidades da então província do Rio de Janeiro, bem como por pequenas excursões pela província de Minas Gerais. Em 1821, o Barão Langsdorff encaminhou a Karl Nesselrode, ministro das Relações Exteriores da Rússia, um projeto de expedição pelo interior do Brasil, objetivando: “descobertas cientificas, geográficas, estatísticas e outras pesquisas, estudo sobre produtos não conhecidos no mercado, coleção de objetos de todo reino natural” (Chur, 1981, p. 26-27). O projeto foi aprovado e largamente financiado pelo Czar Alexandre I. Em março de 1822 acompanhado dos futuros participantes da Expedição e de quase duas dezenas de famílias de artesãos alemães, Langsdorff voltou ao Brasil. Planejava instalar essas famílias em suas terras na Fazenda da Mandioca. Essa experiência de Langsdorff foi uma das pioneiras na introdução de imigrantes estrangeiros no Brasil, ainda naquela época, um país escravocrata (Komissarov, 1997, p. XVI). 1 Mantivemos a grafia original 14 Dentre os membros da expedição, estavam, entre outros, os pintores Moritz Rugendas, Hercules Florence, Adrien Taunay, o botânico Ludwig Riedel, o astrônomo e cartógrafo Nester Rubtsov, o zoólogo e lingüista Eduward Ménétriès e o médico e zoólogo Cristian Hasse. Após um período de pequenas excursões pelas proximidades da Fazenda Mandioca, localizada no interior do Rio de Janeiro, tem início, em 1824, a viagem pelo interior do Brasil. De acordo com Manizer: A importância da Expedição russa ao Brasil tornar-se-á particularmente clara se, considerando o nível da ciência no princípio do século XIX, a examinarmos à luz dos dados existentes sobre a América do Sul, que eram, com efeito, bastante exíguos (1967, p. 15). A Expedição Langsdorff percorreu cerca de 17 mil quilômetros pelo interior do Brasil, de 1821 a 1829. Partiram do Rio de Janeiro e passaram por Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso (Norte e Sul), Rondônia, Amazonas e Pará. A viagem foi interrompida devido a dois incidentes. O primeiro ocorreu com Adrien Taunay, que morreu afogado ao tentar atravessar a nado o Rio Guaporé. Posteriormente, o Barão Langsdorff foi abatido pela malária, que o deixou impossibilitado de prosseguir viagem. Ao término da expedição, grande parte do material produzido pelos expedicionários foi enviada à Rússia e deixada por volta de cem anos em uma sala do Jardim Botânico de São Petersburgo. Uma parcela desse material foi perdida como, por exemplo, alguns cadernos dos diários do chefe da expedição. Em 1930, historiadores russos encontram todo o material da expedição científica russa. Esse acervo é constituído pelos manuscritos dos membros da expedição, desenhos, aquarelas, croquis, mapas, espécies minerais, herbários, diversos animais empalhados, vocabulários de línguas indígenas, material etnográfico e correspondência diversa, entre outros. Do acervo produzido pela Expedição Langsdorff, particularmente valiosos são os diários de Langsdorff, Florence, Ménétriès e Riedel. Também possuem extraordinário valor os desenhos dos pintores da expedição. O primeiro relato do empreendimento a ser publicado foi o do desenhista Hercules Florence, visto que durante o regresso, no navio que trouxe os 15 participantes da expedição de Belém ao Rio de Janeiro, ele começou a passar a limpo seu diário fazendo algumas anotações e comentários. Em 1829, o diário foi presenteado à família de Adrien Taunay, que morreu afogado durante a expedição. Visconde de Taunay foi o responsável pela tradução e publicação, em 1875, de tal diário. Pode-se dizer que o segundo esforço de divulgação do acervo da Expedição Langsdorff se deve a Dom Clemente Maria da Silva Nigra, “monge e sábio beneditino, alemão de nascimento, fundador e diretor, por muitos anos, do Museu de Arte Sacra da Bahia” (Albuquerque, 1997, p. XXXIII). Dom Clemente visitou o acervo da Expedição Langsdorff na Rússia, bem como uma série de pesquisas na Alemanha. Vale destacar que Dom Clemente foi financiado por Francisco de Assis Chateaubriand, jornalista e político paraibano, proprietário da primeira grande rede de empresas de comunicação e uma das personalidades mais influentes do país nos anos 1940 e 1950. Por volta de 1960, com o progresso dos estudos, Chateaubriand organiza juntamente com a Fundação de Estudos Históricos Dom Pedro II, uma missão cultural para resgatar tal acervo, cujo valor e preservação são surpreendentes. A missão é composta pela Sra. Aimée De Heeren, Dom Clemente Maria da Silva Nigra, Francisco de Assis Chateaubriand, Odorico Tavares e Ed Keffel. Os resultados desta missão são publicados em uma série de quatro reportagens na revista O Cruzeiro. Tivemos a oportunidade de localizar tais reportagens, que são arroladas a seguir, de acordo com o título e a data de publicação: Chateaubriand em Moscou, as portas da amizade, publicada em 16.10.1965; Chateaubriand em Moscou, a arte é arte de conquistar os russos, publicada em 23.10.1965; Chateaubriand na Rússia, a descoberta do tesouro, publicada em 6.11.1966; e Os russos arquivam o Brasil, publicada em 19.12.1963. Os diários do Barão Georg Henrich von Langadorff constituem uma parte importante do arquivo de sua expedição brasileira, realizada entre 1822 e 1829, fase crucial da formação da sociedade brasileira, coincidindo com o início da Independência do Brasil. Esses diários são compostos de 26 cadernos de diferentes formatos e tamanhos, abrangendo 1.388 páginas (cf. Komissarov, 1994, p. 13). Os diários de Langsdorff, de acordo com Boris Komissarov: 16 foram escritos em alemão, em letras góticas. Sua caligrafia é de leitura difícil. Encontram-se letras acavaladas e palavras escritas abreviadamente. Páginas escritas em português ou inglês e palavras isoladas em latim ou francês lêem-se com maior facilidade, mas também nesses casos Langsdorff usou abreviaturas com freqüência. Nem sempre ele produzia a grafia de uma mesma palavra de maneira idêntica. Complicam a leitura os acréscimos entre as linhas (1994, p. 14). As transcrições e preparação dos textos dos diários de Langsdorff se devem ao árduo trabalho do filólogo V. A. Egerov, de Noema Sprintsin, de Maria Krutikova e de Dimitrij E. Berthels. A publicação de tais documentos no Brasil, em 1997, resulta, principalmente, do trabalho dedicado de Boris Komissarov e Marcos Pinto Braga que, juntamente com a Associação Internacional de Estudos Langsdorff (AIEL), viabilizaram esse empreendimento. Os Diários de Langsdorff 2são compostos por três volumes. O primeiro volume é dedicado às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; o segundo diz respeito à província de São Paulo; o terceiro é referente a Mato Grosso e Amazônia. Mirian Moreira Leite destaca a tradição e a importância dos diários: Desde o século XVIII, em instruções aos naturalista-peregrinos, as autoridades coloniais portuguesas recomendavam, com metuticulosas cautelas, o registro diário de atividades e descobertas, bem como a revisão semanal dos registros para aperfeiçoamento dos mesmos. Fonte de conhecimento e de indicações de recursos econômicos disputados pelas potências européias, esses diários eram peças valiosas e segredo de Estado (Leite, p. XLV). 2 De acordo com informação obtida com Danuzio Gil Bernardino da Silva, organizador dos Diários de Langsdorff, há uma versão publicada dos manuscritos de Langsdorff em língua russa. Tal versão, no entanto, apresenta inúmeros cortes, contendo ao todo 200 páginas, ao contrário das mais de mil páginas da versão em língua portuguesa. 17 Os Diários de Langsddorff como corpus de análise segundo as bases teóricas adotadas Os Diários de Langsdorff serão examinados segundo os parâmetros teóricos da Teoria do Texto e do Discurso e, mais precisamente, da Semiótica de Linha francesa. Assim sendo, será realizada uma análise que cotejará o texto em situação de discurso. Para isso, o diário será visto como um enunciado em relação a uma enunciação, o que significa considerar o diário como reflexo de aspirações sociais num tempo e num espaço determinados; como um enunciado cujas realizações lingüísticas remetem ao modo próprio de dizer; como um enunciado que, como todo signo, envolve uma arena de conflitos sociais. Como tal, o diário será considerado ”naquilo que é dito; no como é dito; no porquê é dito; na aparência; na imanência; como signo; como História” (Discini, 2005, p. 13). Será ainda descrito na relação entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, relação esta constitutiva dos textos. Dessa forma, Os Diários de Langsdorff ressaltam uma temporalidade marcada. Trata-se de textos datados da primeira metade do século XIX. Também ressaltam uma espacialidade marcada, ou seja, por um lugar, o Brasil; e pela actorialidade, isto é, pelos membros da Expedição Langsdorff, de outros estrangeiros presentes no Brasil e pelos brasileiros de modo geral. Permeando os atores do enunciado, destaca-se o ator da enunciação, Langsdorff. Por meio de temas e figuras disseminados no discurso, é possível depreender a visão de mundo, as paixões e o contexto sócio-histórico e ideológico da época em questão. Aliás, por ideologia entendemos aqui, segundo Marilena Chauí: um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer (1980, p. 129). Consideraremos que tudo isso se processa no e pelo discurso dos diários do naturalista alemão. Dessa forma, justifica-se teoricamente esta pesquisa pelo olhar 18 semiótico lançado sobre os diários do chefe da expedição russa. Esta escolha se deve pelo fato de ser a obra aqui cotejada pouco explorada no campo dos estudos lingüísticos e discursivos, particularmente. Assim, o que é falado pelos estudiosos de Langsdorff e de seus diários é e será tomado a título de ilustração, pois para nós interessa o Brasil tal como é desenhado pelo narrador Langsdorff, cuja voz é delegada pelo enunciador Langsdorff. Dos diários chegaremos ao estilo; dos diários chegaremos ao homem: “o estilo é o homem”, segundo Buffon. Não se trata, evidentemente, de Georg Heinrich von Langsdorff real, em carne e osso, mas de uma imagem de Langsdorff produzida pelo texto. Constata-se tal imagem de acordo com um modo recorrente de dizer, que remete a um modo de ser do enunciador. Assim será depreendido o éthos do enunciador, o qual será aqui examinado justamente pelo modo de figurativizar e tematizar o Brasil, o que concretiza o próprio modo de explorar nossas terras com o olhar cientificista. O corpus se define por meio de três volumes dos Diários de Langsdorff. Optou-se por recortar apenas o primeiro deles, dedicado aos relatos referentes às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Também confirmamo-nos amparados no respaldo teórico segundo o qual uma unidade textual, quando posta sob análise, em relação de complementaridade, traz pressuposta uma totalidade integral. Assim sendo, tomaremos uma página aqui, outra lá, outra acolá do primeiro volume dos diários, sabendo, entretanto, que uma invariante subjaz às variações, o que assegura a relação “unidade / totalidade” (cf. Discini, 2004, p. 31-32). Por conseguinte, analiticamente, serão observados no primeiro capítulo os elementos que permitem reconhecer Os Diários de Langsdorff como fazendo parte do gênero diário. A partir disso, apreenderemos o estatuto do gênero diário, consideradas as variações diário de campo e diário de viagem, que se definem em oposição ao diário íntimo. Esses gêneros, como variações do gênero diário, serão examinados para que melhor se entenda como se constrói o Brasil no diário em pauta. De acordo com Mikhail Bakhtin (1992), todo gênero apresenta bases discursivas e textuais, dadas como forma de estrutura composicional, temática e estilo, como coerções fundantes. Assim, observaremos como se dão as regras do gênero básico, o diário; como se constroem as regras do gênero diário de campo, como variação da cena genérica básica; como se define a cena enunciativa de Os diários de Langsdorff para que se possa descrever e explicar o ator da enunciação como sujeito do discurso. 19 Tendo isso em vista, a princípio, cotejar-se-ão Os Diários de Langsdorff com outros diários, tanto de viagem como íntimos, a fim de fundamentar e ilustrar os elementos que caracterizam o gênero diário, assim como sua variação diário de campo. Para tanto, a análise se orientará, principalmente, pela análise das categorias de pessoa, tempo e espaço, que organizam a estrutura composicional (formas de organização textual), a temática (o assunto de que trata o gênero) e o estilo (o éthos, dado como a escolha dos recursos discursivos e lingüísticos). Após o reconhecimento do gênero diário e as características que permitem reconhecê-lo como tal, almeja-se, no segundo capítulo, perscrutar Os Diários de Langsdorff por meio do percurso gerativo de sentido. Esse instrumento metodológico, segundo Barros, observa e descreve o texto em diferentes níveis de abstração, determinando etapas entre a imanência e a aparência. Os níveis profundo, narrativo e discursivo constituem o plano do conteúdo dos textos. Na manifestação tem-se o plano da expressão. É no plano do conteúdo que se aplica o percurso gerativo do sentido. Assim, é possível a elaboração de descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso (Barros, 2002, p. 15). Esses níveis conhecidos, portanto, como fundamental, narrativo e discursivo contêm cada qual dois componentes, ou seja, uma sintaxe e uma semântica. Discini leva-nos a perceber que, com esse quadro teóricometodológico, “desconstrói-se, para reconstruir, o percurso gerativo do sentido, desde os níveis mais profundos, abstratos e simples, até os níveis mais superficiais, concretos e complexos” (2004, p. 13). No terceiro capítulo, O éthos do enunciador de Os Diários de Langsdorff será descrito por meio do aparato teórico-metodologico oferecido por Dominique Maingueneau (2005, p. 69-92), principalmente no que diz respeito às noções de cena enunciativa/cenografia e cena genérica/cena englobante. Cena enunciativa será entendida como a dêixis enunciativa, o eu, aqui, agora, a imagem do sujeito no ato de enunciar pressuposta a cada texto que materializa o gênero: cada página de Os Diários de Langsdorff. Cena genérica refere-se ao gênero, como “enunciado relativamente estável”, como quer Bakhtin. Tem-se então a cena genérica do gênero diário com sua composição, temática, estilo, já que qualquer modalidade de diário terá a mesma cena genérica. Para a apreensão do éthos de Langsdorff contamos ainda com o respaldo das proposições de Norma Discini (2003) feitas sobre estilo, bem como o percurso gerativo do sentido, dado pela semiótica greimasiana. 20 Por fim, cabe ao olhar analítico do pesquisador iluminar esse diário referente às viagens realizadas pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, de 1824 a 1825, com vistas a “devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe”, tomando palavras de Guimarães Rosa (1980, p. 24). 21 CAPÍTULO I O DIÁRIO DE LANGSDORFF: QUESTÕES CONCERNENTES AO GÊNERO 22 O diário de Langsdorff 09/01 [1825] Era minha intenção voltar para junto dos meus companheiros de viagem hoje bem cedo, mas uma chuva fina e contínua provocou uma tal enchente no rio, que nem pude pensar em viajar; mal podia sair de casa. Foi um dia triste, que passei sozinho, sem um livro, nem mesmo o meu jornal [diário]. Tive que passar o dia todo no quarto de uma propriedade solitária (1997, p. 318)3 Georg Heinrich Freiherr von Langsdorff Toma-se a epígrafe como ponto de partida. É o próprio Langsdorff quem denomina o gênero discursivo a que recorreu para relatar a revelação de novos espaços, paisagens, floras, faunas, costumes e religiões, etc. Tendo em vista as condições específicas e finalidades de uma expedição científica, vemos que o diário, no caso de Langsdorff, é um gênero que circula nessa esfera de atividade, dita científica, pois como lembra Bakhtin4, sempre que usamos a língua para nos comunicar, de forma oral ou por escrito, nas mais diversas esferas de comunicação humana, recorremos a algum gênero de discurso. O gênero diário, assim como os gêneros crônica e carta foram largamente utilizados pelos viajantes estrangeiros que passaram pelo Brasil, haja vista que o primeiro texto referente ao Brasil é a Carta de Pero Vaz de Caminha. Lembrando que os gêneros discursivos, de acordo com Bakhtin5, são tipos relativamente estáveis e normativos de enunciados e que existe uma diversidade enorme deles, relativa às infinitas potencialidades das formas de discurso (atos de fala) que a língua configura nos diversos campos sociais, verificamos que não é gratuita essa escolha feita pelos viajantes estrangeiros que passaram pelo Brasil nos primórdios de nossa História. Antes de proceder a uma investigação detida do texto langsdorffiano, com vistas a depreender os elementos discursivos que permitem reconhecê-lo como 3 Todas as referências feitas a Os Diários de Langsdorff dizem respeito ao volume I, referente às viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, e doravante serão referencializadas tão somente pelo ano de publicação e número da página. 4 Cf. 1992, p. 279. 5 Cf. 1992, p. 279.. 23 pertencente ao gênero diário, é proveitoso recorrer a algumas definições a respeito do termo diário. Diarius: em busca de conceitos Tendo como base Os Diários de Langsdorff, recorremos, inicialmente, a algumas definições do termo diário, buscando um conceito para balizar nossas reflexões. Trata-se de uma tarefa difícil, pois como lembra Schneuwly em Le fonctionnement des discours: Le recueil de journaux de voyage s’est avéré difficile. Contrairement à d’autres genres de textes intermédiaires, ils ne constituent en effet pas un ensemble identifiable par le titre d’une collection, par la forme extérieure du texte ou par l’intention didactique de l’auteur. Souvent le titre du livre est le seul indice disponible. 27 titres de livres où figuraient soit les mots <> ou <>, soit la mention d’un lieu géographique ont été choisis (Schneuwly, 1985, p. 104). Nota-se, portanto, que o gênero discursivo diário é proteiforme, apresentando tipos textuais variados, como veremos mais adiante. Antes, porém, é proveitoso recorrer a definições do termo diário em dicionários diversos. A primeira acepção do dicionário Le Nouveau Petit Robert apresenta diário como sendo relativo a cada dia. Na segunda acepção, fala de uma “Relation quotidienne des événements; écrit portant cette relation.” Em seguida, o dicionário apresenta os gêneros ou obras relativas ao termo diário, tais como Journal intime, Journal de Stendhal, Roman en forme de journal, Journal de mer, etc. Além disso, ainda na segunda acepção, discorre sobre o diário de bordo: “compte rendu chronologique des données relatives à la navigation en vol et à la mission.” Por fim, “Publication périodique relatant les événements saillants dans un ou plusieurs domaines: bulletin, gazette, hebdomadaire, magazine, périodique, revue (2000, p. 1382, grifos do autor). Em Petit Larousse encontra-se a expressão “jour par jour”, bem como “Jounal de bord, de marche, registre, tenu jour par jour, des diverses circonstances d’une navigation, d’une expédition” (1980, p. 577). Segundo o dicionário Houaiss, o termo está associado a vários significados: adjetivo latino diarius /a/ um, refere-se a: “que 24 se faz ou acontece todos os dias''. Como substantivo masculino: “Escrito em que se registram os acontecimentos de cada dia”; “periódico que se publica todos os dias'' (2000, p.1.032). Os verbetes consultados apresentam os sentidos que o termo diário pode ter: ora relacionado a acontecimentos do dia-a-dia, do ponto de vista íntimo; ora ao conceito de jornal propriamente dito; ora a diário de bordo utilizado por viajantes. Uma característica presente nos três conceitos diz respeito à regularidade, à freqüência da escrita: “jour par jour”, ao diarismo. Recorrendo a outros dicionários, agora, porém, específicos, encontram-se outras acepções para diário. Em Dicionário de termos literários, Massaud Moisés assim o define: DIÁRIO – latim diariu (m), ração diária; die (m), dia. Designa o relato de acontecimentos ocorridos durante as vinte e quatro horas do dia. De duas formas se processa o registro dos eventos: por meio do jornal, ou seja, papel impresso publicado todos os dias ou com certa periodicidade; ou nas páginas reservadas em que o escritor aponta e comenta os fatos principais do seu dia-a-dia. A segunda modalidade, “diário intimo”, é que carrega interesse literário, posto que restrito (Moisés, 1985, p.148). Nota-se que Moisés restringe o conceito de diário seja ao de jornal propriamente dito, seja ao de diário íntimo, dando grande destaque a este por meio de um resgate das principais obras na continuidade do verbete, tais como Diário Íntimo, de Manuel Laranjeiras (1957) e o Amiel Journal intime (1847), do suíço H.F. Já o Dicionário de Literatura relaciona o verbete diário com memorialismo e apresenta um destaque especial aos diários de bordo: Diários de bordo. Esta designação engloba, no princípio da larga navegação oceânica, quanto respeita ao descobrimento, à definição geográfica, à marinharia, ao processo astro-naútico, etc.; nela cabem, por isso, para os sécs. XV, XVI e XVII, tanto o Esmeraldo de situ ordis de Duarte Pacheco Pereira (v.) como os Roteiros de D. João de Castro (v.) (...), como o Roteiro da viagem de Vasco da Gama de 1497, de Álvaro Velho, etc. A esta literatura, em que é 25 necessariamente riquíssima e original a cultura portuguesa, e que de certo modo possui seu cunho historiográfico, convém a denominação genérica de livros de navegação ou livros de rotear (Coelho, 1994, p.260). Nesse caso, o conceito de diário recebe a denominação particular de “diário de bordo” devido à larga experiência da nação portuguesa nas descobertas ultramarinas. Sob uma perspectiva discursiva, observa-se a ancoragem dos conteúdos que o referido diário pode apresentar, por meio de temas e figuras voltadas para o universo semântico marítimo. O Dicionário de Narratologia oferece outra definição a respeito da noção de diário: DIÁRIO – 1. Como o nome indica, o diário narrativo constitui um subgênero muito marcado do ponto de vista temporal; registro quotidiano de eventos e vivências, o diário assenta a sua especificidade antes de mais no tipo de narração que privilegia: a narração intercalada (v.), justamente caracterizada pelo facto de ser uma enunciação narrativa intermitente, ocorrida em momentos de pausa da história, neste caso constituída pelas experiências que o dia-a-dia vai propiciando ao narrador (...) 2. As características essenciais do diário narrativo têm que ver directamente com as motivações que o originam: a necessidade de ir anotando os incidentes de uma viagem (cf. os diários de bordo), uma experiência profissional estimulante (cf. Diário de Sebastião da Gama), uma situação anormal e humanamente impressiva (cf. o Diário de Anne Frank), etc (Reis e Lopes, 1994, p.105-107; grifos do autor). Os autores desse dicionário tecem minucioso estudo sobre o gênero diário, destacando características como o confessionismo e o caráter ficcional de alguns exemplares, assim como os diversos tipos de narrador, presentes nos mais diversos tipos de diários. Por fim, no prefácio de Os Diários de Langsdorff, Mirian Moreira Leite define o diário do médico alemão da seguinte forma: 26 O diário de campo costuma ser um instrumento de trabalho científico, realizado com vistas à elaboração de relatórios completos e minuciosos ou da publicação de livros, através do desdobramento da continuidade e do inter-relacionamento dos dados anotados apressadamente, como lembretes, e da organização lógica de seu conteúdo para um público mais amplo, mesmo que conserve a forma atraente do diário (1997, p. XLV). Enfim, constata-se que as referidas definições apresentam o termo diário nas seguintes acepções gerais: a) texto utilizado para apresentar relatos introspectivos, de paixões, de experiências íntimas, etc; b) texto dado como meio de publicação de notícias, entrevistas, comentários, informações úteis para o público, enfim, diário enquanto jornal no sentido corrente do termo; c) texto dado como meio de retratar dados geográficos, históricos, marítimos, etc., enfim, um diário de bordo largamente utilizado nas descobertas feitas pela nação portuguesa; d) texto dado como fonte de conhecimento científico, de indicações de recursos econômicos e naturais, bem como do caráter social de uma nação. Afinal, um diário de campo. Dessa forma, podemos demonstrar os principais desdobramentos do gênero diário com o seguinte diagrama: 27 Figura 1 Como vemos, o gênero diário é de relativa complexidade. Isso significa, entre outras coisas, que apresenta organização e função específicas, de acordo com o feixe de intencionalidade que reúne cada situação de comunicação pressuposta. Isso nos leva também à seguinte questão: a que desdobramento do gênero Os Diários de Langsdorff pertenceriam? Diário de viagem, diário de campo, ou diário íntimo? Concordamos com Mirian Moreira Leite, para quem o diário do naturalista alemão é classificado como um diário de campo, dado o caráter exploratório, científico, enfim, um diário pautado pelo saber, saber muito sobre o Brasil. diário íntimo diário de bordo diário de campo diário de viagem Gênero diário 28 Por uma tipologia dos diários Não se trata aqui de elaborar um estudo que diga respeito rigorosamente às múltiplas facetas e implicações da diversa ordem que o gênero diário pressupõe, mas chegar, como diria Maingueneau em Gênese dos discursos, “às implicações teóricas e metodológicas que lhe estão ligadas” (2005, p. 66). Trata-se fundamentalmente de investigar os mecanismos de construção de sentido que respaldam o gênero diário de campo, em função de outros diários. Desse modo, segundo as acepções do termo diário nos mais diversos dicionários consultados, ficam aqui propostas para centro de nosso olhar analítico, duas categorias desse gênero, a saber, diário intimista e diário exploratório. O primeiro se materializa especialmente pelo diário íntimo, tais como os diários de Virginia Woolf, de Sylvia Plath, de Anne Frank, de Thomas Mann, de Lima Barreto, de Torquato Neto, entre outros. O discurso intimista caracteriza-se primordialmente pelo critério temático centrado no eu, “literatura do eu”, conforme palavras de Flora Süssekind. Esse discurso discorre sobre assuntos extremamente pessoais e confidenciais. No discurso intimista, concretizado por meio do diário, costuma ser privilegiado o “eu” como centro do mundo, seja um eu íntegro ou cindido. No diário íntimo, a observação do mundo costuma tender para o emocional e para as oscilações dos estados da alma. Tais oscilações aí narradas configuram um éthos sofrido, no sentido de que o sujeito narrador sofre mais os eventos cotidianos, deixando-se atravessar-se por eles. O discurso intimista tende assim à dimensão da intensidade, ou seja, aos estados da alma, ao sensível. Os papéis temáticos do narrador do diário íntimo são daquele que confessa, daquele (ou suprima o segundo daquele) que confidencia ao pé do ouvido, com o máximo de cumplicidade. Por discurso exploratório entende-se o ato ou efeito de procurar, descobrir, explorar, pesquisar uma região, um território, um país, etc. Enfim, temos o discurso que explora o “mundo aí, postado fora de nós, em si mesmo, e absolutamente apto à apreensão de nossos sentidos” (Cardoso, 1988, p.347). O discurso exploratório se materializa primordialmente pelos desdobramentos do gênero diário, tais como diário de bordo, diário de viagem e diário de campo. Trata-se de gêneros largamente utilizados tanto em língua portuguesa como estrangeira desde o descobrimento do Brasil. Não só os diários dos viajantes e naturalistas fazem parte do discurso exploratório, mas também diários como de Bertolt Brecht, Diário de trabalho, em que 29 temos o critério temático voltado para o fazer do homem no mundo. Enfim, o discurso exploratório tende a ter mais efeito de objetividade, não discursivizando estados da alma intensos e emoções impactantes. É um discurso que cria um éthos seguro, com vistas a ter maior credibilidade perante o enunciatário, a respeito das “realidades” construídas. O discurso exploratório é predominantemente da ordem da dimensão extensiva, isto é, dos estados das coisas, do inteligível. A característica principal que permite distinguir o diário intimista do diário exploratório é, de acordo com a tríade bakhtiniana, o critério temático. Lembramos que a temática “não é o assunto de que trata o texto, mas é a esfera de sentido de que trata o gênero” (Fiorin, 2006, p. 103), ou melhor, da esfera de sentido de que trata cada desdobramento do gênero diário. Voltaremos a esta questão posteriormente. Assim, tendo em vista as duas classes consideradas do gênero diário, podese apresentar o seguinte diagrama: Figura 2 É neste momento que devemos recorrer aos conceitos de cena englobante, cena genérica e cenografia como elementos indissociáveis que constroem e Gênero diário Diário intimista: discurso voltado para o “eu”, Diário exploratório: discurso voltado para o mundo “exterior” diário de viagem diário de bordo diário de campo diário íntimo 30 legitimam a enunciação. Segundo Maingueneau, as três cenas podem ser assim entendidas: ● cena englobante: é relacionada a um tipo de discurso. Relaciona-se ao conceito de “esfera de circulação”. Conceito, portanto, mais abrangente do que gênero. Por exemplo, desde o século XVI até o século XIX, diversos viajantes, conquistadores, catequistas, aventureiros, peregrinos, artistas e cientistas exploraram e registraram aspectos variados a respeito do Brasil. Tais registros formam hoje, para a literatura historiográfica, um generoso arquivo que denominaremos de discurso dos viajantes. Nessa cena englobante encontram-se diversos gêneros, tais como: cartas, diários, relatórios, telas, aquarelas, para citar somente alguns. Enfim, a cena englobante corresponde, segundo Maingueneau, “ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico” (2005, p. 75). O gênero diário, por exemplo, pode transitar em diferentes esferas de comunicação humana, tais como: “esfera científica”, “esfera artístico-cultural”, “esfera literária”, “esfera cotidiana”, entre outras; ● cena genérica: “é a do contrato associado a um gênero, a uma ‘instituição discursiva’“ (Maingueneau, 2005, p. 75). Relaciona-se, portanto, ao gênero discursivo que define o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire sentido (isto é, uma cena de enunciação que o legitime). Como se disse, a cena englobante supõe cenas genéricas variadas, entre as quais se encontram o diário, bem como cartas e pranchas de desenhistas. Cada cena genérica possui suas regras coercitivas, ou seja, regras para o dizer. O diário supõe cenas genéricas diversas, que o categorizam como diário íntimo, diário de bordo, diário de campo, entre outras; ● cenografia: “não é imposta pelo gênero, ela é constituída pelo próprio texto” (2005, p. 75). A cenografia pode corroborar a cena genérica ou adotar uma postura diferenciada, ou seja, a escolha do gênero diário de campo pode favorecer (ou não) a previsão da cenografia que será mobilizada. Enfim, um diário de campo supõe cenografias diversas. Cada uma dessas cenografias constitui um diferente ato de enunciação, do qual se depreende um éthos. A seguir, concentraremos nosso foco analítico no gênero diário de campo e, após verificar uma estrutura composicional, uma temática e um estilo do gênero, verificaremos como emerge o éthos Langsdorff na utilização das regras do gênero diário. 31 O diário como gênero discursivo Comecemos perguntando quais são as características próprias do gênero diário que o diferenciam de outros gêneros discursivos, ou ainda, quais são as características do diário de campo que o diferenciam de outros desdobramentos do gênero diário, tais como o diário íntimo e o diário de viagem. Podemos ainda cotejar semelhanças e diferenças entre o diário de campo de Langsdorff e outros exemplares de diário de campo. Dessa forma, sem uma investigação mais aprofundada do enunciado em questão, em suas relações dialógicas e em seus elementos internos, é impossível descrever o gênero diário de modo geral e, principalmente, o desdobramento diário de campo. Considerando a importância da definição do gênero discursivo e com vistas a um maior rendimento analítico, pensamos, com Bakhtin, em “tipos relativamente estáveis de enunciados” (1992, p. 279; grifos do autor). Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado discurso, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico (Bakhtin, 1992, p. 284). Tomando os diários do naturalista alemão, o Barão Langsdorff, como um enunciado exemplar do gênero diário de campo, devem-se perscrutar as dimensões de tal desdobramento do gênero diário por meio da esfera de comunicação humana em que esse gênero circula; por traços composicionais, relativos à forma, presentes nesse conjunto; pelos temas recorrentes dentre esses enunciados e por recursos estilísticos utilizados para a elaboração desses enunciados em relação à forma e ao tema. Diante do exposto, podemos depreender as seguintes formulações que oferecerão subsídios à pesquisa sobre os diários em questão. ● Como já se disse, a esfera de comunicação em que o diário de campo transita diz respeito à esfera científica, à esfera artístico-cultural, à esfera literária e à esfera 32 cotidiana, para citar alguns exemplos. Trata-se da cena englobante definida por Maingueneau, conceito bem mais abrangente do que gênero. ● Os traços composicionais, relativos à forma do enunciado, correlacionam-se com a cena genérica. É, portanto, da ordem da estrutura, “do modo de fazer/ser típico deste regime enunciativo” (Carvalho, 2005, p. 71), que se depreende a estrutura composicional do diário estudado. Pelo viés semiótico, trata-se de depreender as ancoragens temporal, espacial e actorial dos diários. ● Os temas recorrentes nesses enunciados também se relacionam com a cena genérica. Semioticamente falando, trata-se de apreender os percursos temáticofigurativos do discurso. ● Os recursos estilísticos utilizados para a elaboração desses enunciados em relação à forma e ao tema reúnem a composição e a temática do gênero diário de campo para que se compreenda o estilo de tal diário. Temos um estilo relacionado à cena genérica e um estilo que diz respeito à cenografia. Este se refere ao éthos de Langsdorff, aquele ao éthos do gênero. De acordo com esse quadro teórico-metodológico, foi possível confirmar algumas linhas de contorno do gênero diário, que seguem expostas. Os Diários de Langsdorff: cotejando diferenças e semelhanças Para estabelecer o estatuto do diário de campo de Langsdorff, seguir-se-á o princípio postulado por Ferdinand de Saussure, segundo o qual o sentido nasce da diferença. Pautando as reflexões feitas por essa perspectiva, tal diário, pertencente ao gênero diário de campo, é aqui confrontado com outros desdobramentos do gênero diário. Estrutural composicional Recorrendo novamente a Bakhtin, constata-se que a escolha de um determinado gênero se faz tendo em vista uma estrutura definida por meio de uma função num plano comunicacional. Discursivamente, deve-se ressaltar que, de acordo com as palavras de Fiorin (2002, p. 14), “Colocar o homem na História é enunciá-lo”. Por meio da enunciação, isto é, temporalizando, espacializando e actorializando a linguagem, temos as ancoragens que dão o contorno estrutural de 33 determinado gênero. São esses elementos que serão descritos no diário de campo do alemão Langsdorff. Além disso, em relação à forma composicional, Carvalho elucida: “trata-se da estrutura do texto, dos elementos necessários para organizar um determinado ‘modo de dizer’” (Carvalho, 2005, p. 40). Os Diários de Langsdorff firmam exemplarmente a estrutura sintagmática de todo e qualquer relato: 31/07 [1824] Fiquei sabendo pelo Juiz de fora que meu amigo Montevade estava na Cidade Imperial. Logo no dia seguinte (1.º de agosto), dirigi-me para lá e o vi depois de oito anos (1997, p. 124). Ou: 18/06 a 29/06 [1824] De 18 a 29 de julho, estivemos em Barbacena. Escrevi relatórios, mandei para o Rio de Janeiro as coleções feitas até aqui (1997, p. 46). Salta à vista o primeiro elemento que permite reconhecer estruturalmente qualquer diário. Trata-se da datação. Todos os relatos de Langsdorff constroem o simulacro de que são elaborados a partir de notas tomadas regularmente, todas datadas dia após dia, como compete ao gênero. Alguns relatos apresentam uma somatória de dias. Trata-se, portanto, de uma forma composicional que tem a finalidade de apontar o dia do relato, da nota, do acontecimento vivido, presenciado ou relembrado. Tal estrutura corrobora o próprio designativo latino diarius como aquilo que se faz ou acontece todos os dias ou como o escrito em que se registram os acontecimentos de cada dia, segundo o que temos visto. Vale dizer que a “enunciação é o ato de produção do discurso, é uma instância pressuposta pelo enunciado (produto da enunciação). Ao realizar-se, ela deixa marcas no discurso que constrói” (Fiorin, 2005, p. 55). Assim, a data é a manifestação do marco temporal presente, do agora, momento em que o eu toma a palavra, e, a partir desse marco, toda a temporalidade lingüística é organizada. Dessa forma, esse elemento da ordem composicional, que diz respeito ao tempo, confirma no discurso o sistema predominantemente enunciativo, ou seja, uma 34 enunciação enunciada assumidamente. A datação é, portanto, uma ancoragem no tempo crônico6 que organiza os marcadores do tempo lingüístico. Semanticamente, a datação diz respeito aos cronônimos, que “servem para estabelecer uma ancoragem histórica com vistas a constituir o simulacro de um referente externo e a produzir o efeito de sentido ‘realidade’“ (Greimas e Courtés, s.d., p. 92). É importante evidenciar ainda o fato de que o gênero diário exige, mesmo no sistema enunciativo, a explicitação do momento de referência, visto que, nele, a recepção não é simultânea à produção. Retomando o primeiro excerto, vê-se que o momento de referência presente é um agora que ocorre em “31/07” de 1824. Em relação a ele, o momento do acontecimento (fiquei sabendo e estava) é anterior. Pode-se, assim, apresentar o seguinte esquema: Figura 3 Essa é a estrutura da organização temporal dominante no gênero diário, diário de campo e, por fim, nos Diários de Langsdorff que, desta maneira, confirma a estrutura composicional do gênero. Além disso, o diário de Langsdorff equilibra o sistema enunciativo (efeito de subjetividade) com o sistema enuncivo (efeito de objetividade) no que diz respeito à temporalidade. Observe-se o seguinte excerto: 6 “O tempo crônico é, segundo Benveniste, o tempo dos acontecimentos, que engloba nossa própria vida. Baseado em movimentos naturais recorrentes e, assim, ligado ao tempo físico, constitui o calendário. Além disso, está relacionado a acontecimentos que lhe servem de eixo referencial” (Fiorin, 2002, p. 249). 31/07 [1824] momento de referência presente concomitância presente não-concomitância anterioridade “fiquei sabendo” [naquele momento], “estava” [naquele momento] 35 18/09 [1824] Seguimos viagem. Deixei aqui um dos meus negros, que vendi por 300.000, metade em ouro e metade em prata, para melhorar as minhas finanças. Nosso caminho ia para Caeté, a 2 léguas, e era praticamente de subidas. Pegamos várias plantas. Próximo a Caeté, a vegetação modificou-se visivelmente (1997, p.140). Nesse trecho, por exemplo: “[Naquele dia] nosso caminho ia” temos nessa parte do diário a passagem do sistema temporal enunciativo, dado segundo o agora do momento de enunciar, para o sistema temporal enuncivo, dado segundo o marco referencial pretérito implícito [naquele dia]. Assim acontece em todo o diário e, para retificar o gênero, o enunciador Langsdorff confirma esse modo de temporalizar o relato. Todos os diários consultados são iniciados por meio de uma datação que figurativiza o dêitico agora. Configuram-se, desse modo, coerções genéricas, ou seja, um conjunto de características que remetem a práticas cristalizadas de cada gênero discursivo como, no presente caso, o gênero diário que, no caso do tempo, oscila entre o sistema enunciativo e o enuncivo. Além disso, observa-se a predominância dos tempos do sistema enuncivo, ordenados segundo momentos de referência pretéritos, como demonstram estas linhas: [Quando chegamos a Caeté] “Pegamos várias plantas. Próximo a Caeté, a vegetação modificou-se visivelmente”. Configura-se, dessa forma, uma debreagem temporal enunciva, que é um processo de projeção fora da (instância da) enunciação para um não-agora, o então. Isso permite, por um lado, a construção de um tempo “objetivo” e; por outro, um efeito de distanciamento entre o enunciador e o enunciado. No texto em questão, encontram-se o pretérito perfeito: “Seguimos”, “deixei”, “vendi”, “Pegamos” e “modificou-se” e o pretérito imperfeito: “ia” e “era”. Esses tempos verbais são particularmente freqüentes no relato em questão. Precisemos o valor e a função de tais tempos. 36 De acordo com Fiorin, a “concomitância do momento do acontecimento em relação a um momento de referência pretérito pode exprimir-se tanto pelo pretérito perfeito 2 quanto pelo pretérito imperfeito”, e continua “A diferença entre eles reside no fato de que cada um tem um valor aspectual distinto” (2002, p. 155). Em virtude disso, o pretérito perfeito 2 é perfectivo; produz, portanto, o efeito de acabamento, pontualidade, dinamicidade e limite. Já o imperfeito é imperfectivo, logo, descreve as ações e estados como sendo inacabados, durativos, estáticos, não-limitados (2002, p. 155-158). Observa-se que a organização do diário de Virgínia Woolf é diferente, em alguns pontos, do diário de Langsdorff. Naquele, inicialmente, especifica-se o dia da semana para, em seguida, apresentar o dia e o mês. Outros diários, como o de Pedro II, editado por Visconde de Taunay; os diários de Saint-Hilaire; o Diário íntimo, de Lima Barreto; O diário de Zlata: a vida de uma menina na guerra, de Zlata Filipović e Dias em Trujillo, de Ruy Coelho apresentam formas diversas de retratar a data. A data é a figurativização de um dêitico, pois remete à situação de enunciação, ao “eu / aqui / agora”. Os diferentes modos de figurativizar esse dêitico remetem a um éthos apropriado à cena enunciativa: o estilo do autor de determinado diário. Assim, esse elemento não é o responsável pela distinção dos diversos desdobramentos do gênero do diário, mas remete a determinado modo de dizer do ator da enunciação. Importa, entretanto, uma característica comum a todos os diários, o que remete à estrutura composicional da cena genérica do próprio diário: a data, como explicitação do agora do ato de escrever, vem sempre figurativizada. Quanto à ancoragem espacial, devido ao caráter exploratório da expedição, configura-se um espaço por meio do qual se localiza e se faz localizar topologicamente um narrador em constante deslocamento, um sujeito de busca, como compete aos seguintes desdobramentos do gênero diário: diário de campo, diário de viagem e diário de bordo. É variável, porém, a intensidade desse deslocamento de acordo com cada cena genérica. No diário de campo faz-se necessário uma exploração intensa. Trata-se de um recorte discursivo feito por meio do “olhar”, do “perscrutar”, diferentemente do diário de viagem, em que há a predominância do “ver” e do “admirar”, o que permite que diminua o grau de intensidade do próprio olhar. Dessa forma, constrói-se o espaço dado por meio do olhar desse enunciador que, ao enunciar seus relatos, explora tanto o espaço tópico, que é o espaço feito de 37 figuras discursivas, quanto o espaço lingüístico dado pelo discurso. O espaço lingüístico diz respeito, segundo Fiorin (2002, p. 265), a dois sistemas: o enunciativo e o enuncivo. Para o primeiro, temos este caso emblemático, extraído do diário do naturalista alemão: 20/05 [1824] Queríamos ficar aqui, pois nossos animais estavam mal-alimentados, mas é difícil imaginar a pobreza das pessoas que vivem aqui. Havia uma venda miserável, mas nela não havia quase nada a não ser algum vinho; nem sequer farinha de milho. Não havia quartos enfim, nenhuma possibilidade de ficarmos aqui. Fomos, então, para Ribeiro, um lugar bonito e agradável. No caminho, vimos muitos bandos de borboletas. Fizemos uma boa coleta delas (1997, p.15). O enunciado constrói o mundo. Um mundo construído por meio de oposições semantizadas sob figuras e temas. De um lado, um mundo em estado de penúria, de extrema pobreza. Do outro, um mundo aprazível. Este é topicalizado por Ribeiro; aquele é o aqui, espaço do eu, que se opõe ao lá. Esse aqui no contexto do diário fica esclarecido como Matias Barbosa, um posto alfandegário entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde se pesavam todas as mercadorias mineralógicas vindas das duas províncias. É importante examinar como se dá a enunciação, pois, conforme Fiorin, “isolado, esse termo [aqui] não remete a nenhuma posição do espaço tópico e subsume-as todas” (2002, p. 263). Para o sistema enuncivo, temos este outro exemplo: 03, 04, 05/07 [1824] NB. Na Fazenda do Bom Retiro, que é administrada pelos filhos do Capitão-Mor, não existe essa mesma organização. Lá os porcos andam à solta, uns por cima dos outros, só que, à noite os leitões maiores são separados de suas mães. Os porcos de engorda propriamente ditos, quando têm de 15 a 17 meses, são isolados durante apenas três meses ou três meses e meio e especialmente cevados. Ali não recebem inhame, mas fubá e, às vezes, abóbora, que dizem engorda mais do que o inhame (1997, p. 56). 38 “NB”, nos diários do alemão, confirma protocolarmente o alerta “note bem”. A enunciação se dá na fazenda administrada por D. Domingas Eufrásia nas proximidades de Barbacena, em Minas gerais. Em oposição ao aqui do enunciador apresenta-se o lá, o ali, que se refere anaforicamente à figura da Fazenda do Bom Retiro. A euforização da performance, do trânsito, do deslocamento do narrador é manifestada por meio dos dêiticos espaciais em oposição: /aqui/ versus /lá/. Constata-se, dessa forma, uma organização espacial predominantemente em função do sistema enunciativo, ou seja, do espaço lingüístico. Já o espaço tópico é o “indicativo do lugar de onde se passam os fatos. Arrolam-se os seguintes exemplos dos Diários: “Em todo o Brasil, também cálices de vinho e de água sem luxo não vêm à mesa. Quem desejar beber água, precisa pedir aos serviçais. Todos eles servem com sapatos e meias, mas sem uniforme” (1997, p. 139; grifos nossos). Ou ainda: “Em Caeté, água não é tão fria como em outras montanhas. A região é aberta e ampla. A água vem de montanhas ferruginosas; apenas em pequenos trechos, ela passa por barro, cal e arenito” (1997, p. 142; grifos nossos). Temos aí concretizações de algures, determinados lugares, os quais são pontos de referência espacial inscritos no enunciado, referências essas que indicam onde se passam os fatos narrados. O algures figurativizado contribui, nos Diários de Langsdorff, para que o relato exploratório avance, na medida em que o próprio narrador cria de si e para si o simulacro do sujeito que avança em sua expedição exploratória. Como se vê, no diário de campo, pelas especificações desse desdobramento do gênero discursivo diário, apresenta-se a ancoragem espacial como um elemento determinante em sua configuração discursiva. Trata-se, portanto, de um regime enunciativo que privilegia, por sua própria denominação “de campo”, o espaço. Uma outra característica referente à forma composicional do gênero em questão é, como aponta Bakhtin (1992, p. 308), a “relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.)”. Semioticamente, para tratar da relação apontada por Bakhtin sobre os participantes da comunicação, o olhar analítico se volta à questão enunciativa, no que diz respeito à categoria da pessoa. Em todas as instâncias enunciativas encontram-se “elementos necessários para organizar um determinado ‘modo de dizer’”, como indica Carvalho (2005, p. 40). A distinção entre os níveis enunciativos consta da obra Teoria do discurso: fundamentos semióticos, 39 de Diana Luz Pessoa de Barros (2002, p. 75). Com algumas alterações, eis o esquema: Implícitos (enunciação pressuposta) debreagem de 1º grau – atores explicitamente instalados debreagem de 2.º grau enunciador [ narrador [ interlocutor [objeto] interlocutário ] narratário ] enunciatário Figura 4 A enunciação, ao produzir o discurso enunciado, enuncia-se simultaneamente. Recorrendo ao Dicionário de semiótica, vemos que “A estrutura da enunciação, considerada como quadro implícito e logicamente pressuposto pela existência do enunciado, comporta duas instâncias: a do enunciador e a do enunciatário” (Greimas e Courtés, s.d., p. 150). Tais instâncias correspondem, de acordo com Fiorin, ao “autor e leitor implícitos ou abstratos” (2002, p. 65). Diante dessa dimensão do discurso, verifica-se, implicitamente, um enunciador (sujeito conhecedor) e um enunciatário (aquele que quer saber). Esse eixo da comunicação, de acordo com Greimas: serve de suporte para a transferência do objeto-saber (construído em favor do fazer cognitivo do sujeito-enunciador): o saber se transforma, então, em um fazer-saber endereçado a um enunciatário que se encarregará de avaliar o valor de verdade (1986, p. 32). Trata-se do “saber, erigido em valor” (Bertrand, 2003, p. 26). Assim, delineiase, de acordo com Greimas, uma “aventura cognitiva” em que há “a transformação de um /não-saber/ em um /saber/” (1986, p. 41). Ou seja, o “olhar desejante” do enunciador exprime “regimes da modalidade ‘compotencial’ do saber: eu olho = eu sei, não olho = não sei” (Lopes, 2000, p. 15-16). 40 Dessa forma, nesse eixo da comunicação, segundo a narratividade da enunciação7 em que no texto langsdorffiano se enuncia tantas vezes o “eu, aqui, agora”, temos um destinador-manipulador, instância emissora de toda projeção cognitiva8, que manipula um enunciatário para dever-saber, querer-saber e crerpoder- saber sobre os lugares recortados, o espaço construído como as terras exóticas: as terras do Brasil. Uma conquista cognitiva, eis como se delineia o diário de campo para o enunciador e para o enunciatário. Esquematicamente, temos a seguinte estrutura contratual: S1 S2 Figura 5 É importante perceber que, conforme Fiorin, “a imagem do enunciatário a quem o discurso se dirige constitui uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador” (2005, p.56). No caso do diário íntimo, conversa-se com o próprio diário, ou faz-se do leitor um interlocutário. Esses procedimentos são raros no diário de campo. Portanto, a postura desse enunciador que se esforça em “fazer melhor conhecer” antecipa seu éthos como aquele voltado para a certeza e não para a dúvida. Temos um éthos mais preocupado em construir um Brasil por meio da linguagem e menos preocupado com confidências íntimas. Ao tratar da questão do éthos, voltaremos a esse assunto. Voltemos aos níveis da hierarquia enunciativa. No segundo deles, temos os actantes do enunciado, a saber, narrador e narratário, os quais são “sujeitos diretamente delegados do enunciador e do enunciatário” (Greimas e Courtés, s.d., p. 7 “Já que a enunciação é considerada como um ato entre outros, porque como todo ato é orientada, voltada para um objetivo e uma ‘visão de mundo’, ela pode ser considerada como um enunciado cuja função é a ‘intencionalidade’” (Bertrand, 2003, p.96). 8 “A dimensão cognitiva na semiótica designa o universo do saber, na medida em que ela pode, a exemplo da ação, ser narrativizada. [...] A utilização do vocábulo ‘cognitivo’ deve ser distinguida de seu emprego nas ‘Ciências cognitivas’, em que designa a investigação dos processos efetivos do conhecimento humano” (Bertarnd, 2003, p. 416-417). DDEESSTTIINNAADDOORR DESTINATÁRIO LANGSDORFF LEITOR 41 294). Dessa forma, o enunciador instaura por meio do sistema enunciativo o eu narrador. Esse eu caracteriza-se por uma enunciação enunciada no que diz respeito aos pronomes pessoais do caso reto de 1º pessoa, eu, nós e outras formas pronominais correspondentes: meu, minha, este, isto, etc., essa é uma coerção do gênero confirmada nos Diários de Langsdorff. Vejamos: 03/11 [1824] Hoje será um dia agradável e tranqüilo: o Sr. Rugendas partiu. Que Deus o acompanhe! Hoje me trouxeram balsâmica, também sete-sangrias – Mikania, uma planta cujas folhas tem odor balsâmico e é, conforme me disseram, um antiescorbútico. A raiz de mil-homens (Aristolochia) dá um chá agradável, freqüentemente usado contra febre, picada de cobra e muitos outros casos. Desde que estou nas vizinhanças do rio das Velhas, tenho visto novamente pessoas idosas e jovens com dentes bonitos, o que é raro na Província do Rio de Janeiro. Anciões de 60-70 anos ainda exibem todos os dentes. Desde que cheguei à Província de Minas Gerais, ainda não tive dor de dente, enquanto que, no Rio de Janeiro, eu sofria quase todos os dias (1997, p. 215). Essa enunciação enunciada, no que diz respeito à categoria de pessoa, traz para o diário de campo um efeito de subjetividade. No entanto, esse efeito de subjetividade dado sintaticamente por meio da debreagem enunciativa de 1º grau fica atenuado semanticamente devido à escolha de temas e figuras que caracterizam o diário de campo. A não ser que distorça o gênero, o diário de campo tornará preponderante as figuras que dizem respeito ao mundo exterior, como casas, fazendas, paisagens, rios, índios, outros atores sociais, enfim, enfeixados sob o olhar que parece tudo ver e tudo relatar. Como o relato diz respeito às coisas, às pessoas, aos hábitos e costumes dos lugares visitados, há uma atenuação semântica do peso da subjetividade do sujeito enunciador, que falará menos de suas angústias e esperanças e mais daquilo que ele contempla. O gênero diário íntimo, diferentemente, reforçará o simulacro de 42 subjetividade dado pelo uso de 1º pessoa por meio da tematização da vida privada, colocada no foco da observação. A relação que se estabelece entre narrador e narratário também diz respeito a uma coerção estrutural. O seguinte fragmento do diário do médico alemão demonstra essa relação: 09/07 [1824] NB. Quem ler este meu diário, escrito rápido e diariamente durante a viagem, e perceber hoje uma outra tinta, deve saber que, no caminho, exprimi alguns bagos de Cestrum no meu pequeno tinteiro, que já estava seco. Os habitantes deste lugar servem-se do sumo desses frutos, em geral, para marcar suas mochilas e para escrever; apenas com uma diferença: os bagos são cozidos com um pouco de pedra-ume (1997, p. 66) (sic). Temos, portanto, um narrador que se dirige explicitamente a um narratário. A própria expressão protocolar N.B. já o confirma. É curioso que ao se dirigir ao narratário-leitor, Langsdorff não o faz diretamente: tu, você. É também curioso o uso das figuras que testemunham a história do século em que o diário foi escrito: tinteiro é uma delas. A relação estabelecida entre os actantes do enunciado é um traço referente a uma determinada forma de se estruturar o modo de dizer. O enunciador, como narrador explicitado em primeira pessoa (“exprimi alguns bagos de Cestrum no meu pequeno tinteiro, que já estava seco”), dirige-se ao narratário, a quem confere o estatuto de enunciatário, de leitor. Temos nesse trecho metalingüístico uma explicação do processo de escrever: instrumentalizado pelos “bagos de Cestrum”, na ausência da tinta. Destaca-se ainda a preocupação do enunciador em alertar, avisar o leitor, o que reforça um aspecto de “politicamente correto”. Um éthos de justamedida, apolíneo, vai-se delineando pouco a pouco, já pela estrutura composicional: a preocupação com o preciosismo (o tipo de tinta) equipara-se ao simulacro do perfeccionismo. Assim, os diários de cunho científico, isto é, diários de campo ou de bordo, bem como diários íntimos de pessoas letradas, particularmente intelectuais, firmam regras próprias para se referir ao interlocutor. Tais regras definem diferentes estilos 43 de fazer diário: mais intimista ou mais científico. Lembremos que o sujeito “mais intelectual” não deixa de ser um efeito de sentido construído no texto. Por fim, ainda cotejados com a estrutura composicional do gênero, notamos que os diários do Barão von Langsdorff apresentam uma peculiaridade não encontrada nos demais diários em cotejo, como se pode observar no trecho que segue: 17/02 [1825] O Presidente, Sr. José Teiceira, presenciou a ação dessa substância em um de seus criados. Em uma única noite, após ter tomado 1 ou 2 doses como purgante, ela fez desaparecer os maiores bubões. Mudança do tempo: calor insuportável. Roteiro da vila Tijuco até Ouro Preto: De Congonhas a Conceição 8 léguas De lá até Morro do Pilar 5 léguas De lá a Itambé 6 léguas De lá a Onça 3 léguas De lá até José Antônio Mendes 2 ½ léguas De lá até Bucette [?] 3 léguas De lá até Cocais 3 léguas De lá até Santa Bárbara 2 ½ léguas De lá até Brumado ½ léguas (1997, p. 360) São especialmente freqüentes textos como esse nos diários do diplomata Langsdorff. Nota-se que o texto principia com um determinado assunto e, em seqüência, surgem indicações com informações precisas, distribuídas em gráficos ou diagramas. Essas tabelas incorporadas ao texto demonstram a preocupação com o “modo científico de dizer”. Novamente se apresentam indicações do éthos de Langsdorff. São tabelas que apresentam diversos enfoques no que diz respeito à listagem de populações de províncias; freguesias, como de Santa Luzia9; tabelas 9 Cf. 1997, p. 160-161. 44 com as despesas, incluindo o pagamento dos membros da expedição10 e tabelas com preços correntes de alimentos em determinadas freguesias11, entre outros assuntos. No presente caso, Langsdorff não se contenta em descrever um determinado caminho; constrói o simulacro de querer cartografar, por meio de pontos, figuras e linhas previamente convencionados, um determinado percurso alcançado pela sua expedição. Essa singularidade demonstra, diante do gênero diário de campo, um estilo próprio. Langsdorff inaugura uma cenografia própria dentro da cena genérica diário e dentro de seu desdobramento diário de campo. Temos o modo Langsdorff de habitar o espaço social: um modo soberano e altivo, dado segundo efeitos de sentido criados pelo próprio texto. O mais importante das estruturas discursivas apresentadas é que elas orientam a temática e o estilo, bem como são orientadas por estas. Observaremos, em seguida, a categoria temática nos diários, a qual será igualmente determinante na distinção dos desdobramentos da cena genérica em diferentes cenografias. A temática Como já foi exposto, o gênero diário supõe cenas genéricas diversas, que o categorizam como: diário íntimo, diário de viagem, diário de bordo e diário de campo. Temos para cada um desses desdobramentos do gênero diário uma temática correspondente às condições específicas e finalidades de cada regime enunciativo. A temática é, portanto, o principal elemento que permite distinguir os vários desdobramentos da cena genérica diário. Vale ressaltar que a temática, elemento estabilizador do gênero, diz respeito não a um: Tema específico, um assunto determinado, mas as grades semânticas amplas em que circulam dados valores: os temas de uma época são as questões mais gerais, “universais”, objeto de interações em dada sociedade, em dado momento histórico. (...) Interessa aqui particularmente ressaltar o fato de que os temas dominantes de cada época estão articulados a um repertório específico de gêneros (Carvalho, 2005, p. 39-40). 10 Cf. 1997, p. 226. 11Cf. 1997, p. 169. 45 Dessa forma, no domínio de sentido de que se ocupa o gênero diário de campo, o diário de Langsdorff se caracteriza por meio de três grandes organizações temático-figurativas: do “observador científico”, segundo autodenominação do próprio Langsdorff (1997, p. 364); da viagem e da história natural. Esses são os temas mais recorrentes no diário em questão, os quais se mantêm estritamente interligados e se interseccionam semanticamente. Assim, no que diz respeito ao papel temático do narrador, o diário do naturalista terá um sujeito, um eu narrador, visto como construtor do objeto de valor enunciado. Para isso, deve-saber, deve-crer-saber sobre o mundo explorado e relatado dia-a-dia nas páginas do diário. Trata-se, como indica Flora Süssekind (1990, p. 42), de um “narrador-em-movimento” sempre “à procura de” conhecimento. A seguinte passagem dos diários do naturalista alemão demonstra a construção do papel temático do “cientista” da época, ou melhor, do cientista “aplicado”, “de campo”. Aliás, o adjunto adnominal “de campo”, de acordo com o dicionário Novo Aurélio, tem a seguinte acepção: “que se realiza por observação direta, no local do objeto de estudo, não se restringindo, pois a informações teóricas” (2002, p. 383). Vejamos o excerto: 28/09 [1824] Retomamos nossa viagem. Na verdade, não há um caminho direto de Cachoeira a Sabará, mas apenas uma vereda. A distância em linha reta é de aproximadamente 3 léguas, mas achamos mais conveniente tomar o caminho mais longo do que percorrer aquele caminho sem guia, confiando na sorte. Ainda bem cedo, cada um foi fazer seu trabalho. Ménetriès atirou em alguns pássaros, e eu empalhei os Caprimulgus e outros, deixando tudo em boas condições para podermos viajar (1997, p. 148). Observa-se que não se trata de um mero viajante, de um viajante-aventureiro, mas sim de um naturalista. O narrador do diário de campo não é aquele que se deslumbra diante de uma paisagem, que se encanta tal qual se encontra em Diário de uma viagem ao Brasil de Maria Graham. Trata-se de um narrador que, por meio de seu fazer pragmático, concretiza o saber que circula no eixo de comunicação entre enunciador e enunciatário. Assim, esse narrador que cumpre o papel temático 46 de cientista-viajante tem a necessidade de mapear, classificar, ordenar, organizar, enfim, de perscrutar e explorar o terreno, o campo por onde se tem de avançar. Não se trata de um sujeito em déficit de cognição, como ocorre no diário de campo de Ruy Coelho: Dias em Trujillo: um antropólogo em Honduras12, o que jamais se dá com o chefe da expedição russa, Langsdorff, mas de um sujeito de plenitude: o explorador cientifico que parece explorador científico e o é. Temos um modo de construção da competência desse narrador que dá de si e para “o outro”, o leitor, a imagem de quem pode e sabe explorar cientificamente as terras brasileiras, bem como relatar o conhecimento sobre elas. Não permeia nos diários do Barão Langsdorff o querer-saber aliado ao não-poder-saber, que funda a dúvida. O leitor, por sua vez, está previsto como um feixe de expectativas dadas pelo próprio texto: curiosidade (querer-saber sobre a terra e os costumes do Brasil). Cabe ao leitor, considerado como manifestação do enunciatário, o fazer interpretativo (cf. Greimas e Courtés, s.d., p. 241) sobre o saber que lhe é endereçado, de interpretar (talvez julgar/avaliar, porque o fazer interpretativo de interpretar é estranho) o dizer-verdadeiro que ele recebe, de avaliar o valor de verdade do simulacro em cena. O exemplo a seguir também corrobora o papel temático do cientista-viajante com seu “olhar a mais”, valorizando como elemento da ordem e da integridade, o conteúdo temático do diário de campo de Langsdorff. 3/12 [1824] O Sr. Riedel organizou, completou, descreveu as plantas coletadas em viagem desde maio e chegou ao número de 1.060. Isso mostra como ele trabalha com zelo e dedicação para a ciência. A quantidade de pássaros novos coletados nesta viagem não chega a 70 (1997, p. 259). O argumento expresso numericamente consolida a imagem da exatidão da informação registrada no diário. Com essa imagem, o éthos da precisão e não do atabalhoamento vai se firmando. O narrador relata o fazer-científico do Sr. Riedel, actante do enunciado, instalado por meio de uma debreagem enunciva, a qual provoca um efeito de 12 Cf. 2000, p.134 47 distanciamento do seu lugar enunciativo. Tal efeito de objetividade, quando do uso da debreagem enunciva, demonstra um efeito discursivo com vistas a atestar a veracidade da relação entre o ator do enunciado, Sr. Riedel, e o seu fazer-científico, atestar o “zelo e a dedicação para a ciência”, como se deixasse o enunciado por si só demonstrar a performance do membro da Expedição Langsdorff. Dessa forma, pode-se dizer que há em todo o diário do diplomata alemão uma série de predicados que lexicalizam o papel temático do “observador científico”, instância científica de observação do narrador e dos atores do enunciado. Esse pequeno excerto demonstra a construção de tais performances, compatíveis com o papel temático do participante da expedição: “organizou”, “completou”, “descreveu”, entre muitos outros. Além disso, esse narrador, de acordo com as coerções genéricas do diário de campo, pontilha conselhos consoante os fatos que observa, bem como apresenta informações obtidas de padres, fazendeiros, presidentes de províncias, etc. Seguem dois exemplos que demonstram as facetas desse narrador, as quais consolidam a temática do gênero. Em relato datado de 20 de julho de 1824, nas proximidades de Presídio, em Minas Gerais, Langsdorff sugere o seguinte conselho, após um estudo pormenorizado da região visitada: O governo deveria se preocupar prioritariamente com os caminhos e o transporte, ou seja, com veículos e carroças. Ele deveria incentivar todo capitão-mor para que estimulasse a introdução de carroças apropriadas, particularmente aqueles carros de madeira (1997, p. 99). “O governo deveria”: dever-fazer; um enunciador que sugere o que o governo deveria fazer atribui a si um tom de autoridade moral. Mais pilares se delineiam para a construção do éthos de Langsdorff. A partir das observações e pesquisas elaboradas na região visitada, o narrador apresenta sugestões a respeito dos caminhos e transportes na província de Minas Gerais. Por meio do subsistema temporal enuncivo, há as seguintes ocorrências temporais: “O governo deveria se preocupar” e “Ele [o governo] deveria incentivar”. Nos dois casos temos o uso do futuro do pretérito que, segundo Fiorin (2002, p. 160), apresenta “[...] o caráter de uma antecipação imaginária”, o que não ocorre no relato em questão. Trata-se, portanto, de uma neutralização de tempos 48 verbais, que ocorre quando um tempo é utilizado com o valor de outro, apagando a oposição entre os dois. Tal neutralização produz uma embreagem temporal do futuro do pretérito do subsistema enuncivo pelo presente do sistema enunciativo. A embreagem, vale dizer, produz a ilusão de sua identificação com a instância da enunciação. Dessa forma, as declarações de Langsdorff assim se apresentam: “O governo [deve] deveria se preocupar” e “Ele [deve] deveria incentivar”. Depreendese, portanto, um efeito de atenuação e polidez nas afirmações. Para a definição do gênero diário de campo, importa constatar como o enunciador manipula o domínio de sentido a que se volta o gênero. Para o estilo de Langsdorff, fica diagnosticada a polidez. O enunciado do diário de campo produz um efeito de “certidão de verdade”. A propósito, no relato do dia 14 de junho de 1824, o narrador apresenta as instruções dadas pelo padre João Bonifácio Duarte Pinto a respeito dos melhores caminhos a seguir. Posteriormente, é-nos apresentado: O padre está aqui há 12 anos. Ele contou-me que a igreja da aldeia foi construída há 54 ou 56 anos, principalmente para divulgar o cristianismo entre os índios. Ele é o terceiro padre e já dirige a igreja há 12 anos. No começo, ele encontrou na paróquia cerca de 5.000 almas, contando com os índios. Estes, porém, pouco a pouco foram sendo expulsos, particularmente por mineiros que aqui estabeleciam suas fazendas. Em 1816, o número de habitantes já era de 12.000 e, no final do ano passado, em 1823, cerca de 13.500 almas, incluindo brancos, mulatos, negros livres e escravos (1997, p. 82). O narrador relata as informações obtidas por intermédio de um padre. Na semântica discursiva, a onomástica “permite uma ancoragem histórica que visa a construir o simulacro de um referente externo e a produzir o efeito de sentido de ‘realidade’.“ (Greimas e Courtés, s.d., p. 316). É o caso do nome do padre, João Bonifácio Duarte Pinto. Trata-se de apresentar o nome completo, bem como a função exercida pelo ator do enunciado, para justificar a autenticidade da informação: o narrador a recebeu de uma pessoa digna de fé e o transmite como efeito de sentido de “verdadeiro”. Além disso, a concretização figurativa, juntamente com a precisão icônica, permite-nos dizer que o relato apresentado pelo narrador 49 consolida o tema do trabalho catequético, da ação missionária, bem como da degradação indígena. Interessa, pois, depreender como e por que se delineia, ao lado da temática do gênero diário de campo, os temas do próprio diário langsdorffiano. No que diz respeito ao percurso temático-figurativo da viagem, pode-se dizer que ela é o tema por excelência do diário de campo, como também do diário de viagem e do diário de bordo. Vejamos como se realiza a temática da viagem, como tema específico, dos diários do Barão von Langsdorff: 14/11 [1824] Ainda de madrugada, foram buscar as mulas e trouxeram o proprietário da canoa. A água baixou muito desde ontem, de tal forma que hoje os animais poderiam passar carregados pelo rio, em caso de emergência. Mas, por precaução, decidimos utilizar a canoa para fazer o percurso, levando também o resto de nossa bagagem; os animais selados atravessaram a nado (1997, p. 233). Devido às especificidades do gênero, o diário de campo tem a necessidade de conhecer e fazer ver novas terras, novas paisagens, novos lugares. Como no caso do diário do chefe da Expedição Langsdorff, conhecer as províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais torna-se uma meta, um objeto de valor com que o sujeito pretende entrar em conjunção. Para tanto, a viagem se configura por recortes espaciais feitos por um enunciador que delega a voz de um “narrador em movimento”. Este se localiza e se faz localizar, legitimando o seu fazer-científico: conhecer, desbravar, pesquisar. Trata-se de fundar um aqui e descrevê-lo por meio da topicalizacao, de modo a convencer o enunciatário-leitor sobre o mundo que se descortina. O “percurso” de que nos fala o narrador no exemplo em questão, bem como os percursos de cada página do diário, dadas as peculiaridades de cada um, é a força motriz de cada relato. Cada percurso, cada caminho, cada trilha, enfim, a viagem representada pelo ir-e-vir do sujeito narrador, delineia-se, como se pode notar no excerto, com alto grau de iconicidade. Entendemos aqui essa noção como particularização das figuras, tais como “canoa”, “animais”, “rio”, bagagem”, etc. Segundo o Dicionário de Semiótica, a figurativização pode ser pensada em duas fases: 50 a figuração propriamente dita, que responde pela conversão dos temas em figuras, e a iconização que, tomando as figuras já constituídas, as dota de investimentos particularizantes, suscetíveis de produzir a ilusão referencial” (Greimas e Courtés, s.d., p. 223). Nas palavras de Denis Bertrand: A figurativização do discurso é, mais exatamente, um processo gradual sustentado de um lado pela iconização, que garante a semelhança com as figuras do mundo sensível e, de outro pela abstração, que delas se afasta (2003, p. 231). Retornando ao texto, o lá figurativizado se mantém como a Aldeia da Pomba. Na narrativa que constrói esse espaço “miserável” confirma-se o olhar de Langsdorff como o olhar estrangeiro, que fala deles, em oposição ao nós. Há um constrangimento de Langsdorff ao se colocar como o sujeito em busca de abrigo, comida e bebida, em condições tidas como tão precárias. Langsdorff não faz de si a imagem do participante ético do Brasil em formação. Temos aí outras marcas do estilo do ator da enunciação, o éthos de Langsdorff. O percurso temático da viagem, predominantemente, configura-se discursivamente como a representação de “obstáculos” antagônicos, de adversidades das mais diversas, que o viajante tem de transpor para entrar em conjunção com os valores visados. As seguintes passagens demonstram tais campos antagônicos: 51 07/01 [1824] O caminho que devemos tomar é extremamente ruim, o pior que já percorremos até agora no Brasil. Ora ele passa por lugares alagados, onde as mulas carregadas empacam; ora ele sobe novamente os morros rochosos da serra da Lapa. Tenta-se evitar ao máximo essas elevações rochosas; freqüentemente, é preciso retornar pelo mesmo caminho ou caminhar mais meia hora para retornar os picos rochosos – não custaria muito abrir uma passagem no meio deles. Para se dar uma idéia da precariedade do caminho, nossos animais levaram 6 horas para percorrer 2 ½ léguas (1997, p. 313). Nota-se que o narrador esmera-se em fornecer todas as características do itinerário, como compete ao gênero diário de campo. Nota-se também que, por se tratar de um discurso que relata uma série de “acontecimentos” vividos por um viajante estrangeiro nas terras brasileiras, faz parte da configuração discursiva a presença de adversidades espaço-temporais. O espaço da viagem se configura como obstáculos a ser transpostos, forças antagônicas que ao ser retratadas, indicam a valorização da performance do sujeito, daquele que enfrenta qualquer adversidade em prol da ciência, pois como lembra o próprio Langsdorff: “É impossível fazer uma viagem confortável neste país” (1997, p. 372). Mesmo assim, a viagem prossegue, suscitando os relatos científicos dia após dia. Depreende-se, portanto, do percurso temático-figurativo da viagem um sujeito que, para entrar em conjunção com os valores investidos nas terras do Brasil, deve vencer os “obstáculos” que surgem a todo momento durante a viagem. A imagem do sujeito que, como pesquisador cientifico e explorador de terras desconhecidas, tem de vencer obstáculos e os vence, não é de todo e qualquer diário de campo. Aqui já desponta o éthos de Langsdorff. Por fim, temos o percurso temático-figurativo no que diz respeito à história natural. Objeto sobre o qual os naturalistas e cientistas de modo geral se debruçam, os temas e figuras concernentes à História Natural abrangem toda a natureza: a fauna, a flora, os minerais, os astros, as condições climáticas, enfim, um objeto tão extenso como o universo. Vale lembrar que, de acordo com Leite (1994, p.7-8), 52 “entre os animais estavam incluídos os homens, dos quais o comportamento e a língua eram características a ser classificadas e comparadas.” Pode-se dizer que essa é a grande esfera temática dos diários de Langsdorfff. A história natural configura-se como um extenso objeto de valor visado pelos viajantes-naturalistas. A respeito disso, em relato datado de 26 de setembro de 1824, Langsdorff enuncia: “Nosso caminho cortou campos, prados e morros, onde pouco pudemos coletar para a História Natural“ (1997, p. 146). Vejamos como é discursivizado esse percurso temático-figurativo: 19/07 [1824] Tive dificuldade para fazer as pessoas compreenderem que eu queria a planta com todas as folhas e a raiz, possivelmente em flor ou com semente. Mas, já que não encontrei ninguém que quisesse ganhar uma diária dessa forma, pedi ao nosso estalajadeiro, o Sr. L. Narcisso, que fez a gentileza de me acompanhar até à floresta. Das 10h às 2h da tarde, percorremos os bosques próximos – estávamos cobertos por milhares de carrapatos – e retornamos com uma única planta. Depois de muito esforço, consegui, através de terceiros, mais outros três, todas sem flor ou sementes (1997 p. 92-93). E mais adiante, prossegue Langsdorff: Hoje recebemos a informação de que os índios Puri estão nestas vizinhanças. Já que o Sr. Rubtsov não podia medir a distância da lua por causa do céu nublado, e como me interessava muito conhecer melhor a localização do Arrail de São Batista, decidi ficar aqui no dia seguinte e mandar os Srs. Ménétriès, Riedel e Rugendas para a fazendo de José Lucas, para colher noticias sobre os índios Puri (1997, p. 93). Trata-se de um relato que constrói figurativamente um cenário, tematizando as idas e vindas, as peculiaridades da exploração científica da flora brasileira. Sobrepõem-se, portanto, como objeto de valor, elementos da História Natural. O eunarrador, Langsdorff, definido pela função actancial de destinador, juntamente com 53 seu subordinado, o Sr. L. Narcisso, na condição de sujeito-destinatário, vão à floresta em busca da “raiz da ipecacuanha”, objeto de valor descritivo, figurativizado. Em seguida, no mesmo relato, vemos o papel do objeto sendo representado pela figura do satélite natural da Terra, a lua, a qual, como os astros de forma geral, a História Natural se ocupa de estudar. Prosseguindo, temos a mesma estrutura narrativa, ou seja, de um sujeito “em busca de”, agora, porém, sendo o objeto figurativizado com os índios Puri. Nota-se que a relação que se estabelece entre sujeito e objeto define o olhar científico do enunciador, apontando para a imagem que se cria dele, para seu éthos. Constatamos que o diário de campo agrupa relatos de experiências de variadas viagens de caráter exploratório, trazendo informações sobre a geografia específica, terreno, mapas, possibilidades de rotas, fauna e flora, mas também curiosidades sobre os povos nativos. Essa é sua temática, ou seja, o assunto de que trata o gênero. A temática dos diários íntimos é diferente. Nestes, ela se volta para anotações dos sentimentos ou para o registro dos eventos privados ocorridos no diaa- dia. Outra cena genérica se instaura: a da intimidade com o mundo. A temática do diário de campo proporciona descrições sobre diversos assuntos, sempre voltadas para o caráter de estudo. Especificamente no diário do alemão, tais descrições chamam atenção para elementos, em geral, considerados exóticos para os padrões europeus. Firma-se o Brasil na figurativização do espaço exótico. Com o exotismo que permeia as figuras da realidade brasileira construída, firma-se o olhar estrangeiro, o corpo ereto, o caráter convicto, o éthos Langsdorff, depreendido das próprias páginas do diário. Nota-se, portanto, na temática, uma relação direta com o estilo, sobre o qual falaremos a seguir. O estilo Além das questões concernentes à temática, um gênero deve ser analisado também pelo estilo, como temos visto. Nós consideraremos o estilo em dois patamares: o estilo do desdobramento do gênero, como o estilo do diário de campo, sendo depreendido da cena genérica; e o estilo de cada cenografia, de cada ato de enunciar. Aqui se reconhecerá o estilo de Langsdorff, que será tratado no próximo capítulo. 54 Isso nos leva a duas questões: por um lado, o estilo não reflete apenas a individualidade do enunciador, mas a constrói; por outro, conforme o gênero, o estilo se adapta. Para Mikhail Bakhtin, o estilo é: indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc). O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado (Bakhtin, 1992, p. 284). Além disso, ao tratar da estilística, Bakhtin apresenta o estilo elevado, o estilo familiar, o estilo íntimo e o estilo objetivo-neutro. É desse último estilo que deveríamos recorrer para trabalhar com Os Diários de Langsdorff. De acordo com Bakhtin: Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleção de meios lingüísticos não só do ponto de vista da sua adequação ao objeto do discurso mas também do ponto de vista do proposto fundo aperceptível do destinatário do discurso, mas esse fundo é levado em conta de modo extremamente genérico e abstrato do seu aspecto expressivo (também é mínima a expressão do próprio falante no estilo objetivo) (2003, p. 304). Mais adiante o autor pondera: “Cabe observar que o caráter dos estilos neutro-objetivos (e, conseqüentemente, da concepção que lhes serve de base) é bastante diverso em função da diferença de campos da comunicação discursiva” (2003, p. 305). De acordo com as bases teórico-metodológicas adotadas por este nosso estudo, não podemos, entretanto, considerar um estilo objetivo e neutro. Apenas consideramos o efeito de objetividade e o efeito de neutralidade como simulacros construídos nos textos. Pode-se dizer que o estilo “objetivo-neutro” é um dos elementos estabilizadores dos desbobramentos do gênero diário, como o diário de bordo, diário de viagem e diário de campo, desdobramentos esses que adotam exposições predominantemente orientadas para o objeto, para o “mundo natural”, 55 diferentemente da grande maioria dos diários íntimos, que se enquadraria nos chamados estilos familiar e íntimo, segundo classificação de Bakhtin. Mas tudo é visto como construção dos próprios textos. Assimilamos a noção de estilo dada por Bakhtin, à qual agregamos a noção de estilo segundo a Estilística Discursiva, para depreender o éthos do enunciador do gênero diário de campo. Nas palavras de Fiorin: estilo é um conjunto global de traços recorrentes do plano do conteúdo (formas discursivas) e do plano da expressão (formas textuais) que produzem um efeito de sentido de identidade. Configuram um ethos discursivo, ou seja, uma imagem do enunciador. É nesse sentido que se pode entender hoje a afirmação de Buffon de que o estilo é o homem (Fiorin, 2004, p.175). De acordo com os postulados teóricos apresentados no que diz respeito à questão do estilo como elemento estabilizador do gênero, foi possível traçar algumas linhas de contorno do éthos do enunciador do diário de campo, tendo como base Os Diários de Langsdorff. O estilo do gênero diário de campo manifesta-se com as seguintes características. O recurso expressivo para a elaboração desse tipo de enunciado, bem como para os outros desdobramentos do gênero diário, requer a utilização de pronomes e verbos nas 1.as pessoas do singular e do plural, o que caracteriza a enunciação enunciada, quanto à categoria de pessoa. Ao tratar da estrutura compocisional do referido diário, já se disse sobre essa característica, ao ser destacada a figurativização dos dêiticos. Nota-se, portanto, uma estreita relação entre estrutura compocisional e estilo, ressaltando que o estilo se manifesta em “unidades compocisionais”, como lembra Bakhtin na citação supramencionada. Em caso absolutamente especial, como, por exemplo, de um acidente, de uma briga ou de um grande desejo por alguma informação ou pela nomeação de um objeto do mundo natural, o sujeito que escreve se fará representar por pronomes e verbos em primeira pessoa. Por outro lado, o mesmo sujeito Langsdorff, enquanto chefe da expedição, ao retratar o cotidiano, ao expor os deslocamentos, ao narrar as dificuldades, revela-se predominantemente por meio de pronomes e verbos em 1ª 56 pessoa do plural, tal como no diário de Ruy Coelho. Segue um trecho deste último diário, apenas a título de curiosidade: 21 [Abril de 1948] Ocorreu-me tentar fixar os limites da terra caríba, o número de cidades, aldeias, vilas e possivelmente uma estimada proximidade da população. Foi algo mais difícil do que imaginei. Teófilo e Sebastian sabem os nomes de muitas aldeias, mas os nomes caríbas e os nomes oficiais espanhóis raramente coincidem. Além disso, os três livros que comprei são deficientes, contraditórios e muitas vezes inexatos. Essa é uma tarefa e tanto para o futuro! Talvez com o resultado do último recenseamento e um bom mapa, se é que existe, eu conseguirei alguma coisa. Espero que em Honduras Britânica tenham informações melhores (Coelho, 2000, p. 134). Uma outra característica da composição e do estilo do diário de campo é a presença maciça dos dêiticos temporais e espaciais, como já foi dito. Vale ainda ressaltar as palavras latinas, utilizadas na nomenclatura científica. Todos esses traços lingüísticos, considerados em função discursiva, delineiam, por sua vez, o estilo dos Diários de Langsdorff como um estilo pautado pela posse do conhecimento, um estilo ancorado pelo simulacro da cientificidade. Assim, temos o estilo do gênero diário de campo e o estilo dos Diários de Langsdorff. Este confirma aquele e faz emergir o éthos do sujeito cientista: a imagem do sujeito voltado a uma informação, com efeito de objetividade. O fragmento abaixo revela a presença de algumas dessas características: 57 11/09 Devido ao pasto ruim, alguns animais se dispersaram e só foram recapturados mais tarde. A tropa só pôde sair por volta do meio-dia. Informaram-nos que deveríamos ir para a serra da Caraça e tomar um caminho mais curto por Brumadinho, para onde tínhamos enviado nossa tropa. Tanto nós quanto a tropa nos perdemos. Encontramos 20 casas pobres espalhadas em 1½ légua, todas em Brumadinho, mas nenhuma fazenda. Finalmente, decidimos ir para a Chácara dos Missionários, localizada no alto da montanha, onde chegamos pouco antes do anoitecer. Logo depois, tivemos a notícia de que a nossa tropa estava acampada a céu aberto, em Brumadinho (1997, p. 132). No uso do “nós” exclusivo (eu + eles, os membros da expedição)13 configurase a expedição científica estrangeira e seus participantes. Embora essa enunciação enunciada, no que diz respeito à categoria de pessoa, apresente o efeito de sentido de subjetividade, esse efeito fica atenuado devido às características do estilo, que se apresenta sob o simulacro de objetivo-neutro, ou seja, às exposições essencialmente centradas no objeto, por meio de temas e figuras. Aliás, além das características lingüísticas e discursivas apontadas no diário referido, que delineiam o estilo do gênero, bem como o estilo do autor, podemos notar as motivações dadas como efeito de sentido. Tal como simulacros próprios, elas levam o sujeito a relatar determinadas situações de determinado modo e não de outro. Há a confirmação e não denegação de um universo figurativo referencializável, assim como não há abalos no edifício da figuração. Essas motivações são fundamentais para a apreensão do estilo, mais especificamente de Langsdorff e, de maneira geral, do diário de campo. Assim, num diário de campo que tenha como base temática o Brasil, a cientificidade se fará representar por anotações detalhadas sobre a fauna e flora brasileiras, como também pela narração e exposição em função da viagem, da economia e de fatos da população brasileira. Para tanto, tal desdobramento do gênero diário requer, como efeito de sentido na construção do ator, um polígrafo, ou seja, aquele que escreve acerca de assuntos diversos. Pode-se dizer que se trata de 13 Cf. Fiorin, 2002, p.60 58 uma condição sine qua non, indispensável para as regras do dizer do diário de campo. No caso de Langsdorff, delineia-se, dessa forma, um éthos formal, da “justa medida”, de corpo ereto, de tom sério, de caráter equilibrado para manter a legitimidade do seu do enunciado. Diferentemente, o diário íntimo permite retratar os bastidores da própria cena genérica: o ato de escrever e os tormentos do sujeito que escreve. Esse estilo é manifestado pela exacerbação do sujeito que revela suas práticas discursivas e existenciais cotidianas, seus medos, suas angústias. Depreende-se, portanto, um éthos sofrido, cabisbaixo, angustiado, entre outros, falando aqui do estilo do gênero. Para o diário de campo é previsível o éthos do enunciador com ares de cientificidade e de objetividade, que Langsdorff confirma. Em virtude do exposto, pode-se deduzir que o gênero diário está na categoria que Bakhtin (1992, p. 301) designa como “gêneros maleáveis”, mais plásticos e criativos, os quais se opõem aos “padronizados e estereotipados”. Nessa perspectiva, pode-se conceber o gênero em questão como representante de práticas sociais de interação, as quais se configuram em função dos propósitos comunicativos próprios e variam de acordo com cada situação comunicativa e com as convenções estabelecidas nas diferentes comunidades discursivas. Nessa mesma linha teórica segue Marcuschi (2002, p. 19), que examina os gêneros textuais “como fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social”; fenômenos que “contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”. Por fim, em virtude das estruturas temático-figurativas apresentadas, pode-se deduzir que o diário de campo de Langsdorff utiliza a forma composicional, a temática e o estilo do gênero para corroborar o discurso científico, ou melhor, um discurso que procura construir para o sujeito o simulacro o mais preciso possível, o que pode ser observado por meio dos lugares visitados, dos costumes de cada vilarejo, de cada província, das informações obtidas sobre assuntos diversos, de conselhos dados pelo próprio enunciador, bem como pelo uso das tabelas, indicando o percurso de um lugar a outro ou pela representação de espaços por meio de traços e palavras. 59 Os diários de Langsdorff: tipos textuais e gênero Para que sejam nomeadas as diferentes formas de organizar as informações de um texto, o enunciador se utiliza da predominância de diferentes “tipos textuais”. Tal categoria é empregada tanto por Marcuschi quanto por Fiorin. Os tipos textuais são de número limitado e estão presentes nos mais diversos gêneros discursivos. A respeito dos tipos textuais, nas palavras de Fiorin: Os tipos são construções textuais que apresentam determinadas características lingüísticas. São bem poucos os tipos textuais: o narrativo, o descritivo, o expositivo, o opinativo, o argumentativo e o injuntivo. Quando dizemos que o tipo textual é uma categoria mais geral do que o gênero, o que queremos dizer é que os gêneros fazem uso dos tipos na sua composição. Assim, um mesmo tipo é utilizado por diferentes gêneros: os gêneros notícia, fofoca, romance, conto, etc. usam o tipo textual intitulado narração. Por outro lado, é preciso dizer ainda que o mesmo gênero se vale de mais de um tipo textual: por exemplo, no gênero romance, encontramos o tipo narrativo, que será predominante, mas podemos também deparar com o tipo descritivo, quando o narrador nos mostra os lugares, as personagens; (...). Por isso, é preciso ficar claro que os tipos, freqüentemente, não são encontrados em estado puro, já que um gênero pode valer-se de vários tipos. Quando dizemos que um texto é narrativo, estamos classificando-o, assim, porque nele predomina o tipo narrativo e não porque ele se vale exclusivamente do tipo narrativo. A classificação do tipo de texto faz-se pela dominância e não pela exclusividade (2006, p. 105-106). O gênero diário passa, então, a ser visto como um fluxo de seqüências ou tipos textuais que constituem organizações internas aos próprios textos, definidas, como sugere Marcuschi (2002, p. 22): “pela natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais e relações lógicas)”. Para a teoria do discurso, destaca-se que os tipos textuais narrativos, descritivos, expositivos, injuntivos e argumentativos (latu sensu) preparam a base da cenografia discursiva, 60 promovem uma escolha enunciativa que antecipa um modo próprio de dizer, um modo próprio de recortar o mundo. Se o gênero literário, como o romance, é predominantemente narrativo, qual será o tipo textual dominante para a materialização do gênero diário? A observação de um pequeno texto permite chegar a algumas deduções a respeito dos tipos textuais presentes em Os Diários de Langsdorff: 04/11 N º 30, indicado com 227, enviada para a Mandioca com o Sr. Rugendas. Uma caixa ficou pronta hoje de manhã. A úlcera do tropeiro doente abriu. Depois de amanhã, se Deus quiser, poderemos retomar nossa viagem (1997, p. 215). Inicialmente, pode-se ressaltar nesse texto uma série de mudanças de situação, de transformações de estado, ou seja, os fatos estão relacionados numa relação de anterioridade: “[caixa] enviada para a Mandioca”, “Uma caixa ficou pronta hoje de manhã” e “A úlcera do tropeiro abriu”, e numa relação de posterioridade “Depois de amanhã, se Deus quiser, poderemos retomar nossa viagem”. Uma outra característica desse texto é a presença de figuras, as quais concretizam temas e idéias: “Nº30”, “Mandioca”; “Sr. Rugendas”; “caixa”; “úlcera”; “tropeiro”; “Deus” e “viagem”. Em relação ao tempo, observam-se verbos que exprimem ação, tais como “enviada”; “abriu” e “poderemos”. Configura-se, dessa forma, uma narração, dada na ordem do “narrar”, de acordo com Bronckart e Schneuwly (1985). No diário de campo, a narração é utilizada predominantemente pelo enunciador para relatar as transformações ocorridas ao longo da expedição, ao longo da viagem exploratória, desde o descobrimento até o tempo em que a Expedição Langsdorff o redescobriu. O próprio Brasil é narrado como espaço em construção. A narração assume, dessa forma, uma dimensão informativa-explicativa. A partir daí, o enunciador avalia e julga os fatos por meio da diferença estabelecida entre o antes e o depois. Além disso, a narração demonstra a constante movimentação da expedição, viabilizada pelos verbos de ação. Finalmente, é por meio da narração que se confirma a transformação de estado do sujeito em relação ao objeto: passa-se do estado 61 disjuntivo em relação ao saber e ao fazer-saber ao estado conjuntivo com o objeto de cognição. Podemos constatar, na construção do sujeito implícito à cena genérica diário e, mais especificamente, diário de campo, essa trajetória, dada mais por meio da cognição do que por meio da crença: o sujeito nega a ignorância a respeito da terra explorada para confirmar o saber sobre ela. Temos, assim, a seguinte representação: saber ignorar não-ignorar não-saber Em uma outra passagem, datada de 15/09, o enunciador, por meio da narração, apresenta a riqueza existente na cidade de Gongo Soco, em Minas Gerais. Langsdorff principia relatando a quantidade de ouro existente nessa cidade e também a exploração que é feita desse metal. Para demonstrar a riqueza que o ouro traz para a população de Gongo Soco, o narrador toma como exemplo a propriedade do “Capitão-Mor”, demonstrando todas as características das quatro casas dele. Nesse relato, o narrador se detém tanto na estrutura da casa, com seus ornamentos, quanto nas características da natureza circundante. O que nos interessa, no momento, é a seguinte passagem: NB. Jaborandi é, em geral, um Piper. Aqui, porém, a raiz de uma Fragaria é tão forte quanto a pimenta picante [...] O quarto é bonito e luxuoso. A sala de jantar, ao contrário, não tem grandes riquezas. A mesa é de madeira comum. A louça é de faiança inglesa comum, branca com bordas azuis e de diversos tipos (1997, p. 138). Constata-se aí uma seqüência predominantemente descritiva dentro da narração do dia-a-dia do diário. A descrição é argumento para a narração nos Diários de Langsdorff. Esse procedimento é previsto pelo gênero. Nesse pequeno trecho destacado, vemos a presença de verbos no presente, tais como “é” e “tem”. É interessante notar o caráter de simultaneidade ao momento da enunciação. Além disso, vê-se a presença de adjetivos avaliativos como “bonito e luxuosos”, entre advérbios de intensidade, como “tão”. Vemos ainda figuras como 62 “jaborandi”, “pimenta”, quarto”, “mesa”, entre outros, configurando um texto predominantemente figurativo, com traços que remetem à brasilidade. Percebe-se também nesse pequeno excerto a simultaneidade da apresentação, não há uma progressão temporal. Tudo isso assinala uma descrição, em que o enunciatário reconhece um cenário do interior de Minas Gerais. A descrição é de fundamental importância num diário de campo, ela envolve a produção de enunciados sobre um sistema, um objeto ou um fenômeno em termos dos seus constituintes. A descrição manifesta-se também entremeada à ordem do “expor”, segundo os postulados de Bronckart e Schneuwly (1985). Especialmente nos segmentos que organizam as informações relativas a objetos, seres, acontecimentos ou situações, a descrição assume a função de argumentar implicitamente e valorizar os mais variados objetos com os quais o sujeito está ou almeja estar em conjunção. Tem-se o texto expositivo, quando demonstram fenômenos explicando as relações de causa e efeito. Nas palavras de Fiorin, “é um texto expositivo, que serve para construir e transmitir um saber sobre um dado tema” (2004, p.11). Nesse sentido, como exemplo, veja-se o texto a seguir: Os índios normalmente passam de 20 a 25 dias na floresta para arrancar a raiz, e cada um colhe cerca de meio quilo por dia ou uma arroba por ano. Quando retornam com as raízes e recebem o dinheiro, começam a beber e só param quando não possuem mais nada. No resto do ano, eles se ocupam com a pescaria e com a caça (1997, p. 92) O texto principia com uma debreagem pessoal enunciva, quando se instala no enunciado um ele, ator do enunciado, dado pela figura do índio. A objetividade prevalece como efeito de sentido. Trata-se, semanticamente, de um texto figurativo com alto grau de iconicidade, dada a abundância de referencializações do mundo natural. Importa, porém, o tema subjacente às figuras: a degradação indígena em decorrência da assimilação dos hábitos europeus. Tudo converge para o saber, para que o enunciatário aceite o dito como verdadeiro. Essas são algumas das características do texto expositivo presentes no diário em análise. Tendo em vista o que se registrou até agora sobre o gênero diário, vê-se que o texto expositivo está presente não só nos diários de campo, como em todos os desdobramentos do 63 gênero, pois, ao expor as motivações que o originam, o narrador faz-saber, seja o incidente de uma viagem, seja uma situação humanamente marcante, como no caso do Diário de Anne Frank. Dessa forma, observa-se que a narração fica pontilhada de descrições e exposições. Assim se organizam os tipos textuais predominantes ao longo dos Diários de Langsdorff. Constata-se, então, que a maioria dos relatos do alemão principia com a exposição de uma proposta, de um desejo de chegar a um determinado lugar ou de obter um dado objeto de valor. Parte-se, em seguida, para a ação, que terá a função de apresentar o conhecimento necessário para a compreensão da justificativa que a originou. Cabe à descrição indicar as grandes propriedades, qualidades ou ainda os componentes de um ser ou de uma coisa; enfim, tornar o objeto o mais iconizado possível para facilitar a apreensão do enunciatário. Após o cotejamento de Os Diários de Langsdorff com outros diários, tanto diário de viagem e de campo quanto os íntimos, e após o levantamento do tipo textual predominante nos diários do naturalista alemão, também é importante consolidar o que se entende por “esferas de circulação”. A esse respeito, Fiorin diz: Os gêneros são inúmeros, pois dizem respeito à esfera de atividades cotidianas (relações de amizade, convívio familiar, etc.), bem como à esfera das atividades institucionalizadas (prática religiosa, atividades escolares, relações jurídicas, etc.). Em cada uma dessas esferas de atividade, há inúmeros gêneros textuais (2005, p. 103). Bakhtin (1992, p. 279) lembra que os “enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas” das práticas de linguagem. Como já se disse, o conceito de “esfera de circulação” é correlacionado ao conceito postulado por Maingueneau de cena englobante: “corresponde ao tipo de discurso: ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico” (2005, p. 75). Dessa forma, tendo como base as práticas de linguagem nas mais diversas esferas de comunicação humana, pode-se dizer que o gênero diário de campo transita entre a esfera cultural, a esfera literária e, principalmente, a esfera científica. No caso das terras brasileiras narradas em diários, temos um gênero que tem sua gênese atrelada ao momento histórico das buscas por novas 64 rotas às Índias, que surge com o relato de Marco Pólo; das Grandes Navegações; das descobertas do Novo Mundo e do ciclo de expedições científicas, com o intuito de redescoberta e de revisitação do Brasil por diversos viajantes. Como lembra Fiorin (2006, p. 61-62), “Os gêneros estão sempre vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades.” Tal esfera de circulação será denominada, neste trabalho, discurso dos viajantes. Nessa esfera de comunicação humana encontram-se diversos gêneros, tais como carta (A carta de Pero Vaz de Caminha), crônica (Crônica de D. Fernando de Fernão Lopes), diário de bordo (diário de Colombo, diário de Hércules Florence, de Amyr Klink), diários de campo de naturalistas (diários de Saint-Hilaire, Charles Darwin, Johann Moritz Rugendas), diários de viagem (diário da Baronesa Langsdorff, de Maria Graham), relatórios, entre outros. Assim sendo, para além da grande esfera de circulação já constatada, a da informação dos relatos do dia-a-dia, que emparelha o diário com o próprio jornal, temos a bifurcação necessária, que viabiliza a cena concernente ao diário. Temos, então, a esfera de circulação específica a cada um desses dois discursos. Cada um deles supõe interesses específicos, temas específicos, situação de comunicação especifica. Ninguém vai à leitura de um jornal com as mesmas expectativas com que se entrega à leitura de um diário. Temos diferentes contratos enunciativos num jornal e num diário. Temos diferentes efeitos de verossimilhança, apesar de, em ambas as cenas, predominar o efeito de “real”. O que é narrado, descrito e exposto parece e é o que é: efeito de verdade, inquestionável, portanto. 64 CAPÍTULO II O DIÁRIO DE LANGSDORFF: CIRCUNVOLUÇÃO DO OLHAR ENUNCIATIVO 65 Notas preliminares NUM DESFILE FASCINANTE A ESTÁCIO VEM MOSTRAR A VIAGEM DESLUMBRANTE QUE LANGSDORFF FEZ A MANDO DO TZAR (FOI EM MINAS GERAIS) MINAS GERAIS ONDE A ODISSÉIA COMEÇOU FLORA, FAUNA, MINERAIS CATALOGANDO TUDO AQUILO QUE ENCONTROU EMPALHANDO OS ANIMAIS E REVELANDO SEUS ACHADOS A MOSCOU (COM MUITO AMOR) (...). G.R.E.S. ESTÁCIO DE SÁ “LANGSDORFF DELÍRIO NA SAPUCAÍ” ENREDO PARA O CARNAVAL DE 1990 Autores do Samba (Maneco A.; Magalha A. Gavião; J. Magalhães) Após os comentários desenvolvidos sobre o cotejo dos Diários de Langsdorff com o próprio gênero diário de campo, apresentamos, neste capítulo, tópicos da teoria da enunciação, para descrever mecanismos de construção do sentido do próprio diário de Langsdorff. Neste capítulo, categorias pertencentes ao plano do conteúdo do texto serão re-examinadas para que pouco a pouco se fundamente o éthos de Langsdorff como o ator da enunciação depreensível da totalidade de textos enfeixada sob o título Diários de Langsdorff. Vamos aos jogos do simulacro de um enunciador que se revela, mesmo quando constrói efeitos de atenuação da própria subjetividade. A análise semiótica dos Diários já foi encetada nas páginas anteriores. Por conseguinte, neste capítulo, prosseguiremos com o exame dos mecanismos de construção do sentido dos Diários, agora com atenção redobrada aos meios pelos quais a enunciação se referencializa no enunciado. Começando por uma cena emblemática da construção do narrado e, por meio dela, do narrador. 66 Georg Heinrich Freiherr von Langsdorff, que juntamente com sua expedição científica passa pelo Estado de Minas Gerais em 1824, relatou em seus cadernos referentes às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais a caça de um tamanduábandeira (Myrmecolhaga tridactyla), um tipo surpreendente entre os espécimes da fauna brasileira. Tal relato do naturalista alemão será tomado como objeto de análise do discurso, priorizando inicialmente a cena de uma caçada. 26/11[1824] O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão. Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso. Amarramos nossos cavalos numa árvore; meu guia percorreu a encosta esquerda e eu, a direita dos morros que formavam o vale. Cerca de uma hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando. Ele me garantiu que a relva alta pisada que vimos à nossa volta seriam rastros de tamanduá, que certamente teria estado aqui há 2 ou 3 dias. Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto, estreito e fechado, de onde se avista, a grande distância, morros nus e rochosos e montanhas. Já havíamos cavalgado uma pequena meia légua, quando, de repente, meu acompanhante gritou: “⎯ Senhor, veja, lá está ele!” Voltei os olhos para a esquerda, do outro lado do pântano, e vi um grande animal comprido, preto, andando solene e pausadamente para a frente. Mal podia acreditar nos meus olhos. A distância, eu só podia distinguir um grande animal, mais baixo e mais comprido que um boi. “Ele não vai nos escapar”, disse o guia, “mas temos que tentar atravessar o alagado.” “Você tem medo de molhar os pés?” perguntei-lhe. “Eu não.” 67 Amarramos rapidamente o cavalo, e, com a espingarda nas costas, nos ombros ou embaixo do braço, tentei imediatamente cortar o caminho até o tamanduá, que ainda estava bem longe. Devido às dificuldades que tive para atravessar o alagado, ora afundando na lama, ora tendo que desviar das poças mais fundas, os cães que me acompanhavam chegaram um pouco mais rápido na parte seca. Logo que atravessei a parte alagada, subi uma pequena elevação para ver o tamanduá, que já estava bem perto de mim. Então, os cães começaram a latir a 30 passos atrás de mim, por detrás de um pequeno bosque de capoeira. Saltei como um raio e assisti a um espetáculo que compensou plenamente todos os dissabores e incômodos de viagem que tive até hoje: vi um grande animal acuado, desajeitado, de constituição estranha, desdentado, cuja única defesa está nas duas garras das patas dianteiras, lutando com dois cães. Foi uma cena realmente singular! O tamanduá virava o corpo todo várias vezes, pulando com rapidez para se defender do ataque dos cães. Por mim, eu teria ficado observando por mais tempo as evoluções do animal, mas eu temia que ele se aproximasse demais do alagado, o que tornaria ainda mais difícil para mim abordá-lo. Apontei a arma numa distancia de 5 a 6 passos, aproveitei o momento em que os dois cães ficaram fora da mira e atirei na cabeça do animal, perto das orelhas. Como ele se movimentasse sem parar, o tiro atingiu-o atrás das orelhas, entre o olho e a orelha. Ele caiu, mas levantou-se de novo e recomeçou a lutar, apesar de cansado, com dores e menos ágil. O guia quis dar um segundo tiro, mas eu temia estragar o pêlo e mandei que ele batesse com um porrete. Após algumas pequenas pancadas no focinho comprido ou nariz, ele caiu esticado no chão. E assim consegui satisfazer meu desejo de abater um tamanduá. O guia agarrou-o pelo rabo grosso e arrastou-o para a parte seca, do outro lado do alagado onde o cavalo ficara amarrado. O tamanduá foi levado para casa pendurado atrás da sela, e lá chegamos triunfantes e contentes por volta de 2h. Começaram rapidamente os preparativos para a empalhação, tarefa que o Sr. Ménétriès fez com bastante habilidade e esmero. Na mesma noite, ele besuntou a cabeça do animal, por dentro e por fora, 68 com lume, para garantir uma conservação perfeita dessa parte delicada do corpo. A pele é grossa e curtida, couro dos mais fortes, especialmente na região da nuca. O tamanduá costuma sair em busca de comida por volta do meio-dia, quando o tempo está quente e sol forte. A área que ele habita aqui não parece ter muita formiga, mas ele a prefere certamente por ser desabitada. Não obstante, seu estômago estava cheio delas: havia consumido cerca de 3 libras. Ele anda devagar, dobrando as duas garras grandes das patas dianteiras. As pontas dessas garras ficam encaixadas numa cavidade da sola do pé, o que lhe permite caminhar com leveza, tocando o chão apenas com a parte lateral do pé. As grandes garras servem para quebrar a crosta dura dos ninhos das formigas brancas e raspar a terra. A fêmea tem duas mamas entre ou logo abaixo das patas dianteiras e só pode ter um filhote, que ela carrega em suas costas durante algum tempo após o nascimento. Em tempos antigos e atuais, em todos os países civilizados, tem sido costume proteger a vida de alguns animais úteis para a sociedade, seja através de leis, da religião, da origem e da tradição e costumes. É o caso do íbis, no Egito, e agora da cegonha, em nosso país. Também a andorinha não é mais abatida ao bel-prazer. Aqui no Brasil, o homem comum não gosta que se matem os urubus (Falco aura), pois eles comem mulas em decomposição e todo tipo de carniça. Portanto, é de se estranhar que os habitantes locais matem por simples diversão – isso eu posso atestar – o tamanduá, o mais útil de todos os animais, criado por Deus Amado para livrar o homem da fome, uma vez que ele come as formigas devastadoras e destrutivas. Em Barra do Jequitibá, um vizinho, no caminho para a missa, numa manhã de domingo, pegou a espingarda do negro que o acompanhava, atirou num pequeno tamanduá e o deixou lá. Como eu lhe oferecesse alguma quantia pelo tamanduá, ele resolveu mandar buscá-lo a uma légua de distância e recebeu meia pataca. O Governo deveria, e teria todo direito em fazê-lo, instituir multa pesada pelo abate do tamanduá e incentivar os moradores das regiões onde ainda houvesse alguns a tentar, de toda forma, 69 promover sua reprodução. Com isso, muitas terras poderiam ser recuperadas, terras que se tornaram incultiváveis pela ação das formigas, como, por exemplo, nas Províncias do Espírito Santo e de São Paulo. Se o Governo não tomar providências nesse sentido, o tamanduá será totalmente extinto (1997, p. 250-253) (sic). Na cena, considerada emblemática, ocorre a figurativização de atores do enunciado, as pessoas do discurso: Langsdorff, representativo da enunciação enunciada, o ator que diz eu. O próprio tamanduá, figura do objeto de desejo de Langsdorff. O viajante que quer matar o bicho para empalhá-lo e levá-lo como troféu. Temos então os ajudantes de Langsdorff, entre os quais se inserem os cachorros, sujeitos adjuvantes. No texto predomina a seqüência narrativa, pontilhada de descrições acerca do espaço tópico e da fauna. O tempo evolui, as ações evoluem para um antes e um depois. Finalmente, encontra-se uma seqüência argumentativa, em que o narrador comenta e interpreta um fato, isto é, o abate do tamanduá no Brasil. Trata-se, portanto, de um texto em que predomina a narração, com descrições pontuais e argumentação stricto sensu também pontual. Nesse ponto, aliás, alertamos que seguimos Fiorin (2005) e não Marcuschi (2004): este considera as seqüências textuais; aquele a predominância de um tipo textual. Como sabemos, a semiótica busca a significação de um texto sob a forma de um percurso gerativo de sentido, que está dividido em três níveis: o nível das estruturas profundas, o nível narrativo e o nível discursivo. Parte-se, agora, para a descrição e entendimento de cada um desses níveis. 70 Estruturas profundas Figura 6 – Tirinha. Luís Fernando Veríssimo, As cobras. Fonte: Jornal do Brasil, 02/11/1988. O primeiro nível, o mais geral, simples, profundo e abstrato dos três, encerra a oposição entre as categorias semânticas que, determinando um mínimo de sentido, servem de alicerce para a construção do discurso. Por conseguinte, retomando “a lição da semântica de que o sentido nasce da descontinuidade, da ruptura, da percepção da diferença” (Barros, 2002, p. 17; grifo do autor), encontra-se nas profundezas do relato langsdorffiano supramencionado a oposição semântica /natureza/ versus /cultura/. No caso desse olhar estrangeiro sobre a brasilidade, essa oposição é especialmente significativa. Langsdorff, ou o efeito de sujeito Langsdorff expresso no discurso, é a personificação de uma cultura mais voltada ao artificial, que se confronta com o não-artificial, se retomarmos noções greimasianas. O termo /natureza/ será tomado nesse trabalho como o universo das coisas naturais, a natureza enquanto tal, “por oposição a artificial ou a construído” (Greimas e Courtés,s.d., p.302); em contrapartida, o termo /cultura/ será representado enquanto “o conjunto de informações não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam, [atualizam] e transmitem.” (Lotman, 1979, p. 31). O sentido do texto se fundamenta nessa oposição, que representa a estrutura elementar da significação. Tal estrutura “desempenha aí o papel de procedimento de descrição (e, eventualmente, de descoberta), permitindo representar os fatos semióticos anteriormente à manifestação” (Greimas e Courtés, s.d., p.164). A relação entre /natureza/ e /cultura/ é uma relação de contrariedade. Cada qual projeta o seu termo contraditório, a saber, /não-natureza/ e /não-cultura/. No relato da cena fica narrada a história de dois atores “em busca de” um animal. O narrador indica a figura de seres humanos assentados no pólo da cultura, 71 já que suas ambições pertencem ao universo das práticas sociais humanas. O animal, por sua vez, enquanto ser do mundo natural, fica assentado no pólo da natureza. Essa busca em relação ao animal implica na passagem ao termo contraditório /não-cultura/. A captura e o empalhamento do animal remetem à passagem ao termo /cultura/. Essas categorias semânticas apresentam um índice axiológico, “mercê do investimento das dêixis positiva e negativa pela categoria euforia/disforia” (Greimas e Courtés, s.d., p. 37, grifo dos autores). Dessa forma, o termo /natureza/ é considerado negado, portanto, disfórico. A natureza necessita ser descoberta, classificada, hierarquizada, enfim, “‘culturalizada’, enformada pela cultura.” (Greimas e Courtés, s.d., p. 303). A passagem exemplifica essa disforização: “E assim consegui satisfazer meu desejo de abater um tamanduá” (1997, p. 252). Por outro lado, o termo /cultura/ é afirmado, portanto, euforizado. Valorizamse as características do tamanduá como um fazer taxionômico não só do macho capturado e empalhado, mas de toda a espécie, bem como das qualidades, ou melhor, do fazer desse animal para com a sociedade. O nível fundamental, que sustenta o sentido do enunciado, apresenta o seguinte movimento: /natureza/ → /não-natureza/ → /cultura/. Esquematicamente, temos o quadrado semiótico, de acordo com o movimento do texto: natureza cultura não-cultura não-natureza Temos até esse ponto do texto as relações construídas por meio do “universo idioletal do sujeito da enunciação”, ou seja, do “sistema de valores individuais”. (Greimas, 1993, p.130-131). Esses valores são apresentados, segundo o texto, em relação de conformidade do ser vivo com o meio ambiente. Após esse contemplamento dos valores idioletais do sujeito da enunciação, denominado Langsdorff, enfocam-se as representações coletivas, ou melhor, o universo socioletal. Trata-se do contexto cultural brasileiro, assim como de outros países, dêixis eufórica lugar de onde o narrador fala dêixis disfórica lugar do tamanduá e outros animais 72 referente ao século XIX. Dessa forma, encontra-se no mesmo relato a seguinte oposição: /países civilizados/ versus /país incivilizado/. Naqueles “tem sido costume proteger a vida de alguns animais úteis para a sociedade”, enquanto neste “é de se estranhar que os habitantes locais matem por simples diversão – isso eu posso atestar – o tamanduá, o mais útil de todos os animais, criado por Deus Amado” (1997, p. 253; grifo nosso). Conforme o texto, os valores coletivos da parcela brasileira em questão são disforizados. Em virtude da inversão do índice axiológico, temos o seguinte quadrado semiótico: natureza cultura não-cultura não-natureza Assim observada, mediante a distribuição dessas categorias, a cultura do locus observado, aquela dos habitantes locais, é valorizada negativamente. A figurachave do tamanduá é sustentada por outra oposição, /vida/ versus /morte/. Segundo a posição do narrador, eles, “os habitantes locais”, “matam”, sendo, portanto, disforizado tal ato. Eu, o próprio narrador, “abato”, sendo um fazer euforizante. É como se o enunciador justificasse suas práticas científicas, para usar as palavras de Tatit, “em nome da valorização do projeto geral” (2004). Nesse projeto a palavra de ordem é Ciência, feita especialmente por um “observador científico”, segundo autonomeação do próprio Langsdorff (1997, p. 364). Enfim, um fazer autorizado. Podemos acrescentar que o enquadramento axiológico, ou melhor, a adesão aos valores distribuídos no texto, que define o sujeito social, ajuda a depreender, a situar e a avaliar a imagem que se cria do enunciador, o éthos do enunciador, dado por meio do discurso do Diário. Dessa forma, desde a organização fundamental do texto, delineia-se o éthos do enunciador como sendo do naturalista-cientista. dêixis disfórica lugar dos habitantes locais dêixis eufórica lugar do tamanduá 73 Nível narrativo No nível narrativo, elucidam-se dois pontos: primeiramente, a estrutura sintática, a qual compreende tanto as transformações de estado dos actantes como o estabelecimento e quebra de contrato entre um destinador e um destinatário; em segundo lugar, o preenchimento semântico daquela estrutura, tanto por meio das modalidades do ser como do fazer, de onde decorrem as paixões, como também por meio da consolidação dos elementos fóricos do nível mais profundo. Segundo Jean-Marie Floch, o nível narrativo “é a versão dinamizada e ‘humanizada’ daquilo que se passa no nível profundo: as relações aí se tornam faltas ou perdas, aquisições ou ganhos; as transformações tornam-se performances; e os operadores destas transformações tornam-se sujeitos” (2001, p. 22). Além disso, para que se possa ter um maior rendimento analítico do nível narrativo, teremos de retomar o conceito teórico e operatório do termo actante. Segundo o Dicionário de Semiótica, o termo actante “designará um tipo de unidade sintática, de caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento semântico e/ou ideológico” (Greimas e Courtés, s.d., p. 12). Denis Bertrand assim define esse conceito: Unidade sintática de base da gramática narrativa, o actante define-se por sua relação predicativa, sua composição modal e sua relação com outros actantes. A semiótica reconhece três figuras actanciais de base: o Destinador, o Sujeito e o Objeto (as figuras simétricas e inversas do anti-sujeito e do anti-Destinador determinam a estrutura polêmico-contratual da narrativa) (2003, p.415). Para concretizar tais noções teóricas e vê-las operacionalizadas, toma-se o relato de Os Diários de Langsdorff em questão, com o recorte que privilegia a cena referida da caça ao tamanduá. Afinal, o todo está nas partes. 74 Programa Narrativo da caça Assim, encontra-se no relato do dia 26/11 uma história contada por um narrador que testemunha os fatos e participa deles. Veja-se o início do texto: O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão (1997, p. 250). Observa-se a afirmação do sujeito-narrador: “decidi ir caçar tamanduá”. Depreende-se desse enunciado a apreciação e garantia dos valores do objeto de valor descritivo, concretizado pela figura do tamanduá. Um sujeito, eu, o próprio narrador, quer e deve entrar em conjunção com a posse desse bicho. Vê-se assim o primeiro par de actantes que faz parte da estrutura narrativa. Actantes estes, cuja relação que os liga é de disjunção inicial: homem/tamanduá, ou seja, o homem não tem um tamanduá. Os papéis do sujeito e do objeto definem-se um em relação ao outro, a “relação transitiva entre sujeito e objeto dá-lhes existência”, afirma Barros (2002, p. 29). Enfim, não há sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito. Pautando-se ainda pelas “dependências entre funções actanciais” (Tatit, 2003, p.193), é interessante destacar o significado do verbo “decidir”. Segundo Aurélio14, decidir tem o sentido de “resolver”, “dar solução a”, “solucionar”, “desatar”. Assim, esse verbo baliza a ação por meio de dois sentidos. O primeiro diz respeito a tomar uma decisão após uma frustração: “resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão.” Estabelece-se, assim, um contrato prévio, em que um destinador-manipulador – o eu, o narrador – dota o destinatário-manipulado – os caçadores – de um /querer/ e um /dever/ caçar tamanduá por ele ou no lugar dele. Vale ressaltar que os caçadores foram modalizados muito mais pelo /dever/ do que pelo /querer/, como se nota: “depois de já haver mandado”. Este programa narrativo (PN) pode ser resumido com o seguinte esquema: 14 Dicionário Eletrônico Aurélio (junho de 2006). 75 F (caçar) PN: [S1 (Langsdorff) → S2 (caçadores) ∩ Ov (tamanduá) Podemos ler esse esquema da seguinte forma: S2 (Os caçadores - sujeito do fazer transformador) age de forma que S1(Langsdorff) fique conjunto (∩) com o objeto (Ov). Observa-se, portanto, que foi atribuída a S2 uma obrigação: transformar o estado inicial disfórico de S1 em eufórico. Para que S2, actante coletivo figurativizado por “caçadores”, realize a performance (caçar um tamanduá) é necessário que ele não somente deva e queira, mas também possa e saiba, que tenha capacidade para tal. Essa competência dos caçadores fica pressuposta. Sobre a performance, isto é, o fazer pragmático propriamente dito, sabe-se apenas a quantidade das tentativas realizá-la: “três vezes”. Os caçadores não cumprem a missão que lhes foi atribuída, seja por não estarem imbuídos dos mesmos valores que o destinador, seja por uma insuficiência modal, não podem, não sabem. São, assim, sancionados negativamente pelo destinador-julgador “Langsdorff”. Tal sanção é figurativizada pela expressão “em vão”, caracterizando a performance inútil, debalde, dos caçadores sujeitos manipulados [em vão]. A performance dos caçadores é mal sucedida, o que desencadeia o programa de ação de um novo sujeito, Langsdorff, que é o destinador de si próprio numa auto-manipulação: “decidi”. O segundo sentido do verbo “decidir” se refere ao esclarecimento, de resolução, de “dar solução a”. Disso decorre o PN de base, ou principal da narrativa. Tem-se, assim, um actante sujeito do /querer-fazer/ disjunto do objeto-valor. Esta falta inicial é o que caracteriza necessariamente a disjunção: “O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé”. Nesse PN principal ocorre, no entanto, o que se conhece por sincretismo actancial, ou seja, dois actantes diferentes – destinador e destinatário – sincretizados no mesmo ator: o eu, Langsdorff. (cf. Greimas e Courtés, 1983, p. 426). Tal PN pode ser assim esquematizado: 76 F (caçar) PN: [S1 (Langsdorff) → S2 (o próprio Langsdorff) ∩ Ov (tamanduá investido do valor dado pelo desejo máximo e antigo de Langsdorff) Para caçar o tamanduá, o actante Langsdorff precisa da competência, que pode ser concebida apenas mediante as quatro modalidades /saber-fazer/, /poderfazer/, /querer-fazer/, /dever-fazer/. Uma vez que se sabe, mas não se pode, não se quer e não se deve, a ação não se realiza. Da mesma forma, quando se deve, mas não se sabe, não se quer e não se pode, a ação também não é realizada. A falta de uma dessas quatro modalidades faz com que a ação não se realize, como se pode perceber. É competente quem apresenta todas essas modalidades, que se constituem num percurso tensivo que leva à realização da conjunção com o objeto. O quadro 1 visualiza esta explanação: Quadro 1 – As modalidades e suas classificações Modalidades Virtualizantes Atualizantes Realizantes Exotáxicas Dever Poder Fazer Endotáxicas Querer Saber Ser Fonte: Greimas e Courtés (s.d., p. 283). Em seguida, os autores acrescentam: De acordo com a sugestão de M. Rengstorf, designam-se aqui como exotáxicas as modalidades capazes de entrar em relações translativas (de ligar enunciados que têm sujeitos distintos), e endotáxicas as modalidades simples (que ligam sujeitos idênticos ou em sincretismo) (s.d. p.283). Esse quadro das modalidades e suas classificações orienta as organizações narrativas, que são articuladas da seguinte maneira: as modalidades /dever/ e /querer/ colocam os sujeitos e objetos, anterior à sua junção, em posição virtual; já as modalidades /saber/ e /poder/ são adquiridas e fundamentais para a competência. Elas remetem aos movimentos da disjunção e busca de conjunção 77 entre sujeitos e objetos; combinadas com as modalidades do fazer e ser, operam uma transformação que resulta na atualização e realização do sujeito. Langsdorff se configura inicialmente como um sujeito virtualizado, ou seja, um sujeito que /quer/ o objeto, quer estar conjunto com o objeto-valor por meio da passagem já citada: “O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé”. Observa-se que a competência do sujeito operador se manifesta na dimensão pragmática. É o papel desse “viajante-naturalista” de descobrir o Brasil que lhe permite conhecimentos que serão colocados em prática, configurando, assim, um sujeito atualizado, um sujeito disjunto, mas dotado de competência para entrar em conjunção com o objeto-valor. Além disso, para corroborar a realização do desejo do sujeito, encontra-se no relato do diplomata alemão o que se pode chamar de sujeito adjuvante, representado pela figura do “carpinteiro Thomé”, bem como dos cães. Segundo o Dicionário de Semiótica: Adjuvante designa o auxiliar positivo quando esse papel é assumido por um ator diferente do sujeito do fazer: corresponde a um poderfazer individualizado que, sob a forma de ator, contribui com o seu auxílio para a realização do programa narrativo do sujeito; opõe-se, paradigmaticamente, a oponente (que é o auxiliar negativo) (Greimas e Courtés, s.d., p. 14). Esse actante é, portanto, a viabilização dos objetos modais – do /poder-fazer/ e do /saber-fazer/. Essas modalidades atualizam o sujeito-operador, tornando-o competente para a transformação do estado inicial disfórico. Há ainda, na cena relatada, os adjuvantes instrumentais “arma” e “porrete”, que se configuram, segundo previa Vladimir Propp, como os objetos que contribuem para a realização da prova principal na construção da competência do sujeito; entretanto, não são mágicos. Como se vê, não se trata de um sujeito solitário. Temos um actante nucleado, ponto de gravidade, que comporta a atuação de Langsdorff e de seus sujeitos satélites: actantes adjuvantes e actantes instrumentais. Esse inventário actancial é predominante em Os Diários de Langsdorff, corroborando tanto o plano pragmático (meios), quanto o plano cognitivo (fins) em relação aos objetos. 78 Dessa forma, funda-se o efeito discursivo de atmosfera aprazível. A comunicação estabelecida entre os actantes corrobora o perfeito desenrolar da performance do sujeito, levando a uma relação de “continuidade” em busca da conjunção com o objeto-valor. A narrativa prossegue, trazendo à luz a performance do sujeito. Pode-se dizer que é esta performance que proporcionará o clímax da narrativa. Esse sujeito disjunto em relação ao objeto-valor é impelido pelo desejo, como dito anteriormente. O desejo, implicando o querer, é interpretado “pelo deslocamento em busca do objeto-valor” (Greimas e Courtés, s.d., p.112). Para tal, esse sujeito recorre ao adjuvante, actorializado na figura do carpinteiro: Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relava bela e, no centro, um riacho pantanoso. Amarramos nossos cavalos numa árvore; meu guia percorreu a encosta esquerda e eu, a direita dos morros que formavam o vale. Cerca de uma hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando (1997, p. 250). Destaca-se no primeiro parágrafo da seqüência recém-citada o detalhamento figurativo do espaço tópico: o caminho para Paraúna; uma légua do lado esquerdo de um vale; vale cercado por elevações rochosas. Temos o simulacro de um olhar com uma câmera de filmagem que olha tudo em extensão, percorrendo grandes espaços. Esse olhar não perde o número dos objetos contemplados, mas não se detém em nenhum deles. Tem-se, tensivamente falando, uma percepção alta e um foco baixo. Além disso, atente-se para o ir-e-vir do narrador, apresentando rápidas indicações de itinerário que acabam por privilegiar, no discurso, a performance do sujeito. A performance, conforme Greimas e Courtés (s.d., p. 328-329), diz respeito a um fazer-ser que leva à transformação essencial da narrativa. Prosseguem os teóricos esclarecendo que o fazer do sujeito deve ser relacionado a valores descritivos – o tamanduá, no caso do texto langsdorffiano – e se o sujeito do fazer e o sujeito do estado estiverem sincretizados no mesmo ator – como o eu, Langsdorff. 79 Indicam ainda os autores que, enquanto estrutura modal do fazer, a performance designa a decisão – como em “decidi ir caçar” – e a execução. Aquela é da dimensão cognitiva, enquanto esta é da dimensão pragmática. Observe-se, portanto, a continuação da execução da busca do objeto-valor: Cerca de uma hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando. Ele me garantiu que a relva alta pisada que vimos à nossa volta seriam rastros de tamanduá, que certamente teria estado aqui há 2 ou 3 dias. Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto, estreito e fechado, de onde se avista, a grande distância, morros nus e rochosos e montanhas (1997, p.250). Remetendo ao nível discursivo, nota-se que todos os percursos temáticos e figurativos no relato parecem concretizar, no discurso, o encontro do sujeito com o objeto-valor, realizado no nível narrativo. Nesse excerto há uma afirmação que vale a pena ser destacada: “Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos”. Observa-se que a esperança é, desde o início, efeito passional motriz do sujeito. Segundo Aurélio15, esperança significa o “ato de esperar o que se deseja”, “expectativa, espera”, além de “fé” em conseguir o que se almeja. Barros (2002, p. 65) diz que a esperança, enquanto efeito passional, é determinada pela confiança que indica um sujeito modalizado por um /querer-ser/, /crer-ser/ e /saber-poder-ser/. Trata-se, como se nota, de uma fase gradativa da competência – aquisição, primordialmente, das modalidades do /poder/ e /saber/ – que corresponde à prova preparatória ou qualificante e acontece no espaço paratópico da narrativa. Dessa forma, cria-se a espera do momento que seguirá como uma espera eufórica do encontro com o objeto-valor. Um sujeito aguarda, subsidia o momento em que pretende realizar-se como que um encontro fusional com o objeto. E assim o relato prossegue: Já havíamos cavalgado uma pequena meia légua, quando, de repente, meu acompanhante gritou: “⎯ Senhor, veja, lá está ele!” Voltei os olhos para a esquerda, do outro lado do pântano, e vi um 15 AURÉLIO, idem, ibidem. 80 grande animal comprido, preto, andando solene e pausadamente para a frente. Mal podia acreditar nos meus olhos. A distância, eu só podia distinguir um grande animal, mais baixo e mais comprido que um boi (1997, p. 251) Chamam a atenção as ordens sensoriais aguçadas diante das condições de contato com o objeto. Atente-se para o percurso do olhar: “voltei os olhos”, “vi”, “mal podia acreditar nos meus olhos”. É, como lembra Greimas em Da imperfeição: “o ‘olhar’, presente primeiro como um simples instrumento de sua vista, torna-se ele mesmo o delegado ativo do sujeito; ele ‘avança’, ‘se retrai’, coloca-se em uma posição receptiva, fora do sujeito somático” (Greimas, 2002, p. 34). Observa-se, então, o surgimento do tamanduá no campo sensorial do sujeitonarrador, atraindo a atenção deste, devido às qualidades de uma espécie surpreendente, inusitada: “um grande animal comprido, preto, andando solene e pausadamente para a frente”. O sujeito extasia-se por um breve período de tempo, dando sinal de um ser que está a ponto de se tornar completo, perfeito no sentimento de plenitude juntiva, conforme orientação de Fontanille & Zilberberg (2001). Vale ressaltar aqui que, de acordo com Lopes (1989/1990, p. 159-160), o sujeito visa ao objeto para se ver completo ou, com as palavras de Tatit, ver-se completo com “a parte que lhe falta na configuração da própria identidade.”16 (padronizar referência de citação). Assim, a relação que se estabelece entre esses actantes – sujeito e objeto – apresenta o caráter do que é o sujeito ou de quando ele está incompleto, ou seja, a relação de imperfeição que o constitui. Nessa relação entre sujeito e objeto, Tatit sublinha que “As próprias funções, ativa e passiva, que definem respectivamente sujeito e objeto, confundem-se nesse estado de fusão completa, como se, num brevíssimo período, o primeiro actante pudesse experimentar a perfeição de ser uno (sujeito e objeto)”17. Fascinado pelo objeto-tamanduá, o sujeito do querer avança por meio de seus fazeres em busca da perfeição do momento de fruição. 16 TATIT, Luiz. A verdade extraordinária. (cópia xerog.). 17 Ibidem 81 Amarramos rapidamente o cavalo, e, com a espingarda nas costas, nos ombros ou embaixo do braço, tentei imediatamente cortar o caminho até o tamanduá, que ainda estava bem longe. Devido às dificuldades que tive para atravessar o alagado, ora afundando na lama, ora tendo que desviar das poças mais fundas, os cães que me acompanhavam chegaram um pouco rápido na parte seca (1997, p. 251). Observamos que o uso recorrente do gerúndio, “ora afundando”, “ora tendo que desviar das poças” aumenta e prolonga a tensão do desejo: o sujeito não se move, fica estático. Esse estado é lexicalizado por meio desses verbos usados no gerúndio (não conjugável), o que o tensiona para, mais do que uma conjunção com o tamanduá, a fusão desejada com a realização de seu objeto de desejo: o troféu, a vitória do caçador sobre a caça. As forças antagônicas, que até então estavam em estado latente, dão os primeiros indícios; entretanto, o sujeito desempenha todos os programas de modo a não deixar que essas forças antagônicas, figurativizadas por um espaço adverso, interfiram no evento tão almejado. A seguir, configura-se o encontro com o objetotamanduá: Logo que atravessei a parte alagada, subi uma pequena elevação para ver o tamanduá, que já estava bem perto de mim. Então, os cães começaram a latir a 30 passos atrás de mim, por detrás de um pequeno bosque de capoeira. Saltei como um raio e assisti a um espetáculo que compensou plenamente todos os dissabores e incômodos de viagem que tive até hoje: vi um grande animal acuado, desajeitado, de constituição estranha, desdentado, cuja única defesa está nas duas garras das patas dianteiras, lutando com dois cães. Foi uma cena realmente singular! (1997, p. 251). Finalmente, o sujeito se depara com o objeto-tamanduá. Vê-se que tal figura bestial fascina e seduz o sujeito pela forma, tamanho e comportamento. Aqui, vale recorrer aos escritos de Algirdas Julien Greimas: “O objeto estético se transforma em ator sintático que, manifestando de tal modo sua ‘pregnância’, avança sobre o 82 sujeito-observador” (Greimas, 2002, p.34). Faz-se aqui uma homologação do objeto estético greimasiano com o objeto de desejo do caçador diante da caça. O espaço, figurativizado pelo ir-e-vir do sujeito, passa a uma delimitação, precisa, circunscrita “por detrás de um pequeno bosque de capoeira”. Esse território é caracterizado como um espaço tópico e utópico – lugar onde se manifesta a transformação. A respeito desse espaço, Barros lembra que: O espaço tópico é aquele em que as coisas acontecem ou espaço das transformações narrativas. (...) No interior do espaço tópico, distinguem-se os espaços paratópicos, entendidos como espaços de aquisição de competência e de sanção, do espaço utópico da performance principal do sujeito (Barros, 2002, p. 92). Assim, configura-se no excerto a seguir o referido espaço utópico: O tamanduá virava o corpo todo várias vezes, pulando com rapidez para se defender do ataque dos cães. Por mim, eu teria ficado observando por mais tempo as evoluções do animal, mas eu temia que ele se aproximasse demais do alagado, o que tornaria ainda mais difícil para mim abordá-lo. Apontei a arma numa distância de 5 a 6 passos, aproveitei o momento em que os dois cães ficaram fora da mira e atirei na cabeça do animal, perto das orelhas. Como ele se movimentasse sem parar, o tiro atingiu-o atrás das orelhas, entre o olho e a orelha. Ele caiu, mas levantou-se de novo e recomeçou a lutar, apesar de cansado, com dores e menos ágil. O guia quis dar um segundo tiro, mas eu temia estragar o pêlo e mandei que ele batesse com um porrete. Após algumas pequenas pancadas no focinho comprido ou nariz, ele caiu esticado no chão (1997, p. 252). Novamente, observa-se uma força antagônica representada pelo “alagado”. No entanto, esta não chega a impedir a realização do programa do sujeito. Dessa forma, o sujeito acaba por ter suprida a falta que obstava a configuração da própria identidade. Pode-se vislumbrar pelas próprias palavras do narrador o seu estado de plenitude: “E assim consegui satisfazer meu desejo de abater um tamanduá.” (p. 83 252), bem como “O tamanduá foi levado para casa pendurado atrás da sela, e lá chegamos triunfantes e contentes por volta de 2h.” (p.252). Por meio desse relato, percebe-se que há o retorno ao espaço inicial, a casa. A conjunção com o objetovalor é a conseqüência da prova glorificante de capturar o tamanduá. O espaço inicial é considerado paratópico, pois é onde ocorre a sanção. A sanção positiva corresponde ao percurso do destinador-julgador, no caso o próprio Langsdorff, que se auto-manipulara. A sanção interpreta os estados resultantes do fazer do sujeito operador, podendo ser de ordem cognitiva, na forma de reconhecimento ou punição; ou ainda, de ordem pragmática, sob forma de retribuição ou recompensa. Dependendo da organização textual, pode vir primeiro ou ser a última fase da seqüência narrativa. No caso da caça bem resolvida, temos a sanção positiva cognitiva, ou seja, o auto-reconhecimento, que se realiza como estado final na linearidade narrativa. Modalizado pelo /querer-fazer/ e pelo /poder-fazer/, o actante-sujeito sincretizado na figura de Langsdorff, narrador do texto, transforma seu estado inicial disfórico em eufórico, o que se realiza por intermédio de sua performance. Assim, esse sujeito, que apresenta uma carga modal conectada, é capaz de julgar a si mesmo de forma positiva, cumprindo o PN de aquisição. A dimensão patêmica manifesta-se pelas paixões resultantes de arranjos de modalidades. Dessa forma, a figura do tamanduá está ligada às paixões de satisfação, realização, alegria, felicidade deste sujeito. Por fim, não há estados passionais ambíguos ou de incompletude do sujeito. Programa narrativo do empalhamento Encontra-se, no texto, um outro PN relacionado aos preparativos da empalhação do animal. Sob a forma de esquema, tem-se: F (empalhar) PN: [S1 (Langsdorff) → S2 (Sr. Ménétriès) ∩ Ov (empalhamento) Assim, S1 (Langsdorff) quer ter o tamanduá empalhado para satisfazer-se, isto é, para a liquidação da falta. Nesse PN o actante objeto está investido do valor /conservação/. A seqüência narrativa do PN em questão se caracteriza pela falta 84 (disjunção com o objeto-valor), pela busca (do valor investido no objeto) e pela aquisição. Langsdorff, actante sujeito modalizado pelo /querer/, é um sujeito virtual. Não tem competência para transformar seu estado de junção. Por não possuir os valores modais /poder-fazer/ e /saber-fazer/ para transformar seu estado, Langsdorff se vê na contingência de exercer a manipulação sobre o destinatário de um programa narrativo em que ele, Langsdorff, é o destinador. O actante – aquele que realiza ou que sofre o ato – representado por “Sr. Ménétriès” – é manipulado pelo destinador, representado por Langsdorff. A manipulação, nesse caso, está pressuposta, tanto assim que está elidida por completo no texto. Difícil decidir qual tipo de manipulação é utilizado pelo destinadormanipulador aí (sedução? tentação? – não temos elementos para responder). De qualquer maneira, como o Sr. Ménétriès está lá “a serviço de”, “sob as ordens de” Langsdorff, a situação “institucional” entre eles já é manipuladora (não cabe perguntar se Ménétriès “quer fazer” ou não: ele deve fazer) A evolução pontual desse contrato, ressaltada por Langsdorff, se dá na seqüência em que se dá o /fazer/ do Sr. Ménétriès: “Começaram imediatamente os preparativos para a empalhação” (1997, p. 252). O Sr. Ménétriès pode e sabe auxiliar Langsdorff para empalhar o tamanduá. Mediante a performance realizada a contento, Ménétriès é sancionado positivamente (sanção pressuposta) e Langsdorff entra na aquisição tão desejada do bicho empalhado. A performance do Sr. Ménétriès transforma, enfim, o sujeito de estado, de outro programa narrativo prévio, o destinador Langsdorff, que também é um sujeito de estado do programa implícito, de sujeito disjunto do objeto-valor /conservação/ para sujeito conjunto. Sr. Ménétriès é sancionado positivamente tanto cognitiva quanto pragmaticamente pelo destinador-julgador, como se vê: “o empalhamento, tarefa que o Sr. Ménétriès fez com bastante habilidade e esmero. Na mesma noite, ele besuntou a cabeça do animal, por dentro e por fora, com lume, para garantir uma conservação perfeita dessa parte do corpo” (1997, p. 252). Esse percurso de empalhar o tamanduá é a confirmação da caça realizada. O reconhecimento ou a sanção positiva de Langsdorff está nas figuras “com bastante habilidade e com esmero”. 85 Em torno do tamanduá Observou-se até aqui as performances dos sujeitos, as quais se situam no plano das ações. Trata-se da fundamentação, no nível narrativo, do percurso temático, que será examinado menos apressadamente ao longo deste trabalho, do cientista da época, ou melhor, do cientista “aplicado”, “de campo”. Há, porém, um outro plano na narrativa, ou seja, o plano cognitivo, em que se desenrola o saber sobre o objeto, ou melhor, sobre o ser do objeto. O sujeito interpreta a aparência do objeto-tamanduá para chegar a um julgamento sobre o que ele é. Dá-se a base para a descrição do animal, concretizada discursivamente: O tamanduá costuma sair em busca de comida por volta do meio-dia, quando o tempo está quente e sol forte. A área que ele habita aqui não parece ter muita formiga, mas ele a prefere certamente por ser desabitada. Não obstante, seu estômago estava cheio delas: havia consumido cerca de 3 libras (1997, p. 252). O sujeito narrador, considerado no nível discursivo, principia uma descrição minuciosa dos hábitos alimentares e do comportamento representado figurativamente do objeto de valor descritivo do nível narrativo, o tamanduá. O narrador prossegue: Ele anda devagar, dobrando as duas garras grandes das patas dianteiras. As pontas dessas garras ficam encaixadas numa cavidade da sola do pé, o que lhe permite caminhar com leveza, tocando o chão apenas com a parte lateral do pé. As grandes garras servem para quebrar a crosta dura dos ninhos das formigas brancas e raspar a terra. A fêmea tem duas mamas entre ou logo abaixo das patas dianteiras e só pode ter um filhote, que ela carrega em suas costas durante algum tempo após o nascimento (1997, p. 252). Nota-se a descrição discursiva das peculiaridades físicas do animal tanto no que diz respeito ao macho quanto à fêmea. Observa-se que estas descrições 86 confirmam no discurso a valorização do objeto-valor /informação/ e, principalmente, justificam toda a performance do sujeito pela busca do objeto-valor. No nível discursivo, temos o olhar detido do sujeito observador diante do objeto descrito. Da descrição emerge o tamanduá, objeto da observação, em seus detalhes. Depreende-se do excerto a seguir um programa de manipulação por provocação, em que se cria a imagem negativa do governo brasileiro como aquele que permite a degeneração de nossas terras. Langsdorff, o destinador de valores, manipula (indiretamente no discurso) o governo para que ele queira e deva preservar o tamanduá. Esse programa é o ressaltado pelo discurso de Langsdorff. A futura performance do sujeito governo e a sanção decorrente não se concretizam no discurso. Nesse ponto, o sujeito recorre à postura de alguns países ditos civilizados no que se refere à salvaguarda de animais benéficos ao meio ambiente. O narrador, no discurso, recorre também à imagem de Deus para conquistar, à primeira vista, “os habitantes locais”, mas que compreende também os destinatários, leitores, cidadãos de modo geral. Em tempos antigos e atuais, em todos os países civilizados, tem sido costume proteger a vida de alguns animais úteis para a sociedade, seja através de leis, da religião, da origem e da tradição e costumes. É o caso do íbis, no Egito, e agora da cegonha, em nosso país. Também a andorinha não é mais abatida ao bel-prazer. Aqui no Brasil, o homem comum não gosta que se matem os urubus (Falco aura), pois eles comem mulas em decomposição e todo tipo de carniça. Portanto, é de se estranhar que os habitantes locais matem por simples diversão – isso eu posso atestar – o tamanduá, o mais útil de todos os animais, criado por Deus Amado para livrar o homem da fome, uma vez que ele come as formigas devastadoras e destrutivas. O Governo deveria, e teria todo direito em fazê-lo, instituir multa pesada pelo abate do tamanduá e incentivar os moradores das regiões onde ainda houvesse alguns a tentar, de toda forma, promover sua reprodução. Com isso, muitas terras poderiam ser recuperadas, terras que se tornaram incultiváveis pela ação das formigas, como, por exemplo, nas Províncias do Espírito Santo e de 87 São Paulo. Se o Governo não tomar providências nesse sentido, o tamanduá será totalmente extinto (1997, p. 253). As seqüências narrativas apresentadas anteriormente são da ordem do enunciado. Apenas no último parágrafo encontra-se uma referência indireta à enunciação, enunciador/enunciatário, narrador/narratário. É como se Langsdorff dissesse: “O governo [brasileiro] deveria” [caro leitor]. “Com isso” [caro leitor]. Mas é indireta essa enunciação enunciada. Em contrapartida, há, ao longo de todo diário, como sempre pressuposta, a narratividade da enunciação, instância do autor e leitor. Toma-se agora o diário, integralmente. Nessa seqüência canônica, o enunciador (Langsdorff) manipula o enunciatário (leitor) para que ele queira e deva entrar em conjunção com o valorconhecimento (saber) sobre o Brasil. Trata-se, portanto, de um saber sobre os costumes pormenorizados do nosso Brasil, um saber sobre a fauna, a terra e a gente brasileira, um saber apoiado no conhecimento cosmopolita de um sujeito, um saber político. Diz-se, portanto, que esse objeto de valor é modal, é a doação de um saber, o que é almejado e realizado pela enunciação, no ato próprio de escritura dos Diários. Estruturas discursivas O nível discursivo é aquele que recobre o narrativo no percurso de construção do sentido, sendo que sua estruturação é a responsável pelo desvelamento e recuperação da enunciação e dos valores que estão subjacentes ao texto. Os procedimentos da discursivização são definidos como: Os procedimentos de discursivização – chamados a se constituírem numa sintaxe discursiva – têm em comum poderem ser definidos como a utilização das operações de debreagem e de embreagem e ligarem-se assim, à instância da enunciação. Divirdir-se-ão em três subcomponentes: actorialização, temporalização e espacialização, que têm por efeito produzirem um dispositivo de atores e um quadro ao mesmo tempo temporal e espacial, onde se inscreverão os programas narrativos provenientes das estruturas semióticas (ou narrativas). (Greimas e Courtés, s.d., p. 125). 88 A enunciação é o ato de produção do discurso e, ao ser produzida, deixa marcas definidas como a instância de um eu-aqui-agora. Para Greimas e Courtés (1983), numa perspectiva semântica, estas marcas são plenas, dotadas de sentido. Pode-se observar como estão articuladas ao sujeito no tempo e no espaço na produção do texto em análise. O narrador e os atores da expedição científica Eu, o narrador, sou milagre. Pepetela No que diz respeito à categoria da pessoa, é conveniente frisar que não abordaremos nesse trabalho o autor, Georg Heinrich Freiherr von Langsdorff, entidade real e empírica. Dessa forma, vale retomar o esquema dos níveis enunciativos, já apresentado no capítulo precedente. Assim, temos, implicitamente (enunciação pressuposta), o enunciador e o enunciatário. Em seguida, são instalados no enunciado, por intermédio de uma debreagem de primeiro grau, o narrador e o narratário, os quais são “simulacros discursivos do enunciador e do enunciatário implícitos” (Barros, 2002, p. 75). O terceiro nível, em que o narrador “dá voz a um actante do enunciado, operando uma debreagem de segundo grau” (Fiorin, 2002, p. 67) apresentará o interlocutor e interlocutário em discurso direto. Em decorrência disso, Barros afirma que, no que diz respeito à sintaxe discursiva, o sujeito da enunciação “para construir seu objeto, instala um ou mais sujeitos delegados, aos quais atribui o /dever-fazer/, que os instaura como sujeitos, e o /poder-fazer/ ou poder falar por ele, que os qualifica, que os dota de ‘voz’.” (2002, p. 84, grifo do autora). No texto em análise, predomina a enunciação enunciada no que diz respeito ao uso do pronome pessoal do caso reto, de 1º pessoa, eu, nós, e a outras formas pronominais correspondentes: meu, minha, nosso, nossa, este, isto, entre outras, como foi dito. O uso da primeira pessoa, conforme apregoado por Fiorin, “pode servir para designar o narrador enquanto tal” (2002, p. 115). Assim, por exemplo, no relato em questão, o mesmo ator desempenha o papel de: 89 a) eu-narrador ; b) eu-personagem. Tomam-se alguns exemplos para concretizar tais noções O tempo estava tão bom que decidi [eu] ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi [eu] testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão. Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso (1997, p. 250; grifos nossos). Bem como: Como convidados do Intendente e estrangeiros, fomos [nós] também especialmente convidados. Já falei anteriormente (em Santa Luzia) sobre uma festa cuja motivação principal é a missa solene e os doces. Esta última era uma festa religiosa; aquela uma festa civil (1997, p. 278-279; grifos nossos). E, por fim: 19/05 [1824] Seis de nossos animais estavam faltando de novo hoje de manhã, em parte por causa da minha indisposição, em parte devido à ausência do tropeiro. Na falta dos animais, tivemos [nós] que ficar novamente aqui, um lugar onde não podemos [nós] comprar quase nada, pois nele não há vendas (1997, p. 13; grifos nossos). A identificação discursiva entre eu-narrador e eu-personagem, marca do gênero diário de campo, é consolidada como modo de dizer do ator da enunciação do Diário. A escolha da modalidade enunciativa condiz com o conteúdo temático do viajante-explorador centrado no eu, já que há sincretismo entre o enunciador e o 90 sujeito do enunciado. Isso se constrói através do mecanismo de debreagem enunciativa, predominante no relato do alemão, o que não implica a ausência de debreagem enunciva, “aquela em que se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele)” (Fiorin, 2002, p. 44), quando há seqüências descritivas dominantes: Ele anda devagar, dobrando as duas garras grandes das patas dianteiras. As pontas dessas garras ficam encaixadas numa cavidade da sola do pé, o que lhe permite caminhar com leveza, tocando o chão apenas com a parte lateral do pé. As grandes garras servem para quebrar a crosta dura dos ninhos das formigas brancas e raspar a terra. A fêmea tem duas mamas entre ou logo abaixo das patas dianteiras e só pode ter um filhote, que ela carrega em suas costas durante algum tempo após o nascimento (1997, p. 251). Ou ainda este outro caso: João Batista, de Gongo Soco, é realmente uma pessoa rara. Todo o ouro que ganhou, ele o utilizou da forma mais altruísta possível, tendo aplicado grande parte em benfeitorias para usufruto da comunidade. Ele mandou construir e mobiliar a prefeitura (Casa da Comarca) em Caeté, e várias estradas públicas foram abertas com seus recursos. É uma pessoa desapegada, ajuda pobres e necessitados e é um protetor das ciências. É fácil imaginar como as pessoas se aproveitam da sua bondade (1997, p. 142). Tais recursos também não implicam a ausência de debreagem enunciativa de segundo grau, responsável pelo discurso direto, quando se recupera a narração do que dizem os atores do enunciado: “de repente, meu acompanhante gritou: ‘– Senhor, veja, lá está ele!.’” Bem como em: “ ‘Ele não vai nos escapar’, disse o guia, ‘mas temos que tentar atravessar o alagado.’” “ ‘Você tem medo de molhar os pés?’ perguntei. ‘Eu não’ “ (p. 251). A seguinte passagem, que retrata um acidente, também apresenta o discurso reportado em questão: 91 O meu susto [de Langsdorff], a minha afobação, a minha consternação eram tão grandes que nem posso dizer quanto. Meu corpo tremia, comecei a chorar, agarrei o rapaz e gritei: “Meu Deus! O que foi que eu fiz? Sou um assassino, nos meus 50 anos, um assassino!” Ele, porém, disse: “Não, não é nada! Acalme-se, não é nada!” Ele abriu sua camisa, e, de fato, inexplicavelmente, de início não vi nada, mas, logo depois, vi o orifício ou o sinal de cinco pequenos grãos de chumbo do lado esquerdo do umbigo, apareceu também a inchação e um pouco de sangue (1997, p. 71-72). Percebe-se que o narrador delega voz para os atores do enunciado, que apresentam enunciações em discurso direto, produzindo, dessa forma, efeito de realidade. Authier-Revuz (1990, p. 25-42) denomina esse recurso de heterogeneidade mostrada e marcada, isto é, formas lingüísticas de representação do sujeito. São formas que inscrevem o outro na seqüência do discurso (discurso direto, aspas, etc). Articulando a noção de dialogismo bakhtiniano à de “heterogeneidade constitutiva” da linguagem, ressalta o fato de o sujeito, enquanto parte de um corpo histórico-social, interagir com outros discursos. Nesse sentido, o sujeito Langsdorff é heterogeneamente constituído, é dialógico, responde aos ideais e aspirações de determinado grupo social de um tempo histórico. No discurso direto, entretanto, falamos do diálogo mostrado e marcado, que aumenta o efeito de verdade. Fiorin lembra que a “debreagem interna serve, em geral, para criar um efeito de sentido de realidade, pois parece que a própria personagem é quem toma a palavra e, assim, o que ouvimos é exatamente o que ela disse” (2002, p. 46). O jogo dos tempos O diário de G.I. Langsdorff, como todo documento do gênero, é um meio de comunicação que privilegia, por sua própria condição, o tempo do momento da enunciação, a data inscrita para cada dia do registro. O mecanismo de projeção temporal revela, no nível discursivo, aquilo que já está projetado no nível narrativo. Em outras palavras, observa-se que a valorização do objeto pelo sujeito e a busca da mudança de estado do sujeito, que ocorrem no 92 nível narrativo, refletem também na caracterização do tempo, pois essa articulação deixa transparecer o processo de transformação do relato langsdorffiano em análise do que o explorador vê, pensa e fala na sua viagem exploratória. O nível narrativo enraíza as categorias discursivas. Retomam-se conceitos oriundos de Greimas e Courtés. Nesse sentido, a temporalização, como “seu próprio nome indica”, é um mecanismo dado em função de “produzir o efeito de sentido ‘temporalidade’ e em transformar, assim, uma organização narrativa em ‘história’” (Greimas e Courtés, s.d., p. 455). Ressaltam também que a temporalização, a actorialização e a espacialização são subcomponentes da discursivização e se referem à sintaxe discursiva. Os autores distinguem ainda três procedimentos da temporalização. Aqui, precisam-se tais procedimentos. A programação temporal, conforme Greimas e Courtés, exerce a “conversão do eixo das pressuposições (ordem lógica de encadeamentos dos programas narrativos) em eixo das consecuções (ordem temporal ou pseudocausal dos acontecimentos)” (s.d., p. 455). Já a localização temporal utiliza os procedimentos de debreagem e embreagem temporais, segmenta e organiza as sucessões temporais, estabelecendo, assim, um “quadro em cujo interior se inscrevem as estruturas narrativas” (s.d., p. 455). Entende-se, por fim, que a aspectualização é responsável pela transformação das “funções narrativas (de tipo lógico) em processos que o olhar de um actante-observador instalado no discurso-enunciado avalia” (s.d., p. 455). Ao lado dessas posições de base, a análise da categoria temporal do diário de Langsdorff se baliza pela seguinte teoria proposta por José Luiz Fiorin, à luz de Benveniste: Daí decorre que existem na língua dois sistemas temporais: um relacionado diretamente ao momento da enunciação e outro ordenado em função de momentos de referência instalados no enunciado. Assim, temos um sistema enunciativo no primeiro caso e um enuncivo no segundo. Ocorre, no entanto, que o momento de referência está relacionado ao momento da enunciação, já que este é o eixo fundamental de ordenação temporal na língua (Fiorin, 2002, p. 145-146). 93 Dessa forma, no gênero em pauta e nos Diários de Langsdorff, o momento de referência é sempre o presente, o agora. Nesse agora, momento da enunciação, manifesta-se a categoria topológica concomitância vs não-concomitância; sob a forma de concomitância, tem-se o sistema enunciativo, dominante. Para a nãoconcomitância, anterioridade ou posterioridade ao momento da enunciação, tem-se os sistemas enuncivos, que ocorrem ao longo das páginas dos diários, em que o sistema temporal enunciativo é o pilar, desde a figurativização dos dêiticos. Falando de modo geral, pode-se obter, desta maneira, os seguintes sistemas e subsistemas: a) em caso de concomitância entre o momento de referência e o momento da enunciação, este será o ponto de convergência de todas as referências, de modo a caracterizar o sistema enunciativo, cuja referência temporal é o agora; b) em caso de não-concomitância, ou seja, de anterioridade ou posterioridade entre o momento da enunciação e o momento de referência, este deverá caracterizar o sistema enuncivo; c) o enuncivo, por sua vez, pode ser dividido em dois subsistemas: um que se organiza em torno de um momento de referência anterior ao da enunciação (marco referencial pretérito); outro em torno de um momento posterior ao da enunciação (marco referencial futuro). (cf. Fiorin, 2002, p. 146) Tais sistemas e subsistemas são expressos por meio dos tempos verbais, advérbios, locuções verbais e adverbiais. Confirma-se, repetimos, o sistema temporal enunciativo, no registro de cada dia do diário. Dentro desse registro, há as ocorrências temporais enuncivas. É necessário destacar ainda que a enunciação, ao produzir o discurso, produz simultaneamente o sujeito da enunciação. Segundo Greimas e Courtés (s.d., p. 147), o lugar da enunciação (eu/aqui/agora) é semântica e semioticamente passível de preenchimento de sentido. O discurso é instaurado pela projeção do discursoenunciado e de suas coordenadas espacio-temporais, a qual [projeção] também constitui o sujeito pelo que ele não é. Chama-se debreagem o processo pelo qual a enunciação realiza a projeção mencionada. Por meio da debreagem, são criados simultaneamente, o sujeito, o tempo e o espaço da enunciação. A enunciação põe em cena, na debreagem, as categorias de pessoa, de espaço e de tempo (Barros, 94 2002, p. 74). Um modo próprio de pôr a enunciação em cena constrói o éthos do cientista Langsdorff, o homem estrangeiro a falar sobre o Brasil dos idos do ano de 1824. O relato de Langsdorff referente à data de 26 de novembro de 1824 pode ser um exemplo da operacionalização dessas noções. Voltamos à história relatada, que diz respeito à caça e ao abatimento de um tamanduá nas proximidades de Santa Luzia, em Minas Gerais, por ser esta uma narrativa emblemática, que remete a mecanismos de construção do sentido de tantas outras. Apresentamos o mesmo relato, agora sob outra perspectiva analítica: a do tempo construído no discurso. 26/11 O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé, resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão. Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e no centro um riacho pantanoso (1997, p. 250). Observa-se que o relato do naturalista alemão principia com uma data: “26/11 [1824]”. Trata-se da explicitação do momento da enunciação, um marco referencial em concomitância com o ato de escrever o relato. Essa datação configura uma ancoragem figurativa do tempo, que ocorre sempre que a comunicação é diferida. A respeito da explicitação do momento da enunciação, Discini (2005, p. 2) observa em estudo realizado sobre cartas e diários íntimos que há nesses gêneros a “explicitação da data no ato da escrita” e o “estabelecimento da data como marco referencial presente, em função do qual se organiza predominantemente o dito”. É importante evidenciar ainda o fato de que o gênero diário exige, no sistema enunciativo, a explicitação do momento de referência, visto que, nele, a recepção não é simultânea à produção. Nos três Diários de Langsdorff, todos os relatos são iniciados por tal datação. Configuram-se, desse modo, coerções genéricas, ou seja, um conjunto de características que remetem a práticas cristalizadas de cada gênero discursivo, como, no presente caso, o gênero diário. 95 Quanto à categoria de tempo, observa-se também a ocorrência dos tempos do sistema enuncivo, ordenados segundo momentos de referência pretéritos, tal como demonstram estas linhas: “O tempo estava tão bom [naquele momento] que decidi [naquele momento] ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi [naquele momento] testar minha sorte, depois de já haver mandado [antes de tudo] os caçadores três vezes em vão.” Configura-se, dessa forma, uma debreagem temporal enunciva, a qual é um processo de projeção fora da (instância da) enunciação para um não-agora, o então. Isso permite, por um lado, a construção de um tempo “objetivo” e; por outro, um efeito de distanciamento entre o enunciador e o enunciado. Assim, do excerto ressalta sobremaneira a utilização do pretérito imperfeito e do pretérito perfeito 2. Esses tempos verbais são particularmente freqüentes no relato em questão e em outros também, como o comprovam estas citações: Ainda bem cedo, todos os animais já estavam à porta. Fazia + 7º. Uma pequena máquina manual para separar a polpa do caroço do café chamou sobremaneira a minha atenção (1997, p. 116; grifos nossos). Quando eu estava certo de que poderia retomar minha viagem e avançar, veio, então, o tropeiro me dizer que as roupas que ele havia encontrado não estavam prontas, ou ele não estava com vontade de partir. Estávamos, portanto, com a maior boa vontade, na dependência de um subordinado (1997, p. 175; grifos nossos). O rancho estava tão cheio de pulgas e bicho-de-pé, que ninguém se atreveu a ficar lá dentro. Dormiram todos ao ar livre, onde estava fresco e agradável, sendo que, de manhã, não havia orvalho (1997, p. 193; grifos nossos). A festa de Natal. O tempo estava turvo, frio e hostil. Com exceção da missa, praticamente não houve festividade, quer dizer, para o povo. Muitos artesãos trabalharam. À tarde, vários negros dançavam nas ruas, tontos de tanta cachaça (1997, p. 278; grifos nossos). Era minha intenção voltar para junto dos meus companheiros de viagem hoje bem cedo, mas uma chuva fina e contínua provocou uma tal enchente no rio, que nem pude pensar em viajar; mal podia sair de casa (1997, p. 318; grifos nossos). 96 Tendo em vistas os excertos supramencionados, nota-se que o pretérito perfeito 2 é perfectivo, produz, portanto, o efeito de acabamento, pontualidade, dinamicidade e limite. Já o imperfeito é imperfectivo, logo, descreve as ações e estados como sendo inacabados, durativos, estáticos, não-limitados. (2002, p. 155- 158). Esta distinção é importante porque ela se realiza, determinando em grande parte os efeitos de sentido do relato de Langsdorff. Torna-se, então, interessante verificar a primeira oração do texto, cuja função é apresentar a motivação e os atores da história, ou seja, trata-se da “situação inicial”, uma das funções propostas por Propp. Essa oração é classificada como oração subordinada adverbial consecutiva e apresenta o seguinte formato. Há na oração principal a descrição e a intensificação da condição climática: “O tempo estava tão bom”. O advérbio tão é a responsável pela ação seguinte, pois ela justifica a ação = o tempo estava tão bom que... Em decorrência disso, a oração subordinada “que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé” expressa o motivo ou razão da decisão tomada. Mas o importante é, sem dúvida, o efeito produzido pela relação entre os verbos que constituem a oração subordinada adverbial consecutiva. A ordem desses tempos verbais é igualmente importante. Assim, a ótima condição climática descrita pelo processo indicado pelo verbo estava da oração principal é um tempo concomitante ao marco referencial pretérito implícito “naquele momento”. Assinala também um estado inacabado, durativo, estático e não-limitado, que se prolonga até a concretização da caçada ao mamífero. Ainda, a relação de causa e conseqüência confirma o caráter racional do sujeito enunciador. Por outro lado, emprega-se o pretérito perfeito 2 decidi para o acontecimento que será a força motriz para a progressão da caça e, principalmente, porque essa decisão terá o papel de servir como marco cronológico no relato. Além disso, percebe-se que resolvi é um tempo concomitante ao marco referencial pretérito “naquele tempo”. Aspectualmente assinala um fato acabado, pontual, dinâmico e limitado. A decisão foi tomada. É preciso observar que o pretérito perfeito 2, além das peculiaridades ressaltadas anteriormente, é utilizado também para justificar tal decisão de ir à caça: “resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão”. 97 O exemplo que segue demonstra bem a relação de sucessão entre um acontecimento e outro, promovida pelo perfeito 2, o passado do passado: “Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso”. Com efeito, destaca-se, assim, que o pretérito perfeito é o “tempo por excelência da narração” (Fiorin, 2002, p. 157). Esse pretérito perfeito 2 contribui para a dominância da narração, sustentáculo do gênero diário de campo e da cena enunciativa dos Diários de Langsdorff. Como se pode notar, juntamente com o perfeito 2, o pretérito imperfeito é responsável pela descrição espacial: “em cujas baixadas só havia uma relava bela e, no centro, um riacho pantanoso”, descrição essa que se dá de forma contínua, caracterizando o chamado imperfeito descritivo (Fiorin, 2002, p. 155). Desse modo, o pretérito imperfeito, conforme Fiorin, “é o tempo que melhor atente aos propósitos da descrição” (2002, p. 158). Apresentam-se a seguir outras seqüências descritivas privilegiadas pelo sistema enuncivo e por essa aspectualização contínua, que joga, para a imperfectividade, a estaticidade da descrição do espaço: Em todos os arredores já haviam feito roçados extensos, para o que derrubaram florestas até o topo das montanhas, o que não ocorre em outras regiões, onde sempre se deixam de pé as árvores existentes nos cumes (1997, p. 17; grifo nosso). Havia muita miséria por toda parte. Praticamente não havia nem os mantimentos mais comuns. As pessoas abastadas tinham sua capela nas próprias terras, com extensão de 10 léguas. Mas não havia leite em casa, nem ovo. Tudo estava incrivelmente caro (1997, p. 20; grifos nosso). 26/05 [1824] Em Pinhão Novo, havia bom alojamento e parto cercado. De Pinhão Novo para Mantiqueira. Pelo caminho, muitas Termes em ninhos de altura descomunal. Boiadeiro – Engenho de João Gomes. Muitas casas – Valho Batalha, Confisco; uma boa venda, pasto cercado. Bordo do Campo, de 3 a 4 léguas (1997, p. 21; grifos nossos). 98 No fragmento que segue, observa-se uma das demais características do pretérito perfeito 2, que é de indicar o percurso de Langsdorff e do carpinteiro Thomé: “Amarraram nossos cavalos numa árvore; meu guia percorreu a encosta esquerda e eu, a direita dos morros que formavam o vale.” A seguir, vê-se mais uma das funções do perfeito 2 e a emergência de mais um tempo do subsistema enuncivo, ou seja, o futuro do pretérito: Cerca de uma hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando. Ele me garantiu que a relva alta pisada que vimos à nossa volta seriam rastros de tamanduá, que certamente teria estado aqui há 2 ou 3 dias. Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto, estreito e fechado, de onde se avista, a grande distância, morros nus e rochosos e montanhas (1997, p. 250; grifos nosso). O tempo verbal predominante nesse parágrafo, bem como em grande parte do texto, é o pretérito perfeito 2, que, segundo Fiorin (2002, p. 156), é aquele que “exprime um acontecimento limitado, acabado e pontual, e expressa sempre uma descontinuidade em relação ao momento de referência”. Em relação ao ponto de referência pretérito, “Cerca de meia hora depois”, os pretéritos perfeitos retornei, encontrei indicam a descontinuidade, apresentando acontecimentos passados em momentos determinados do pretérito, sem considerar a duração, mas sim os acontecimentos em si. Observa-se também que outros pontos de referência surgem no decorrer do relato como, por exemplo: “Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos”. Além disso, tais marcos exercem também a função de organizadores do relato. De modo geral, a sucessão e o encadeamento entre as ações expressas pelos pretéritos perfeitos produzem, contudo, a idéia de duração, traduzida pelo conjunto de seqüência das referidas ações, ou seja, a duração diz respeito ao tempo decorrido entre a primeira e a última ação pontual, entre “decidi ir caçar tamanduá” (1997, p. 250) e “O tamanduá foi levado para casa pendurado atrás da sela, e lá chegamos triunfantes e contentes por volta de 2h” (1997, p. 252). Confirma-se o relato dos acontecimentos do dia-a-dia, como suporte de passagens descritivas e opinativas. 99 A presença dos verbos no futuro do pretérito, como seriam e teria estado, expressam, segundo Fiorin (2002, p. 159), “uma relação de posterioridade do momento do acontecimento em relação a um momento de referência pretérito”. Assim, o momento de referência pretérito é a garantia do carpinteiro Thomé para com Langsdorff: “Ele me garantiu”. Dessa forma, seriam é posterior à garantia de Thomé. Por outro lado, a forma composta teria estado apresenta dois momentos de referência: “ele é posterior a um e anterior a outro” (Fiorin, 2002, p. 160). Ou seja, teria estado é posterior à garantia do carpinteiro e é anterior a há 2 ou 3 dias. Além disso, nota-se que seriam descreve a ação como sendo inacabada, durativa, estática e não-limitada, sendo, portanto, a forma simples imperfectiva. Já a forma composta é perfectiva, produzindo o efeito de acabamento, pontualidade, dinamicidade e limite (Fiorin, 2002, p. 160). Entre inacabamentos e acabamentos aspectuais, desenha-se o olhar do viajante da expedição científica: um olhar sem rupturas, sem efeitos de sentimentos bruscos, que ofuscariam a própria visão. Simula-se mostrar tudo o que é visto; simula-se ver tudo o que há. O futuro do pretérito permite construir, assim, hipóteses a respeito da localização do animal, bem como expressar sucintamente uma mudança de estado que pode ser comprovada pela seguinte passagem: “Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto”. Entretanto, o destaque maior desse tempo verbal é o efeito de suspense criado no discurso do relato. Os diferentes tipos de debreagem, as delegações de vozes são recursos de argumentação que o enunciador utiliza para convencer o enunciatário da verdade construída. São argumentos responsáveis em grande parte pelo efeito de sentido de realidade produzido pelas debreagens internas de categorias de segundo e terceiro graus. Nessa concepção, Fiorin destaca que “Do ponto de vista da organização temporal, tem-se dois momentos, mesmo quando o narrador se instaura como interlocutor, dando voz a si mesmo. Se temos dois momentos de referência, os tempos de cada enunciação organizam-se segundo o momento de referência a que remetem.” (Fiorin, 2002, p. 177). O simulacro de diálogo presente nos diários do Barão Langsdorff é apresentado da seguinte maneira, tanto neste como em outros fragmentos: 100 Já havíamos cavalgado uma pequena meia légua, quando, de repente, meu acompanhante gritou: “⎯ Senhor, veja, lá está ele!” Voltei os olhos para a esquerda, do outro lado do pântano, e vi um grande animal comprido, preto, andando solene e pausadamente para a frente. Mal podia acreditar nos meus olhos. A distância, eu só podia distinguir um grande animal, mais baixo e mais comprido que um boi. “Ele não vai nos escapar”, disse o guia, “mas temos que tentar atravessar o alagado.” “Você tem medo de molhar os pés?” perguntei-lhe. “Eu não.” (1997, p. 251; grifos nossos). Esse trecho permite que se percebam as características do discurso reportado no que se refere à questão temporal. Inicialmente, observa-se que se trata de um simulacro de uma conversa, tendo como participantes o próprio narrador e o carpinteiro Thomé. O narrador realiza uma debreagem interna de segundo grau, dando voz ao actante do enunciado, Thomé. Para tanto, nota-se a presença do verbum dicendi: gritou. Assim, por meio do subsistema temporal enuncivo, o momento de referência é explicitado no passado gritou [naquele momento], marcando uma relação de concomitância entre o momento do acontecimento pretérito e o momento da enunciação. Dessa forma, o pretérito perfeito 2 gritou instaurado no texto está em concomitância em relação ao marco pretérito descrito pelo imperfeito: “Já havíamos cavalgado uma pequena meia légua”. A seguir, é apresentada a fala do interlocutor: “’ ⎯ Senhor, veja, lá está ele!’”. A fala de Thomé é reproduzida exatamente como fora proferida, criando, assim, um efeito de realidade. Para tanto, utiliza o imperativo afirmativo veja e o presente pontual está, ambos em concomitância com o agora da enunciação, configurando o sistema enunciativo na debreagem de 2º grau. Vê-se, portanto, que o simulacro de diálogo supramencionado apresenta, de modo geral, dois momentos de referência. No que diz respeito ao tempo, temos a emergência do presente pontual como em “Com nova esperança, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto, estreito e fechado, de onde se avista, a grande distância, morros nus e rochosos e montanhas”. A expressão destacada “de onde se avista”, que, aliás, supõe o verbo no plural para concordar com o sujeito no plural, mas que na tradução aparece no singular, remete ao presente pontual, já que o momento de referência é 101 o momento em que se monta no cavalo. Esse presente é empregado na descrição do espaço, cuja dimensão é dada pelo eixo da profundidade: “de onde se avista, a grande distância [frente-trás / para diante-para trás], morros nus e rochosos e montanhas”. Aqui, como se vê, o momento de referência mantém-se o pretérito, ou o então, no momento em que se monta no cavalo. Assim, observa-se que o tempo mantém-se projetado a partir do momento de referência pretérito. Utilizam-se, dessa forma, os tempos, alternando o aspecto. A pele é grossa e curtida, couro dos mais fortes, especialmente na região da nuca. O tamanduá costuma sair em busca de comida por volta do meio-dia, quando o tempo está quente e sol forte. A área que ele habita aqui não parece ter muita formiga, mas ele a prefere certamente por ser desabitada. Não obstante, seu estômago estava cheio delas: havia consumido cerca de 3 libras Ele anda devagar, dobrando as duas garras grandes das patas dianteiras. As pontas dessas garras ficam encaixadas numa cavidade da sola do pé, o que lhe permite caminhar com leveza, tocando o chão apenas com a parte lateral do pé. As grandes garras servem para quebrar a crosta dura dos ninhos das formigas brancas e raspar a terra. A fêmea tem duas mamas entre ou logo abaixo das patas dianteiras e só pode ter um filhote, que ela carrega em suas costas durante algum tempo após o nascimento (1997, p. 252-253; grifos nossos). Após a descrição pormenorizada do tamanduá, convém, no entanto, notar que o narrador evoca tradições de países considerados por ele, Langsdorff, civilizados, para justificar a necessidade de animais imprescindíveis para o equilíbrio da natureza, bem como para a sociedade. Para tanto, vê-se o emprego do presente durativo (Fiorin, 2002, p. 149), ou melhor, presente de continuidade, visto que a ação dura mais do que o momento descrito pelo narrador: Em tempos antigos e atuais, em todos os países civilizados, tem sido costume proteger a vida de alguns animais úteis para a sociedade, seja através de leis, da religião, da origem e da tradição e costumes. 102 É o caso do íbis, no Egito, e agora da cegonha, em nosso país. Também a andorinha não é mais abatida ao bel-prazer (1997, p. 253; grifo nosso). Nota-se, a seguir, a ocorrência do presente omnitemporal ou gnômico para relatar “transformações consideradas necessárias” (Fiorin, 2002, p. 151). Aqui no Brasil, o homem comum não gosta que se matem os urubus (Falco aura), pois eles comem mulas em decomposição e todo tipo de carniça. Portanto, é de se estranhar que os habitantes locais matem por simples diversão – isso eu posso atestar – o tamanduá, o mais útil de todos os animais, criado por Deus Amado para livrar o homem da fome, uma vez que ele come as formigas devastadoras e destrutivas (1997, p. 253; grifos nossos). Inversamente, as temporalidades enuncivas e enunciativas debreadas podem, em seguida, ser embreadas a fim de produzir a ilusão de sua identificação com a instância de enunciação: trata-se da embreagem temporal, a qual diz respeito a neutralizações na categoria de tempo. Essa embreagem temporal enunciativa confere um efeito de polidez e de atenuação da declaração de Langsdorff com suave tom de indignação perante a postura do governo brasileiro em relação à espécie da fauna nativa em questão. O Governo deveria [deve], e teria [tem] todo direito em fazê-lo, instituir multa pesada pelo abate do tamanduá e incentivar os moradores das regiões onde ainda houvesse alguns a tentar, de toda forma, promover sua reprodução. Com isso, muitas terras poderiam [podem] ser recuperadas, terras que se tornaram incultiváveis pela ação das formigas, como, por exemplo, nas Províncias do Espírito Santo e de São Paulo (1997, p.253; grifos nosso). Destaca-se, por fim, a última oração do texto: Se o Governo não tomar providências nesse sentido, o tamanduá será totalmente extinto (1997, p. 253; grifos nossos). 103 Observa-se que o relato de Langsdorff se encerra com uma oração subordinada adverbial condicional. Esta apresenta as seguintes características quanto às relações temporais: a oração condicional é iniciada com a conjunção condicional se seguida do infinitivo flexionado tomar. Na oração principal encontra-se o emprego do futuro do presente do sistema enuncivo será, que indica uma posterioridade em relação ao momento de referência presente: “26/11”. O valor temporal do futuro do presente indica que se “considera necessária, impossível ou altamente provável a ocorrência de um dado acontecimento num momento posterior ao presente” (Fiorin, 2002, p. 153-154). Por fim, é primordial destacar o semantismo dos verbos projetados, de modo geral, a partir do momento de referência pretérito. Assim, grande parte dos verbos encontra-se no tempo pretérito perfeito 2, que varia de função de acordo com o que está sendo dito. Tais verbos são empregados praticamente até o empalhamento do tamanduá, feito pelo francês Ménétriès na cena posta em destaque. Esses verbos reforçam uma característica do diário do naturalista alemão, que é o efeito de movimento. Como são passados perfectivos, postos em seqüência, cada um inaugura sempre um novo passado, o que confirma a noção de mundo que se move. Os verbos que seguem reforçam tal movimentação: levou-me, percorreu, retornei, montamos, cavalgamos, Já havíamos cavalgado, tentei imediatamente cortar o caminho, Devido às dificuldades que tive para atravessar o alagado, os cães que me acompanharam chegaram um pouco mais rápido na parte seca, atravessei, subi, saltei e chegamos. Em face do exposto, constatou-se que o relato principia explicitando o momento de referência sob a forma de datação. A seguir, o enunciador lança mão do subsistema enuncivo para instaurar, com efeito de objetividade, o motivo da caça, sua justificativa, o progresso dos acontecimentos. Temos também a descrição do itinerário e, primordialmente, a dinâmica do próprio relato. Por meio do sistema enunciativo, o enunciador descreve pormenorizadamente a espécie em questão, isto é, o tamanduá, assim como seus hábitos. Ainda valendo-se do sistema temporal enunciativo, o enunciador reflete sobre o destino de tal mamífero. Finalmente, por meio da embreagem temporal, o enunciador atenua sua declaração indignada sobre o descaso na proteção do tamanduá pelo governo brasileiro. Tais procedimentos fundam uma organização temporal compatível com o gênero diário de campo e, 104 mais que isso, o éthos de Langsdorff, que escolhe a compatibilidade com as coerções do gênero. O entre-lugar: a questão do espaço O mecanismo de projeção espacial também revela aquilo que já está projetado na camada narrativa. Observamos que a busca da mudança do estado do sujeito, a busca do objeto-valor, que ocorre no nível narrativo, reflete-se na caracterização do espaço. Ressalta Fiorin que “comparada às do tempo e da pessoa, a categoria do espaço tem menor relevância no processo de discursivização” (2002, p. 258). O teórico em questão apresenta a seguinte distinção entre espaço lingüístico e espaço tópico: o espaço lingüístico é aquele que toma como ponto de referência sempre a pessoa do enunciador. “Todos os objetos são assim localizados, sem que tenha importância seu lugar no mundo, pois aquele que os situa se coloca como centro e ponto de referência da localização.” (2002, p. 262). O espaço tópico “marca a emergência da descontinuidade na continuidade” (Fiorin, 2002, p.262). Nele percebe-se uma posição a partir de um ponto de referência ou de um deslocamento em relação a este ponto. Entretanto, essa posição nem sempre é a do enunciador, podendo ser também demarcada por qualquer outro ponto presente no enunciado. Dito isso, vejamos como se comportam os advérbios na construção discursiva do espaço. O estatuto de enquadrar ou não na cena enunciativa os advérbios é assim utilizado pelo sujeito enunciador no relato em análise: Cerca de meia hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando. Ele me garantiu que a relva alta pisada que vimos à nossa volta seriam rastros de tamanduá, que certamente teria estado aqui há 2 ou 3 dias (1997, p. 250; grifo nosso). Observa-se que o narrador, aí, apresenta a referida relva, considerado um espaço tópico, que está englobando o espaço dos actantes do enunciado, o aqui. Esse advérbio produz o efeito de proximidade e é especificado pelo espaço tópico. 105 Além disso, indica o ponto de referência da localização, o espaço do enunciador, o espaço da cena enunciativa; portanto, uma debreagem enunciativa. O mesmo ocorre na seguinte passagem: “A área que ele [o tamanduá] habita aqui não parece ter muita formiga, mas ele a prefere certamente por ser desabitada” (1997, p. 252). Quanto ao lá, espaço situado fora da cena enunciativa, mas dado em relação a ela, considere-se: “Já havíamos cavalgado uma pequena meia légua, quando, de repente, meu acompanhante gritou: ‘- Senhor, veja, lá está ele!’” (1997, p. 251). Assim como: “O guia agarrou-o pelo seu rabo grosso e arrastou-o para a parte seca, do outro lado do alagado onde o cavalo ficara amarrado. O tamanduá foi levado para casa pendurado atrás da sela, e lá chegamos triunfantes e contentes por volta de 2h” (1997, p. 252). Diferentemente ocorre na passagem seguinte: Em Barra do Jequitibá, um vizinho, no caminho para a missa, numa manhã de domingo, pegou a espingarda do negro que o acompanhava, atirou num pequeno tamanduá e o deixou lá. Como eu lhe oferecesse alguma quantia pelo tamanduá, ele resolveu mandar buscá-lo a uma légua de distância e recebeu meia pataca (1997, p. 253; grifo nosso). Nesse caso, o advérbio alhures (em outro lugar) recorta o espaço tópico Barra do Jequitibá e no caminho, figurativização tópica do espaço enuncivo, o alhures. Em seguida, temos um lá, por meio de uma debreagem enunciativa. Esse espaço é enquadrado fora da cena enunciativa, mas referente a ela, um lugar diferente do ocupado pelo enunciador. Devido às coerções genéricas que regem o gênero diário de campo, há uma grande exploração da categoria do espaço enuncivo nos diários do alemão naturalista. 106 O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão. Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso (1997, p. 250; grifos nossos). Esse excerto é exemplar para depreender a manipulação do espaço lingüístico pelo enunciador. Dá-se início à busca do animal. Nota-se o uso da preposição de, em “Meu guia levou-me de”. Tal preposição indica o ponto de partida de um movimento, tendo como referência “o caminho”. Em seguida, temos o ponto de chegada do movimento: “Paraúna”. Esse ponto atingido é representado pela preposição para. O enunciador, milimetricamente, recorta o espaço tópico, indicando o itinerário da caçada. Para tanto, delimita-se o ponto atingido, “Paraúna”, por meio de: “até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso.” “Milimetricamente” discurvizado, de x para y, o espaço enuncivo, algures, o algum lugar remete o olhar em circunvolução do enunciador. Temos indicações diversas para o éthos do viajante. Até indica que o ponto de referência foi atingido ou considerado como atingido. Reforça-se essa denotação do ponto de referencia atingido pelo auxílio do advérbio “cerca de uma légua do lado esquerdo”. Nota-se, portanto, a direcionalidade do olhar do observador. Léguas significa uma medida itinerária, equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600m. Trata-se de uma medida espacial constante em Os Diários de Langsdorff. Essa medida de distância também é representada da seguinte forma: “a 2 léguas de“ e “a 3 léguas de” indicam a precisão das distâncias. A partir de um ponto onde se conjectura estar o observador, podem-se seguir posições para um lado ou para o outro, ou seja, no eixo da lateralidade, como ocorre em “do lado esquerdo de um vale deserto”. No decorrer do relato, encontra-se a preposição por, que juntamente com o adjetivo “cercado”, denotam uma posição englobada: “cercado por elevações 107 rochosas”. Firma-se como recorrente o éthos do viajante pesquisador, dado em relato de viagem científica, ora olhar englobante, ora olhar englobado. Por fim, temos, a partir da visão do observador, a visão concentrativa, manifestada por meio da preposição em: “em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso”. Sobre essa relação do sujeito com o espaço, Eric Landowski ressalta que: como suporte de diferenças posicionais entre mim mesmo e meus semelhantes, com efeito de sentido induzido pela distância que percebo entre meu aqui-agora e todo o resto – lugares que me liga, eu sujeito, a um mundo objeto cujas formas discretas, à medida que as recorto, me revelam a mim mesmo (2002, p. 68). Dessa forma, uma análise dos procedimentos pelos quais se criam as representações dos movimentos do espaço no enunciado remete ao corpo, voz, tom de voz e caráter do ator da enunciação: a identidade “Langsdorff”, ou o modo “Langsdorff” de ser no mundo; no caso, de ser no Brasil, ao longo de sua viagem exploratória. Temos um éthos que deseja relatar tudo e, por isso, apresenta uma visão de nossas terras sob várias perspectivas do observador. Diante de tais recursos, do modo de dizer, que remete a diferentes visões, ora concentrativa, ora extensiva, depreende-se o éthos do viajante pesquisador que pretende tudo ver, tudo analisar e tudo fazer ver em seus diários. Pode-se depreender, pela análise do diário do alemão Langsdorff, que o enunciador se vale das categorias do espaço lingüístico para corroborar um modo de presença dado por meio da extensividade, não da intensividade; um modo de presença que constrói de si e para si o simulacro de quem “pega leve” para poder construir um mundo dado seguindo os ideais da justa medida, do acabamento. Temse um enunciado que parece dizer tudo e nada esconder. Para isso contribui também a construção do espaço figurativizado, que ora recorta enunciativamente o aqui, ora concretiza enuncivamente o algures e o alhures (o outro lugar). A análise do Diário demonstra que se criam efeitos de sentidos, tais como de aproximações, de distanciamentos, da presentificação no espaço não pertencente ao espaço do enunciador. 108 O Diário, ao construir o espaço lingüístico, delineia os contornos de um espaço que pode ser encarado como uma “geografia da linguagem”, geografia essa que configura um espaço com planícies, montanhas, vales, acidentes geográficos; enfim, oásis por onde se localiza e se faz localizar um sujeito em constante deslocamento. Importa o deslocamento dado como efeito de sentido, para confirmar o gênero diário de campo e o éthos do pesquisador-viajante. Dessa forma, configura-se o espaço desse enunciador que explora tanto o espaço tópico, figurativizado, quando o espaço lingüístico específico, dado por meio do aqui, lá, acolá, aí. Cumpre observar que o modo de construir o espaço acaba por construir a imagem do enunciador. O Brasil de então, visto pelo olhar que recorta, constrói o corpo do ator da enunciação. O tamanduá no horizonte do provável: questões de figuratividade fazer ver também é fazer crer Denis Bertrand Voltemos à cena da caçada do tamanduá, o mote analítico para este capítulo. Ainda no nível discursivo, enfocaremos a questão da figuratividade. Além do texto de Langsdorff sobre o tamanduá, recorreremos também às Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta para notar como se configura, pela diferença, o espaço brasileiro e, principalmente, como a figura tamanduá-bandeira remete ao modo Langsdorff de dizer, segundo o ponto de vista viabilizado por meio da figurativização. A figuratização, juntamente com a tematização, corresponde ao enriquecimento semântico do discurso, estando ambas interligadas: enquanto na tematização ocorre a disseminação no discurso dos traços semânticos tomados de forma abstrata, na figuratização esses traços são revestidos por traços semânticos sensoriais que lhes dão o efeito de concretização sensorial. Esses traços semânticos sensoriais referem-se à cor, cheiro, som, ou seja, a características visuais, táteis, olfativas, gustativas, auditivas que se fundem e se concretizam em figuras. Lembramos que na relação entre tematização e figuratização há dois tipos distintos de textos, do ponto de vista dos procedimentos semânticos do discurso: textos predominantemente temáticos, de figuratização esparsa, e textos 109 predominantemente figurativos. No primeiro caso, o texto primordialmente temático apresenta a coerência semântica dada apenas pela reiteração de temas, e esse tema, abstratamente disseminado, reitera-se no texto, sendo concretizado por figuras ocasionais ou esparsas. Já no segundo caso, o investimento figurativo possui certa autonomia, ocupando as dimensões do discurso. Denis Bertrand (cf. 2003, p. 213) ressalta que, para ser compreendido, o figurativo precisa ser assumido pelo tema, ou seja, é o tema, para ele, que dá sentido e valor às figuras. Isso quer dizer, por conseguinte, que se faz um caminho inverso ao proposto por Diana Luz Pessoa de Barros, pois enquanto a estudiosa parte do temático para chegar às figuras, Bertrand considera já as figuras que, por sua vez, estariam na superfície de um todo de fundo temático. Considera-se aqui que ambos os caminhos são percorridos de forma simultânea, pois estão correlacionados. Então a ligação entre tema e figura situa-se nas idas e vindas de ambos os caminhos propostos pelos estudiosos considerados. Vale ressaltar que figurativização ou figuratização, termos empregados por Barros, ou ainda figuratividade, termo utilizado por Bertrand, serão utilizados aqui como sinônimos. A figuratividade, concebida como uma propriedade semântica fundamental da linguagem, proporciona manifestações graduais, de acordo com o uso discursivo. Assim, nos textos figurativos, conforme Barros (2002, p. 72), empregam-se graus diferentes de figurativização, que vão da figuração, ou da instalação de figuras, passando-se do tema à figura; à iconização, ou ao investimento figurativo exaustivo final, que tem por objetivo produzir a ilusão referencial, ou efeitos de realidade e de referente. A escala a seguir, proposta por Bertrand (2003, p. 210), também apresenta uma escala gradual da figuratividade: 110 Figuratividade + iconização estilização alegoria símbolo conceito Figuratividade – Os Diários tendem a apresentar alto grau de figuratividade, com recorrentes iconizações. Atentando particularmente para os traços semânticos sensoriais mencionados anteriormente, e considerando-se que a figuratividade refere-se à propriedade essencial das linguagens, tanto verbais quanto não-verbais, pode-se dizer que o figurativo nos Diários de Langsdorff tem a capacidade de “produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas.” (Bertrand, 2003, p. 154). Ao ler um texto, seja ele literário ou pertencente a outras formas e gêneros discursivos, tais como diários de viagem, crônicas ou relatos de exploradores e naturalistas, deduzimos que podemos descrever uma imagem do mundo que se delineia, instalando tempo, espaço, objetos, valores. É importante ressaltar que, nos Diários de Langsdorff, ao delinear o mundo, seja pelas idéias ou por elementos concretos referentes ao mundo natural, o sujeito da enunciação acaba por criar percursos figurativos e temáticos, representativos do gênero textual acolhido pelo enunciador: o diário de campo. O importante é que esses percursos instituem um feixe de traços semânticos que se afirmam pela redundância, levando a uma coerência global do diário de Langsdorff. A coerência semântica dos Diários de Langsdorff é alcançada por meio das isotopias temáticas e figurativas que confirmam a viagem de pesquisa narrada. O contexto mínimo necessário para a afirmação das isotopias é confirmado por meio da reiteração dos temas e figuras ao longo do texto, edificado pela recorrência de traços semânticos, ou seja, a isotopia da expedição científica garante a coerência do discurso. No caso dos Diários, tem-se a recorrência de figuras, tais como “fazenda”; “casa de gente boa”; “jovem bonita”; e “universidade que deverá ser criada no 111 Brasil”; “raiz da ipecacuanha” e assim por diante. A isotopia do que há; a isotopia do que virá a ser. A isotopia visa, diferentemente do campo lexical e do campo semântico, ao discurso e não à palavra, bem o sabemos. Além disso, ela pode referir-se tanto a um universo figurativo (isotopias de atores, tempo e espaço), como também à tematização desse universo (isotopias abstratas, temáticas, axiológicas). Compreende-se que Langsdorff seleciona e justifica determinada isotopia que comanda a significação global do diário. A escolha de Langsdorff é estratégica. A isotopia actorial da enunciação funda o ator da enunciação que funda o éthos. Lembrando que um texto é produzido por um enunciador para um enunciatário, notamos que a isotopia do discurso de Langsdorff, do ponto de vista do enunciatário constitui um crivo de leitura. Por falar nisso, nota-se que o éthos Langsdorffiano não é afeito a ambigüidades figurativas e temáticas. Como perfil do pesquisador e do homem de ciência, temos isotopias que fogem da ambigüidade na construção discursiva dos Diários de Langsdorff. O enunciatário, por sua vez, espera essa homogeneidade não ambígua, após a leitura das próprias páginas. Por fim, o enunciador, ao produzir um enunciado para um enunciatário, busca apresentar valores, verdades que serão interpretadas pelo enunciatário segundo o ser e o parecer. Trata-se, portanto, de um contrato de veridicção. A questão da verdade insere-se, portanto, no caso de Langsdorff nas estratégias do “fazer parecer verdadeiro”. Nos Diários do diplomata alemão tudo o que parece é dado como o que é: não há efeito de dúvidas. O fazer persuasivo de Langsdorff se encontra com o crer-verdadeiro do leitor do diário. Com isso, pretende-se consolidar a identificação do sujeito da enunciação, visto como “um sujeito social, histórico, que imprime sua intencionalidade ao que é dito, ao como é dito e ao porquê é dito” (Discini, 2004, p. 13). Admirável mundo novo: o Brasil sob os olhos dos europeus O estudo ora a ser desenvolvido dá evidência às Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, cotejadas com o primeiro volume de Os Diários de Langsdorff. Selecionaram-se dois textos, nos quais a figuratividade, concretizada por meio dos traços semântico-sensoriais, constrói um 112 mundo de linguagem. Optou-se por textos que vislumbrem um mesmo animal, no caso, o já referido tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), pois nos relatos de ambos os viajantes sobre a nossa fauna, esse animal é tido como uma das espécies mais surpreendentes, exigindo, portanto, um esforço descritivo muito mais fecundo. Antes de descrever como o tamanduá é retratado pelos autores em questão, vale destacar como o espaço é construído em ambos os relatos, pois ao perscrutar a imagem do tamanduá, o estudo figurativo do espaço se justifica, considerando que a representação que se faz dele, faz-se, ao mesmo tempo, do ator que o habita no mundo narrado. Dessa forma, lembra Fiorin que “Quando os descobridores chegam ao novo mundo, deparam com um lugar que deveria ganhar sentido, para se transformar num espaço. Assim, os relatos de viajantes são um esforço de atribuição de sentido ao que parece sem sentido” (Fiorin, 2000, p. 29). Para tratar o problema da figuratividade, toma-se como objeto de análise o capítulo X, intitulado: Ao Padre Geral, de São Vicente, ao ultimo de maio de 1560 (89) da obra Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta. Por se tratar de um capítulo extenso, proceder-se-á a essa análise da seguinte forma: Primeiramente, enfoca-se o início do texto, ressaltando-se brevemente a tematização, bem como a figurativização. Em seguida, faz-se um levantamento da configuração espacial e, por fim, analisa-se a representação do Tamanduá feita pelo narrador. Veja-se o início do texto: A paz de Cristo seja comnosco. Pelas tuas cartas, que ha pouco nos chegaram ás mãos, vimos, Reverendo Padre em Cristo, que desejas (para que se atenda ao voto e desejos de muitos) que escrevemos acerca do que suceder comnosco que seja digno de admiração ou desconhecido nessa parte do mundo. Conformando-me com tão salutar mandado, cumprirei diligentemente, quanto me for possível, a prescrita obrigação (Anchieta, 1933, p. 103). 113 Temos aí um texto que materializa o gênero epistolar. Na instância narrativa, o texto principia com a fase contratual, em que se estabelece um acordo entre destinador e destinatário. Dessa forma, o destinador deseja fazer o destinatário entrar em conjunção com o objeto-valor conhecimento; para tanto, dota o destinatário de um /querer/ e de um /dever-saber/. O destinador faz o destinatário /saber/ de algo. Circula entre o destinador e o destinatário a notícia, o conhecimento sobre o Novo Mundo, que é “digno de admiração ou desconhecido”. Dá-se início à performance do sujeito-remetente, que tenta figurativizar seu percurso por meio de representações temporais e espaciais. Cria-se, por conseguinte, um efeito de real, ou melhor, um simulacro do mundo natural. Realizações desse tipo ocorrem graças à iconização, que é o “fazer parecer real” concretizado pelo nível figurativo de um texto. Cria-se, então, uma espacialidade onde ocorrem os deslocamentos do sujeito, ora como olhar em evolução, ora como corpo em movimento. Em primeiro lugar certamente (o que fiz de passagem nas anteriores cartas) tratarei desta parte do Brasil, chamada São Vicente, que dista da Equinocial vinte e três graus e meio medidos de Nordeste a Sudoeste, na direção do Sul, na qual a razão da aproximação e do afastamento do sol, as declinações das sombras e como se fazem as diminuições e crescimentos da lua, não me é fácil explicar; por isso não tocarei nessas cousas, nem vejo nelas razão para que sejam diferentes do que aí se observa (Anchieta, 1933, p. 104). O sujeito procede a uma tentativa de situar-se e situar seu interlocutor no espaço construído discursivamente: Todavia, em Piratininga, que fica no interior das terras, a 30 milhas do mar, e é ornada de campos espaçosos e abertos, e em outros lugares que se lhe seguem para o Ocidente, a natureza procede de tal maneira que, se os dias se tornam extremamente cálidos por causa do calor abrasador (cuja maior fôrça é de Novembro a Março), a vinda da chuva lhes vem trazer refrigério: cousa que aqui acontece agora (Anchieta, 1933, p. 106). 114 Depreende-se esse efeito de real do mundo natural por meio de antropônimos, topônimos e cronônimos. Os antropônimos, como denominações de atores por nomes próprios, participam da figurativização e, com os topônimos e cronônimos permitem a construção do efeito de sentido “realidade”. Encontramos os seguintes antropônimos nos fragmentos apresentados do texto de Anchieta: “Cristo” e “Reverendo Padre em Cristo”. Os topônimos, segundo o Dicionário de Semiótica, são “designações dos espaços por meio de nomes próprios” e, assim como os antropônimos, são responsáveis pelo efeito de sentido de “realidade” (Greimas e Courtés, s.d., p. 464). Arrolam-se a seguir os topônimos referentes aos excertos anteriormente apresentados da Carta de Anchieta: “parte do Mundo”, “Brasil”, “São Vicente”, “Piratininga”, “Ocidente”. Os cronônimos também criam o efeito de sentido de “realidade”. Vêem-se topônimos e cronônimos encontrados no texto de Anchieta: “a 30 milhas do mar” (topônimo), “dias”, “Novembro” e “Março” (cronônimos). O tempo também é figurativizado pelo deslocamento e características do sol: Aos 13 de Dezembro, completando o sol sua carreira em Piratininga, chega a maior altura: esse dia que é muito longo e em que há declinação alguma de sombras: daí, porém, volta para o Norte, em cuja retirada sóe ser mais rigoroso o calor e febres agudas com dôres de lado molestam os corpos (Anchieta, 1933, 107) (sic). Essas referências temporais e espaciais são uma necessidade de orientação do sujeito e de seu leitor. O sujeito desempenha o papel de um guia. É o caso de erguer tais marcos – temporais e espaciais – impô-los à vista e, ao mesmo tempo, fazer crer que sempre estiveram lá. Por meio de antropônimos, topônimos e cronônimos cria-se uma iconicidade, ou seja, o efeito de “realidade” de uma paisagem, uma cena histórica, um marco aprazível que nomeiam “Brasil”. O sujeito, a partir da dimensão espacial apresentada, procura produzir o sentido de localização espacial por meio de efeitos visuais que se manifestam por 115 escolhas figurativas, tais como: [Piratininga] “é ornada de campos espaçosos e abertos”, “seguem para o Ocidente” e “dista da Equinocial vinte e três graus e meio medidos de Nordeste a Sudoeste, na direção Sul”, que dão a noção de orientação espacial; “sol”, que representa tanto uma orientação espacial quanto temporal; por efeitos táteis como: “rigoroso calor”; “os violentos e furiosos pègões18 de vento, que sopra algumas vezes com ímpeto tão forte, que nos leva a ajuntarmo-nos alta noite e corrermos às armas da oração contra o assalto da tempestade” e ainda por efeitos auditivos como: “Os trovões no entanto fazem tão grande estampido, que causam muito terror, mas raras vezes arremessam raios”. O sujeito-destinatário incumbido de, juntamente com o destinador-Anchieta, “muito bem olhar” o Brasil, cumpre o que lhe foi delegado: reconhece as terras brasileiras e interpreta-as na ordem do parecer e do ser. Criam-se duas isotopias no texto de Anchieta, uma relacionada ao locus amoenus, outra relacionada às adversidades da natureza, da fúria desta, como no caso da força do vento, que leva o narrador a clamar a Deus. Apesar dos efeitos de nuances no espaço construído, a isotopia do locus amoenus prevalece. Mas é um locus amoenus curioso e exótico. Interessa-nos, primordialmente, que se espacializa um Brasil pitoresco, um objeto-Brasil que servirá de habitat para os mais diversos seres. O exotismo domina como traço preponderante do olhar estrangeiro. Um éthos que contempla o exótico e convive com o exótico se consolida para firmar o ator da enunciação, Anchieta. No tocante à configuração do espaço, Langsdorff procura descrever minuciosamente o que está à vista, configurando milimetricamente uma geografia do aqui, do lugar de onde fala o enunciador, como foi dito. Veja-se o exemplo que segue, que dá novas idéias de como o espaço brasileiro é retratado pelo médico G.H. von Langsdorff, a partir de um trecho já citado, que pedimos permissão para repetir, a título de agilização da leitura. 18 Mantivemos a grafia original. 116 26/11 [1824] O tempo estava tão bom que decidi ir caçar tamanduá com o carpinteiro Thomé; resolvi testar minha sorte, depois de já haver mandado os caçadores três vezes e em vão. Meu guia levou-me do caminho para Paraúna até cerca de uma légua do lado esquerdo de um vale deserto e cercado por elevações rochosas, em cujas baixadas só havia uma relva bela e, no centro, um riacho pantanoso. Amarramos nossos cavalos numa árvore; meu guia percorreu a encosta esquerda e eu, a direita dos morros que formavam o vale. Cerca de uma hora depois, retornei e encontrei meu guia voltando. Ele me garantiu que a relva alta pisada que vimos à nossa volta seriam rastros de tamanduá, que certamente teria estado aqui há 2 ou 3 dias. Com novas esperanças, montamos os cavalos e cavalgamos mais para dentro do vale deserto, estreito e fechado, de onde se avista, a grande distância, morros nus e rochosos e montanhas (1997, p. 250-251). Nessa passagem, Langsdorff descreve a região onde a Expedição Langsdorff se encontrava. Portanto, uma parte do Brasil, que remete ao Brasil inteiro, sendo que o todo está nas partes, como temos dito. O lugar é tematizado como uma paisagem aprazível, em que a natureza goza de clima ameno e panorama bonito. Interessa-nos, para a depreensão do éthos do pesquisador em viagem exploratória, verificar o menor efeito de exotismo, no que diz respeito às terras brasileiras, comparadas à construção feita pelo discurso de Anchieta. Partindo dos elementos que proporcionam um alto grau de iconização, tais como antropônimos, topônimos e cronônimos, percebemos as seguintes características no texto langsdorffiano. Por meio do percurso figurativo espacial, configura-se uma isotopia no sentido de construir uma identidade ou geografia espacial minuciosa. Essa identidade das terras brasileiras poderia ser utilizada aqui no sentido de inventário, ou seja, um inventário de paisagens, tipos e quadros locais. O efeito de inventário espacial consolida, como temática, o gênero diário de campo. Em meio a esses espaços, paisagens ou lugares criados por Langsdorff, encontra-se uma espécie completamente nova de animal silvestre. Tem-se, então, a 117 necessidade de acrescentar esse ser novo, ator do enunciado, ao conjunto dos seres conhecidos. O tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) Algirdas Julien Greimas, em Semântica Estrutural, apóia-se na tese de doutoramento de Tahsin Yücel, a respeito do universo de Georges Bernanos, para descrever a organização do universo semântico. No tocante ao inventário bestiário de Bernanos, distinguem-se inicialmente as diferentes espécies de animais para depois distingui-los de acordo com as seguintes características: animais do julgamento, animais de tinta, animais de moral, etc. Segundo Greimas, o “primeiro esforço de organização desse inventário permite a Yücel distinguir inicialmente e separar dois inventários, opondo animais selvagens vs animais domésticos”. (Greimas, 1973, p. 304). Interessa-nos aqui essa oposição, pois a encontramos tanto em Anchieta quanto em Langsdorff. Nos Diários do naturalista alemão temos no relato em análise: cavalos e cachorros (animais domésticos) vs.. tamanduá (animal selvagem) O monstruoso insinua-se na figura do tamanduá em ambos os relatos em questão, variando a intensidade de um para outro. Esse animal selvagem, bem como toda a natureza do novo mundo, necessitava tornar-se conhecido para ser transmitido à Europa. Esse dizer, seja ele qual for, tratava-se de um grande desafio, pois cada novo animal era conhecido por meio dos cinco sentidos. Era possível ver sua forma, tamanho, cor, comportamento, ouvir os sons que emitia, sentir os seus odores, tocar as várias partes do seu corpo e até provar de sua carne. Devido ao seu físico incomum ou por comportamentos inusitados, o tamanduá-bandeira, popularmente conhecido como papa-formigas, está presente nos textos de Anchieta e de Langsdorff, ocupando descrições mais extensas e detalhadas do que outros animais desconhecidos pelos autores em questão. O padre José de Anchieta, que possivelmente foi o primeiro a descrevê-lo, assinala com detalhes a figura do tamanduá: 118 Ha também outro animal de feio aspeto, a que os Indios chamam tamanduá. Avantaja-se no tamanho ao maior cão, mas tem as pernas curtas e levanta-se pouco do chão; é, por isso, vagaroso, podendo ser vencido pelo homem na carreira. As suas cerdas, que são negras entremeiadas de cinzento, são mais rijas e compridas que as do porco, maximé na cauda, que é provida de cerdas compridas, umas dispostas de cima a baixo, outras transversalmente, com as quais não só recebe, como rechassa os golpes das armas; é coberto de uma pele tão dura que é dificil de se atravessar pelas flechas; a do ventre é mais mole. Tem o pescoço comprido e fino; cabeça pequena e mui desproporcionada ao tamanho do corpo; a bôca redonda, tendo a medida de um ou, quando muito dois aneis; a lingua distendida tem o comprimento de três palmos só na porção que pode sair fóra da bôca, sem contar a que fica para dentro (que eu medi), a qual costuma, pondo-a para fora, estender nas covas das formigas, e logo que estas a enchem de todas os lados, ele a recolhe para dentro da boca, e esta é a sua refeição ordinária: admira como tamanho animal com tão pouca comida se alimente. As patas deanteiras são robusticissimas de grande grossura, quasi iguais á coxa de um homem, as quais são armadas de unhas muito duras, uma das quais principalmente excede em comprimento ás de todas as demais féras; não faz mal a ninguém, senão em sua defesa própria: quando acontece ser atacado pelos outros animais senta-se e, com as patas deanteiras levantadas, espera o ataque, de um só golpe penetra-lhes as entranhas e mata-os. E’ saborosissimo; dirias que é carne de vaca, sendo todavia mais mole e macia (Anchieta, 1933, p.118) (sic). A descrição principia com a apreciação das características físicas incomuns do tamanduá: “Ha também outro animal de feio aspecto”. O léxico “feio”, empregado para adjetivar “aspecto” do animal conota o conceito de “extravagante”, ”disforme”, “monstruoso”, “de aspecto desagradável” do sujeito analisado. O enunciador descreve o objeto a partir de um ponto de vista oriundo de seus padrões estéticos, que, por sua vez, foram balizados durante o acúmulo de suas experiências sensórias. 119 Em seguida, o sujeito enunciador, por meio da voz do narrador, utiliza comparações com vários animais e até mesmo com o homem para tentar apresentar as características do tamanduá. Essas características podem ser representadas pela aparência física, pelos hábitos alimentares, pelo comportamento e pela estratégia de defesa. Depreende-se o efeito de um olhar emocional, que é contrário ao olhar do cientista explorador Langsdorff. As peculiaridades da aparência física podem ser assinaladas da seguinte forma: “Avantaja-se no tamanho ao maior cão, mas tem as pernas curtas e levantase pouco do chão; é, por isso, vagaroso, podendo ser vencido pelo homem na carreira”. Nota-se que se constituem semelhanças entre a realidade desconhecida do tamanduá e a conhecida da Europa, isto é, conhecimento do maior cão, assim como da velocidade do homem. Esse recurso de comparação prossegue no vai-evem de semelhanças e comparações. As cerdas assemelham-se às do porco. O focinho do animal é representado por “boca”, cuja circunferência é comparada a “quando muito dois anéis”. As patas dianteiras também são comparadas às do homem. É interessante depreender o efeito de necessidade de comparar as espécies dos dois lados do Atlântico. Por outro lado, mais surpreendente ainda é a comparação que se faz tendo o ser humano como parâmetro. Temos isotopias figurativas paralelas e postas em comparação nos discursos de Langsdorff e Anchieta, mas que resultam em modos contrários de construção do mundo. No que se refere aos hábitos alimentares, merece destaque o fato de se alimentarem de formigas e a estratégia que o animal utiliza para capturá-las. Em relação ao comportamento do tamanduá, Anchieta descreve principalmente o caráter pacato, manso. Por fim, a estratégia de defesa. Ao ser atacado, o tamanduá conta com sua poderosa “unhada” para a própria proteção, gerando o dilaceramento do outro animal. Incorporado à nossa cultura como sinônimo de atitude traiçoeira, o famoso “abraço de tamanduá” é uma referência à faceta mais conhecida desse animal. Por se tratar de um texto predominantemente figurativo, o sujeito enunciador se utiliza da iconização para criar o efeito referencial, que remete a um ser localizável no mundo natural. As imagens transbordam no texto, atingindo dimensões figurativas máximas, que se concretizam por meio dos traços semântico120 sensoriais. Assim, o animal esdrúxulo é figurativizado pelas descrições semânticosensoriais a seguir: Visual: “feio aspecto”; “pernas curtas”; “A suas cerdas, que são negras entremeiadas de cinzento”; “maximé na cauda”; “Tem o pescoço comprido e fino”; “cabeça pequena e mui desproporcionada ao tamanho do corpo”; “As patas deanteiras são robusticissimas de grande grossura”, entre outras. Tátil: “é coberto de uma pele tão dura que é dificil de se atravessar pelas flechas; a do ventre é mais mole”; “a lingua distendida tem o comprimento de três palmos só na porção que pode sair fóra da bôca, sem contar a que fica para dentro (que eu medi)”; “as quais são armadas de unhas muito duras”. Gustativo: “E’ saborosissimo; dirias que é carne de vaca, sendo todavia mais mole e macia”. A isotopia selvática é mais fortemente marcada no texto do Padre José de Anchieta. A partir do momento em que o tamanduá se estabiliza em aparência, o sujeito destinatário das impressões sensoriais põe em alerta seus sentidos e passa a selecionar as formas dessa plurisensorialidade do evento significante, passando a depreender, entre outros, elementos, tais como: “Ha também outro animal de feio aspecto” e “uma das quais principalmente excede em comprimento às de todas as demais feras”. São essas determinações que vão originar o perfil inimaginável, admirável, extravagante, raro, disforme, monstruoso; enfim, um animal absolutamente novo para os olhos europeus. Um animal que não deixa de ser assustador e causar perplexidade. O enunciador Anchieta propõe um contrato que estipula como o enunciatário deve interpretar a verdade do discurso; em segundo lugar, o enunciador Anchieta propõe o reconhecimento do dizer-verdadeiro, que liga a uma série de contratos de veridicção anteriores. No texto de José de Anchieta, esses contratos de veridicção anteriores são, entre outros, referentes ao espaço, pois a representação que se faz deste, faz-se ao mesmo tempo do ser que o habita. O contrato de veridicção determina as condições para o discurso ser considerado da ordem da verdade, do segredo, da mentira ou da falsidade. Assim, pode-se considerar que o discurso de Anchieta referente ao tamanduá soa no modo do segredo (ser + não-parecer), visto que o procedimento de caracterização do animal é feito por meio de uma miscelânea de traços zoológicos: é um cão mas não parece (segredo); parece um cão mas não é (mentira). Por meio de constantes comparações com o próprio ser humano, 121 Anchieta impossibilita, assim, uma figura próxima de um tamanduá-bandeira, uma idéia de tamanduá, segundo as palavras de Lúcia Teixeira (1998). A “tamanduaidade” fica comprometida com o discurso de Anchieta. Langsdorff também se vale da comparação para caracterizar o tamanduá: “A distância, eu só podia distinguir um grande animal, mais baixo e mais comprido que um boi” (1997, p. 251). Entretanto a “tamanduaidade” se mantém íntegra, no olhar dado em extensão, que ganha em número e não se perde em emoção. O tamanduá-bandeira de Langsdorff também pode ser caracterizado pelas características físicas, pelos hábitos alimentares, pelo comportamento do animal e pela estratégia de defesa. Mas nos Diários do naturalista alemão temos um animal com contornos definidos: parece e é um tamanduá (verdade). As características físicas do tamanduá são assim apreendidas pelo Barão Langsdorff, não custa relembrar: Voltei os olhos para a esquerda, do outro lado do pântano, e vi um grande animal comprido, preto, andando solene e pausadamente para a frente. Mal podia acreditar nos meus olhos. A distância, eu só podia distinguir um grande animal, mais baixo e mais comprido que um boi. (...) vi um grande animal acuado, desajeitado, de constituição estranha, desdentado. (...) Após algumas pequenas pancadas no focinho comprido ou nariz, ele caiu esticado no chão (...) O guia agarrou-o pelo seu rabo grosso e arrastou-o para a parte seca (...) A pele é grossa e curtida, couro dos mais fortes, especialmente na região da nuca (...) Ele anda devagar, dobrando as duas garras grandes das patas dianteiras. As pontas dessas garras ficam encaixadas numa cavidade da sola do pé, o que lhe permite caminhar com leveza, tocando o chão apenas com a parte lateral do pé. As grandes garras servem para quebrar a crosta dura dos ninhos das formigas brancas e raspar a terra. (...) A fêmea tem duas mamas entre ou logo abaixo das patas dianteiras e só pode ter um filhote, que ela carrega em suas costas durante algum tempo após o nascimento (1997, p.252-253). Os hábitos alimentares e o comportamento são assim apresentados: 122 O tamanduá costuma sair em busca de comida por volta do meio-dia, quando o tempo está quente e sol forte. A área que ele habita aqui não parece ter muita formiga, mas ele a prefere certamente por ser desabitada. Não obstante, seu estômago estava cheio delas: havia consumido cerca de 3 libras (1997, p.252). Sobre a estratégia de defesa, Langsdorff diz: vi um grande animal acuado, desajeitado, de constituição estranha, desdentado, cuja única defesa está nas duas garras das patas dianteiras, lutando com dois cães. (...) O tamanduá virava o corpo todo várias vezes, pulando com rapidez para se defender do ataque dos cães (...) Como ele se movimentasse sem parar, o tiro atingiu-o atrás das orelhas, entre o olho e a orelha. Ele caiu, mas levantou-se de novo e recomeçou a lutar, apesar de cansado, com dores e menos ágil (1997, p.251-252). A figurativização feita pelas descrições semântico-sensoriais pelo naturalista alemão, ratificamos, encontra-se elencada a seguir: Visual: “grande animal”; “comprido”; “preto”; “constituição estranha”. Tátil: “rabo grosso”; “pele grossa e curtida, couro dos mais fortes, especialmente na região da nuca”. Vale ressaltar que no final do relato do dia 26/11 encontra-se este comentário: Em Barra do Jequitibá, um vizinho, no caminho para a missa, numa manhã de domingo, pegou a espingarda do negro que o acompanhava, atirou num pequeno tamanduá e o deixou lá. Como eu lhe oferecesse alguma quantia pelo tamanduá, ele resolveu mandar buscá-lo a uma légua de distância e recebeu meia pataca (1997, p. 253). Recorrendo ao diário do alemão, encontramos, nas anotações do dia 25/11, estas referências acerca do animal em questão: 123 Outrora havia muito tamanduá destas redondezas. Tenho tentado conseguir um. Os caçadores saem quase todos os dias, mas até agora não tiveram sucesso. O governo deveria instituir multa para o abate do tamanduá, e os fazendeiros deveriam incentivar sua procriação. Aqui esse animal se alimenta principalmente de formigas brancas, as Termes, que são tão nocivas às plantações quanto as grandes carregadeiras, com uma diferença: estas últimas destroem as folhas, e aquelas, as raízes das plantas. Dois negros livres que moram aqui trabalham como carpinteiros. Fazem rodas de fiar para a fiação do algodão e outros objetos, como violas, um tipo de cítara. O artista compra caixas velhas de pinheiro vindas da Europa e usam a madeira para fazer esses instrumentos. Uma viola comum ele vende por 5 a 8 patacas. Medidas do tamanduá-bandeira (Myrmecophaga inbata L.): Do focinho à orelha – 1’2’’3’”. Da orelha à raiz do rabo – 3’1”6’”. Comprimento do rabo – 3’. Altura dos ombros à pata dianteira – 2’2”. Altura das patas traseiras ao quadril – 2’1”. Circunferência do corpo – 2’8”. Comprimento das patas dianteiras no peito até a raiz do rabo – 2’1”. Circunferência e largura do rabo no meio – 1’10”. Língua – 3’ de comprimento. Língua fora da boca – 1’3” (1997, p. 249-250). Cria-se, como se pode notar, um percurso figurativo de uma espécie animal da fauna brasileira com efeito de “objetividade” científica. O tema da cientificidade dá sentido aos percursos figurativos. Observa-se que a descrição do animal é feita pormenorizadamente. Atente-se para a lista esmiuçadora elaborada do tamanduábandeira, demonstrando o estudo cientifico do animal, ou melhor, um estudo zoológico. É interessante contemplar a figurativização feita pelo naturalista alemão em relação aos verbetes apresentados anteriormente sobre o tamanduá-bandeira. Langsdorff destaca, ao representar o animal, o fato de não possuir dentes: 124 “desdentado”, o que inclui o tamanduá-bandeira, entre outras características, na classe dos mirmecofagídeos: “1.Zool. Família de mamíferos desdentados, de focinho longo, língua protrátil, desprovidos de dentes (sendo os únicos desdentados verdadeiros), unhas muito desenvolvidas, cauda longa, preênsil, nas espécies arborícolas. Alimentam-se de insetos. São os tamanduás.”19 Além disso, lê-se em várias passagens de Os Diários de Langsdorff o envolvimento do narrador com o futuro do país. Não é diferente quando descreve o tamanduá-bandeira: O Governo deveria, e teria todo direito em fazê-lo, instituir multa pesada pelo abate do tamanduá e incentivar os moradores das regiões onde ainda houvesse alguns a tentar, de toda forma, promover sua reprodução. Com isso, muitas terras poderiam ser recuperadas, terras que se tornaram incultiváveis pela ação das formigas, como, por exemplo, nas Províncias do Espírito Santo e de São Paulo. Se o Governo não tomar providências nesse sentido, o tamanduá será totalmente extinto (1997, p. 253). É interessante ressaltar essa passagem, pois, já na primeira metade do século XIX, Langsdorff previa a extinção do animal em questão. Desembocando na definição de tamanduá-bandeira elaborada pelo IBAMA, encontra-se o seguinte alerta: “Espécie ameaçada de extinção”. Dessa forma, pode-se reconsiderar algumas isotopias, tais como a da animalia surpreendente, como pôde ser demonstrado anteriormente. Uma outra isotopia diz respeito ao estágio “pré-civilizado”, “sem educação” dos íncolas brasileiros, que se opõem ao “civilizado”, “educado”, segundo o ponto de vista do narrador. Por meio dessa isotopia, pode-se conjeturar um devir assolador. O olhar do cientista, preocupado com o objeto observado, já foi detectado no trecho em que Langsdorff faz referência à postura de outros países em relação aos animais úteis para a sociedade, como é o caso do íbis, no Egito, da cegonha e da andorinha, na Alemanha e dos urubus no Brasil da época retratada. Por fim, pode-se depreender uma isotopia naturalística, pautada pelo olhar do viajante-cientista, no trecho já citado em que o sujeito enunciador expõe um método 19 Dicionário Eletrônico Aurélio 125 classificatório para o reconhecimento do tamanduá, medindo milimetricamente as partes do animal: “Da orelha à raiz do rabo – 3’1”6’”. Além desse detalhamento sobre o animal, ou melhor, da dissecação do corpo do animal, buscando conhecer-lhe as partes, a estrutura e o aspecto, como já foi falado, há ainda os nomes científicos que corroboram essa isotopia, como “Myrmecophaga inbata L.” e “Falco aura”, bem como os preparativos de empalhamento do tamanduá. Nesse ponto recorremos às palavras de Boris Komissarov, autor de Expedição Langsgorff: acervo e fontes históricas, para quem: “O estudo dos diários de Langsdorff permite-nos concluir que estamos diante de uma fonte de informação histórica rica e autêntica.” (1994, p. 32). Essa afirmação nos baliza para uma questão de importância. Trata-se do contrato de veridicção. De acordo com as palavras de Komissarov, “autêntico” equivale a “verdadeiro”, ou seja, relatos, fatos dignos de fé, reais, etc. Os textos langsdorffianos, por serem predominantemente figurativos, constroem um simulacro da realidade, representando, dessa forma, o mundo natural como o que parece e é. Sobre esse ponto, vale lembrar as palavras de Greimas e Courtés: O crer-verdadeiro do enunciador não basta, supomos, à transmissão da verdade: o enunciador pode dizer quanto quiser, a respeito do objeto de saber que está comunicando, que “sabe”, que está “seguro”, que é “evidente”; nem por isso pode ele assegurar-se de ser acreditado pelo enunciatário: um crer-verdadeiro deve ser instalado nas duas extremidades do canal de comunicação, e é esse equilíbrio, mais ou menos estável, esse entendimento tácito entre dois cúmplices mais ou menos conscientes que nós denominamos contrato de veridicção (ou contrato enuncivo) (s.d., p. 486). Assim, o enunciatário é persuadido pelo enunciador que o “faz-crer” nas imagens apresentadas sobre a caça e as características do tamanduá-bandeira. Cabe, portanto, ao enunciatário acreditar na verdade do discurso. O diário de campo é um meio de comunicação que privilegia, por sua própria condição de produção, o espaço semanticamente como algo curioso, que deve ser examinado e contemplado. Desse espaço, o enunciador recorre à iconização para 126 retratar o ambiente em que ele se encontra e; principalmente, o ambiente onde o tamanduá vive. O enunciador cria esse “fazer parecer real” por meio da luz, do ar, do solo e de outros seres vivos que com o tamanduá coabitam e que são sua principal fonte de alimentação. Constata-se que o enunciador dos Diários de Langsdorff faz questão de destacar a sua condição in loco como forma de credibilidade. Para assegurar a própria credibilidade em seus relatos, ele também descreve as “coisas” do mundo natural dimensionadas com régua, compasso e; primordialmente, com o efeito de razão científica. Diferentemente das figurativizações de Anchieta, que apresentam uma aura de mistério e extravagância. Além disso, o enunciador, para corroborar o efeito desse “fazer parecer real”, reproduz um simulacro de diálogo como forma de “certidão de verdade”: ”Ele não vai nos escapar”, disse o guia, “mas temos que tentar atravessar o alagado.” “Você tem medo de molhar os pés?” perguntei-lhe. “Eu não”. (p.251) Portanto, pode-se concluir que, por meio da caracterização do espaço, depreende-se a postura científica do enunciador. Pelo exame de um modo próprio de dizer emerge, entre outras características, o discurso produzido como sendo inquestionavelmente verdadeiro, ou seja, o crer-verdadeiro é partilhado tanto pelo enunciador quanto pelo enunciatário. Langsdorff pende para o éthos da cientificidade. Não é o caso de Anchieta. Nota-se que a figuratividade nos textos em questão, embora representando um espaço afim e o mesmo animal, constrói perspectivas diversas, na medida em que as figuras utilizadas e concretizadas por traços semânticos sensoriais diferentes divergem nos textos apresentados. São dois olhares distintos que vêem um mesmo local de formas distintas. Os textos considerados, apesar da utilização de determinados recursos semelhantes, figurativizam o mundo natural selvático de formas singulares, o que torna possível certa diversidade no tratamento da mesma figura. Enfocando um mesmo universo temático, cada texto o figurativiza de modo peculiar, utilizando, para isso, traços semânticos sensoriais diferentes, e re-inventando o Brasil cada um à sua maneira. A esse respeito, Ferdinand de Saussure diria que é “o ponto de vista que cria o objeto” (Saussure, 2004, p. 15). Fontanille e Zilberberg utilizam os exemplos do cachorro e do gato para exemplificar o conceito de valência. Recorremos a tal diagrama proposto pelos 127 semioticistas para exemplificar tanto o espaço quanto a fauna de modo geral nos discursos dos viajantes em questão. + intensidade afetividade foco - - extensidade + inteligibilidade apreensão Em Anchieta temos um foco alto e de extensão baixa. O foco se concentra no tamanduá. Nada mais interessa, o que faz com que os valores sejam viabilizados na ordem do excesso e da falta. Há uma sobredeterminação de visões: o olhar do europeu se sobrepõe à realidade brasileira, o que faz com que a monstruosidade, por meio da pejoração, seja impactante. Em contraposição, em Langsdorff o foco é baixo e a extensão é ampla. O ator do enunciado, o tamanduá, é dinâmico, foge, luta no espaço que é seu. Retrata-se amplamente o meio em que o animal habita. Há menor intensidade de pejoração, menor repulsa, menor impacto emocional. Enfim, pode-se dizer que no texto langsdorffiano, o enunciador procura reproduzir o tamanduá, fiel à exigência primordial de manter a justa medida do olhar do enunciador, que torna milimetricamente o espaço percorrido e faz tudo ver de modo “objetivo”, sem “obscurecimentos” emocionais. Em Anchieta configura-se com marcas do locus amoenus: solo primordial. Por outro lado, Langsdorff sugere a definição de uma outra imagem de Brasil: não mais paraíso ou inferno, do qual se tenta extrair o pau-brasil, não mais o ouro, mas curiosidade, paisagem como objeto de estudo a ser cuidadosamente classificado. E não mais por viajantes-aventureiros, mas por naturalistas. Por fim, ressalta-se que o modo de dizer, o modo de figurativizar o mundo é fundamental para tornar o discurso como verdadeiro, aliás, efeito de verdade, em ambos os relatos. Em Anchieta ANCHIETA LANGSDORFF 128 deparamos com crises de representação, como se pode ver: “não me é fácil explicar; por isso, não tocarei nessas cousas, nem vejo nelas razão para que sejam diferentes do que aí se observa” (Anchieta, 1933, p. 104). Já em Langsdorff, o ponto de vista cria efeito de um mundo fixo, o efeito de uma observação segura, advinda do observador que procura olhar apenas para o que se apresenta à vista, mas olhar bem, sem nada deixar passar. Como ele mesmo explica: “em país tão distante do nosso, tudo é digno de interesse”. 129 CAPÍTULO III O ÉTHOS DA CIENTIFICIDADE 130 Aspectos gerais sobre éthos O estilo é o homem, se, para homem, for pensado um modo próprio de presença no mundo: um ethos. Norma Discini Após depreender o estilo da cena genérica diário de campo, neste capítulo pretendemos depreender o modo próprio de presença do ator da enunciação, aqui relacionado ao éthos da cenografia do diário do naturalista alemão, o Barão Langsdorff. Aqui se reconhecerá o estilo de Langsdorff. De acordo com Maingueneau (2002, p. 89), diferentemente de gêneros que “se limitam ao cumprimento de sua cena genérica, não sendo suscetíveis de adotar cenografias variadas (cf. a lista telefônica, as receitas médicas, etc)”, o gênero diário de campo favorece, segundo suas especificidades, a previsão de uma cenografia que será mobilizada. Lembramos que a cena de enunciação integra três outras: cena englobante, cena genérica e cenografia: A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão, o guia turístico, a visita médica... Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética etc (Maingueneau, 2005, p. 75). Há, por exemplo, uma cenografia diferente entre Os Diários de Langsdorff e Dias em Trujillo - um antropólogo brasileiro em Honduras de Ruy Coelho, apesar da mesma cena genérica: diário de campo. Esse fato permite diferenciar uma cenografia de outra. Segundo Carvalho, “o sujeito, por meio de uma enunciação particular, ‘individual’, deixa suas marcas ‘pessoais’ no enunciado construído” (2005, p. 175). Dessa forma, a cenografia implica um processo de enlaçamento paradoxal: a enunciação supõe uma certa cena enunciativa que se valida progressivamente por 131 essa mesma enunciação; em outras palavras, a cenografia legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la. Nas palavras de Maingueneau: A cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente seu próprio dispositivo de fala. [...] Desse modo a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ela engendra (Maingueneau, 2002, p.87) (grifos do autor). De acordo com as palavras do analista do discurso, de cada cenografia emerge um éthos. A noção de éthos remonta à retórica aristotélica, definido como a imagem que o orador pretende dar de si mesmo para inspirar confiança, não pelo que afirma acerca de suas qualidades, mas pelo modo e tom de voz expressos. Na esteira da Análise do Discurso, o éthos deve ser entendido como o “fiador” de um discurso: O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos. O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. O ethos implica assim um controle tácito do corpo, apreendido por meio de um comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador apóiam-se, então, sobre um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar (Maingueneau, 2005, p. 72). Dessa forma, cenografia e éthos implicam interdependência: desde a emergência, a palavra, como discurso, traz um certo éthos que é validado progressivamente, pois ele depende de diversos fatores. Nesse sentido, o éthos está ligado a uma cena enunciativa, para a qual o destinatário está convocado e na qual 132 está inscrito. Uma enunciação está inscrita em um quadro interativo, em uma instituição discursiva em que existem configurações culturais, papéis a ser desempenhados, lugares e momentos a ser legitimados, que servem de suporte material e de modo de circulação aos simulacros. Em virtude do exposto, almeja-se fazer uma descrição do plano do conteúdo do diário de Lansdorff, bem como do plano da expressão. Visamos levantar recorrências que dizem respeito à localização desse sujeito da enunciação no espaço construído discursivamente. Pretendemos o exame da imagem criada desse sujeito, dada em constante deslocamento, graças à situação de expedição científica relatada e exposta. Cria-se, portanto, uma imagem desse enunciador ou o éthos do enunciador por meio do modo próprio de relatar o dia-a-dia da expedição. Esse sujeito, no caso em pauta, o Barão de Langsdorff, terá um corpo, uma voz, um tom de voz e um caráter depreendidos a partir do modo como constrói o espaço das terras brasileiras, segundo o olhar científico que tudo quer saber e tudo quer informar imparcialmente; entretanto, o olhar do sujeito recorta a realidade social, bem sabemos. A imparcialidade permanece como efeito de sentido construído na relação entre o ser e o parecer. Para a apreensão do éthos, além dos estudos de Dominique Maingueneau sobre o discurso em geral, teremos ainda o respaldo das proposições de Norma Discini feitas sobre estilo. Justifica-se o uso de tais aparatos teóricos pelo fato de apresentarem correlações metodológicas com as grades teóricas greimasianas. Falou-se até agora sobre sujeito da enunciação, enunciador e enunciatário. É importante destacar que, do ponto de vista da semiótica, para depreender a imagem ou o éthos de Langsdorff, o olhar analítico deve voltar-se para o ator da enunciação, pois, conforme o Dicionário de Semiótica: Do ponto de vista da produção do discurso, pode-se distinguir o sujeito da enunciação, que é um actante implícito logicamente pressuposto pelo enunciado, do ator da enunciação: neste último caso, o ator será, digamos, “Baudelaire”, enquanto se define pela totalidade de seus discursos (Greimas e Courtés, s.d., p. 35). O ator da enunciação define-se, portanto, pela totalidade de sua obra. O ator “Langsdorff” se define pela totalidade de três volumes dos Diários de Langsdorff. 133 Como sugere Norma Discini (2003, p. 117), cada volume dos referidos diários do naturalista alemão constitui uma totalidade. Dessa forma, optou-se por recortar apenas o primeiro volume, dedicado aos relatos referentes às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, o qual se diferencia topologicamente dos outros dois volumes, sendo o segundo dedicado à província de São Paulo e o terceiro a Mato Grosso e Amazônia. O éthos de Langsdorff Com o objetivo de perscrutar o éthos do ator da enunciação, o Barão Grigory Ivanovitch Langsdorff (como era conhecido na Rússia), veremos como o enunciador permite que se depreenda um corpo, uma voz e um caráter a partir do exame dos Diários. Falamos do corpo, da voz e do caráter do ator “Langsdorff”, revelado, como já se disse, a partir das 372 páginas de relato com registros iterativos, datados de 8 de maio de 1824 a 17 de fevereiro de 1825, no trajeto do Rio de Janeiro para Minas Gerais. Entendendo caráter como éthos e éthos como estilo, veremos como e por que temos um modo próprio de ser do explorador de terras alheias e do ser narrador de viagens a terras alheias: o modo Langsdorff de ser no mundo. O ator da enunciação é dado a ver por meio da análise dos registros feitos no primeiro diário. Contemplaremos cada enunciado e mesmo o diário como o enunciado da totalidade, sempre na relação estabelecida entre o plano do conteúdo e o plano da expressão dos textos langsdorffianos. Além disso, tendo em vista que o eu se estabelece em relação ao outro, recorreremos a outros discursos de viajantes com a finalidade de deslindar um modo peculiar de presença do ator Langsdorff. Ao falar do Barão George Henrique de Langsdorff20, recorremos, inicialmente, a uma passagem de Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais do famoso viajante Auguste de Saint-Hilaire, no que diz respeito ao seu companheiro de viagem: “Este moço, o Sr. Langsdorff, cônsul da Rússia, e eu, partimos do Rio de Janeiro a 7 de dezembro de 1816” (1975, p. 35). Ao chegarem à província de Minas Gerais, Saint-Hilaire declara: 20 Como era chamado por Dom Clemente Maria da Silva Nigra, um dos primeiros brasileiros a se dedicar aos estudos a respeito da Expedição Langsdorff. 134 Na companhia de Langsdorff, o homem mais ativo e infatigável que encontrei em minha vida, aprendi a viajar sem perder um só momento, a me condenar a todas as privações, e a sofrer com alegria qualquer espécie de aborrecimentos. [...] Meu companheiro de viagem ia, vinha, agitava-se, chamava este, repreendia aquele, comia, escrevia o seu diário, arrumava as borboletas e tratava de tudo ao mesmo tempo. Todo seu corpo estava em movimento; a cabeça e os braços, que arremessava para a frente, pareciam censurar a lentidão do resto dos membros; suas palavras se precipitavam; a respiração era entrecortada, ficava ofegante como depois de uma longa corrida ( Saint-Hilaire, 1975, p.66). Como se observa, o narrador, identificável como Saint-Hilaire, esmera-se na construção do ator do enunciado, de quem se fala. Delineia-se a figura de Langsdorff, manifestando o tema da presença exploratória de viajantes-cientistas no Brasil, na primeira metade do século XIX. Pode-se dizer que nessa passagem, ao apresentar o que o ator do enunciado faz e como faz, o narrador apresenta, por meio das características físicas e psíquicas, o éthos do ator do enunciado, tal como percebido por Saint-Hilaire. Não é, entretanto, essa imagem de Langsdorff que buscamos. Diante dessa declaração do viajante francês, resta-nos o seguinte questionamento: o éthos de Langsdorff depreendido não do dito, mas sim de um modo próprio de dizer, se correlacionaria com esse ator do enunciado referido nos texto de Auguste de Saint-Hilaire? É o que veremos a seguir. Éthos e objetividade Para deslindar a cenografia do texto langsdorffiano, da qual depreenderemos o éthos do ator da enunciação, tomemos do primeiro caderno o relato que dá início à viagem do médico, naturalista e diplomata Langsdorff: Partida da Mandioca em 8 de maio de 1824. Tempo bom. Até José Dias, no meio da serra. Os animais de carga estavam bastante carregados. Tarde da noite, chegaram o Sr. Freytag, com um bom cavalo, e Francisco, com uma carta de padrinho do Padre Correia (Antônio Tomás de Aquino Correia) (1997, p.1). 135 Observa-se nesse relato a encenação de um mundo de onde um narrador implícito expõe o início de uma viagem, tendo como ponto de partida a fazenda Mandioca21, de propriedade de Langsdorff. Dá-se o início da viagem em 8 de maio de 1824. Reconhecemos logo de início um eu (que referencia aquele que enuncia e cujo objetivo é dar a conhecer imagens de lugares, experiências das mais diversas ordens), um espaço e um tempo. Com o objetivo de conferir ao texto o efeito de sentido de real, esse espaço e esse tempo são apresentados figurativamente por topônimos - designações dos espaços - e cronônimos - termo que designa denominações temporais. Correlativamente a esses subcomponentes da figurativização, há os antropônimos que se referem às denominações de atores por nomes próprios. Assim, topônimos, cronônimos e antropônimos “permitem uma ancoragem histórica que visa a construir o simulacro de um referente externo e a produzir o efeito de sentido ‘realidade’” (Greimas e Courtés, s.d., p. 23-24). No que diz respeito aos atores do enunciado, lembram Greimas e Courtés (s.d., p. 34), que eles podem ser figurativizados tanto como antropomorfos quanto como zoomorfos e que devem ser portadores de “pelo menos um papel actancial e de no mínimo um papel temático.” Assim, de um lado temos “os animais de carga”, bem como “um bom cavalo”, atores zoomorfo-adjuvantes que representam o poderfazer, na transitoriedade, a viagem. Do outro lado, há “Sr. Freytag”, “Francisco” e o “Padre Correia”. No que diz respeito aos nomes dos atores enunciados, observamos que estes contribuem para construir o mesmo efeito de sentido de “real”. Por representar o primeiro relato do início da Expedição Langsdorff, tais componentes onomásticos desempenham a função de reforçar a indicação das camadas sociais representadas no discurso. A presença estrangeira no Brasil é representada pelo nome do ator “Sr. Freytag”. O pronome de tratamento indica o relacionamento respeitoso dado a esse ator, o qual, a título de curiosidade, afirmamos que exercia a função de guarda-livros da respeitada biblioteca do Barão Langsdorff. Quanto ao ator “Francisco”, temos apenas o primeiro nome, o que indica uma função e 21 Segundo Hildegard W. Fauser, “A fazenda Mandioca não era simplesmente uma propriedade. Langsdorff transformou-a em um instituto científico. Ali eram plantados café, milho, mandioca, batata, banana, e árvores de noz moscada. Realizavam-se plantações experimentais, projetos de pesquisa eram colocados em prática, novas técnicas e métodos de trabalho eram testados e utilizados, tal como o arado europeu. Além disso, o dono da casa possuía uma extraordinária biblioteca cientifica, um herbário, um jardim botânico e coleções zoológicas e minerais. A Fazenda Mandioca era famosa em todo o Brasil e na Europa como fazenda-modelo” (1995, p. 33). 136 importância não individualizada na Expedição, assim como o segmento social de menor poder a que pertence. Diferentemente ocorre com o ator “Padre Correia”, doador do objeto modal poder-fazer, poder-saber figurativizado pela “carta de padrinho”, ou seja, uma carta de referência que se apresenta aos moradores, donos de vendas das regiões visitadas, com o intuito de conseguir estadia e alimentação para os membros da Expedição, além de informações sobre um caminho a seguir. A denominação que esse ator recebe o inscreve no universo da Igreja Católica, confirmando o respeito e a autoridade de tal ator no relato. Tal respeito é corroborado com o nome completo do sacerdote, que vem entre parênteses no relato langsdorffiano: “(Antônio Tomás de Aquino Correia)”. Além disso, destaca-se nesse relato a performance dos atores do enunciado, representada pela transitoriedade inerente ao deslocamento físico: passar ou andar ao longo, entre ou através de; percorrer a serra, o campo, o alagado, a floresta, etc. Essas características apresentadas no relato em questão, tais como os topônimos, os cronônimos e os antropônimos fundam a cenografia da viagem. A cenografia que legitima um enunciado o qual, por sua vez, deve legitimá-la. Essa cenografia construída pelo discurso do Barão langsdorff pressupõe um modo de enunciar compatível com o mundo que ela constrói, para validar a enunciação de um discurso científico, materializado nos diários. É, portanto, do modo de dizer, de enunciar, que está em jogo a constituição do chamado éthos de Langsdorff. É como lembra Roland Barthes (1975, p. 203) em artigo intitulado A retórica antig: “O ethos é, no sentido próprio, uma conotação. O orador enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, afirma: sou isso e não aquilo.” Maingueneau acrescenta que “a eficácia do ethos se deve ao fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação, sem estar explícito no enunciado” (2001, p. 98). Retomando conceitos de retórica apregoados por Aristóteles, Maingueneau afirma, ainda, que “o texto escrito possui um tom que dá autoridade ao que é dito e que permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador” (2001, p.98). Vale ressaltar que não se trata do corpo do autor do mundo, autor real, mas sim de uma instância subjetiva que assume o papel do fiador do discurso enunciado, ou seja, um autor discursivo. Dessa forma, entendendo éthos como estilo, o olhar analítico orienta-se da seguinte forma: 137 Para descrever um estilo, a análise procurará reconstruir quem diz pelo modo de dizer, o que supõe uma observação de uma mesma maneira de valorizar valores. Ao identificar tais apreciações moralizantes, da responsabilidade de um sujeito que, inscrito no discurso sem dizer eu, é tido como mera construção de dada formação social, a análise identificará o ethos” (Discini, 2003, p. 7). De acordo com Norma Discini, vê-se que não é no enunciado que o éthos se revela, mas sim na enunciação, no “modo de dizer”, sendo este depreensível daquele. A enunciação, ao produzir o discurso, produz simultaneamente o sujeito da enunciação. Atenhamo-nos, agora, à análise dos procedimentos pelos quais se criam as representações do sujeito do discurso, com vistas a depreender as recorrências do plano do conteúdo do primeiro relato do diário do naturalista. Elas delineiam o éthos de Langsdorff. No que diz respeito ao segundo nível da hierarquia enunciativa, instalados e manifestados no discurso pelo procedimento de debreagem actancial, estão narrador e narratário, “simulacros discursivos do enunciador e do enunciatário implícitos”, segundo Barros (2002, p. 75). No relato em análise, há um apagamento desse par de actantes, diferentemente do que ocorre no decorrer do diário em questão, em que um mesmo ator desempenha o papel de eu-narrador e eupersonagem. Um sujeito sincrético, portanto. Essa diluição do narrador faz com que os acontecimentos sejam mostrados sem a mediação de um narrador, formando uma espécie de paisagem dos acontecimentos e dos fatos. Ganha destaque, dessa forma, o enquadramento espácio-temporal, bem como a performance dos atores do discurso, imprimindo ao relato efeito de sentido de objetividade. Destaca-se o efeito de concisão presente no texto, constituído por um sujeito que, no enunciado, relata limites transpostos, já que se está diante de um diário exploratório e de um sujeito em trânsito. Temos um sujeito contido, dado como aquele que enuncia laconicamente: “Partida da Mandioca em 8 de maio de 1824. Tempo bom”. Por meio de frases ditas nominais, já que caracterizadas pela ausência de verbo, confirma-se a imagem do sujeito que mais pensa e menos fala: um sujeito que não é dado a expansões verborrágicas. Trata-se de um olhar “objetivo” sobre a realidade, conseqüentemente como reflexo de um modo próprio de dizer e de retratar os fatos. 138 O relato com características de concisão é feito em tom baixo. Um caráter equilibrado firma um éthos que se manifesta como conciso, preciso, sucinto. O que o enunciado diz é sustentado pela enunciação que procura criar um distanciamento em relação ao enunciado, o que pressupõe efeito de objetividade que, como aponta Fiorin: Como o ideal de ciência que se constitui a partir do positivismo é a objetividade, o discurso científico tem como uma de suas regras constituintes a eliminação de marcas enunciativas, isto é, aquilo a que se aspira no discurso científico é construir um discurso só com enunciados (2002, p. 45). Com algumas exceções, devido às especificidades do gênero diário e, em especial, diário de campo, o discurso langsdorffiano é, como se nota, de caráter científico até na postura assumida enunciativamente. Tal relato demonstra uma coerência, um equilíbrio entre cena englobante, cena genérica e cenografia, das quais já se falou. Além disso, são elementos reveladores as frases curtas, fragmentadas e lacônicas, que impõe um ritmo compatível com o ir-e-vir da viagem, principalmente nesse primeiro relato em que o enfoque recai sobre a partida, o início da viagem. Esse éthos manifestado pela objetividade científica está presente em todo o diário. Vejamos como e por que a imagem do sujeito fica corroborada em mais esse segmento: 13/06 [1824] Enquanto os habitantes do lugar se ocupavam com os grandes festejos religiosos, nós aguardávamos o guia que havíamos solicitado ao juiz ordinário. Esse só apareceu perto de 10h, depois de assistir à missa. Depois de fazermos observações no lugar com um de nossos barômetros n. 3, dirigimo-nos para a montanha situada a leste, onde achamos uma diferença de altura de 1.060 pés entre o lugar e a montanha (1997, p. 39). 139 “Esse [o guia] só apareceu perto das 10h, depois de assistir à missa”. A preocupação com o relato do detalhe está figurativizada na especificação das horas, do tipo de barômetro (nº3), na altura da montanha. Além disso, diferentemente do primeiro relato analisado anteriormente, em que há, como efeito de sentido, o camuflamento do narrador, aqui vemos a presença de um mesmo ator desempenhando o papel de narrador e de ator do enunciado, manifestado pelo pronome pessoal nós. De acordo com Fiorin, o nós “não é a multiplicação de objetos idênticos, mas a junção de um eu com um não-eu” (2002, p. 60). Nos Diários de Langsdorff o nós é a junção de um eu com um eles, os participantes da Expedição Langsdorff, que Fiorin denomina como nós exclusivo (2002, p.124). A esse nós se opõe um ele ou eles, os habitantes brasileiros, representados figurativamente por sertanejos, padres, presidentes, índios, entre outros, ao longo do diário. Esse tipo de projeção enunciativa, recorrente no diário em questão, estabelece a identificação de um único corpo, um actante coletivo, constituído de diferentes atores: pintor, botânico, astrônomo, cartógrafo, zoólogo, lingüista, médico, caçador, guarda-livros, entre outros, para que se organize a imagem dos componentes da expedição. Esse procedimento de projeção de pessoa empregado nos Diários diz respeito a uma debreagem enunciativa, o que acarreta um efeito de sentido de subjetividade. No entanto, esse efeito fica atenuado, visto que o olhar do enunciador se volta para a constituição do mundo a ser explorado. Sobressai, dessa forma, o efeito de objetividade no trato dado às figuras e, portanto, à semântica do discurso. Embora não se trate de um plural de autor, o que consistiria numa embreagem, temos, no diário do médico alemão, um enunciador que se estabelece “como um delegado dessa coletividade cuja autoridade deriva da instituição científica e, para além dela, da própria Ciência” (Fiorin, 2002, p. 96). Nesse sentido, ao estabelecer a identificação dessa coletividade num mesmo corpo, esse modo de presença no mundo leva a depreensão do éthos do ator da enunciação, marcado por um caráter justo, visto que se entende por expedição “um grupo” não só de cientistas, mas também de ajudantes diversos. Assim, no que diz respeito à Expedição Langsdorff, as expressões verbais “nós aguardávamos” e “dirigimo-nos” representa um grupo de aproximadamente 39 homens. Essa instituição-científica-em-trânsito manifestada pelo pronome pessoal nós leva a depreender um tom altivo e um corpo forte e vigoroso, individualizado em Langsdorff. É um modo de dizer solene que confere ao enunciador um éthos 140 comprometido “coletivamente”. A seguinte passagem é singular no que se refere a esse éthos do ator da enunciação: 16/07 [1824] O proprietário estava muito curioso para saber sobre o objetivo de nossa viagem e desconfiava de tudo que lhe contávamos, pois tudo lhe parecia inacreditável. Parecia impossível alguém possuir 8 mulas carregadas de caixas e não ter nenhuma mercadoria para vender. Perguntou-me o que os negros carregavam com tanto zelo. A resposta: “Instrumentos”. “Ah!, disse ele, “deixe-me ver: são instrumentos que tocam!” Ele nunca ouvira falar de instrumentos astronômicos. Abriu-se a caixinha para lhe convencer de que ali estavam nossos relógios, ao que ele indagou se éramos relojoeiros. As palavras botânicos, naturalistas, museus, ele nunca havia ouvido em sua vida e não conseguia, assim, entender o objetivo de nossa viagem (1997, p. 87). As seguintes ocorrências são mostras cabais do éthos expedicionário, do éthos que ganha força com a expansão do eu: “nossa viagem”, “contávamos” e “indagou se éramos”. Pode-se dizer que temos na imagem desse ator da enunciação a projeção de outros atores, que o nucleiam, fazendo com que a imagem de Langsdorff seja fortalecida: o tom de voz firme, um caráter equânime, ou seja, constante, estabilidade de temperamento, de ânimo, em qualquer circunstância e um corpo “ativo e infatigável”, usando palavras de Saint-Hilaire. Nota-se nesse relato o uso da primeira pessoa do singular: “Perguntou-me”, sobre o qual falaremos adiante. Além disso, tomando esses dois últimos relatos, datados respectivamente de 13 de junho e 17 de julho de 1824, retomamos o éthos manifestado pela objetividade científica de que falamos anteriormente. No último segmento transcrito, Langsdorff enfatiza a oposição “nós, que sabemos, versus eles, que não sabem”. Por isso o proprietário [da fazenda] é indicado como o que confunde instrumentos de pesquisa na área das ciências com instrumentos musicais. O éthos Langsdorff não é da mistura com as aspirações dos nativos. Retomemos o relato de 13 de junho: “Enquanto os habitantes do lugar se ocupavam com os grandes festejos religiosos, nós aguardávamos o guia que havíamos solicitado ao juiz ordinário. Esse só apareceu perto de 10h, depois de 141 assistir à missa”. Nota-se uma oposição figurativa no nível da superfície entre os “habitantes do lugar” e “o guia” vs. “nós” (eu + os membros da expedição). Tal oposição reverbera uma oposição do nível profundo, qual seja, misticismo vs. ciência. Os habitantes “se ocupam com os grandes festejos religiosos” referentes à festa de Santo Antônio (informação apresentada no relato do dia anterior) e o guia “só apareceu perto das 10h, depois de assistir à missa”. Em oposição a eles, “nós”: “Depois de fazermos observações”, “dirigimo-nos para a montanha”. Temos figurativamente, no primeiro caso, a identidade dos habitantes brasileiros, manifestando o tema da relação deles com a religião e o misticismo, relação essa que os define. No que diz respeito à Expedição Langsdorff, essa é representada por intermédio da observação do lugar propriamente dito a partir do olhar do sujeito e de seu fazer científico sobre o mundo. Eis um modo próprio de construir o mundo discursivamente. Ao discursivizar “eu estou aqui e agora a ver e a viver isto desta forma”, temos um modo de dizer que demonstra uma presença, uma maneira de ocupar e explorar o espaço, bem como uma maneira de representar as relações que se estabelecem com os atores do enunciado, figurativizados como habitantes nativos, brasileiros. É da construção desses atores “brasileiros” que se dá, por negação do seu contrário, a identidade dos expedicionários: eles vs. nós. Embora tanto no relato de 13 de junho quanto no de 16 de julho haja indícios e até a autodenominação do próprio enunciador a respeito do caráter científico da expedição, não é no dito que se depreende a imagem de Langsdorff, mas sim no modo de dizer, na enunciação. Assim, o modo de combinar temas e figuras é de suma importância para deslindar tal éthos. Dessa forma, observam-se em ambos os relatos a confirmação e não denegação de um universo figurativo. Não há abalos no edifício figurativo. As descrições são exatas e minuciosas e não apresentam, como se vê em Viagem pitoresca através do Brasil, de Johann Moritz Rugendas, o emprego constante de adjetivação romântica, tais como “maravilhoso”, “fascinante”, “esplêndido”, entre outros. São deixadas de lado palavras excessivas, bem como rodeios injustificáveis ou expressões de sobrecarga afetiva. Confirma-se assim um sujeito de olhar “objetivo” sobre a realidade, um sujeito que procura incorporar ao seu relato o maior número possível de informações científicas, informações estas que atendem a um conjunto de regras correspondentes às formações discursiva e ideológica vigentes nos meios oficiais e acadêmicos de início do século XIX. Temos então um sujeito de corpo estável, 142 equilibrado, sem oscilações de caráter, com um tom de voz baixo, logo, um éthos da cientificidade. Além disso, outra característica que corrobora o éthos do cientista-viajante é a ausência de estados passionais ambíguos. No diário os estados passionais são representados por paixões como satisfação, alegria ao entrar em conjunção com um determinado objeto de valor presente no mundo natural, por exemplo. Ou tristeza, diante de uma privação, mas tudo ligeiro e nada impactante. Interessa a informação, a função referencial e não emotiva do diário. Enfim, nega-se toda aura e postura romântica e afirma-se um olhar objetivo sobre a realidade. Éthos e alteridade Ainda no relato datado de 16 de julho, nota-se o uso de discurso reportado. Trata-se de um simulacro de conversa entre um brasileiro e o chefe da expedição: “Perguntou-me o que os negros carregavam com tanto zelo”. A resposta: “Instrumentos”. “Ah!, disse ele, “deixe-me ver: são instrumentos que tocam!”’(1997, p. 87). Vale destacar o discurso reportado, com vistas à depreensão do éthos de Langsdorff. Além das debreagens enunciativa e enunciva, há, conforme Fiorin, a debreagem interna: Trata-se do fato de que um actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torna instância enunciativa, que opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva. É assim, por exemplo, que se constitui um diálogo: com debreagens internas, em que há mais de uma instância de tomada da palavra. Essas instâncias subordinam-se umas às outras: o eu que fala em discurso direto é dominado por um eu narrador que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo enunciado. Em virtude dessa cadeia de subordinação, diz-se que o discurso direto é uma debreagem de segundo grau (2002, p. 45). Esse recurso visa primordialmente criar o efeito de sentido de cena real, para que o discurso citado pareça proferido tal qual o foi, exercendo o papel de atestado de veracidade. Sintaticamente, o discurso reportado é uma debreagem de segundo 143 grau, em que o narrador dá voz ao actante do enunciado. Com vistas a atestar ainda mais veracidade do que é dito, o narrador debreia sua própria voz ao colocar sua resposta entre aspas: “Instrumentos”. Evidencia-se o papel do sujeito debreado pelo enunciador, como aquele que exerce ora a função de narrador, ora de personagem. Esse efeito comprobatório demonstra a manipulação exercida pelo enunciador, que procurar criar para o leitor uma situação, um mundo que não pode ser objeto de dúvida, que é incontestável, indiscutível. Em seguida, em discurso direto é delegada a voz ao actante do enunciado, o brasileiro, demonstrando sua ingenuidade. Nos vértices da alteridade, o ator da enunciação se reafirma, confirmando o éthos de Langsdorff. Dessa forma, fica retratada a suposta inferioridade cultural do ator do enunciado, o nativo, brasileiro, por meio do discurso reportado. Com a finalidade de criar efeitos de sentido de verdade, afirma-se, ao mesmo tempo, a superioridade do enunciador: aquele que detém maior saber e poder; aquele cuja competência modal é mais completa do que a do habitante das terras brasileiras. Deslinda-se, assim, um modo próprio de presença no mundo que, por meio de relações interpessoais, demonstra um caráter polido, um corpo habilidoso no agir, no vestir e no portar com elegância e distinção. Fica confirmada a identidade de um sujeito erudito; por isso, um éthos da cientificidade bifurcado em Langsdorff cientista e Langsdorff pensador social. Entretanto um éthos que discrimina os outros, os brasileiros, diante do nós, os viajantes estrangeiros. Prossigamos. 03/08 [1824] O Presidente da Província, o Sr. José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, recebeu-me com extrema cortesia, insistindo para que eu fosse seu hospede em palácio, onde tive a oportunidade de obter informações interessantes sobre o Estado, sobre a constituição, sobre a atualidade e o passado. Pode-se avaliar melhor o preparo desse senhor, quando ele faz discursos como deputado. O Sr. José Teixeira, um homem com mais de 60 anos, tem muito talento, conhecimento, capacidade de julgamento e probidade. Sendo natural daqui, ele conhece as vantagens e deficiências da terra, bem como o caráter, riqueza, natureza e aptidões dos nativos. Ele tem seu próprio 144 patrimônio. Na época da revolução, conseguiu manter esta província unida com o Rio de Janeiro. O Sr. Teixeira garantiu-me que, na época da colônia, era crime possuir riqueza; havia instruções secretas no sentido de se considerar suspeita toda pessoa que possuísse mais de 10.000 cruzados. Ela era presa na primeira oportunidade e tinha seus bens confiscados (1997, p. 125) (sic). Na abertura do segmento selecionado, nota-se o uso de um aposto: “O Presidente da Província, o Sr. José Teixeira da Fonseca Vasconcelos”. O uso desse aposto remete à tendência de cena didática criada pelo discurso. O enunciador quer fazer o leitor saber de minúcias e por isso o informa com o máximo de completude. Sem o aposto ficaríamos sem saber quem era o Presidente da Província. Confirmase, pelo uso recorrente do aposto, a preocupação com a clareza. Além disso, as relações interpessoais são constantemente discursivizadas nos Diários de Langsdorff. Com a tematização e figuração de tais relações sempre há uma informação de caráter científico: seja no âmbito social, para retratar o modo de ser do nativo, bem como seu costume e outras peculiaridades, seja no âmbito histórico e econômico. Vale ressaltar que nessas relações interpessoais o enunciador sempre se fará representar por meio de uma debreagem enunciativa no que diz respeito à pessoa. Vê-se o uso da primeira pessoa do singular: “recebeu-me” e “tive”. O efeito de subjetividade produzido por esse mecanismo fica atenuado, pois o olhar do enunciador se volta para as preciosas “informações”, para o “Presidente da Província, o Sr. José Teixeira da Fonseca Vasconcelos”, actante do enunciado, de quem se fala. Prevalece, assim, o efeito de sentido de objetividade. Nesse enunciado, observa-se claramente o respeito que o cônsul geral, o Barão Langsdorff, tinha perante presidentes de províncias, bem como perante sacerdotes, fazendeiros, pequenos funcionários, entre outros. O respeito é gradativo em relação à ascensão do sujeito na escala social. O brasileiro que “indagou se éramos relojoeiros” tem a ingenuidade vista com estranheza por Langsdorff. Com o Presidente da Província, alto cargo na escala social, existe a familiaridade respeitosa. Dessa cenografia diplomática delineia-se um éthos prestigioso, que quer, deve e sabe exercer grande influência sobre os outros sujeitos, como pode ser 145 constatado pela escolha lexical do enunciador ao relatar a “extrema cortesia” com que foi recebido. Nota-se novamente que o eu se constitui em relação ao outro. Tal relação é depreendida por meio da onomástica, especificamente pelo antropônimo: “O Presidente da Província, o Sr. José Teixeira da Fonseca Vasconcelos” ao figurativizar a posição e função social do actante do enunciado, bem como pelo pronome de tratamento seguido do nome completo, em aposto. Além do mais, o Presidente o recebe com “extrema cortesia, insistindo” para que ele se hospedasse no palácio, o que demonstra um sujeito modesto, despretensioso, visto que a insistência é o ato de pedir novamente, apesar de já ter recebido uma ou várias recusas. Disso decorre que, ao construir um mundo no enunciado e povoá-lo com alto grau de iconização, sem abalos no edifício figurativo, depreende-se um éthos que se mantém equânime. Além disso, esse sujeito em constante busca pelo saber, para quem querer é demasiadamente pouco, reverbera sua imagem por meio da relação entre sujeito e objeto como é o caso de “onde tive a oportunidade de obter informações interessantes sobre o Estado, sobre a constituição, sobre a atualidade e o passado”. Esse modo de dizer que revela uma maneira de ser cria uma imagem de um sujeito ávido por conhecimento, um sujeito de vocação científica ou, segundo palavras do próprio Langsdorff: de um “observador científico” (1997, p. 364). Essa forma de habitar e explorar o mundo revela, por meio da enunciação, um corpo ereto, que se encontra em equilíbrio, um tom de voz firme, contido, que não se expande em desabafos sentimentais. Nota-se nesse relato que o enunciador faz referência à performance do ator do enunciado: “Pode-se avaliar melhor o preparo desse senhor, quando ele faz discursos como deputado.” Embora o enunciador se esmere na construção do ator, ressaltando o seu saber sobre a província que administra, entre outras características, é na astúcia discursiva do ator comentado, o Presidente da Província, que recai a atenção do enunciador: “Pode-se avaliar melhor o preparo desse senhor”. Trata-se da valorização de um dizer e de um modo de dizer, a valorização de um valor: o ato enunciativo. “Pode-se avaliar melhor o preparo desse senhor quando ele faz discurso como deputado”: ao euforizar essa “heteroimagem” com base na performance discursiva do ator do enunciado e, de modo geral, sobre o saber do ator, o enunciador automaticamente se identifica e revela a sua autoimagem. Temos então um éthos que revela a valorização positiva da educação 146 refinada, da elegância, do requinte, de tudo o que foge ao comum. O ponto de equilíbrio é a “justa medida”. Por meio do modo de dizer, de como dizer, demonstrase um caráter que mostra vontade de aprender, pesquisar, saber, para quem tudo é digno de interesse. É atribuído a esse fiador, instância subjetiva que responde por aquilo que se diz no discurso, um tom sério de voz, firme e com uma corporalidade constantemente ereta, de porte elegante, olhar fixo, sóbrio. Os exemplos são abundantes no que diz respeito à relação interpessoal, à questão da alteridade, da relação com o outro discursivizada nos diários do naturalista alemão. Assim, por meio de uma maneira de dizer sobre a relação com os outros sujeitos que habitam o mesmo espaço e pela maneira de construir os atores do enunciado, temos a imagem do ator da enunciação, o éthos de Langsdorff que “remete, com efeito, à imagem desse ‘fiador’ que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado”, consoante Maingueneau (2001, p. 99). Tomamos dois exemplos que podem ser considerados opostos em relação à construção dos atores do enunciado, assim como à forma com que o enunciador os trata. Vejamos agora como o negro e o índio são retratados nos diários do Barão Langsdorff. Tomemos uma passagem de 5 de novembro de 1824, quando a expedição se encontrava em Jequitibá, Minas Gerais: Os negros possuem um crânio bastante forte, que eles usam como arma de proteção. Nas brigas, após um pequeno impulso, eles batem o crânio com tanta força no peito ou no estômago do rival, que muitas vezes chega a matar. Já vi um negro abrir ou arrombar uma porta com o crânio. Seria isso conseqüência do hábito que têm de carregar as coisas mais pesadas na cabeça? É comum vê-los carregar oito ou mais arrobas em cima da cabeça, como, por exemplo, uma grande cesta cheia de roupa molhada, ou cheia de laranjas, ou uma mala que duas pessoas mal conseguem levantar. É de se admirar a habilidade com que equilibram na cabeça desde pequenos potes até caixas enormes (1997, p. 219-220). “Os negros possuem um crânio bastante forte, que eles usam como arma de proteção”. Observamos na abertura dessa seqüência textual a animalização da 147 figura do negro, devido à combinação de elementos como “crânio” e “arma de proteção”. O crânio é visto como arma de força física, não como cérebro de ser pensante, centro da racionalidade humana. Confirma-se o olhar discriminador de Langsdorff: no caso, em relação aos negros. O outro é diferente e por isso atrai a atenção do sujeito de modo peculiar. Por meio de uma debreagem enunciva no que diz respeito à categoria de pessoa, o enunciador constrói o ator do enunciado, um ator coletivo: os negros. Ressalta-se a performance do ator, a sua competência, um poder-fazer com o crânio. Retomando as palavras de Barthes, vemos que “O orador enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, afirma: sou isso e não aquilo.” (1975, p. 203, grifos do autor). Em outras palavras, vemos que, ao tematizar as relações inter-raciais, euforiza-se o ser de Langsdorff no mundo, o éthos de Langsdorff, enquanto se disforiza o negro, o diferente. Constituído pela figura e pelo papel temático do cientista-viajante, depreendese um tom de voz “que dá autoridade ao que é dito” e que possibilita “construir uma representação do corpo do enunciador” (Maingueneau, 2001, p. 98). Trata-se de um sujeito de corpo altivo, que perscruta, investiga e indaga a partir e para além do visto, que tem a necessidade de explicar, traduzir e por fim dizer quem são os outros sujeitos e o que valem, de acordo com os valores ideológicos desse enunciador. Tal sujeito se sustenta na conjunção com o objeto-saber: um sujeito que sabe, que fazsaber, que crê-fazer-saber e ser, segundo o dever social a que está incumbido. Delineia-se dessa forma o éthos da justa medida, que encontra em determinados valores uma forma de fazer-crer na experiência vivida e relatada. “Seria isso conseqüência do hábito que têm de carregar as coisas mais pesadas na cabeça?”. Com toda elegância, Langsdorff confirma os valores ideológicos da escravidão, encarada com naturalidade. Assim, não se vê abalos na construção figurativa do ator do enunciado, o negro. Há uma harmonia nas posições enunciativas assumidas pelo enunciador: fala-se dele, do negro, por meio de uma debreagem enunciva, o que produz um efeito de objetividade e distanciamento em relação ao que é dito. Vejamos mais uma referência ao negro e como se mantém o éthos do enunciador: 148 12/06 [1824] Um dos meus negros, que, em cinco anos, nunca ficara doente, contraiu a bouba, uma doença africana que dizem ser contagiosa e parecida com a sífilis. Achei melhor levá-lo para ser tratado no hospital do que carregá-lo, comigo. Pouco antes de partir, encontreime casualmente com um capitão de ordenanças da Vila de São João, o Sr. Carlos Eugênio de Sousa Ferraz, e falei-lhe a respeito do meu pesar. Disse-lhe que eu preferia vender o negro do que arcar com mais despesas ainda, pois o hospital custa 9.800 réis por mês, a viagem de volta custaria 4.000 e 6.000, e eu ainda perderia, de qualquer forma, o trabalho de um homem para a viagem. Por isso, decidi que seria melhor vendê-lo, e ele me pagou imediatamente o valor, sem dúvida pequeno, de 150.000 réis em prata (1997, p. 37). Emerge desse relato a cenografia das relações inter-raciais no microuniverso da Expedição Langsdorff, conseqüentemente, clarificando o éthos da justa medida. De tal cenografia desponta um sujeito dado figura e tematicamente como o dirigente de uma expedição: grupo composto de cientistas diversos, bem como artistas e ajudantes em geral, que viaja por várias regiões com a finalidade de estudá-las e pesquisá-las, especialmente em caráter científico. Do ponto de vista dos antropônimos, nota-se em todo o diário do naturalista alemão que os negros nunca são representados por nomes, mas sim pela alcunha “negros”. No presente caso, temos esse substantivo precedido do pronome possessivo “meus”. Esse ator do enunciado, o negro, está em oposição ao “Sr. Carlos Eugênio de Sousa Ferraz”, antropônimo esse precedido da função do ator “um capitão de ordenanças da Vila de São João”. Além disso, observa-se, inicialmente, um sujeito benevolente para com “seu” negro comedido pela bouba. Em seguida, temos esse sujeito afetado patemicamente ao relatar: “falei-lhe a respeito do meu pesar”, da minha tristeza, minha mágoa. Na seqüência do relato, parte-se para a comercialização do ator do enunciado, o negro. Isso ocorre porque o enunciador se vê disjunto da performance do negro, ator do enunciado, desempenhando o papel de adjuvante: “eu ainda perderia, de qualquer forma, o trabalho de um homem para a viagem”. Dessa forma, o sujeito visa outro valor, figurativizado por “150.000 réis”. É singularmente 149 importante notar a ancoragem sócio-histórica e ideológica viabilizada pela semântica discursiva. Interessa, no entanto, a imagem de Langsdorff depreendida dessa experiência relatada. Temos um sujeito que mantém firme as rédeas do modo de dizer. Ele poderia, por exemplo, descambar para a insuficiência ao manifestar a sensibilização para com o seu negro, mas não, ele se mantém firme: “falei-lhe a respeito do meu pesar” ou simplesmente vendê-lo sem ao menos levá-lo para o hospital, o que representaria o excesso, um sujeito “duro” (não entendi). A insuficiência e o excesso são desqualificados pelo discurso. Prevalece o éthos de Langsdorff equânime, da justa medida. Temos a coerência de um modo aristocrático de ser no mundo. O sujeito Langsdorff reproduz a sociedade escravocrata sem contestá-la. O mundo está pronto e acabado, conforme uma escultura clássica. Eis outro traço desse éthos. Vejamos agora como se manifesta o éthos de Barão Langsdorff na relação com a figura do silvícola: 19/07 [1824] A raiz da ipecacuanha só pode ser extraída quando as plantas possuem folhas, isto é, em abril, maio, junho e julho. Neste último mês, as plantas têm sementes e as folhas caem. Os índios normalmente passam de 20 a 25 dias na floresta para arrancar a raiz, e cada um colhe cerca de meio quilo por dia ou uma arroba por ano. Quando retornam com as raízes e recebem o dinheiro, começam a beber e só param quando não possuem mais nada. No resto do ano, eles se ocupam com a pescaria e com a caça. Todos eles são batizados e vivem em harmonia com os portugueses. Vão habitualmente à missa aos domingos, porque são induzidos a isso. Aliás, eles não querem saber nem dos portugueses nem da religião; depois da bebedeira, afastam-se para os bosques vizinhos, onde constroem pequenas cabanas e dormem em redes. Os Coropó e Coroado são menos numerosos e são inofensivos, mas são todos ladrões. Os Puri, que moram mais para leste, vizinhos aos Botocudos, são ainda pouco civilizados, com exceção daqueles que moram a três léguas ao norte de Presídio, na vizinhança da propriedade de um certo Lucas (1997, p. 92). 150 Nota-se nesse relato a figura do índio atrelada à natureza, no sentido corrente da palavra. O relato se ancora na apresentação das características da ipecacuanha22, por meio de um fazer taxionômico, assim como da condição do índio. Temos então uma debreagem enunciva actorial, que garante o efeito de objetividade e de distanciamento de quem diz em relação ao que é dito, tal como compete o discurso científico. Por meio do alto grau de iconização na construção dos atores e do espaço, pode-se depreender o tema das relações interculturais entre os europeus, especificamente entre os portugueses e os índios, sendo os valores daqueles, ditos “civilizados”, sobrepostos aos destes, considerados como “selvagens”. Nota-se, enfim, construída no diário, a ênfase à degradação do silvícola brasileiro. Mirar o outro reafirma o eu nos vértices da alteridade. Desse mirar emerge o éthos de Langsdorff, dado segundo os valores da cientificidade e da elitização do olhar. Langsdorff, nesse excerto, repudia e faz repudiar o indígena, como aquele que só vai à missa porque é induzido; como aquele que esbanja todo o dinheiro que ganha; como ladrões, por fim. Não se trata mais de ver no índio um modelo do homem adâmico, do homem primordial. O éthos dos primeiros viajantes é negado no discurso langsdorffiano. O éthos do cientista-viajante, de Langsdorff, constitui-se por um outro tom de voz, por um outro corpo, por um outro caráter, por uma outra forma de habitar e explorar o mundo, enfim, um éthos da justa medida, que não tem pejo de avaliar negativamente a degenerescência de quem rouba e é beberrão. Assim, essas características podem ser notadas no modo de dizer, na enunciação: não há no relato supramencionado, bem como na totalidade discursiva, palavras excessivas, adjetivos pomposos, de rodeios injustificáveis. Só se afirma aquilo que o enunciador acredita ter visto com seus próprios olhos. No entanto, para produzir o efeito de legitimidade, o enunciador deve, entre outras coisas, assumir uma distância em relação ao objeto focalizado. Temos, portanto, um sujeito que, filiado a determinadas formações ideológicas, responde afirmativamente a um grupo 22 “Refere-se a Caephaelis ipecacuanha (Rubiaceae), uma espécie que habita o sub-bosque das matas do Sudeste brasileiro; possui um alcalóide, a emetina, usada como forte vomitivo (quando da ingestão de substâncias tóxicas), contra tosse, como expectorante e como ambicida. (J.R.S)” (1997, p. 378). 151 social, confirmando suas crenças, aspirações e ideais. Tudo, vale ressaltar, pelo viés da justa medida. Langsdorff e a expedição científica Como já se disse, a Expedição Langsdorff era composta por aproximadamente 39 homens, tendo como chefe da expedição o alemão Georg Heinrich von Langsdorff. Figueirôa ressalta que o diário do Barão Langsdorff “é ainda revelador de um cotidiano das expedições, tantas vezes omisso quando da publicação dos livros de viagens e, mais ainda, dos textos científicos” (1997, p. XXXIX). Mantida a perspectiva teórica da análise semiótica dos textos, podemos verificar como se emparelha o que se diz sobre o diário com o que o que o próprio diário diz. Tomemos então alguns relatos para observar como se mantém o éthos de Langsdorff no exercício da administração de sua expedição científica. No relato do dia 01 de novembro de 1824, após descrever o Dia de Todos os Santos: “Um dia marcante na História portuguesa, ou seja, dia do terremoto de Lisboa, em 1756” (1997, p. 205), a missa em comemoração a tal dia e informações a respeito da expedição, temos a seguinte informação: Hoje à tarde, depois de pagar o ordenado devido aos meus companheiros de viagem – como de costume, 12.000 mensais para cada um – achei necessário reembolsar o Sr. Ménétriès pelas despesas com a compra de material, com a ressalva de que, de acordo com o contrato, ele teria que entregar à expedição o primeiro e o segundo exemplar, podendo conservar o terceiro. Mas ele se recusou. Como nossa discussão se tornava mais acalorada, o Sr. Rugendas se intrometeu para defender Ménétriès, batendo com o punho fechado em cima da mesa, pretendendo, com isso, dar mais força ao seu discurso, tudo isso na presença do Padre João Marques (1997, p. 207). Esclarecemos que, dentro do contexto do diário, o Sr. Ménétriès tinha a incumbência de “entregar à expedição o primeiro e o segundo exemplar, podendo conservar o terceiro. Mas ele se recusou”. Temos aí a tematização da convivência, da administração, da relação entre os membros da expedição, muitas vezes omitida 152 em relação a outros viajantes e seus relatos. Na instância narrativa, principalmente, o ator Rugendas desempenha o papel de anti-sujeito, o que “está evidentemente ligado à estrutura polêmica dos discursos narrativos” (Greimas e Courtés, s.d., p. 22). Mas fica ressaltado o mesmo olhar detalhista do ator da enunciação. Acompanha esse olhar o tom equilibrado da voz, depreensível nesse segmento do encadeamento temporal: “Hoje à tarde, depois de pagar o ordenado”. O mesmo equilíbrio é observado na figurativização de alto grau de iconicidade, o que se representa pela indicação do valor numérico pago: “12.000 mensais para cada um”. Vejamos os relatos posteriores que dão destaque a esse desentendimento: 01/11[1824] Com toda discrição, chamei-lhe a atenção para o seu comportamento, fazendo-lhe ver que ele não se encontrava numa pousada, mas em companhia de gente civilizada. “Onde o senhor está, respondeu ele, não existe convivência civilizada.” E continuou: “Para mim não importa se o senhor é cavaleiro da Ordem de um Rei ou de um Império da Rússia, pois vou-lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro!” “Lembre-se bem, não esqueça o que o senhor disse na presença dos Srs. Riedel, Rubtsov e Ménétriès” – foi tudo o que lhe respondi. Assim terminou a nossa discussão, cujo tom já estava tão alto por causa dos socos na mesa que invadiu a casa inteira (1997, p. 208). Salta à vista a cenografia narrada do desentendimento na Expedição Langsdorff, o que implica, agora como nunca, um tom de voz sério, que não se eleva, um corpo ereto, um caráter equilibrado, equânime, enfim, um éthos da justa medida, que se apresenta como quem tudo vê e também como aquele que a nada dobra, mesmo se recebe a designação ofensiva de “cachorro”. Mesmo a referência ao confronto entre atores dispensa o tom de dor ou lamento. Temos um éthos oposto ao lamento. O desentendimento relatado poderia ser apresentado de diversas formas ou simplesmente omitido, como salientou Figueirôa. Há, portanto, diferentes formas de relatar uma experiência, um estilo de relatar, lembrando que, de acordo com Discini, “estilo é efeito de sentido e, portanto, uma construção do discurso” (2003, p. 59). Verificamos então como é sustentado, discursivamente, o éthos de Langsdorff. 153 “Hoje à tarde, depois de pagar o ordenado devido aos meus companheiros de viagem – como de costume, 12.000 mensais para cada um – achei necessário reembolsar o Sr. Ménétriès”. Vemos aí uma série de predicados verbais que lexicalizam o papel do chefe da expedição: “depois de pagar”, “achei necessário reembolsar” e “ele teria de entregar à expedição”. Dessa forma, vale observar um tom que se firma numa autoridade consolidada, o que confirma, conseqüentemente, o corpo vigoroso, que mantém as rédeas firmes, no sentido de comandar, controlar, governar, e, principalmente, manter e assegurar a ordem de uma expedição científica. Juntamente com o comando da expedição está o comando do próprio ato de narrar. Langsdorff é um narrador que, longe de se perder no ato de narrar, mantém-no bem preso nas rédeas da enunciação, o que se depreende da clareza e da ilusão de fidelidade em relação à realidade. Esse relato se ancora num narrador que participa dos eventos relatados e, por isso, diz eu: “meus companheiros de viagem” e “achei necessário reembolsar”. Temos então uma debreagem enunciativa de primeiro grau, que garante o efeito de subjetividade e de aproximação de quem diz em relação ao que é dito. Tais efeitos de sentido são sustentados estrategicamente até o momento em que Ménétriès, no papel de destinatário, recusa os valores comunicados pelo destinador, chefe da expedição: “Como nossa discussão se tornava mais acalorada...”. A partir disso, temos um jogo debreativo manipulado como efeito de sentido. Por meio de uma oração subordinada adverbial causal, rompe-se com a debreagem enunciativa, conseqüentemente com o efeito de subjetividade e aproximação, e apagam-se as marcas da enunciação no enunciado, surgindo, portanto, uma debreagem enunciva, que garante o efeito de objetividade e de distanciamento justamente na construção do anti-sujeito: “...o Sr. Rugendas se intrometeu para defender Ménétriès, batendo com o punho fechado em cima da mesa, pretendendo, com isso, dar mais força ao seu discurso, tudo isso na presença do Padre João Marques.” Pode-se dizer que debrear enuncivamente o ele, o outro, de quem se fala, o anti-sujeito no presente caso, reafirma o eu pressuposto a todo enunciado. Esse jogo debreativo está presente em todo o diário, evidenciando um modo de dizer que remete a um modo de ser, ao estilo de Langsdorff de construir seu enunciado, relatando cenas que ora remetem à participação do ator Langsdorff, ora o colocam como mero espectador. É interessante observar também a importância dada à proxêmica ou ao movimento do corpo no espaço: “o Sr. Rugendas se intrometeu para defender 154 Ménétriès, batendo com o punho fechado em cima da mesa, pretendendo, com isso, dar mais força ao seu discurso”. Essa imagem de Rugendas, o seu tom de voz e todas as características físicas e psíquicas apresentadas na construção desse ator fazem refletir, por contraste, uma voz com tom próprio, um tom de voz sério, que não grita. O corpo, como nunca, é ereto, de gesticulação calculada, diferentemente de Rugendas, que é agressivo. O caráter de Langsdorff confirma-se como equilibrado, equânime, em oposição ao caráter descontrolado do ator do enunciado, o antisujeito, o pintor Rugendas. Recorrendo a Maingueneau, vemos que O universo de sentido propiciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos como pelas “idéias” que transmite; na realidade, essas idéias se apresentam por intermédio de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida (2001, p. 99, grifos do autor). A maneira Langsdorff de dizer, de povoar o enunciado de pessoas, reverbera uma maneira de ser. Não é gratuita a presença do Padre João Marques no relato. Esse ator consubstancia um corpo e um caráter que derivam de um conjunto de representações estereotipadas que circulam em domínios sociais diversos. Assim, Langsdorff e o Padre João Marques comungam de uma mesma maneira de ser, no que diz respeito a relações interpessoais, dadas na ordem não do excesso e da falta, como é o caso do anti-sujeito, mas sim na ordem do equilíbrio, da justa medida. No confronto com o anti-sujeito, por meio de uma debreagem enunciativa, o narrador, que diz eu: “chamei-lhe a atenção”, tenta amenizar o clima da briga, ponderando que Rugendas se encontrava “em companhia de gente civilizada”, que se opõe a pessoas incivilizadas, grosseiras. Fiorin nos ajuda a notar que “Todas as apreciações moralizantes do texto são de responsabilidade de uma instância inscrita no discurso, mas que não diz eu” (2002, p. 66, grifo do autor). Assim, vemos que as normas sociais são consolidadas e não desestabilizadas. Os valores sociais predominam sobre a percepção individual. Dessa forma, essa instância de que nos fala Fiorin, representada pelo ator da enunciação, emerge com um éthos da ordem do equilíbrio, visto que, na enunciação o sentido permanece fixo, estável, não há abalos. 155 De modo a consubstanciar esse éthos, o enunciador recorre à voz do outro, do anti-sujeito, como se vê: “Onde o senhor está, respondeu ele, não existe convivência civilizada.” E continuou: “Para mim não importa se o senhor é cavaleiro da Ordem de um Rei ou de um Império da Rússia, pois vou-lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro!” (1997, 208). Temos nesse caso uma debreagem de segundo grau dita enunciativa, pois nota-se a presença de um eu e de um tu. Trata-se de um discurso direto que se propõe reproduzir a fala de Rugendas, exatamente como ela foi proferida. Como diz Fiorin, “A debreagem interna serve, em geral, para criar um efeito de sentido de realidade, pois parece que a própria personagem é quem toma a palavra e, assim, o que ouvimos é exatamente o que ela disse” (2002, p. 46). O discurso citado é viabilizado por meio do discurso direto que, segundo Maingueneau (2001, p. 140), não se satisfaz em eximir o enunciador da responsabilidade sobre o que está sendo dito, como ainda simula reproduzir as falas citadas e se caracteriza por dissociar claramente as duas instâncias da enunciação, a saber, a do discurso citante e a do discurso citado. São as aspas que marcam a fronteira entre o discurso citante e o discurso citado no relato em questão. Observa-se, portanto, que o enunciador incorpora polemicamente o discurso de Rugendas, o anti-sujeito. Não abafando a polêmica, o enunciador reforça seu éthos de equilíbrio, da justa medida, pois não se vê nas escolhas lexicais, de responsabilidade de Langsdorff, um nivelamento em relação às palavras do outrem. Aliás, “Lembre-se bem, não esqueça o que o senhor disse na presença dos Srs. Riedel, Rubtsov e Ménétriès” – foi tudo o que lhe respondi. Assim terminou a nossa discussão, cujo tom já estava tão alto por causa dos socos na mesa que invadiu a casa inteira (1997, p. 208). De acordo com as especificidades do gênero diário, o mesmo ator desempenha o papel de eu narrador e eu personagem. Temos nessa passagem do relato em análise um caso exemplar dessas duas instâncias que se apresentam ora 156 sincreticamente ora cada uma exercendo um papel. Com o objetivo de criar o efeito de sentido de realidade, o narrador dá voz a sua própria voz, por meio de uma debreagem de segundo grau enunciativa. Não só as próprias palavras do narrador, como também um determinado tom de voz, um corpo, um caráter e um éthos de equilíbrio, de justa medida (do ator do enunciado em sincretismo com o ator da enunciação) se opõem ao discurso citado de Rugendas. Dessa forma, temos o éthos de Langsdorff demonstrado, tanto no dito quanto no modo de dizer, segundo a equanimidade: constância, igualdade de temperamento, de ânimo, em qualquer circunstância. Langsdorff e História Natural Já que, a partir de uma cenografia se verifica um ator qualificado por um tom de voz, por um corpo, por um caráter, preenchido como figura e apoiado num feixe de papéis temáticos, recorremos à Encyclopédie de Diderot, no que diz respeito à definição de naturalista: NATURALISTE, s.m. Se dit d’une personne qui a étudié la nature, & qui est versée dans la connaissance des choses naturelles, particulièrement de ce qui concerne les métaux, les minéraux, les pierres, les végétaux, & les animaux (1980, lettres M-Z, p. 49). Observa-se que o trabalho a que se volta um naturalista engloba o que se conhece sobre história natural, conceito esse que abrange estudos de botânica, zoologia, geologia, astronomia, entre outros. Esta passagem é emblemática no que se refere ao conceito em questão: “Nosso caminho cortou campos, prados e morros, onde pouco pudemos coletar para a História Natural” (1997, p. 146). Pode-se dizer que a História Natural é o principal objeto de valor que coloca o sujeito à procura de: astros, ar, animais, vegetais e minerais, enfim, um conceito tão amplo e extenso como a natureza. É, como aponta Discini, “o objeto de valor, com o qual o sujeito entra em junção e, sob as luzes do discurso, tal objeto apresenta-se definitivamente historicizado e ideologizado” (2003, p. 39). Em vista disso, vemos no pequeno fragmento do diário de Langsdorff supramencionado um sujeito assumidamente presente no próprio relato, e que, em 157 principio, define o lugar de onde fala, legitimado, aliás, pelo próprio gênero diário, que faz prever um narrador explicitado por meio de pronomes eu, nós. Assim, as seguintes ocorrências, “Nosso caminho”, “pouco [nós] pudemos” confirmam um nós exclusivo: eu + eles, os membros da expedição, o que faz ratificar um actantenaturalista- coletivo. É da relação que se estabelece com esse objeto de valor, tematizado como história natural, que também poderemos deslindar o éthos do ator da enunciação, Langsdorff, o naturalista viajante. Iniciando pelo bestiário brasílico, podemos retomar rapidamente a emblemática cena da caçada ao tamanduá-bandeira, deslindada no segundo capítulo dessa dissertação. Tomando o relato de Anchieta e de Langsdorff referentes ao tamanduá, vemos éthe divergentes. O éthos de Anchieta é dado na ordem do excesso e da falta. Pode-se dizer que o éthos de Anchieta é do maravilhamento. O olhar do enunciador atribui traços esdrúxulos ao que é novo. Em oposição a esse éthos, temos o de Langsdorff, um éthos da cientificidade. Em Langsdorff há menos intensidade de pejoração, menor repulsa, menor disforização do mundo novo, menor impacto emocional. O éthos de Langsdorff é da ordem da justa medida, do equilíbrio. Retomemos, por exemplo, o relato datado de 25 de novembro de 1824: Medidas do tamanduá-bandeira (Myrmecophaga inbata L.): Do focinho à orelha – 1’2’’3’”. Da orelha à raiz do rabo – 3’1”6’”. Comprimento do rabo – 3’. Altura dos ombros à pata dianteira – 2’2”. Altura das patas traseiras ao quadril – 2’1”. Circunferência do corpo – 2’8”. Comprimento das patas dianteiras no peito até a raiz do rabo – 2’1”. Circunferência e largura do rabo no meio – 1’10”. Língua – 3’ de comprimento. Língua fora da boca – 1’3” (1997, p., 249-250). A partir das medidas do tamanduá confirma-se um modo de dizer próprio, o que ressalta uma maneira de ser de um sujeito ávido por conhecimento. Depreende158 se, dessa forma, um tom de voz baixo, um tom daquele que pesquisa. Esse tom, segundo Maingueneau, “permite construir uma representação do corpo do enunciador” (2001, p. 98). No presente caso, esse corpo se mostra ágil, ereto, que nunca perde a postura. As mãos estão em constante movimentação, pois obedecem ao olhar que tudo vê e nada deixa passar, um olhar que visa às partes e encontra no todo o triunfo da pesquisa. Depreende-se um caráter ávido por conhecimento, disciplinado, organizado e objetivo. A nomenclatura científica em itálico, a performance do sujeito ao dissecar, minuciosamente, o animal, a representação numérica das medidas, entre outras marcas discursivas são suficientes para delinear o éthos da cientificidade, pautado pelo equilíbrio. Esse mesmo modo de dizer, que remete a um modo de ser, está presente em tudo o que diz respeito à História Natural. Além disso, esse modo de dizer é condicionado pelo conjunto de regras que caracterizam a formação discursiva e ideológica da ciência da época da expedição, ou seja, do século XIX. Enfim, pode-se dizer que os éthe do século XIX de modo geral, negam os éthe dos primeiros viajantes que aportaram no Brasil. Langsdorff e o espaço Escolhemos, para demonstrar um pouco mais a relação entre espaço e o éthos Langsdorff, o caderno nº 3, que vai de 29 de junho a 10 de julho de 1824. Teremos em mãos dois relatos desse caderno. O primeiro diz respeito a um relato que engloba 3 dias, ou seja, do dia 3 ao dia 5. Segue o primeiro desses relatos: 03, 04, 05/07 [1824] Geou de manhã e fez + 2ºR. Muito nevoeiro na Fazenda do Pombal. No dia 3, mandei carregar todas as mulas, o melhor que pude, e acompanhei minhas mulas até a Fazenda do Capoteiro, três quartos de légua daqui (Pombal), onde os Srs. Riedel, Rubtsov e Rugendas estavam esperando por mim e pelo novo tropeiro (1997, p. 51-52). Vale salientar inicialmente a explicitação da data, figurativizada por meio de cronônimos que “servem para estabelecer uma ancoragem histórica com vistas a constituir o simulacro de um referente externo e a produzir o efeito de sentido de realidade” (Greimas e Courtés, s.d., p. 92). A datação diz respeito à coerção 159 genérica, da ordem da estrutura, no entanto, o modo de datar, de se relacionar com esse elemento estrutural remete à cenografia da “cotidianeidade”, delineando assim um determinado éthos. A atenção dada à regularidade das anotações no diário de Langsdorff é uma recorrência que espelha um dos traços de caráter do enunciador, como um sujeito normativo, que encontra no relatar cotidiano uma forma de expor o seu estilo de habitar e de explorar o mundo. Enfim, um traço de caráter típico de um “pesquisador e colecionador naturalista”, segundo palavras do próprio Langsdorff (1997, p. 347). No presente relato, no entanto, vemos que a regularidade não é cumprida, o que leva o enunciador a representar crononimamente o acúmulo dos dias. Como efeito de sentido, temos um outro traço de caráter do enunciadorpesquisador, qual seja de um sujeito respeitoso para com o enunciatário. Assim, o sujeito da enunciação, bipartido entre enunciador e enunciatário, cria para si o simulacro do sujeito disciplinado que, mesmo no impedimento da continuidade e do fluxo procura respeito tanto para o seu enunciado e, portanto, para si mesmo, quanto para o enunciatário. Nota-se que, em meio à descrição minuciosa do percurso topológico, chegase à fazenda do “Sr. Capitão Antônio Joaquim, que não estava em casa – há vários meses sua mulher administra a propriedade.” E continua: “Na fazenda do Capitão Antônio Joaquim da Costa, fomos maravilhosamente recebidos por sua mulher. Ela mandou preparar-nos um farto almoço e, à tarde, contou-nos sobre sua criação de porcos.” (1997, p. 53) Quanto à criação de porcos, essa será o fim último visado, sustenta o objeto-valor modal querer-saber sobre a criação de porcos: “A atividade comercial principal desta fazenda consiste na criação de porcos e na plantação de milho, esta última necessariamente ligada à primeira” (1997, p. 53). À semelhança de outros objetos-valor ressaltados dos diários do naturalista alemão, a criação dos porcos passará por uma minuciosa identificação, classificação, hierarquização e assim por diante, demonstrando um modo de dizer que reflete o éthos do observador científico. Os excertos seguintes demonstram essa maneira de dizer: “O proprietário possui cerca de 300 porcos, divididos em quatro grupos”; “Para a engorda preferem os porcos chineses (aqui chamados canastras) a todos os outros”; “1) As porcas-mães e os leitões andam livremente, o dia inteiro, no campo”; “Em geral, há aqui 40 porcas-mães. Para esse número são suficientes três machos. Se forem mais do que isso, acabam brigando entre si, às vezes até a morte” (1997, p.54-55). 160 Além disso, observa-se um fazer comparativo com vistas a estabelecer as reais qualidades da Fazenda da Srª D. Domingas ou do Capitão Antônio Joaquim, seu marido: “NB. Na Fazenda do Bom Retiro, que é administrada pelos filhos do Capitão-Mor, não existe essa mesma organização. [...]”; “Não há tanta organização na criação de porcos na propriedade do Capitão-Mor, embora ele também mande grande quantidade de banha para o Rio de Janeiro. [...]”; “Em Bom Retiro, os porcos de engorda recebem, somente duas vezes fubá, isto é, farinha de milho, misturado com água quente, às vezes, milho cozido” (1997, p. 56). A comparação entre as fazendas, visto que o sentido nasce da relação com o outro modo de organizar e criar porcos, ecoa um tom sério e dedicado ao relato, confirmando o éthos da cientificidade. Ainda se baseando no que se refere à descrição da criação dos porcos, o enunciador apresenta a seguinte representação da fazenda: (1997, p. 57) Sem nenhuma indicação no relato em questão, surge essa representação 161 espacial. Na outra representação sobre a mesma fazenda que veremos adiante, temos a seguinte indicação: “planta da chácara”. Quer se trate de um mapa, de uma carta ou de uma planta, o que importa é que essa representação da realidade, do mundo natural, não é a própria realidade. De acordo como é elaborada, a representação ilumina determinados fatos e escondem outros, produzindo uma certa sensação e uma imagem particular do território cartografado. Dessa forma, uma representação cartográfica é, antes de tudo, a concretização de um tema. No presente caso, temos um tema socioeconômico - e seu desenvolvimento depende da forma pela qual o enunciadorcartógrafo define o que é significante e a maneira pela qual sua escala de valores se transforma num enunciado mais explícito ou menos. O cartógrafo é um papel temático exercido por Langsdorff ao longo dessa narração. Vê-se, portanto, que o sujeito enunciador não se contenta com uma descrição pormenorizada, isso não basta. É preciso transformar o referente do mundo natural num encadeado processo de sistematização. Assim, o trinômio forma/localização/significado vai definir o olhar e o modo de presença desse enunciador. Conforme Bertrand (2003, p.113) “não há enunciado, qualquer que seja sua dimensão, que não esteja submetido à orientação de um ponto de vista.” Crê-se, dessa forma, que além da questão do tema, o conceito de ponto de vista, juntamente com os conceitos específicos como, por exemplo, focalização, perspectiva e observador são de fundamental importância para as formas de representar a fazenda, identificando os procedimentos de reprodução de porcos da propriedade de D. Domingas, bem como a dinâmica social entre pessoas: casa dos negros, residência. Nota-se que o modo de presença do enunciador será depreendido do discurso por meio da posição em que se estabelece o observador delegado, bem como pelo modo que o narrador planifica, organiza e orienta seus conteúdos. Como se vê, trata-se de um enunciado descritivo, cuja semântica é viabilizada por meio de figuras do mundo natural, explorando ao máximo a referencialização que acaba por produzir o efeito de iconicidade. O que interessa efetivamente é que esse mapa, carta ou planta, é produzido por um observador que, por meio de sua atividade perceptiva, configura-se como um “leitor” do espaço topológico, aprofundando um modo próprio de presença no mundo. É necessário, portanto, definir a posição desse sujeito cognitivo delegado pelo 162 enunciador, chamado observador, em relação ao objeto observado. No texto em análise, a atividade perceptiva desse sujeito não é explícita, ou seja, não há marcas de pessoa, predicados de percepção, entre outras formas de presença enunciativa explícitas. Assim, faz-se necessário perscrutar “a disposição dos objetos, pelo modo de sua seleção, pela estruturação das diferentes partes em relação à totalidade visada” (Bertrand, 2003, p. 126). Antes de o fazermos, importa, porém, depreender a posição que esse observador delegado pelo enunciador ocupa. Em primeiro lugar, para representar a chácara de D. Domingas, o enunciadorcartógrafo o fez por meio de um ponto de vista que indica um olhar que vem do alto, vista esta ortogonal superior, tanto numa quanto noutra representação. No entanto, esse posicionamento vai variar de acordo com a escolha do que se quer demonstrar. Assim, na figura supramencionada, observa-se uma focalização de vôo rasante, um olhar de foco baixo e de extensão ampla. Em função desse ponto de vista, a disposição dos objetos se faz de forma quantitativa. Ou seja: no interior dos limites da propriedade estão dispostos minuciosamente todos os detalhes topográficos desse espaço, visando obcecadamente a magnitude da criação dos porcos. O interesse não é sobre o campo e a entrada, os quais não são delimitados, onde começa um e termina o outro, muito menos a delimitação das passagens. Em decorrência disso, privilegiase, por meio da seleção e estruturação dos objetos, a criação dos porcos, a qual é representada pelo “Estábulo dos porcos de engorda durante o dia”, pelo “Pátio para porcos de engorda durante o dia”, pelo “Estábulo para porcas-mães com leitões e para secagem do milho”, pelo “Pátio para porcos e galinhas” e pelo “Pátio para cevagem de porcos usado também para a noite”. Além disso, pode-se notar que, por meio da disposição, seleção e estruturação das figuras no enunciado, o olhar do enunciatário é convidado a deslocar-se pelo fluxo de circulação, principalmente no que diz respeito à criação dos porcos. Dessa forma, os objetos são estabelecidos de acordo com o dia e a noite: “Estábulo para os porcos de engorda durante o dia” e “Pátio para cevagem de porcos usado também para a noite”. Esse estabelecimento condiciona uma movimentação, um trânsito, uma errância tanto dos animais quanto do olhar do observador que convida o enunciatário a acompanhá-lo. Depreende-se dessa representação da fazenda um sujeito que busca compreender o mundo em que se encontra, que relata um saber englobante do mundo explorado. Esse éthos é 163 corroborado também pela escolha do tema a que se volta o enunciador. Assim, para finalizar o relato datado de 03, 04 e 05 de julho, o enunciador apresenta detalhadamente as doenças às quais os porcos são vulneráveis: “De vez em quando, os porcos novos têm sarna 1) de leve e pequena ou 2) grande e purulenta. Esta é às vezes fatal, aquela não” (1997, p. 57). O outro relato também demonstra o trânsito desse enunciador, portanto, uma nova imagem se vislumbra, um novo espaço, um novo tópos. A seguinte passagem ilustra o que acabou de ser dito: 10/07 [1824] Daqui ou da paróquia que fica a meia légua daqui, havia dois caminhos para Descoberta Nova (1997, p. 68). O dêitico espacial “Daqui” refere-se à “casa do Alferes Vogado, a Casa de Vogado” nas proximidades da Aldeia da Pomba, em Minas Gerais. Tal localização só é possível recorrendo ao relato precedente, datado de 09/07. Assim, “Daqui”, espaço do actante do enunciado, pretendia-se alcançar Descoberta Nova. Para tanto, havia dois caminhos: O primeiro passava pela margem esquerda do rio da Pomba, que atravessamos mais abaixo, de canoa, onde os animais tiveram que atravessar a nado. Esse caminho é incômodo para animais de carga, na medida em que, após atravessar uma ponte, sobre a margem direita do Pomba, perto da capela, eles podem seguir seu caminho livremente, que, no entanto, segundo nos asseguraram, é muito pior (1997, p. 69). A seguir, por intermédio de informações de moradores locais, estabelecem-se tabelas itinerárias a respeito do percurso até Vila Rica, como se vê: 164 Percursos Léguas Da aldeia para São José de Chopotó 3 de lá para Padre José Pinto 3 de lá para Piratininga 3 de lá para Catas Altas 1 ½ de lá para Espora 3 de lá para Arraial Lami 5 de lá para Chapada 5 de lá para Vila Rica 2 ½ (1997, p. 69) É justamente à luz dessa tabela que se compreende o trânsito do enunciador dado pelo eixo da horizontalidade, por um olhar que percorre o relevo mineiro ponto a ponto. Detectam-se nessa tabela oito percursos, todos com um ponto de partida e um ponto de chegada, estipulados por um sujeito observador. Com o ponto de partida temos a preposição “de”, a qual, de acordo com postulado de José Luiz Fiorin, indica o ponto de partida de um movimento. Em seguida, especifica-se o espaço tópico, como no primeiro percurso “aldeia”, e por meio da preposição “para”, a qual marca “o ponto de chegada de um movimento e também que se considera que ele será atingido” (Fiorin, 2002, p. 279) como São José de Chopotó. Nos demais percursos, surge como ponto de partida, acompanhado da preposição “de”, o advérbio “lá”, demonstrando um espaço fora do lugar da cena enunciativa e o ponto que se pretende alcançar. Demonstra-se, dessa forma, como ocorre o deslocamento sob a visão do sujeito observador, o qual remete, por sua vez, ao enunciador, que explora de modo próprio o espaço da viagem. Tais percursos dados em forma de tabela, que são constantes no presente diário, enquanto estratégias enunciativas, reverberam um sujeito de caráter “objetivo”, que busca conhecer o mundo que o circunda. Seu corpo altivo viabiliza uma visão periférica do espaço a ser explorado, manifestando, dessa forma, um sujeito que crê poder-fazer e ser um viajanteexplorador. No que diz respeito ao plano da expressão, observa-se a simetria da tabela, a divisão das linhas implícitas, que procuram facilitar a leitura, produzindo um efeito harmonioso. Essas recorrências tanto do plano do conteúdo quanto do plano 165 da expressão explicitam um sujeito dado pelo simulacro da certeza e da organização. Além disso, o que torna ainda mais singular o relato do dia 10 é que, sendo a última folha do Caderno nº 4, há uma representação da fazenda de D. Domingas Eufrásia. Tal representação agora recebe uma denominação: “planta da chácara”: (1997, p. 70) Duas representações, duas plantas, dois temas e uma única fazenda. Diferentemente da primeira representação da fazenda, nessa as indicações se dão de forma diferente. Inicialmente, observa-se um olhar de um patamar superior, de onde descortina-se um panorama amplo. Trata-se de um olhar de foco alto e de extensão ampla. Esse olhar, além de delimitar o objeto, a propriedade, delimita também as fronteiras dos objetos que estão no interior dos limites da fazenda de D. Domingas. Assim, o campo e a entrada, que antes estavam situados num mesmo local, agora 166 ganham suas devidas delimitações, bem como todo o restante da representação. Lá de cima, de onde vem esse olhar, já não se vêem os detalhes mínimos, como o cocho de ração, a grama. A casa dos negros, que na representação anterior se situava no canto inferior direito, agora é localizada de outra forma, ou seja, localiza-se no espaço superior ao jardim, estabelecendo uma nova fronteira. Além disso, a casa dos negros passa, curiosamente, a receber a denominação de “residência dos negros”. É como se esse ponto de vista elevado possibilitasse ao observador uma melhor dimensão dos objetos, isto é, pode-se pensar em casa como uma construção simples, de quatro paredes e assim por diante; em contrapartida, a residência seria uma habitação mais complexa, com diversos cômodos, etc. Um outro aspecto que merece atenção é que esse olhar de tão alto parece delimitar até o nome que se dá à propriedade, ou seja, de fazenda passa a ser chamada de “chácara”, nome que se dá a uma propriedade de pequena dimensão em relação à fazenda, que é uma grande propriedade rural. O fluxo de circulação agora é estabelecido precisamente: sabe-se realmente onde se entra, como se faz para ir até a residência principal, onde se localiza o jardim, entre outras direções. Privilegia-se agora não mais o fluxo dos animais, dá-se atenção ao fluxo de pessoas. A partir dessas clarificações, foi possível descortinar, por meio de uma análise contrastiva entre as representações topológicas da propriedade de D. Domingas, a posição desse sujeito cognitivo, a quem chamam de observador. À luz dessas indicações, é lícito concluir que, mesmo na ausência de quaisquer vestígios deixados no enunciado, tais como marcas de pessoa, predicados de percepção, entre outras formas de presença enunciativa explícitas, é possível depreender a posição desse observador, ora próxima, ora distante, por meio da disposição, seleção e estruturação das figuras do enunciado. Nesse embate, esses recursos se mostram legítimos para afirmar a posição desse observador, que se dá no eixo da verticalidade. Valendo-se das duas representações da fazenda de D. Domingas, pode-se dizer que: 167 A espacialização, assim encarada - isto é, como processo de presentificação -, ultrapassa, em todo caso, os limites dos processos técnicos chamados de “colocação em discurso” pelos quais o escritor (realista) instala na superfície do texto, com a ajuda de elementos figurativos bem escolhidos, o “cenário” da ação cujos fios estão se atando. Para nós, a “espacialização”, operação semiótica in vivo, envolve o próprio regime de identidade dos sujeitos que, através dela, se se pode assim dizer, vêm ao mundo (Landowski, 2002, p. 70). Em virtude disso, a apreensão dos elementos relacionados ao ponto de vista do observador permite também perceber a imagem do enunciador que está por trás de tudo isso, a sua identidade. Constata-se que um modo recorrente de dizer remete a um modo de ser e por meio dos mecanismos de construção do sentido do texto, depreende-se o corpo, o caráter, o tom, o éthos do discurso, isto é, a imagem do enunciador ou o éthos do enunciador, que, no diário em análise, revela-se de uma personalidade centrada, ereta, sensata, que adota um éthos distanciado, que constrói para si um simulacro da justa medida, expondo e avaliando com serenidade os fatos que o circundam. Na realidade, trata-se de um éthos pautado pela cientificidade que cotidianamente explora, investiga, que tem o desejo de “olhar bem” o mundo circundante. O que se disse até então diz respeito predominantemente ao plano do conteúdo (significado). Resta estudar o plano da expressão (significante), pois como ressalta Jean Marie Floch (2001, p. 11-12) “Só há expressão se houver conteúdo, e não há conteúdo se não houver expressão”. Da fusão de ambos os níveis é produzida, por semiosis, a significação. O texto se constrói, portanto, na articulação entre esses dois planos. Retomando distinções oriundas de Floch, o precursor dos estudos semióticos visuais considera que existem três sistemas de linguagem, denominados sistemas simbólicos, os semióticos e os semi-simbólicos. Nos sistemas simbólicos os “dois planos estão em conformidade total: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente um – elemento do conteúdo” e, assim, não faz sentido distinguirmos em uma análise o plano do conteúdo e o da expressão, “visto que têm a mesma forma”, 168 como ocorre, por exemplo, com os sinais de trânsito, com a foice e martelo cruzados, com a cruz cristã, entre outros. Em um outro nível, nos sistemas semióticos não existe conformidade entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, dessa forma “é preciso distinguir e estudar separadamente expressão e conteúdo”. Por fim, os sistemas semi-simbólicos “se definem pela conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da expressão e categorias do conteúdo” que podem ser homologadas entre si. As plantas da fazenda de D. Domingas Eufrásia são formadas pela linguagem verbal e pela linguagem não-verbal, a que chamaremos aqui de linguagem geométrica. Isso nos leva ao conceito de textos sincréticos, ou seja, “em que uma unidade formal de sentido integra diferentes linguagens” (Teixeira, 2004, p. 2). À luz dessas observações, o olhar analítico recairá sobre o plano da expressão das plantas supramencionadas. O primeiro passo, ao analisar o plano da expressão, é compreender de que forma nossos sentidos são mobilizados. Para as semióticas visuais podemos reconhecer no plano da expressão os formantes figurativos e os formantes plásticos. Aqueles podem ser reconhecidos por figuras do mundo, com as quais iremos buscar um sentido, um conceito para elas, no plano do conteúdo; enquanto estes, os formantes plásticos, são aqueles relacionados às estratégias específicas do plano de expressão para percepção do sensível e podem ser divididos em três categorias: a categoria topológica, a categoria cromática e a categoria eidética. Para o presente caso, cremos, cabe ao olhar analítico se debruçar sobre os formantes plásticos arrolados acima. Dessa forma os efeitos de sentido podem ser percebidos ao perscrutar essas categorias, segundo a forma que elas organizam no plano da expressão. O plano da expressão é o arranjo material de um conteúdo, a forma de manifestar, por meio de uma linguagem, a representação de uma área geográfica de extensão suficientemente restrita. Quaisquer representações cartográficas, tais como um mapa, uma carta, uma planta são feitas no plano da expressão. Iniciar-seá o estudo desse plano por meio da categoria topológica, ou melhor, a topografia. Observa-se um quadrado equilibrado que apresenta claramente os seus limites. Essa característica se dá nas duas representações. Esses limites estabelecidos assemelham-se às molduras de um quadro, moldura essa que, 169 conforme Platão e Fiorin, “cumpriu a função de isolá-los do entorno, visando a estabelecer com nitidez um campo para o olhar, ou seja, um espaço de significação” (1997, p. 17). Dessa forma, poderíamos pensar nos limites estabelecidos como sendo da ordem da /descontinuidade/. O campo para olhar, nas palavras de Platão e Fiorin, corresponderia à /continuidade/. Essa categoria /continuidade/ versus /descontinuidade/ se homologa, plasticamente, à categoria /cercante / versus / cercado/. Além dessas características topológicas ressaltadas anteriormente, percebese que na planta propriamente dita, a ocupação do espaço delimitado é dada de forma espaçosa, ou em outras palavras, de forma extensa. Por outro lado, na primeira representação o espaço é apertado ou intenso. Retornando à planta, seguindo uma ordem de leitura que se dá do centro superior para baixo, abre-se a faixa designada “Campo”. Segue esta designação uma linha uniforme e a “Entrada”, que se bifurca para o “Pátio do Estábulo” e para o “Pátio” simples. Em perfeita simetria segue a designação “Residência” e, à direita, “Estábulo dos porcos”. Assim por diante, em relação de simetria, de linearidade e de limites estabelecidos chega-se à “Residência dos negros”. Diz-se, portanto, das categorias eidéticas, “que constroem as formas, serão examinadas como combinação de linhas, volumes e cores superpostas, concretizando contrastes com côncavo/convexo, curvilíneo/retilíneo, ascendente/descendente” (Teixeira, 1998, p.5). Como se vê, há na referida representação quatro linhas ou faixas em paralelo, sendo que a que se localiza quase ao centro é descontinua, divide-se em duas, formando como que um “vão”. O que nesse caso importa frisar é a questão da simetria. Trata-se da harmonia das combinações e proporções regulares das linhas do conjunto. Cria-se assim, em relação às linhas, a categoria /simetria/ versus /assimetria/. Essa simetria também pode ser observada na primeira representação. Simetria não entre linhas, como na representação anterior, mas sim entre as palavras enquanto desenhos gráficos. Simetria essa dada pela faixa central superior, denominada “Campo e entrada”, a partir da qual todas as outras estão em relação, em correspondência. Uma outra característica diz respeito à presença de linhas em paralelismo na “planta”, por oposição ao emaranhado da primeira representação. Estabelece-se, dessa forma, para as duas representações a categoria, conforme Floch, /paralelismo de horizontais/ versus /emaranhamento/. Dado o exposto, poderíamos ter o seguinte esquema, segundo o plano da 170 expressão: continuidade vs. descontinuidade cercante vs. cercado simetria vs. assimetria apertado vs. espaçado paralelismo vs. emaranhado Se ao longo do que até agora ficou exposto já tivemos a oportunidade de ir assinalando as relações que se verificaram no plano do conteúdo e no plano da expressão, agora é o momento de retomar essas categorias de cada plano e delinear as correlações que se estabelecem entre elas. Correlacionar é o verbo de ordem nesse ponto. Retomando as categorias plásticas depreendidas anteriormente, podemos estabelecer as seguintes correlações. As categorias do plano do conteúdo referentes ao éthos do ator da enunciação são: /justa medida/ versus /excesso-falta/. Essas categorias estão correlacionadas às categorias do plano da expressão: /simetria/ versus /assimetria/ das linhas. Assim, podemos dizer que a justa medida do plano do conteúdo está homologada à simetria do plano da expressão. Em virtude do exposto, nota-se, portanto, que o sujeito-cartógrafo confirma o ponto de vista que respalda o éthos que tudo vê, e tudo faz ver: o éthos do cientistaviajante. 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS 172 Antes de retomar os resultados obtidos neste trabalho, humildemente, esperamos que só o fato de iluminar essa pequena parcela dos diários do Barão George Henrique de Langsdorff seja uma forma de retribuir a sua atenção e o trabalho científico para com o Brasil. Dito isso, arrolam-se os resultados. Considerando que a escolha de um gênero de discurso segue alguns parâmetros – como a finalidade do dizer, o destinatário eleito e o próprio conteúdo, o dito, dado em função da situação de comunicação – pudemos verificar como se organizam esses mecanismos de construção do sentido e como se articulam nos diários em análise. Assim, de acordo com a tríade bakhtiniana, proposta para o estudo do gênero, constatamos as seguintes especificidades do diário de Langsdorff: ● estrutura composicional: local e data como figurativização do aqui e do agora do ato da enunciação; ● temática: exposição; relato e depoimento do sucedido, registrado na seqüência dos dias; ● estilo: um tom de voz, um corpo e um caráter de quem expõe discursivamente o vivido no decorrer da viagem. A análise se orientou, principalmente, pelo exame das categorias de pessoa, de tempo, de espaço e pelos revestimentos temáticos e figurativos de tais categorias, as quais também foram examinadas na medida em que organizam a estrutura composicional, a temática e o estilo do diário de Langsdorff. Dessa forma, identificamos regras próprias ao gênero diário de campo, na medida em que ele se opõe ao diário íntimo e, a partir daí, depreendemos o modo próprio de presença do ator da enunciação (Langsdorff), dado pela maneira de manipular as regras do próprio gênero. Após o reconhecimento do gênero diário e as características que permitem reconhecê-lo como tal, descrevemos, analisamos e explicamos mecanismos de cosntrução do sentido de um relato singular sobre a caça e o abatimento de um tamanduá-bandeira nos Diários de Langsdorff. Mantivemos a adoção do percurso gerativo de sentido para entender como e por que o texto diz o que diz. Constatouse que, devido ao caráter exploratório da Expedição Langsdorff, os diários do chefe 173 da expedição se estabelecem como um lugar privilegiado na utilização da categoria discursiva do espaço, tanto o espaço tópico quanto o espaço lingüístico, especialmente, postos em relação com as categorias de tempo e de pessoa para constituir o éthos do enunciador. Verificamos também que apesar de haver um sujeito em constante deslocamento, como manda o gênero diário de campo, há, no entanto, a fixidez de uma invariante na constituição do sujeito da enunciação, o ator Langsdorff. De tal relato foi possível depreender um éthos da cientificidade, bem como um éthos de justa medida, o que é recorrente o suficiente para contribuir na definição do estilo de Langsdorff, como autor de um diário de campo. Constatou-se ainda que um modo recorrente de dizer remete a um modo de ser. Por meio do exame dos mecanismos de construção do sentido do texto, depreendeu-se o corpo, o caráter, o tom, o fiador do discurso, isto é, a imagem do enunciador ou o éthos de Langsdorff, justamente pelo modo de organizar, figurativizar e tematizar os atores do discurso, os objetos de valor, o espaço, entre outros elementos. Ao longo desta dissertação, valemo-nos analiticamente de vários relatos do diário de Langsdorff referentes às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sempre tendo em mente que o todo está nas partes. Neste ponto, correlativamente ao nosso trabalho, tomamos o último relato do primeiro volume para pontilhar as últimas palavras sobre o éthos de Langsdorff: 18/05 [1825] Na manhã seguinte, apesar de o tropeiro ainda não ter voltado do Paraíba, dei ordens para selarem e carregarem os animais, para partirmos, ainda hoje, para o Paraibuna e Vargem, a 3 boas léguas daqui. Por volta das 9h, estávamos todos prontos. Todavia, mal havíamos deixado o rancho, novamente os animais causaram confusão e tumulto. Alguns galoparam na frente, dando coices para trás e para frente; outros se embrenharam na mata; alguns correram para frente, outros para trás. Mesmo com todo o pessoal da tropa (cerca de 5 negros), sem o tropeiro, não tínhamos mãos suficientes para controlar os animais. Conseguiram juntar, às pressas, as caixas quebradas e a bagagem espalhada. Os animais foram recapturados 174 e recarregados; os mais selvagens foram conduzidos com rédeas; e assim prosseguimos viagem. Neste ponto, alguns de meus leitores certamente me diriam que eu não tinha necessidade de vir para o Brasil para presenciar essas cenas no dia-a-dia. A eles eu responderia que, na pátria européia, seria possível evitar cenas desse tipo. Mas quero, com ênfase e insistência, alertar os futuros viajantes para as inúmeras dificuldades a que, inevitavelmente, terão que se sujeitar no Brasil. A propósito, é bem mais fácil e muito menos cansativo para um leitor, sentado em sua poltrona, ler superficialmente algumas observações, que, quem sabe, até lhe pareçam supérfluas, do que para um viajante no Brasil ter que esperar dias a fio a volta de animais perdidos e fujões, passar por todo tipo de incômodo, ficar sob um sol escaldante, transpirando constantemente e se desidratando, e ainda sujeito a passar fome e sede. Muitas vezes, na melhor das hipóteses, o que se consegue é uma refeição fibrosa, composta de feijão seco, toucinho e farinha de pão – diferente da farinha de mandioca, na medida em que esta é produzida a partir da tapioca ou amido que se obtém espremendo-se fortemente a raiz da mandioca. Freqüentemente, nem por todo dinheiro do mundo se consegue a mais ordinária das cachaças. Não é raro o viajante ter que deitar seu corpo cansado sobre peles de boi duras, ao invés de sofás macios, sempre correndo o risco de ver destruída, dispersada ou perdida toda a sua bagagem, instrumentos valiosos e material de História Natural colhido. É impossível fazer uma viagem confortável neste país (1997, p. 372). O alto grau de iconização desse último relato permite-nos dizer que a cenografia criada pelo narrador manifesta o tema dos transtornos da viagem a que estavam submetidos viajantes e exploradores. Particularmente interessante é a referência que o narrador faz ao narratário, a quem confere o estatuto de enunciatário, de leitor: “sentado em sua poltrona”. O leitor, como co-enunciador, participa do relato de uma série de adversidades, que desempenham o papel de obstáculos a serem vencidos. Temos, depreensível do dito, a imagem de um cientista-viajante que persiste na missão científica, apesar do sofrimento físico intenso, dos tormentos provocados pela natureza e pela infra-estrutura do Brasil da 175 época em questão. É como diz Saint-Hilaire, a respeito de Langsdorff: “aprendi a viajar sem perder um só momento, a me condenar a todas as privações, e a sofrer com alegria qualquer espécie de aborrecimentos” (1975, p. 66). Todo esse empenho de Langsdorff em nome de quê? Da “etapa da história mundial – época imperialista, um de cujos traços característicos é o fortalecimento da expansão colonial dos Estados imperialistas”, se aproveitarmos o que disse Manizer (1967, p.17)? Em nome da Ciência? Pelo prestígio que alcançariam após a publicação de seus relatos de viagem, tal qual Humboldt? Não temos respostas. Interessou aqui, a depreensão do éthos do cientista-viajante, o éthos de Langsdorff. Observou-se um modo próprio de dizer, de construir um mundo em oposição: “A propósito, é bem mais fácil e muito menos cansativo para um leitor, sentado em sua poltrona” versus “passar por todo tipo de incômodo, ficar sob um sol escaldante, transpirando constantemente e se desidratando, e ainda sujeito a passar fome e sede”. Descrevemos a imagem do ator da enunciação para identificar o estilo Langsdorff de dizer, assim pudemos analisar um modo de ser do sujeito da enunciação, construído segundo um corpo, uma voz e um caráter pautados pela justa medida. Não é um sujeito que diante das adversidades curva seu corpo e clama pelo fim da viagem. Descrever as adversidades pelas quais o enunciador simula passar consolida e valoriza o éthos do cientista-viajante Langsdorff aos olhos do enunciatário-leitor e aos olhos do analista. Mesmo sendo “impossível fazer uma viagem confortável neste país” Langsdorff prossegue de corpo altivo, com o tom de voz sério, porém brando, e de caráter polido, firme; enfim, o éthos da cientificidade. A missão prossegue pelo interior do Brasil; muito ainda estava por vir: “Começamos hoje um caminho novo, ainda não trilhado por ninguém. Temos diante dos olhos um véu escuro. Deixamos o mundo civilizado para viver entre índios, onças, tapires e macacos” (Langsdorff, 1998, p.25). “Os caminhos não acabam.” Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa 176 BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Francisco Tomasco. “As decobertas recentes da genealogia de Georg Heinrich von Langsdorff”. In: SILVA, D. G. B. (org.) Os Diários de Langsdorff. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; 1997. p. XXVII – XXXV. AMOSSY, RUTH (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. ANCHIETA, Padre José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. _______. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: Eléments pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, (26) Revue de linguistique. Paris, Centre de Recherche de L’Université de Paris, VIII, p. 91-151. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. _______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 2002. _______. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1994. _______. (org.) Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp, 2000. _______. Paixões e apaixonados: exame semiótico de alguns percursos. Cruzeiro semiótico. Porto: APS, 1989-1990, 11-12: 60-73. BARTHES, R. “A retórica antiga”. In: COEHEN, J. et al. Pesquisas de retórica. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 147-221. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: Edusc, 2003. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Trad. M.G. Novak e M.L. Néri. Campinas: Pontes/ Editora da Unicamp, 1988. 177 _______. Problemas de lingüística geral II. Trad. Guimarães et alii. Campinas: Pontes, 1989. BRONCKART, Jean-Paul. BAIN, D. & SCHNEUWLY; B, DAVAUD; C., PASQUIER, A. Le fonctionnement des discours: un modèle psychologique et une méthode d’analyse. Paris: Delachaux & Niestlé, 1946. BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos – Por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: Educ, 2003. CARDOSO, Sérgio. “O olhar viajante (do etnólogo).” In: NOVAES, Adauto et al. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 347-360. CARVALHO, Paulo César. Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero amoroso. São Paulo: Dissertação de mestrado: FFLCH/USP, 2005. CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Círculo do livro, 1980. CHUR, L. A. (org.). A expedição científica de G. I. Langsdorff ao Brasil 1821-1829. Catálogo completo do material existente nos arquivos da União Soviética. Tradução e pesquisa bibliográfica de Marcos Pinto Braga - Brasília: Secretária do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Nacional Pró-Memória, 1981. COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de literatura. 4º edição. Porto: Mário Figueirinhas Editora, vol. 1, 1994. COELHO, Ruy. Dias em Trujillo: um antropólogo em Honduras. São Paulo: Perspectiva, 2000. COSTA, Maria de Fátima. O Brasil de Hoje no Espelho do Século XIX: artistas alemães e brasileiros refazem a expedição Langsdorff. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. DIDEROT, M. . Encyclopédie IV (Lettres M-Z). Paris: Hermann, 1980. DISCINI, Norma. O estilo nos textos. São Paulo, Contexto, 2003. 178 _______. Intertextualidade e conto maravilhoso. 2.ed. – São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. _______. Comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005. _______. Diário e carta: questões de gênero e de estilo. São Paulo, cópia xerografada, 2005. _______. Provérbios: gênero e estilo. São Paulo, cópia xerografada, 2005. DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2000. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997. FAUSER, Hildegard W. “O Barão Georg Heinrich von Langsdorff”. In: COSTA, Maria de Fátima. O Brasil de Hoje no Espelho do Século XIX: artistas alemães e brasileiros refazem a expedição Langsdorff. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 31-34. FIGUEIRÔA, Silvia, F. de M. “Algumas considerações sobre a obra”. In: SILVA, D. G. B. (org.) Os Diários de Langsdorff. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p. XXXVII – XXXIX. FIORIN, José Luiz. “Identidades e diferenças na construção dos espaços e atores do novo mundo”. In: BARROS, D.L.P (org.) Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp, 2000, p. 27-49. _______. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2002. _______. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2003. _______. “Uma concepção discursiva de estilo”. In: CAÑIZAL, E.P. e CAETANO, K. E. (orgs.) Olhar à deriva: mídia, significação e cultura: São Paulo: Annablume, 2004, p. 171-193. _______. Elementos de análise do discurso. 13.ed. São Paulo: Contexto, 2005. _______. “Gêneros e tipos textuais”. In: MARI, H.; WALTY, I. L. C.; VERSIANI, Z. Ensaios sobre Leitura. Belo Horizonte: Pucminas, 2006. p. 101-117. 179 FILIPOVIĆ, Zlata. O diário de Zlata: a vida de uma menina na guerra. São Paulo: Cia. Das Letras, 1994. FLOCH, Jean-Marie. Alguns conceitos fundamentais em Semiótica geral. Documentos de Estudos do Centro de Pesquisas Sociossemióticas: São Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemióticas, 2001. FONTANILLE, Jacques & ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas, 2001. GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. São Paulo: Nacional, 1956. GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1973. _______. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s.d.. _______. e RASTIER, F. O jogo das restrições semióticas. In: GREIMAS, A. J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 126-143. _______& COURTÉS, J. Sémiotique: dictionnaire raisoné de la théorie du langage. v.II. Paris: Hachette, 1986. _______& LANDOWSKI, E. Análise do discurso em ciências sociais. São Paulo: Global, 1986. _______. Maupassant a semiótica do texto: exercícios práticos. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1993. _______. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002. HOLANDA, Aurélio, B.F. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Positivo, 2006. HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss. São Paulo: Editora Objetiva, 2000. KOMISSAROV, Boris. Expedição Langsdorff: acervo e fontes históricas. São Paulo: Editora Unesp, 1994. LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida. São Paulo: Educ / Pontes, 1992. _______. Presenças do outro. São Paulo: Perspectiva, 2002. 180 LEITE, Mirian Moreira. “Naturalistas viajantes”. In: História, ciência, saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, vol. I, nº2, nov. 1994. _______.“Prefácio”. In: SILVA, D. G. B. (org.) Os Diários de Langsdorff. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997, p. XLV – LII. LOPES, Edward. “Paixões no espelho: sujeito e objeto como investimentos passionais primordiais”. Cruzeiro Semiótico 11-12 Porto: APS, 1989-1990, p. 154-160. _______.”Ler a diferença”. In: BARROS, D.L.P (org.) Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp, 2000, p. 11-26. LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (orgs.) Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. LOTMAM, I.M. Sobre o problema da tipologia da cultura. In: Boris Schnaiderman (org.) Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.31-41. MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. _______. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001a. _______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001b. _______. Introdução à Lingüística. Lisboa: Gradiva, 1997. _______. . Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005. _______. .Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, RUTH (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. MARCUSCHI, Luiz Antônio e XAVIER, Antônio Carlos. Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucena, 2004. MANIZER, Guenrikh Guenrikhovitch. A expedição do Acadêmico Langsdorff ao Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1967. 181 NIGRA, Clemente Maria da Silva. “O Barão George Henrique de Langsdorff, 1774- 1852: o grande cientista esquecido no Brasil”. In: II Colóquio de estudos Teutobrasileiros. Universidade Federal de Pernambuco. Recife: Editora Universitária, 1974, p. 50-57. PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004. REIS, C e LOPES, A. C. M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Livraria Almeida, 1994. ROBERT, Paul. Le nouveau Petit Robert: dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2000. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira , 1986 . SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais; Trad. de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1967. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1993. SILVA, Danuzio Gil Bernardino (org.). Os diários de Langsdorff. Vol. I, Rio de Janeiro e Minas Gerais, 8 de maio a 17 de fevereiro de 1825. Trad. Márcia Nascimento Egg et al. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. _______. Os diários de Langsdorff. Vol. II, São Paulo, 26 de agosto de 1825 a 22 de novembro de 1826. Trad. Márcia Nascimento Egg et al. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz 1997. _______. Os diários de Langsdorff. Vol. III, Mato Grosso e Amazonia, 21 de novembro de 1826 a 20 de maio de 1828. Trad. Márcia Nascimento Egg e t al. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: Fiocruz 1997. SAVIOLI, Francisco Platão & FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 182 TATIT, Luiz Augusto de Moraes. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. _______. “A abordagem do texto”. In: FIORIN, J.L. Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2003. p.187-209. _______. Práticas impregnantes. Cópia xerografada. TEIXEIRA, Lucia. Um rinoceronte, uma cidade: relações de produção de sentido entre o verbal e o não-verbal. Gragoatá: Niterói, n. 4, 1. sem. 1998, p. 47-57 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução: Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983. _______. Os gêneros textuais. Lisboa: edições 70, 1981. WOOLF, Virginia. Os Diários de Virginia Woolf. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. COPYRIGHT RODRIGO LUVIZZOTO
Contador de visitas