Revista Mirabilia 4
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Alguns Apontamentos Acerca dos Germanos nos Livros Didáticos de História no Brasil*
Some Appointments about the Germans in Didatic Books of History
Profª Drª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
(UFRJ)
Resumo
A partir da análise de conteúdo de seis livros didáticos de história, usados no ensino fundamental e médio no Brasil, buscamos verificar e analisar como tais obras caracterizam os germanos.
Abstract
Starting from the analysis of content of six didactic books of history, used in the fundamental and medium teaching in Brazil, we looked for to verify and to analyze as such works characterize the germans.
Palavras –chaves: Livro Didático – Germanos – Ensino de História
Key-words: Didactic book - Germans - Teaching of History
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Introdução
O presente artigo está relacionado ao trabalho desenvolvido junto à disciplina Livro Didático de História, oferecida no Curso de Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro no primeiro semestre de 2003. Esta disciplina foi criada com a reforma curricular de 1997, tem caráter optativo, e não está vinculada a nenhuma área específica, ou seja, qualquer professor do departamento pode oferecê-la (O Departamento de História da UFRJ divide-se em seis área ou setores: História Antiga, História Medieval, História do Brasil, História da América, História Moderna e Contemporânea e Metodologia e Teoria da História). Como o Programa de Estudos Medievais (Pem) da UFRJ, desde sua reestruturação em 1998, possui como uma de suas linhas de pesquisa A Idade Média e o ensino fundamental e médio e, desde de 2001, tem desenvolvido o projeto coletivo O ensino da Idade Média no Brasil: reflexões teóricas e propostas acerca da produção de material didático e paradidático, optei por oferecer tal cadeira. Este projeto encontra-se registrado junto a UFRJ no Sistema Sigma e é coordenado pela Profª Drª Leila Rodrigues da Silva e por mim (Sobre o Pem ver www.pem.ifcs.ufrj.br ).
Eram objetivos da disciplina que, ao final do curso, os alunos fossem capazes de: conhecer a História do Livro Didático no Brasil; relacionar o ensino da História nos níveis fundamental e médio no Brasil com a produção e uso de materiais didáticos/paradidáticos; discutir o porquê do descompasso entre as pesquisas acadêmicas em História e a produção do livro didático/paradidático no Brasil; relacionar a produção dos livros didáticos/paradidáticos com as diferentes concepções historiográficas e as diversas correntes pedagógicas; analisar criticamente livros didáticos/paradidáticos; conhecer, criar e aplicar estratégias didáticas e paradidáticas no ensino da História no Brasil.
Neste sentido, durante o curso, foram feitas diversas análises e debates visando discutir: o que caracteriza um livro didático/paradidático; que reflexões historiográficas já foram feitas sobre a história do livro didático/paradidático no Brasil; que políticas públicas foram desenvolvidas no país para a produção e difusão dos livros didáticos/paradidáticos; qual o papel do livro didático/paradidático na formação do aluno no ensino fundamental e médio; qual a relação entre a pesquisa universitária e a redação dos livros didáticos/paradidáticos. Também foram realizadas atividades práticas, em que livros didáticos/paradidáticos selecionados foram analisados, buscando avaliar a coerência entre as concepções historiográficas e pedagógicas que nortearam a produção das obras face aos conteúdos, à linguagem, às imagens e às atividades apresentadas e identificando a presença de estereótipos e/ou preconceitos. Dentre as atividades propostas, foram analisados livros didáticos dando especial atenção à forma como os germanos são retratados. Deste modo, muitas das idéias aqui apresentadas nasceram a partir do trabalho desenvolvido junto aos alunos desta disciplina.
Face às diferentes formas de abordagem crítica dos livros didáticos (Sobre os diversos métodos para a análise dos livros didáticos ver, dentre outros, VILLALTA, L. C. (mimeo); MUNAKATA, 1998: p. 271- 96, GALZERANI, 2000: p. 105 -109), tais como a que se consagrou na década de 80, voltada para a análise das ideologias presentes em tais obras, ou a História da Leitura, atenta às formas de produção, circulação e apreensão desses materiais, mais recente, optamos pela análise de conteúdo. Ou seja, buscamos verificar, nos livros didáticos selecionados: se há informações sobre os germanos; qual a parte, no conjunto geral da obra, que é destinada aos germanos; se no tratamento do tema são feitas referências a outros autores; qual a natureza das informações apresentadas sobre os germanos; de que forma os germanos são caracterizados.
Foram selecionados para análise três obras voltadas para o segundo segmento do ensino fundamental - Poder e conquista: transição do feudalismo para o capitalismo; Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal; História Geral – e três para o ensino médio - Caminho das Civilizações - História Integrada - Geral e Brasil; História para o ensino médio; História: das cavernas ao Terceiro Milênio. As análises e conclusões gerais são apresentadas a seguir.
Os germanos na História Geral de Francisco de Assis Silva
A Coleção História Geral de Francisco de Assis Silva, publicada pela editora Moderna, está voltada para o segundo segmento do ensino fundamental. Para este artigo, analisamos a terceira edição revista e ampliada impressa em 1997. Francisco de Assis Silva é formado em Historia pela USP e professor do ensino fundamental, médio e de cursos pré-vestibulares. O volume analisado dedica-se ao estudo da Antigüidade e da Idade Média. A pesquisa iconográfica ficou a cargo de Vera Lúcia da Silva Barrionuevo e os mapas sob a responsabilidade de Mario Yoshida.
O germanos são apresentados no capítulo 12, O mundo romano: Império e Cultura, no item Os bárbaros germanos, que compreendem 2 das 160 páginas da obra, ou seja, um pouco mais de 1% do total do livro. O item contém um desenho de uma aldeia germana, extraído da obra História das sociedades, de Aquino, Denise, Jacques e Oscar, e dois mapas: Invasões e fixações germânicas no Império Romano e os Reinos Bárbaros após 476. A obra não apresenta bibliografia nem sugestões de leitura.
Francisco de Assis inicia o texto definindo bárbaros tal como o compreendiam os romanos e dentre eles destaca os germanos, identificados como os “conquistadores do império ocidental” (p. 97). O autor enumera as populações germânicas: “francos, anglos, saxões, visigodos, ostrogodos, vândalos e outros” (p. 97) e informa sua localização fora das fronteiras romanas.
O autor apresenta, em 3 parágrafos, a forma como estes povos estavam organizados: a economia, a sociedade e o direito (p. 97). Depois explica como estas populações penetraram e se fixaram no Império Romano, adotando a tese da migração, primeiro “pacífica”, e depois, nos séculos VI e V, “sistemática... devido ao crescimento da população germânica” (p. 97).
Silva acrescenta que os germanos conquistaram definitivamente Roma em 476 e enumera os diversos reinos que foram fundados nas terras do “ex-império”: ostrogodo, vândalo, visigodo, juto-saxão (apresentado como se fosse um único reino) e franco. Não cita o suevo, o burgúndio ou o lombardo (p. 98).
Finalizando o item, o autor afirma que “como a população germânica era inferior à dos romanos, acabou assimilando a cultura dos vencidos”, fenômeno que ele denomina de romanização. E arremata com a frase, que revela a sua concepção linear e progressista da história, “os reinos bárbaros deram origem às principais nações européias da atualidade” (p. 98).
Os germanos, na perspectiva de Francisco de Assis, são populações pacíficas, que lentamente foram conquistando o Império Romano, porém, por serem “inferiores”, acabaram dominados pela cultura romana dos “vencidos”. Superficialidade e esquematismo marcam o tratamento dispensado às populações germanas nesta obra.
Os germanos em Fazendo a História: da pré-história ao Mundo Feudal
É da autoria de Rubin Santos Leão de Aquino, Maria Bernadete Moura e Luiza Siciliano Aieta a obra Fazendo a História: da pré-história ao Mundo Feudal. Não encontramos referências acadêmicas sobre os outros autores, com exceção de Aquino, que é graduado e licenciado em História pela UFRJ, atuando no ensino fundamental e médio.
Lançada em 1989 pela Editora Ao Livro Técnico, analisamos, para o presente artigo, a sétima edição revista e ampliada. Os responsáveis pelas charges foram Marcílio Lopes de Souza e Rafael Sanchez e pelos mapas, Elisabeth Lemos Goudinho Freitas.
Os germanos são tratados na Parte Quatro da obra, nos capítulos 1, E o Império Romano chegou ao Fim; capítulo 2, Quem eram esses Bárbaros vitoriosos?; capítulo 3, Como se organizavam os reinos. No total são 8 páginas, dentre as 177 totais da obra, perfazendo um pouco mais de 4% do volume. Nestas páginas encontramos 3 mapas: As invasões dos séculos IV e V (p. 109); Reinos Romano-Germânicos (p. 112); O cristianismo no século VI (p. 113). Há ainda uma charge sobre as invasões (p. 107), um desenho representando uma aldeia germânica (p. 110) (trata-se da mesma imagem presente na obra de Francisco de Assis Silva), e uma reprodução do quadro Odin e as Valquírias percorrendo o mundo (p. 111). No decorrer do texto há diversas transcrições de extratos de fontes, tais como das obras de Amiano Marcelino, Jerônimo, Salviano de Marselha, dentre outros. Não são citadas obras historiográficas contemporâneas. Na bibliografia final figura uma única obra específica: História literária das Grandes Invasões Germânicas, de Pierre Courcelle, um clássico sobre o tema traduzido para o português na década de 50.
Como é possível verificar pela organização dos capítulos apresentada no parágrafo anterior, primeiro os autores tratam das invasões para, depois, caracterizar as populações germânicas. Este capítulo pode trazer alguma confusão aos leitores, já que são citados nomes de diferentes povos considerados bárbaros, sem indicar quais, dentre eles, eram germanos (p. 108).
Nesta obra só é trabalhada a hipótese da invasão, apresentada como devastadora (p. 108), idéia reafirmada pela charge, na qual aparece um homem, com uma espécie de chapéu com chifres, dizendo: “_ Oba! Mais uma casa para incendiar!”. Os autores dividem as invasões em duas etapas: a primeira, quando os germanos, empurrados pelos hunos, entram no Império entre o fim do século IV e início do V; a segunda, com a chegada dos burgúndios, saxões e anglos (p. 108). Para os autores, as invasões acentuaram a desagregação do Império Romano, “em meio às destruições causadas pela guerra e pela formação dos Reinos Bárbaros” (p. 109).
No capítulo seguinte, os germanos são caracterizados. Os autores explicam o sentido do termo bárbaro para os romanos, e informam que, dentro desta lógica, as populações germânicas eram vistas também como bárbaras. A partir daí é apresentada, de forma sintética, a origem dos germanos e a sua organização econômica, política e religiosa no século I. O único aspecto sublinhado referente às populações germânicas no momento das chamadas invasões é a conversão de alguns grupos ao arianismo. Faz-se importante sublinhar que, neste capítulo, ao caracterizar os “costumes” germânicos, é feita uma associação com a aldeia de Asterix e Obelix, o que pode induzir os alunos a considerarem estes personagens celtas, de histórias em quadrinhos, desenhos animados e filmes, como germanos. Ainda neste capítulo, os autores ressaltam que com as invasões “começavam novos tempos” (p. 110), fruto da “interpenetração de romanos germanos”, que “evoluiu lentamente no sentido do feudalismo” (p. 110).
Por fim, os autores apontam os efeitos das invasões: ruralização, escassez de moedas, retração das cidade e do comércio, surgimento da villa como unidade de produção econômica fechada; fragmentação política (p. 112). Os Reinos Germanos são então mencionados, divididos entre o estável, o Franco, e os demais, de curta duração. Para os autores, “a curta duração dos Reinos também foi conseqüência da difícil integração entre vencidos e vencedores”(p. 113), que só foi alcançada lentamente, com a adoção do latim, os casamentos e as conversões ao catolicismo (p. 113).
O principal mérito desta obra é a inserção de trechos de fontes, um verdadeiro referencial face aos demais livros analisados. Além disso, há que ressaltar, é o que mais se detém, quantitativamente falando, na apresentação dos germanos. Contudo, o livro mantém-se fiel aos conteúdos tradicionais: os germanos são vistos como violentos e fundamentais para a derrocada do Império e para a organização do feudalismo; as sociedades germanas, mesmo nos séculos IV e V, são consideradas pela perspectiva de Tácito; é sublinhada a importância do reino franco.
Os germanos em Poder e conquista: transição do feudalismo para o capitalismo
Poder e conquista: transição do feudalismo para o capitalismo é o volume destinado à sexta série da coleção Navegando pela História. O livro analisado foi publicado pela Quinteto Editorial em 2001.
As autoras são Silvia Panazzo, licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenadora de História para o Ensino Fundamental da rede particular, e professora de História no Ensino Fundamental e Médio, e Maria Luísa Vaz, licenciada em História pela USP, mestre e doutoranda em História Social pela USP, professora de História no Ensino Fundamental, Médio e Superior. As iconografias, pesquisa e seleção, ficaram a cargo de Sônia Oddi, Thiago de Azevedo e Maria Rosa Alexandre. Os mapas, sob a responsabilidade de Sônia Vaz.
Os germanos figuram na unidade II, A Idade Média no Ocidente, no capítulo A presença dos bárbaros no Ocidente. Das 159 páginas do livro, 5, ou seja, cerca de 3% do volume, são dedicadas aos germanos. No capítulo há imagens de armas e utensílios celtas e germânicos, ainda que o texto não faça nenhuma menção aos povos celtas.
A seguir, transcrevo as legendas de cada imagem: “ponta de lança da Idade do Ferro”; “Armadura utilizada nas guerras”; reconstituição de construção típica celta. As casas eram feitas de barro e sapé”; “placa de bronze decorada com esmalte, provavelmente utilizada em arreios de cavalo”; “vaso confeccionado em cerâmica”; cruz celta” (p. 34-35). Esta associação entre germanos e celtas figura em outra obra, como já assinalamos. Acreditamos que ela pode induzir os leitores de livros didáticos a considerarem os celtas como uma das populações germânicas.
Também há dois mapas, um das Invasões Germânicas e outro dos Reinos Bárbaros. Há, em boxes, pequenos textos baseados nas obras A cristandade do Ocidente Medieval, publicada em 1998, de autoria de Daniel Valle Ribeiro, autor nacional, e da obra de Pierre Courcelle, História literária das Grandes Invasões Germânicas. Ao final do capítulo, entre as sugestões de leitura complementar, figura o paradidático Os reinos Bárbaros, de Luciano Ramos. A bibliografia presente ao final do volume não apresenta nenhuma obra específica sobre os germanos, com exceção do manual História dos reinos Bárbaros de Mário Curtis Giordani, em sua edição de 1974.
Na obra, as autoras caracterizam os germanos como parte do “povo bárbaro” e dentro da perspectiva romana: “chamavam de bárbaros todos os povos que viviam fora das fronteiras do império e tinham uma cultura diferente da romana” (p. 35). Faz-se importante ressaltar que as escritoras trabalham com a hipótese da migração pacífica dos séculos III e IV e das invasões violentas no século V, que contribuíram “para agravar a crise do império” (p. 35). Elas informam que eles provinham de várias áreas da Germânia, associada no texto a atual Alemanha. As autoras denominam os diversos povos ditos germanos: ostrogodos, vândalos, visigodos, burgúndios, francos, anglos, saxões, lombardos e suevos (p. 35).
Após esta introdução geral, as autoras passam a caracterizar os germanos: sua organização econômica, social, política, militar, jurídica, tudo sintetizado em dois parágrafos. De acordo com tais parágrafos, os germanos organizavam-se em tribos; praticavam a agricultura e o pastoreio; possuíam uma justiça pautada no costume; os reis eram chefes militares e dividiam as terras conquistadas, sendo os principais beneficiados (p. 36).
A seguir, o que causa estranheza, são dedicados quatro parágrafos para descrever as casas germanas. As autoras não apresentam as suas fontes, mas os muitos detalhes ressaltados parecem provir de trabalhos redigidos por arqueólogos. Ao descrever as habitações, usam diversas negativas que podem sugerir, ou suscitar, juízo de valor junto aos alunos: “viviam sem luxo ou conforto material”; “não era utilizado material de alvenaria, nem telhas”; “suas aldeias não se formavam como a de outros povos”; “ suas casas não tinham aparência requintada” (p. 36). O destaque dado a tal aspecto parece estar na intenção das autoras em apresentar “curiosidades” aos leitores, provavelmente, motivando-os a interessarem-se pelo tema, porém, acabam, com tal artifício, reafirmando o caráter diferente dos germanos, quase como “inferiores”, sobretudo, face aos romanos.
Finalizando a apresentação, as autoras tratam das relações dos germanos com os povos conquistados. Afirmam que os germanos não os escravizavam, mas “estabeleciam com eles uma relação de trabalho semelhante à que seria utilizada pelos senhores feudais durante a Idade Média” (p. 37). Também acrescentam que os germanos “eram bastante liberais em relação aos costumes e à vida em sociedade” e muitas vezes estabeleciam uma “sólida amizade” com os trabalhadores. Mais uma vez encontramos termos que exprimem juízos de valor, sem contar com o anacronismo, como no uso do termo "liberal" .
Provavelmente baseadas em Tácito, ou na historiografia tradicional, as autoras constróem uma visão romântica e acrítica sobre os germanos. Sem dúvida, a obra de Tácito é uma fonte fundamental para o conhecimento dos germanos, porém apresenta tais populações como se organizavam no século I e sem a menor preocupação crítica. Como já apontado por diferentes autores, Tácito, em consonância com as preocupações de um dado grupo sócio-político do Império Romano, ao redigir sua obra Germania, idealizou tais populações visando criticar seus próprios co-cidadãos (BORGES, 1982: p. 49). Logo, se as referências por ele apresentadas devem ser analisadas com cautela, por não se constituírem como uma visão objetiva sobre estas populações nos primeiros anos da era cristã, utilizá-las para retratar os germanos quatro ou cinco séculos depois é, no mínimo, um certo equívoco.
Com a expansão territorial, o constante e freqüente contato com os romanos, as sociedades germanas tornaram-se cada vez mais complexas, com profundas diferenças sócio-econômicas internas. Ao ingressaram no Império e organizarem-se em reinos, salvo casos pontuais, os germanos praticaram a segregação social, proibindo os casamentos de germanos com as populações locais; mantendo sua versão ariana do cristianismo; adotando o sistema da personalidade das leis, no qual as pessoas eram julgadas pela lei de seu povo etc. Esta nova visão sobre os germanos tem sido construída com os avanços dos trabalhos historiográficos, sobretudo a partir dos anos 80 (Brown, 1989; MAIER, 1986; GARCIA MORENO, 1981; BELTRÁN LLORIS, 1985, MUSSET, 1982, dentre outros). Contudo, estas pesquisas foram ignoradas pelas autoras, que caracterizaram os germanos como selvagens, já que não possuíam o luxo e o requinte romanos, mas também como “liberais” e amistosos.
Os Germanos no Caminho das Civilizações - História Integrada - Geral e Brasil
O livro Caminho das Civilizações - História Integrada - Geral e Brasil, voltado para os alunos do ensino médio, foi publicado em volume único pela Atual Editora, com ênfase na preparação para o vestibular, pois ao final de cada unidade figuram diversas questões de exames.10 Para a elaboração deste artigo analisamos a edição de 1998. O autor é José Geraldo Vinci de Moraes, professor da UNESP e Doutor em História Social pela USP. As ilustrações ficaram a cargo de Lúcia Hiratsuka; os mapas sob a responsabilidade de Mário Yoshida; a assessoria técnica e pesquisa iconográfica por Plínio Franco Nogueira.
Das 544 páginas do livro, em 5 há referências aos germanos, ou seja, menos de 1% do número total de páginas. Não são apresentadas imagens, mas há três mapas: A Europa e os Povos Bárbaros (p. 93); As invasões bárbaras (p. 95); Os Reinos Bárbaros Germânicos no século V (p. 95). Ao final da unidade IV, A época medieval, na bibliografia recomendada sugere-se a leitura do paradidático Os povos Bárbaros, de Maria Sonsoles Guerras (p. 129). A obra não contém bibliografia final, mas no capítulo 12, ao tratar das “invasões bárbaras”, transcreve um texto não identificado de Perry Anderson (p. 95-96).
A primeira menção aos germanos ocorre na Unidade III, no capítulo 11, O Império Romano – apogeu e decadência”, especificamente no tópico Os bárbaros. Nele o autor define bárbaros, pautado na perspectiva romana: “os romanos denominavam bárbaros os povos que não falavam latim ou grego, por isso considerados incivilizados” (p. 79). Ele acrescenta que os germanos viviam no norte da Europa e se dividiam em dois grupos: ocidentais (suevos, lombardos, teutônicos e francos) e orientais (godos, visigodos, vândalos, burgúndios). Moraes não aponta qualquer diferença entre estas populações, dividindo-as somente por critérios geográficos. Contudo, diversos trabalhos salientam que, face aos ocidentais, os germanos orientais eram mais romanizados, fruto de séculos de contato e até convivência com as populações das regiões orientais do Império, mais urbanizadas e ricas (Beltrán lloris, 1985: p. 12-14).
Informar as diferenças fundamentais entre os germanos orientais e ocidentais tornaria mais claro para os alunos o dado apresentado em seguida pelo autor: “a partir do século V, as penetrações bárbaras adquirem um caráter mais violento e belicoso, principalmente com as invasões dos germânicos orientais ...” (p. 79).
Seguindo a tese das invasões pacíficas-invasões violentas (há que ressaltar que o autor não usa o termo migrações), Moraes afirma que “as primeiras invasões bárbaras foram na realidade pacíficas, produto da penetração de povos germânicos nos limites do Império”... E que “a partir do século V, as penetrações bárbaras adquirem um caráter mais violento e belicoso, principalmente com as invasões dos germânicos orientais e de outros povos bárbaros de origem oriental” (p. 79). Faz-se importante ressaltar que o autor aponta como uma das motivações para as invasões pacíficas “as dificuldades de sobrevivência (problemas climáticos e falta de terras férteis)” (p. 79) dos próprios germanos, ou seja, aponta uma motivação interna para o fenômeno da expansão germânica, sem reduzi-los a meros “joguetes” de outros povos.
A referência seguinte aos germanos ocorre na Unidade IV, no capítulo 12, Alta Idade Média, no tópico Os povos bárbaros. O autor praticamente reproduz, aqui, o texto presente na unidade anterior, mas acrescenta que os germanos compunham um dos grupos de povos “chamados bárbaros”, junto aos grupos eslavos e dos hunos, ávaros e magiares.
Neste capítulo, Moraes caracteriza a economia e a sociedade do que denomina de “bárbaros germânicos”, fazendo uma distinção entre a organização das populações germânicas antes e depois dos contatos com romanos. De um “sistema comunitário primitivo”, os germanos, em franco crescimento demográfico e com as guerras de conquistas, fenômenos acelerados pelo contato com os romanos, estabeleceram a propriedade particular, que ficou concentrada nas mãos da aristocracia (p. 94).
Segundo Vince Moraes, “as penetrações dos povos bárbaros que desestruturaram o Império Romano ocorreram em duas ondas” (p. 94). A primeira, no início do séculos V, com a entrada de hunos, suevos, vândalos, visigodos, dentre outros, causando um “impacto limitado” e constituindo reinos de “muito breve” duração (p. 94). A segunda fase, século V e VI, foi, para o autor “mais duradoura e colaborou definitivamente para a formação do feudalismo” (p. 94).
O autor ressalta, ainda, que “três episódios fundamentais marcaram o surgimento de três grandes reinos bárbaros”: as invasões de francos e burgúndios, a conquista da Inglaterra pelos anglo-saxões e a tomada da Itália pelos lombardos (p. 96).
A última referência que Vinci de Moraes faz aos germanos também figura na Unidade IV, no capítulo 14, O Feudalismo, no tópico As contribuições germânicas. Nele o autor registra que “as contribuições germânicas para definição do feudalismo foram o comitatus, a economia rural e o direito consuetudinário”.
Após a leitura do capítulo, tem-se a impressão que o estudo das populações germânicas são pouco relevantes para a compreensão do mundo medieval. Características que não só os diferenciam entre si, como também apontam para o seu papel na história do ocidente, são ignoradas.
A nomenclatura “povos bárbaros” utilizada no livro reforça o estereótipo. Este termo além de generalizar culturas totalmente diferentes, como já foi assinalado, pode induzir os leitores à uma associação dos germanos com características negativas, uma vez que a palavra “bárbaro”, em seu sentido atual, significa selvagem, “não-civilizado”, violento, etc, sobretudo porque o autor afirma que “povos bárbaros desestruturaram o Império Romano”(p. 96).
Por fim, há que ressaltar o destaque dado aos reinos franco, lombardo e anglos-saxões, o que revela uma forte influência da historiografia francesa e inglesa, que privilegia estes regiões como centrais no medievo, marginalizando territórios como a Península Ibérica, e a Europa Central.
A obra de Vinci de Moraes tem o mérito de, em perspectiva marxista, romper com o olhar romântico construído sobre os germanos como populações sem diferenciações sócio-econômicas. Fica patente em seu texto que, ao se instalarem no Império Romano, os germanos já possuíam uma sociedade complexa e que o fizeram, dentre outras motivações, por questões internas. Contudo, ao culminar o fenômeno da inserção dos germanos no Ocidente com a formação do feudalismo, simplifica a questão.
Os germanos na História para o ensino médio
A obra História para o ensino médio é um livro publicado pela Scipione, em volume único, voltado para o Ensino Médio, com ênfase na preparação para o vestibular. A obra contém, ao final das unidades, um sessão intitulada Questões e Testes, com diversas questões provenientes de vestibulares de todo o país.
O volume analisado para este artigo data de 2002. Seus autores são Cláudio Vicentino, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela USP, pós-graduado em História pela UNB, professor do ensino médio e de cursos pré-vestibulares, diretor executivo da Sociedade Brasileira do Ensino de História (SOBENH) e membro da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educacionais (Abrale); Gianpaolo Dorigo, bacharel e licenciado em História pela USP e professor do ensino médio e de cursos pré-vestibulares. A pesquisa iconográfica ficou a cargo de Edson Rosa, Lourdes Guimarães e Vanessa Manna e os mapas sob a responsabilidade de Mario Yoshida.
Este livro, face a todos analisados, possuí uma particularidade: não utiliza o termo germano. Ele trata em bloco todas as populações que se expandiram para o Império Romano entre os séculos III ao VI denominando-os unicamente como “bárbaros”. Aos ditos “bárbaros”, os autores dedicam menos de 2 páginas: 2 parágrafos na página 91, no item O baixo Império (séculos III d.C. – V d. C.) e 6 nas páginas 110 e 111, no tópico Os reinos Bárbaros. Ou seja, das 688 páginas do livro, menos de 0,5% mencionam os “bárbaros”. A obra não apresentam imagens relacionadas ao tema, mas um mapa, Os Reinos Bárbaros, C. 526 (p. 111). No Índice Remissivo não há entradas nem para o termo bárbaro nem para germano. Na bibliografia final não são citadas obras específicas sobre os germanos; mas figuram os livros de Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo (1982), e W. C. Bark, Origens da Idade Média (1974), que tratam especificamente do período de expansão germânica.
Nos poucos parágrafos dedicados ao tema, os autores defendem que a “intensificação da penetração dos bárbaros”... “agravou a situação já caótica de Roma” (p. 91). Segundo Vicentino e Dorigo, as invasões marcaram o final do Império, mas foram além de 476, prolongando-se até a expansão viking, e “permitem compreender a estrutura econômica e social do feudalismo” (p. 111).
Para o autores, a “derrubada” do Império e o surgimento do mundo feudal estão ligados às invasões bárbaras, pois estes “povos” foram responsáveis pela ruralização, volta à economia de sobrevivência, e a fragmentação político e cultural do Ocidente (p. 111).
O tratamento dispensado pelos autores ao tema germanos é nulo. Só há referências genéricas aos “bárbaros”, que cobrem menos de 0,5 % da sua obra. Sua abordagem é muito superficial e simplista. Só uma idéia básica é apresentada: os “bárbaros” foram um dos responsáveis pelo fim do Império Romano e pela organização do sistema feudal.
Ressalta-se que na introdução à unidade A Idade Média, os autores afirmam que “o estudo da Idade Média continua sendo importante para nós, pois a herança européia tem um papel significativo na formação da sociedade brasileira” (p. 105). Mas será este o sentido de estudarmos o período medieval no Brasil?
Pautados em uma interpretação marxista mecanicista e vulgar, os autores apresentam o mínimo de informações, a fim de que os leitores possam s concentrar na compreensão da passagem do modo de produção escravista para o feudal, não só simplificando a temática, mas tornanda-a árido, sem valor intrínseco. Neste sentido, os germanos ficam no campo do não dito e são relegados à tema marginal, provavelmente porque os autores não o consideram relevante para a formação da sociedade brasileira, único critério que parecem adotar para justificar o estudo de determinados fenômenos históricos.
Sem dúvida, os autores rompem com a visão dos germanos como “bons selvagens”, mas para substituí-la pela idéia dos “destruidores”, o que revela um total desconhecimento, ou deliberada exclusão, das teses propostas pela historiografia mais recente sobre o tema e da importância de discutir, no ensino médio, as diferenças culturais e os contatos entre distintas populações no medievo, o que incluí uma reflexão sobre os germanos.
Os germanos na obra História: das cavernas ao Terceiro milênio
A obra História: das cavernas ao Terceiro milênio é voltada para o ensino médio e foi organizada em um único volume. Com clara preocupação quanto à preparação para o vestibular, ao final de cada capítulo são apresentadas questões de exames. O volume analisado foi publicada pela Editora Moderna em 2002. Suas autoras são Myriam Becho Mota, Masters of Arts pela Ohio University, Athens, EUA, e professora do ensino médio e superior em Itabira, MG, e Patrícia Ramos Braick, mestre em História das Sociedades Ibero-americanas e Brasileira, pela PUCRS, e professora do ensino médio em Belo Horizonte, MG. Os responsáveis pela seleção das iconografias foram Vera Lúcia da Silva Barrionuevo (coordenadora), Pietra Stefania Diwan e Daniela Palma. Quanto aos mapas, ficaram a cargo de Alessandro Passos da Costa, Aline Pellisari Antonini, Fábio Eduardo Bueno, Rodrigo Carraro Moutinho.
Os germanos figuram na Unidade II, A construção dos sentidos, no capítulo 10, que tem o sugestivo título Os doces bárbaros. Menos de 1% do volume trata dos germanos, o que significam 4 páginas num total de 592, que também contém dois mapas, um localizando os “povos bárbaros” antes das invasões e outro sobre o “avanço bárbaro”, e imagens (uma espada germânica, uma cena do filme O Nome da Rosa, e uma foto tirada em Paris, em 2002, de uma manifestação do movimento de extrema direita Frente Nacional da França, pedindo o fim das leis de imigração). Há ainda boxes com trechos de obras de historiadores, como Jacques Le Goff (A velha Europa e a Nossa, 1995); Hans Magnus Enzensberger (Guerra Civil, 1995); Fernanda Espinosa (Antologia de textos históricos medievais, 1972); Marvin Perry (Civilização Ocidental, uma história concisa, 1999); Michel Rouche (História da Vida Privada: do Império Romano ao ano mil, 1992). Na bibliografia final, não são citadas obras específicas sobre os germanos; mas figura o texto de Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.
Na introdução do capítulo, as autoras tratam da questão das migrações em geral para, por fim, apontar as migrações dos séculos IV e V como a causa do fim do Império Romano, que “fora derrubado pela sucessão de golpes dos chamados povos bárbaros” (p. 84). A seguir, elas explicam o termo bárbaro, apresentando a origem grega da palavra e o sentido dado pelos romanos: “grupos que não partilhavam a cultura greco-romana e viviam fora dos limites do império” (p. 84). Elas concluem a introdução afirmando que os “povos bárbaros” eram basicamente de origem germânica e eslava e “trouxeram uma contribuição decisiva” para a formação do Ocidente.
No item Os germanos, as escritoras caracterizam estas populações, baseando-se nas obra De bello Gallico de Júlio César e Germânia de Tácito. No seguinte, A migração dos Bárbaros, elas fazem um histórico dos contatos entre germanos e romanos, culminando com os acontecimentos do século V. Faz-se importante ressaltar que as autoras não utilizam o termo invasão, mas afirma que “as incursões dos hunos e demais povos bárbaros nos territórios romanos do Oriente e do Ocidente provocaram pânico e mudanças no cotidiano da sociedade” (p. 87). São apontadas como mudanças a ruralização, a fragmentação política, o colonato, o surgimento dos reinos “bárbaros” e o desenvolvimento de “instituições feudais” (p. 87).
No tópico Nasce uma nova cultura, elas tratam da fusão entre romanos e germanos. Falam da segregação inicial, mas apontam para o destacado papel da religião na superação das diferenças. Em um box intitulado Breves reinos bárbaros, citam os reinos considerados de curta duração (O reino suevo não é mencionado) e dão destaque ao reino franco “o mais bem sucedido dos Estados germanos” (p.88) e aos reinos anglos-saxões (p. 89).
As autoras pretendem inovar, trabalhando unicamente com a tese da migração germânica, negando as invasões. Contudo, apesar de não usarem o termo invasão, consideram violenta a chegada dos “bárbaros” no Ocidente no século V e a causa da desagregação do Império Romano. Tampouco destacam as transformações internas nas populações germânicas entre os séculos II ao IV, ficando presas à visão de Tácito e sem reconhecer, como uma das motivações para a expansão germânica, estas próprias mudanças. Seguindo a tradicional historiografia francesa e anglo saxônica, destacam, entre os germanos, os reinos franco e anglo-saxões, como os verdadeiros “berços” do Ocidente.
Este manual didático, escrito no fim da década de 90, tenta incorporar as novas perspectivas historiográficas, sobretudo francesas, mas o faz timidamente, principalmente devido ao pouco espaço dedicado ao tema, relegado ao segundo plano em função de tantos outros conteúdos a serem trabalhados, e a fidelidade às visões esquemáticas tão freqüentes nos livros didáticos e que acabam reduzindo todas as reflexões às mudanças no campo da infraestrutura, como uma simplificação e mecanização de certas teses do marxismo. Assim, ainda que procurem fugir do modelo dos germanos como violentos, acabam, implicitamente, por reforçá-lo, com a expressão “doces bárbaros” do título, as ações destas populações.
Conclusão
A partir do livros analisados, que certamente são uma significativa amostragem do que tem sido utilizado nas escolas de todo o Brasil como apoio didático para o ensino de História nos níveis fundamental e médio, podemos chegar a algumas conclusões que passamos a apresentar e discutir.
Em primeiro lugar, o tema germanos é relegado a segundo plano, sem valor como uma temática histórica em si. Na melhor das hipóteses, chega a abarcar 4% das páginas de uma obra, mas quase sempre em associação ao fim do Império Romano ou ao surgimento do feudalismo. Acreditamos que o pouco espaço reservado à temática nos livros didáticos (e, em relação íntima a este dado, também nos currículos escolares) é um indício da persistência do preconceito e, por extensão, de uma falta de interesse acadêmico no aprofundamento dos assuntos referentes ao medievo no ensino médio e fundamental, calcados, ainda, na visão de que como não houve Idade Média no Brasil, só alguns poucos aspectos do mundo medieval contribuíram para a formação da sociedade brasileira, e estes são os destacados. Tal perspectiva revela a persistência de uma concepção de história encadeada, linear, coerente e exemplar, ao menos entre os autores dos livros didáticos.
Neste sentido, instaura-se um ciclo vicioso: a superficialidade no tratamento do tema reforça o desprezo pela temática, acarretando, ainda, a sua não compreensão por parte dos alunos, que ficam sem entender quem foram os germanos; de onde vieram; como e por que chegaram a ultrapassar os limites do império; qual o impacto de sua presença no Ocidente, dentre diversas outras questões.
Em segundo, verificam-se duas grandes tendências no tratamento dos germanos, quase excludentes: ou os germanos são considerados bons selvagens ou são os destruidores violentos. Por outro lado, a temática é sempre abordada de forma generalizante. Os germanos são apresentados como um grupo uniforme e, em muitos casos, até confundidos com outros “bárbaros”, tais como os celtas, os hunos e os eslavos.
Em terceiro, muitas vezes com o objetivo de criar uma empatia com o leitor ao apresentar os germanos, alguns autores cometem anacronismos, incluem termos que sugerem e/ou estimulam juízos de valor, ou, ainda, tratam tais populações como excêntricas, incluindo dados soltos, sem qualquer análise, a título de “curiosidades exóticas”. Em algumas obras evidencia-se uma profunda deficiência pedagógica e uma clara ausência de rigor teórico e metodológico na apresentação do tema.
Por fim, há que sublinhar o gritante descompasso entre os conteúdos dos livros didáticos, que parecem repetir as conclusões da historiografia do século XIX, e os avanços da historiografia no tocante os germanos. Ou seja, a despeito do crescimento nas investigações sobre o medievo, inclusive no Brasil,16 estas não têm se traduzido na produção de textos atualizados que venham a ser empregados no ensino fundamental e médio. Para só citar alguns indícios deste crescimento: multiplicou-se o número de pessoas que buscam, tanto em nível de graduação quanto pós-graduação, desenvolver trabalhos cujas temáticas se referem ao medievo; a presença, nos departamentos de História das universidades de todo o país, de professores doutores, ou doutorandos, atuando nas áreas de ensino e de pesquisa sobre a Idade Média, que, efetivamente, obtiveram a sua formação acadêmica desenvolvendo investigações nesta área; crescimento das publicações que tratam sobre aspectos diversos do medievo; organização de centros regionais de ensino, pesquisa e extensão dedicados ao medievo, tais como na UFPR, UFES, UFRGS, UNB, UERJ e UFRJ; ampliação dos espaços para as trocas acadêmicas no âmbito dos estudos medievais, mormente através da promoção de eventos de caráter científico; a fundação, 1997, da Associação Brasileira de Estudos Medievais, a mais importante sociedade brasileira de caráter científico que reúne medievalistas nacionais, bem como especialistas estrangeiros.
No caso específico do tema germanos, há diversas pesquisas de qualidade em desenvolvimento em nosso país. Para só destacar alguns especialistas no tema, encontramos, na UFRJ, a Prof ª Drª Leila Rodrigues da Silva; na UFF, o Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos; na USP, o Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva; na UNESP, o Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho e na UFPR, o Prof. Dr. Renan Friguetto, todos com trabalhos publicados. Infelizmente, o que é produzido pelos medievalistas brasileiros acaba tendo pouca divulgação fora dos circuitos acadêmicos.
Os autores de livros didáticos ainda estão muito presos à historiografia tradicional, sobretudo francesa, ignorando, muitas vezes, os novos materiais que vêm sendo produzidos, preferindo as antigas explicações, mais esquemáticas, porém mais adequadas por caberem nos poucos parágrafos destinados à questão. Também não podemos ignorar as pressões externas que eles sofrem: os autores precisam adequar suas obras às diretrizes estatais, sobretudo face ao Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o crescimento do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) a partir do governo FHC, e às exigências das editoras; o tema germanos, assim como outros referentes ao medievo, não são vistos como rentáveis pelas editoras que publicam livros didáticos e paradidáticos.
Em um artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo do dia 5 de setembro de 2001, em que pesquisadores ligados à universidade criticavam os conteúdos dos livros didáticos, a autora Sônia Irene do Carmo aponta que “o livro didático tem um limite que é dado pela capacidade de ser trabalhado no período de um ano letivo, com "x" número de horas aulas semanais. Esse limite é incompatível com as exigências que se fazem" e que “as críticas de pesquisadores aos livros didáticos nem sempre levam em conta que há um limite para a atualização das publicações” (Caderno Cotidiano: p. C-9).
Sem dúvida, um livro didático, devido aos seus objetivos, não permite o aprofundamento de todos os temas e sempre pressupõe escolhas. Contudo, a necessidade de ser sintético e compreensível pelos leitores da faixa etária a que se destina e seguir as diretrizes do MEC ou das editoras não justificam o desconhecimento das principais inovações historiográficas já aceitas pela comunidade acadêmica, a inclusão de juízos de valor e anacronismos nos textos, a superficialidade e o excesso de esquematismo no tratamento das temáticas, dentre outros aspectos, por parte dos autores dos livros didáticos.
Discordo da visão, aceita por muitos, de que “a história que é pesquisada nas universidades pelos historiadores de ofício é diferente da história que é narrada nos livros didáticos e que é ensinada nas escolas”(MUNAKATA, 1998: p. 294). Esta idéia justifica e legitima um modelo que vem se perpetuando há décadas: ensino e pesquisa caminham separadamente. Mesmo na docência universitária, salvo raros casos, há uma clara diferenciação entre a história que é fruto da pesquisa dos professores face a que é efetivamente apresentada por eles nas salas de aula. Nesse sentido, aponto para a necessidade de rompermos com este modelo, ressaltando a importância do diálogo constante entre as “duas histórias” apontadas por Munakata. Há que estimular o diálogo, trazendo para a docência, em todos os níveis, o rigor teórico e os métodos e técnicas de pesquisa, bem como buscar, nas investigações, formas criativas de sintetizar e divulgar as conclusões historiográficas.
No caso específico da pesquisa de temas medievais, há muito caminho a ser trilhado a fim de que o medievalismo se consolide como um campo do saber em nosso país. Para tanto, não basta realizarmos pesquisas acadêmicas voltadas unicamente para os pares. Há que criar espaços para a divulgação das pesquisas e para o diálogo com os professores que redigem os textos didáticos e atuam diretamente com os alunos, tanto no mundo virtual - através das revistas eletrônicas, das listas de discussão, dos sites especializados -, bem como nos espaços da universidade, por meio da promoção de eventos abertos à comunidade e de cursos de atualização para os professores. Só com a intensificação deste diálogo que, no longo prazo, o estudo do medievo ganhará reconhecimento como campo de saber legítimo também no ensino fundamental e médio. Contra a superficialidade, juízos de valor, anacronismo e desconhecimento sobre o medievo, que reinam em muitos livros didáticos e em salas de aula, só o acesso sistemático ao conhecimento crítico e atualizado constantemente pode ser um remédio eficaz.
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* Este artigo está dedicado aos alunos Ana Beatriz dos Santos, Bárbara Lima, Márcio Eugênio e Walter Cláudio Ramos Mattos Filho, que cursaram esta disciplina e que com suas idéias, questionamentos e dúvidas me auxiliaram na produção do presente texto. Agradeço também a Profª Drª Leila Rodrigues da Silva, que coordena juntamente comigo o Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A professora contribuiu com diversas críticas e sugestões apresentadas no decorrer da produção deste artigo. Agradeço ainda a meu pai, Elias Nunes Frazão, pela atenta revisão do texto.
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