Resenha sobre o livro de roger chartier: a
história cultural entre práticas e representações.
Ieda Ramona do Amaral e Luciane Miranda Faria¹
1 Referência
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações.
Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
245p.
2. Credenciais do autor:
Roger Chartier nasceu em Lyon, na França, em 1945. Desde jovem tem se
dedicado a pesquisas e projetos coletivos na direção de novas abordagens e de
novos objetos para a história, fazendo parte da terceira geração do grupo de pesquisadores
conhecido como Escola dos Analles. Sua trajetória intelectual abrange
várias linhas de pesquisa: uma primeira linha seria a história das instituições de
ensino e das sociabilidades intelectuais; uma segunda linha de pesquisa, que perpassa
o conjunto de sua obra, é constituída pela história do livro e das práticas de
escrita e de leitura; uma terceira linha de pesquisa seria a análise e o debate entre
política, cultura e cultura popular; uma outra linha ainda pode ser derivada de
suas reflexões sobre o ofício de historiador, expressas em suas publicações e em
suas atividades como divulgador de uma nova história. Diretor na Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e professor especializado em história das
práticas culturais e história da leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos
historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua
reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em história
cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história.
Chartier foi professor nas universidades Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John
Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley.
Roger Chartier escreveu muitas obras. Referenciamos aqui só as publicadas
no Brasil: História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes; Cultura
escrita, literatura e história; Formas do sentido - Cultura escrita: entre distinção
e apropriação; Os desafios da escrita; A aventura do livro; À beira da falésia; Do
Palco à Página; A ordem dos livros; História da leitura no mundo ocidental; Práticas
da leitura; O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente; e Leituras
e leitores na França do Antigo Regime.
1 Mestrandas da Pós-Graduação, Linha de Pesquisa Educação e Linguagem (UFMT-2006).
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3. Conhecimento geral da obra
Em sua obra “A História Cultural: Entre Práticas e Representações”, composta
por oito ensaios publicados entre 1982 e 1986, Chartier evidencia que, nos anos
de 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber controlado, apoiado
sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, conceitos teóricos dentre
outros. Esses historiadores acreditavam que o saber inerente à história devia se
sobrepor à narrativa, por acharem que o mundo da narrativa era o mundo da ficção,
do imaginário, da fábula. Contudo a tendência hegemônica da historiografia
atual propõe uma nova forma de interrogar a realidade, toma como base temas
do domínio da cultura e salienta o papel das representações.
A História Cultural, esclarece Chartier, é importante para identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada,
dada a ler. Portanto, ao voltar-se para a vida social, esse campo pode tomar por
objeto as formas e os motivos das suas representações e pensá-las como análise
do trabalho de representação das classificações e das exclusões que constituem as
configurações sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço. No entanto, a
História Cultural deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais
se constrói um sentido, uma vez que as representações podem ser pensadas como
“[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode
adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER,
1990,p.17). Como se vê, os processos estabelecidos a partir da História
Cultural envolvem a relação que se estabelece entre a história dos textos, a história
dos livros e a história da leitura, permitindo a Chartier uma fértil reflexão a respeito
da natureza da História como discurso acerca da realidade e ainda de como
o historiador exerce o seu ofício para compreender tal realidade.
Podemos perceber que a obra de Chartier se destaca por impor o trato de
problemas conceituais como representação, prática e apropriação. A partir deles,
o autor considera questões como as formas narrativas do discurso histórico e
literário, fundamentais à interpretação dos documentos que o historiador toma
por objeto. Entendemos que para compreender melhor esses conceitos é fundamental
conhecer as idéias de historiadores como, por exemplo, Pierre Bordieu,
Michel de Certeau, Michel Foucault e Paul Ricoeur, influenciados pela Escola dos
Analles, como também as idéias de alguns autores influenciados pela Escola de
Frankfurt, como Gadamer, Geertz, Habermas, Jauss e Norbert Elias. Para Roger
Chartier, um autor pode ser lido e entendido quando se leva em consideração o
contexto no qual o seu trabalho foi produzido, por isso pensar, portanto, os processos
de civilização nos possibilitam ir do discurso ao fato, questionando a idéia
de fonte como mero instrumento de mediação e testemunho de uma realidade
e considerando as representações como realidade de múltiplos sentidos, mesmo
porque as representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem
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à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam.
Chartier acredita que há algo específico no discurso histórico, pois este é
construído a partir de técnicas específicas. Pode ser uma história de eventos políticos
ou a descrição de uma sociedade ou uma prática de história cultural. Para
produzi-la, o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes, manejar
técnicas de análise, utilizar critérios de prova. Portanto, se é preciso adotar essas
técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no fazer história, que é
restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste relato. O historiador
hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de cientificidade que
supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares, sabendo que, seja
qual for a sua forma de escrita, esta pertencerá sempre à categoria dos relatos, da
narrativa. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos
com a posição de quem as utiliza (CHARTIER, 1990, p.16). Um texto pode
aplicar-se à situação do leitor e, como configuração narrativa, pode corresponder
a uma refiguração da própria experiência. Por isso, entre o texto e o sujeito que
lê, coloca-se uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos,
a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova forma de
compreensão de si próprio e do mundo. O autor esclarece que os agenciamentos
discursivos e as categorias que os fundam – como os sistemas de classificação, os
critérios de recorte, os modos de representações – não se reduzem absolutamente
às idéias que enunciam ou aos temas que contêm, mas possuem sua lógica própria
– e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, como letra
da mensagem (CHARTIER, 1990, p.187).
As contribuições que Chartier incorporou aos seus estudos são grandes e diversas.
Podemos citar as categorias como habitus, tomada da obra de Pierre Bordieu;
configuração e processo, apanhadas em Norbert Elias; representação, apreendida
com Louis Marin; idéias como controle da difusão e circulação do discurso, buscadas
em Michel Foucault; produção do novo a partir das contribuições existentes,
tal como pensada por Paul Ricoeur; e a apropriação e transformação cultural, do
mesmo modo proposto por Michel de Certeau. As filiações teóricas de Roger
Chartier serviram para que os pesquisadores compreendessem a necessidade de
mergulhar nas teorias e metodologias da História, na prática dos arquivos, realizando
a operação historiográfica proposta por Michel de Certeau.
Partindo da observação dos conceitos usados por Roger Chartier, é possível perceber
que ele se preocupa com a forma através da qual os indivíduos se apropriam
de determinados conceitos. Assim valoriza as mentalidades coletivas. Conceitos
como os de utensilagem mental, visão de mundo e configuração têm importância
fundamental para o estabelecimento de um diálogo com as fontes. É necessário
aprofundar os estudos em torno dos conceitos fundamentais difundidos por esse
importante interlocutor dos fenômenos da cultura de um modo geral, buscando
um maior conhecimento a respeito das condições de produção da sua obra e das
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suas ferramentas de análise. O trabalho de Roger Chartier cria condições para
que se estabeleça uma nova postura nos estudos da História Cultural diante dos
métodos, das fontes e dos temas estudados, buscando, da mesma maneira, nos
diversos ramos especializados da História um diálogo mais fértil com a Antropologia,
a Sociologia, a Filosofia e a teoria literária.
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