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Terremoto de Lisboa, 1755: Terra em transe
Mary Del Priore | 01/11/2003 00h00
O comerciante francês Jacome Ratton costumava ir à missa na igreja do Carmo, no centro de Lisboa. Naquela manhã, ele não foi. De sua janela via “o céu risonho como quase sempre é nas felizes regiões da Europa do sul” – como relatou anos mais tarde. Não percebeu a agitação dos animais de tração, os cães em disparada pelas ruas, os pássaros em louca revoada. Três minutos antes das 10 horas ouviu-se um tremendo ruído e na cidade levantaram-se enormes colunas de poeira. Estremecia a terra e em menos de um minuto ela engoliu o cais da alfândega. A poeira era tão densa que como um nevoeiro espesso impedia que se enxergasse a dois passos de distância. Era intensa também na casa de Ratton, ou no que sobrara dela. “Ao sentir o primeiro abalo – diz ele – me ocorreram muitas reflexões para salvar a minha vida e não ficar sepultado debaixo das ruínas da própria casa ou das vizinhas, se descendo as escadas fugisse para a rua.
Mas tomei o partido de subir ao telhado nas vistas de que abatendo a casa eu ficasse superior às ruínas.” Ratton era jovem, tinha 19 anos, e pôde suportar ser jogado de um lado para outro, antes de cair junto com o teto e as paredes que sustentavam sua casa. Arrastando-se, pulou para o jardim fugindo em corrida cega. Teve tempo de evitar uma rachadura que engoliu uma carroça e seus cavalos, até que o cheiro fétido de enxofre, vindo do Tejo, o paralisou. O rio, “um mato confuso de mastros entrelaçados e um horroroso cemitério de cadáveres” – segundo outro observador da época – ululava. Gania. Foi assim, com a garganta sufocada de fumaça, arranhões e machucados pelo corpo e as vestes em pedaços, que discerniu, por entre nuvens de fumaça e poeira, o rosto de ensangüentados familiares. A seus pés, uma jovem soluçava, apertava no seio sujo uma criança morta.
Ratton não foi o único a entender o que estava acontecendo. Houve vários observadores do fenômeno entre os membros da comunidade britânica. Com a tradicional fleuma inglesa, um deles assim narrou os acontecimentos: “Eu vivia numa casa próxima ao centro da cidade. O meu quarto ficava no terceiro andar. Aí estava sentado quando senti a casa tremer com suavidade, aumentando gradualmente com um barulho precipitado, como o som de carruagens. Isso foi o que de início imaginei ser a causa do barulho e tremor. Mas, ao observar os quadros no meu quarto a bater contra as paredes, levantei-me e percebi que era um terremoto. Nessa altura, o movimento era tão violento que eu me mantinha em pé com dificuldade. Toda a casa rachava a minha volta, as telhas, as paredes despedaçavam-se. Ouvi aterrorizado os gritos e choros vindos de todos os lados. Então, resolvi mudar de roupa e sair também.
Tinha me vestido até a cintura e estava a enfiar o casaco e o colete quando senti o segundo abalo. Agarrei meu chapéu e, tirando a minha cabeleira do suporte, desci dois lanços e meio de escadas, mas parei de repente ao ouvir cair telhas e grandes pedras. Isso me fez refletir que, ao fugir de uma casa a cair, corria o risco de ficar sepultado sob as ruínas de muitas outras nas ruas estreitas. Por isso, resolvi ficar onde estava, numa escadaria de pedra em caracol. Enquanto aqui permaneci, os degraus sobre os quais eu estava ergueram-se do chão e eu esperava morrer esmagado a todo o momento. Durante este período ouvi uma voz triste, abaixo de mim, gemendo e chamando por socorro, até que o tremer da casa me permitisse ajudar. Foi o que fiz assim que tive uma oportunidade e descobri que a pessoa em aflição era nossa governanta, que fugira logo ao primeiro abalo, levando consigo um criado, sendo, porém, surpreendidos à porta da rua pela parede que os feriu, deixando-os soterrados nos destroços”.
Durante três dias, enquanto a cidade queimava, saques e assassinatos foram freqüentes. Os sacrilégios também, uma vez que ladrões não faziam cerimônia em roubar as ricas igrejas de Lisboa. Grupos de bandidos roubavam e estupravam quem cruzasse seu caminho. Desertores espanhóis percorriam o que sobrara das casas levando o que servisse para vender. Os famintos ameaçavam atacar os que tinham algum alimento, de forma que a comida era sempre consumida às escondidas. Havia um clima de total insegurança entre os sobreviventes.
O terremoto de Lisboa do 1º de novembro de 1755 foi uma das maiores tragédias do século 18. Sua repercussão no mundo ocidental foi registrada por escritores como Voltaire e filósofos como Kant, afora os milhares de relatos de médicos, físicos e pessoas comuns que sobreviveram até os dias de hoje. Ninguém jamais soube exatamente o número de mortos, mas a lembrança do horror conserva-se intacta.
Mary Del Priore é historiadora, autora de O mal sobre a terra: uma história do terremoto de Lisboa de 1755, entre outros 17 livros
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