quarta-feira, 1 de setembro de 2010

3040 - COMO SE FAZ UM SANTO

COMO SE FAZ UM SANTO?





1. Desejo começar por dizer quanto me sinto honrado pelo convite para ser um dos apresentadores do livro “Como se faz um Santo” da autoria de Sua Eminência o Cardeal D. José Saraiva Martins



Foi de uma ousadia imprevidente ter aceite a responsabilidade de comentar o livro que aqui hoje nos congrega, na presença do seu autor, do Padre Peter Stilwell e de tão ilustres convidados.



Tentei encontrar uma boa explicação para este encargo com que a Zita Seabra me apanhou desprevenido. Não sendo um profundo conhecedor da Causa dos Santos, não tendo sequer conhecimentos teológicos para além do que a minha fé e o auto-didactismo me permitem, cheguei à conclusão que só se pode dever a uma sólida razão; a de não ser um santo, antes um pecador!



Em todo o caso, espero não ser impertinente e, neste contexto, conseguir o milagre de não “fazer perder a paciência a um santo”…



2. “Como se faz um Santo” – em boa hora editado pela Aletheia, no seguimento, aliás, de outras excelentes obras já editadas – é um livro exemplarmente saboroso.



Dizia Jean Guitton que um bom livro representa sempre uma vitória do espírito sobre a matéria. Este livro, em forma de escorreita e incisiva entrevista de Saverio Gaeta ao Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, é uma lição espiritualmente profunda e pessoalmente enriquecedora sobre a santidade de sempre e de hoje.



Um livro que lemos com o perfume da Graça do Espírito, ao mesmo tempo imaginando nas suas entrelinhas o sorriso amigo do seu autor e a serenidade afectuosa das suas reflexões.



Um livro que é um roteiro, uma digressão, uma peregrinação espiritual pelos caminhos para a santidade. Profundo e estruturado no pensamento, pedagógico na abordagem “técnica” e “processual”, esteticamente belo, minucioso nos detalhes, revelador na curiosidade procurada pelo leitor, profundamente humanista nos momentos da vida pessoal e eclesial que o Senhor Cardeal connosco quis partilhar nesta obra.



Um livro que – imagino – foi pensado e escrito com a naturalidade, a autenticidade, a exactidão e a sedução de quem conhece como ninguém a Causa dos Santos.



3. Uma obra que, também por tratar de santos, está salpicada de humor. De um humor que é uma competência, um acto de inteligência de se ser com e para os outros.



Porque o humor inteligente e suave é sempre graça e espírito. Uma graça que brota da Graça Divina e um espírito que não existiria sem o Espírito Santo.



Logo, a Graça da fé e o humor da graça fazem parte do todo do livro ainda que não sejam tudo no livro.



Exemplos: O registo civil do céu para significar, com humor, a Congregação para a Causa dos Santos, um Santo que não é um produto feito em série, mas antes uma obra de artesanato divino, ou os soldados desconhecidos da santidade para significar quantos viveram e morreram santamente, são, entre outras, expressões, exemplos do sentido de humor que nos faz prever, sem dificuldade, que há seguramente humor no Paraíso!



4. Se escrever um livro é estar com o outro que está dentro de nós como dizia Vergílio Ferreira, ler um livro como este é, para mim, ser com o outro que entrou em nós.



De entre a imensidão do desfrute desta obra é difícil seleccionar e sintetizar o que dela mais aconteceu e ficou em mim.



Arriscaria, no entanto, sublinhar a principal mensagem que retive: a natureza “natural”, “normal” da santidade. Diz o Senhor D. Saraiva Martins que a santidade não consiste em fazer nada de extraordinário, longe do alcance do homem comum, mas sim fazer sempre e bem as coisas ordinárias, no trabalho, na família, na sociedade, na vocação. E concretizar um projecto de vida, praticar o bem comum na plenitude da Lei, isto é na caridade.



A Santidade requer o heroísmo na prática das virtudes e a grandeza da vida comum. Nada fora do comum, do nosso mundo, nada de “exótico”.



No fundo, somos reconduzidos à mais forte constatação: a de que para se ser santo é necessário praticar e, acima de tudo, concretizar o Evangelho.



Por isso, no livro se desenvolve a ideia central da convergência inerente à santidade, que como perfeição da humanidade, se revela no homem que entra em Deus e em Deus que abraça o homem. Assim se atinge a perfeição da caridade entendida como o mais elevada medida de amor para com o Criador e para com o próximo. São Paulo haveria de sintetizá-la numa curtíssima expressão: não vivo mais eu, mas Cristo vive em mim.



O Senhor D. Saraiva Martins a todos convida à santidade, entendida não como um privilégio de poucos, mas como uma vocação universalmente proporcionada e oferecida livremente por Cristo a todas as pessoas, ou para utilizar uma linguagem social-tecnocrata, está “garantida a igualdade de oportunidades ainda que com certos factores de discriminação positiva”.



O mundo precisa mais do que nunca de santos e de santidade!



Precisamos dos santos e das santas como intercessores e como modelos. No meio da aridez, da solidão, da dor e do sofrimento são uma espécie de eficazes antidepressivos que se podem obter sem receita e sem taxa moderadora.



Precisa o povo de Deus e precisa a Igreja para acelerar a unidade dos cristãos pela via do ecumenismo como sublinhou João Paulo II na sua carta Apostólica “No início do novo milénio”.



5. Da leitura intensa do livro podemos ver, com a luz da fé e o sinal da esperança, como será belo o caminho para a santidade e como estamos, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe de a alcançar.



Hoje, a santidade representa a purificação da heroicidade do simples e é a expressão vitoriosa do homem de e para todos os tempos sobre o homem do instante.



Numa sociedade de “zapping”, comportamentalmente hedonista, moralmente minimalista e relativista traduzida num eclipse de valores (expressão do autor no livro), socialmente predadora e subjugada à “ditadura do eu-em-primeiro-lugar”, fóbica em relação ao transcendente, o santo exprime um projecto de vida contra a corrente. Porque, como se diz no livro, subir montanhas é sempre muito difícil. É mais fácil viver na planície



Ser santo sempre representou uma forma de subversão, traduzida em cada época de modo diverso e como regra vivida na ausência de qualquer forma de poder que é onde se revela toda a força da presença de Deus.



Os santos ensinam-nos a perceber que só se encontra verdadeira paz lá bem no fundo de nós mesmos. Um encontro, é certo, bem difícil de concretizar, num tempo em que tudo se move na superficialidade. Mas o seu testemunho de vida e de fé diz-nos que, quando lá se chega, tudo se torna luminoso. Mesmo a escuridão, porque a mais consistente felicidade é a que está para além da luz que os nossos olhos atingem.



Não resisto a citar novamente Jean Guitton, no seu livro “As minhas razões de crer”: Não creio que possa existir uma obra de amor sem um enraizamento no quotidiano. A fé resulta de um acordo entre o que ela enuncia e a experiência, o som da vida humana, tão complexo e tão simples.



Na sociedade contemporânea em que, no plano da relação com Deus, clamamos muito mas obedecemos pouco, ou – voltando a citar o Senhor D. Saraiva Martins – em que o homem de hoje é um homem cansado, sem ideias, sem entusiasmo, os Santos são uma espécie de novos insurrectos sinalizadores e modelos da pureza, da harmonia, da espiritualidade levada à sua mais bela singeleza.



Se há quem congregue sem ensinar e quem ensine sem congregar, um santo ensina e congrega na universalidade do seu exemplo e na perfeição das suas virtudes.



A santidade sempre foi entendida como a expressão da Graça Divina, mas também da condição livre de se ser pessoa. Assim foi e tem sido através dos tempos, desde os mártires dos primeiros séculos, aos confessores medievais, aos santos e beatos missionários, aos santos da época moderna pioneiros no anúncio e na denúncia dos males sociais de então, aos de agora cuja santidade se exprime na família, na educação, na empresa, no trabalho, nas vocações, na vida pública.



A “coligação” celestial dos santos, beatos e veneráveis unidos pelas virtudes teologais da fé, esperança e caridade e com um programa baseado nas virtudes cardiais da prudência, justiça, fortaleza e temperança constituem certamente uma ampla maioria qualificada no “parlamento do céu” e são o elo geracional e diacrónico da identidade da igreja que vai para além do tempo.



6. Se bem percebo a ideia e a prática da santidade, podemos ver nela um tesouro de vida que nos ensina:



Que o mais difícil de alcançar é o simples.

Que o mais possível de alcançar é o que mais impossível parece.

Que o maior alimento do direito é o dever.

Que o mais aparentemente insignificante sacrifício pode ser o mais virtuoso.

Que a maior recompensa do corpo é a serenidade da alma.

Que a mais radical sinceridade é irmã gémea da verdade.

Que a mais austera perseverança é irmã gémea da bondade.

Que a mais pura humildade é irmã gémea da beleza.

Que o heroísmo é a persistência paciente na luta de cada dia.

Que a caridade é o coração da inteligência e a inteligência do coração.

Que na autenticidade está a verdade do comportamento.

Que na fidelidade está o coração do comportamento.

Que o erro é a constatação da nossa debilidade, mas ao mesmo tempo, a bússola da nossa capacidade.

Que a mais minúscula verdade supera as mais poderosas mentiras.

Que a mais insignificante das perfeições é preferível à mais sonante das imperfeições.

Que o importante não é dissolvido no urgente, avulso ou superficial, porque o importante nem sempre é urgente, raramente é avulso e nunca é superficial.

Que o optimismo radica na esperança, na virtude, no trabalho e que o pessimismo radica na indiferença.

Que as virtudes existem para ser praticadas e não apenas enaltecidas.

Que o exemplo é o caminho mais curto para o bem e o mais contagiante para os outros.

Que a partir do nosso interior se pode transformar o que nos é exterior.

Que o dever de trabalhar e partilhar começa no nosso interior e prolonga-se no interior dos outros.

Que ao utilitarismo estéril se responde com a humanidade fecunda com que a vida se deve viver em cada momento.

Que a abnegação, para além do que transporta de dedicação, é o antídoto para o individualismo predador.

Enfim, que a esperança se espera, sem esperar…



7. Num tempo em que a medida fácil e obsessiva é a da quantidade, há quem seja tentado a concentrar-se no número de novos santos e beatos, como que reduzindo a Causa dos Santos a uma taxa de inflação da santidade!



O Senhor D. Saraiva Martins, eloquentemente, demonstra e justifica esta bem-vinda ampliação hagiológica, em especial com Sua Santidade o Papa João Paulo II, e afasta, com clareza, a tendência para uma religião observada pela quantidade ou vista como não vinculativa e de mera opinião ou, ainda, como forma de contrafacção da própria fé.



Dizia no seu livro “O sal da terra” o então Cardeal Ratzinger que a estatística não é uma medida de Deus e que a Igreja não é um empreendimento comercial orientado pelo sucesso. Pois também neste caso, não devemos reduzir a ideia de santidade a uma expressão de secularização sociológica de um atlas dos Santos e Beatos ou de uma geografia hagiográfica ilustrada e comentada.



8. Vou terminar com uma referência à Beata Madre Teresa de Calcutá, a quem Vossa Eminência dedica, aliás, uma parte muito bela do livro e sobre a qual, aliás, recorda o que, quando ela visitou a sede das Nações Unidas, o Secretário-Geral da ONU disse, numa alusão à sua força interior e ao seu exemplo ecuménico e universal: Ela é que é verdadeiramente as Nações Unidas.



Disse um dia a Beata Teresa que:



A oração é o fruto do silêncio.

O fruto do silêncio é a fé.

O fruto da fé é o amor.

O fruto do amor é o serviço.

O fruto do serviço é a paz.



Eis como de uma maneira notavelmente bela, ela fez a síntese da santidade, da ponte entre a fé interior e a esperança no mundo.



Porque tudo começa pela oração, porque o começo está na ligação com O que nos concedeu o dom da vida. No silêncio, que, tantas vezes, é a forma do respeito, a expressão do amor, o anúncio do encontro e que nos permite aproximamo-nos de Deus. Com alegria que a fé nos concede, e com a dúvida que torna a fé mais livre e profunda. Com a fé, com que alcançamos o amor e a comunhão e esperamos a vida eterna. Com o amor que alimenta a partilha generosa e o serviço gratuito, desinteressado, compassivo. Com o serviço com que se constrói a paz e nos resgatamos da opressão.



9. Muito obrigado Senhor Cardeal pela lição que nos ofereceu com o seu livro (eu que confesso humildemente que tinha dificuldades em distinguir, em alguns aspectos ditos procedimentais, o beato do santo…).



Um dia li uma pergunta que alguém fez a Óscar Wilde: sabes qual é a diferença entre um santo e um pecador? à qual o escritor irlandês respondeu: Sei. É que o santo tem sempre um passado e o pecador tem sempre um futuro. Descontado o fulminante e célebre repentismo cínico do escritor, é assim que muita gente – mesmo entre os católicos, em particular os “light” – pensa…e age!



Por certo, este livro faria bem a Óscar Wilde e fará muito bem a todos quantos se deixam fascinar pelo efémero, pelo circunstancial, pelo prazer sem consciência, pelo curto-circuito entre o dinheiro e a consciência.



A propósito do dinheiro, espero que este consolador “Como se faz um santo” não se venha a resumir (como já vi noticiado…) a um “Quanto custa um santo”, como se este pormenor à vista fosse determinante quando comparado com a riqueza espiritual da obra.



Este livro, como os bons e marcantes livros – tem um carácter personalizadamente patrimonial porque nos pertence na posse da sua leitura, na visita da sua releitura, e – estou certo – na memória da sua ausência.



E porque não na beleza da sua capa onde sentimos o nosso Santo António, padroeiro da nossa Lisboa?



No fim de tudo, fica-nos o gosto por mais, Senhor Cardeal e a ideia central – voltando a citar Bento XVI – de que se Deus não está presente tudo se torna completamente insuficiente.



Muito obrigado!




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