quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
7O57 - OITOCENTISMO
Aproximações entre Nietzsche e Eça de Queirós
acerca da problemática da História
no Oitocentismo europeu
Renato Nunes Bittencourt (UFRJ)
Prólogo
A questão do uso do conhecimento histórico na formação da cultura de um povo e seus desdobramentos na vida individual é tema recorrente na obra de importantes pensadores do período do Oitocentismo europeu. Neste presente artigo, privilegio as considerações de Nietzsche acerca do uso da História para vida, assim como o tema da História na obra literária de Eça de Queirós, mais precisamente no romance A ilustre casa de Ramires, para que possamos constatar possíveis convergências entre ambos os autores, ressaltando assim a importante associação que podemos realizar entre as perspectivas da Filosofia e da Literatura.
O problema da História na filosofia de Nietzsche
Nietzsche, na sua Segunda Consideração Intempestiva, publicada em 1874, versa sobre a importância e o malefício do uso da História para a vida, justificando, para tal empreendimento, a necessidade de se investigar a proposta latente na perspectiva do historicismo em voga ao longo do século XIX, que consistia na tentativa de compreender a existência do homem e do próprio mundo como decorrência de um encadeamento puramente racional (inteligível), que se manifestaria de modo mais acabado na ação humana formadora do processo histórico das sucessivas civilizações do mundo. A corrente historicista, sendo herdeira da filosofia idealista de Hegel, preconizava a intervenção de uma ordem providencial sobre a Terra. Nessas condições, mesmo as mais contraditórias ações humanas, efetivadas sobretudo por meio das guerras entre os povos, fariam parte dos desígnios do Plano Divino para o estabelecimento de seus projetos, posto que a ação humana seria reflexo da própria obra divina da Terra [HEGEL, 1999: 373]. As constantes transformações das civilizações humanas decorreriam da consolidação da idéia de liberdade do mundo concreto, garantidas pelo caráter de racionalidade presente na realidade [HEGEL, 2003: p. XXXVI]. Para Nietzsche, tal concepção idealista, considerada por ele como um grande absurdo, retiraria da própria existência o seu fundamento imanente, transferido para uma esfera abstrata, da qual derivaria o sentido lógico do mundo concreto. Estes seriam, em linhas gerais, os problemas decorrentes da perspectiva metafísica presente no historicismo hegeliano, de acordo com as críticas empreendidas por Nietzsche.
Contudo, cabe também versarmos sobre o vínculo que havia entre a visão de mundo historicista e a busca desenfreada pelo conhecimento, capitaneada pela figura denominada por Nietzsche jocosamente como o “homem erudito” [NIETZSCHE, 1996: 296]. Ao longo do Oitocentismo europeu, o conhecimento histórico granjeou uma elevação no seu estatuto epistêmico, sendo considerado como o saber por excelência produzido pela cultura humana. Dessa maneira, havia a proposta de se tentar interpretar todo tipo de ação humana no mundo pelas categorias do discurso histórico, fato este que demonstrava o projeto delimitador desses intelectuais, reclusos numa única possibilidade de compreensão do mundo. O conhecimento histórico decorria de um anseio pela compreensão adequada e irrestrita do passado, para que este tivesse os seus fundamentos e eventos desvelados minuciosamente pelo homem. O historiador idealista do Oitocentismo europeu se caracterizava por dirigir o seu olhar para o passado acreditando que, dessa maneira, poderia conhecer o sentido existencial de seu próprio tempo.
Para Nietzsche, o conhecimento da História, de acordo com o modo pelo qual é utilizado pelo investigador, pode ser imputado como benéfico ou maléfico para o desenvolvimento adequado da vida. [NIETZSCHE, 2003: 5]. Vejamos então, de acordo com a filosofia de Nietzsche, uma breve exposição do gênero historiográfico por ele denominado como “História Monumental” [NIETZSCHE, 2003: 18], pelo fato desta perspectiva historiográfica servir de elucidação para a minha exposição.
Quando utilizamos o conhecimento do passado, através do exemplo dos grandes feitos dos homens valorosos como estímulo para o empreendimento de novas ações, a História se torna positiva e propícia para o desenvolvimento da vida, pois ela proporciona a continuidade da atividade humana, incentivando o desabrochar da criatividade. Um indivíduo, ao tomar conhecimento de uma ação extraordinária efetivada por seus ancestrais, quando movido por um senso de ampliação da própria potência de agir, utilizará o passado glorioso como referencial para a realização das suas ações no momento presente [NIETZSCHE, 2003: 19]. Por outro lado, quando existe uma compreensão inadequada do conhecimento histórico, cria-se uma espécie de ruptura entre a ação grandiosa do passado e a vida do homem do presente, que perde a capacidade de agir de acordo com a sua singularidade [NIETZSCHE, 2003: 23]. Esse distúrbio ocorre quando o homem do presente, ao conhecer pormenorizadamente a exuberância extraordinária do passado de seu povo, se sente indigno desta magnitude, apequenando-se moralmente perante a grandeza extraordinária existente na vida dos homens do tempo de outrora. Tal separação torna o conhecimento histórico do passado um elemento destruidor das disposições ativas do indivíduo, pois este não consegue se colocar à altura da excelência dos seus gloriosos antepassados. Por conseguinte, o conhecimento do passado monumental efetivado pelos grandes homens, utilizado inadequadamente, oprime o indivíduo do presente, que se torna, portanto, totalmente incapaz de desenvolver suas ações com a flexibilidade necessária para a ampliação da sua capacidade criativa [NIETZSCHE, 2003: 19]. Para Nietzsche, a compreensão monumental da História, no seu viés negativo, considera que somente no passado havia brilho e beleza, de modo que, no momento presente, seria impossível a retomada dos valores grandiosos e dignos do homem. [NIETZSCHE, 2003: 22-23].
Após a apresentação do problema do conhecimento histórico em Nietzsche, podemos passar para a próxima etapa do presente escrito: uma interpretação da obra A Ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós, por meio do uso do pensamento nietzschiano acerca da questão do uso adequado e inadequado da História para a vida.
O mal-estar do conhecimento da história
na literatura de Eça de Queirós
Na citada obra de Eça de Queirós, temos como protagonista Gonçalo Ramires, um nobre lusitano que se propõe a redigir as crônicas sobre os grandes nomes antepassados de sua ilustre família, cujo legado perpassa a própria formação histórica e social de Portugal. Gonçalo, o “fidalgo da Torre”, dedica grande parte do seu tempo nesse vigoroso e extenuante empreendimento de criar uma portentosa obra que destaque toda a importância da família Ramires para a consolidação do destino glorioso de Portugal dentre as nações do Velho Mundo. Todavia, a possibilidade de conhecer o legado de seus ancestrais motiva em Gonçalo um mal-estar moral, decorrente da discrepância entre o caráter extraordinário e empreendedor dos Ramires do passado e ele, um nobre decadente que manifesta na sua vida prática apenas o esquálido reflexo dos tempos gloriosos do passado de sua família. Gonçalo sofre pela discrepância existente entre a nobreza moral de seus antepassados e sua vida desprovida de valor heróico. Quanto mais ele conhece a importância histórica dos seus valorosos ancestrais, mais ele se angustia diante da impossibilidade de agir gloriosamente no tempo presente. Mais ainda, o empreendimento investigativo de Gonçalo o aliena da realidade do próprio meio no qual ele vive, de maneira que o fidalgo fica completamente absorto na contemplação do legado de seus ancestrais, deixando o seu momento presente no estado de inércia. Gonçalo não compreende a singularidade do seu próprio tempo histórico, pois o valor que ele preconiza, o da nobreza heróica, nos tempos modernos foi substituído por uma atitude pragmática diante do mundo, muitas vezes individualista e contrária aos valores da fidalguia. O homem nobre do passado, em nome de sua pátria, de seu ideal, não raro sucumbia nas grandes batalhas, abdicando do desfrute da própria vida individual pelo benefício de uma causa maior do que ele mesmo. Todavia, a atividade do homem do presente consiste apenas em conservar os seus títulos nobiliárquicos, numa tentativa de se garantir a permanência ociosa dos seus privilégios, e não a procura pela elevação moral diante das situações que requerem a manifestação da bravura e da dignidade.
Dentre os nomes de sua distinta estirpe, Gonçalo, nas suas investigações historiográficas, enfatiza sobretudo a figura de Trutesindo Ramires, nobre caracterizado por sua enorme valentia e coragem diante dos fatos de sua vida. Perante os seus desafios, Trutesindo, um heróico cavaleiro do período medieval, não renegava o confronto contra os seus oponentes, honrando assim o digno nome que portava consigo. Afinal, a vida de um homem nobre se constitui não através da transmissão hereditária de um nome, na vida opulenta da corte, nas futilidades palacianas, mas justamente na luta por fins altruísticos, como, por exemplo, os esforços dedicados pela liberdade da pátria. A nobreza de Trutesindo se constitui pela afirmação vigorosa de sua força e na sua dedicação pela elevação da casa portuguesa diante das ameaças externas. Numa postura diametralmente oposta, Gonçalo, apesar de nalgumas partes da narrativa demonstrar um comportamento generoso e magnânimo para com seus interlocutores, manifesta, na maior parte do tempo, um caráter débil e hesitante diante das situações que requerem a expansão de sua força. Tanto pior, Gonçalo se utiliza de subterfúgios discutíveis para que o esplendor de sua casa permaneça altaneiro. Esse distúrbio decorre justamente da influência negativa do fantasma da tradição nobre da família Ramires no coração de Gonçalo, o qual, na medida que conhece os detalhes dos feitos elevados de seus ancestrais, se deprime de maneira considerável, perdendo qualquer vínculo com a atividade produtiva. O conhecimento histórico, quando impede o desenvolvimento das forças vitais e criadoras do homem, deve ser prontamente descartado, para que não possa motivar maiores transtornos na vida prática. No caso de Gonçalo, o brilho do passado glorioso o impede de agir da maneira necessária, pois ele retira toda a sua parca felicidade do ato de contemplação dos tempos idos, que somente existem enquanto legado afetivo da sua memória. A recordação do passado longínquo, considerado como o tempo no qual existia a autêntica dignidade, é uma agressão terrível ao homem de ação, pois retira deste o seu mais importante valor, a possibilidade de, no presente, existir o desenvolvimento de ações magistrais.
A discordância entre o passado monumental e o presente medíocre torna Gonçalo um homem pusilânime, incapaz de fazer prevalecer o seu valor diante de seus detratores. Em diversos pontos da narrativa de Eça de Queirós, vemos o protagonista passando percalços diante de um patife desrespeitador, que afronta Gonçalo inúmeras vezes, pondo em dúvida o valor e a dignidade do fidalgo. Quando acontece esses maus encontros, Gonçalo vê suas desorganizadas forças vitais se dissiparem completamente, de maneira que o seu ofensor, um homem de estirpe menor, acaba por fazer prevalecer a sua presença moral. Trata-se de uma situação que podemos considerar como relativamente inconcebível numa situação normal, pois um homem nobre, ciente de sua dignidade e imponência, jamais permitiria que ocorresse a manifestação de tal insolência, sobretudo pelo fato do homem agressor ser desprovido de qualquer compostura. A tarefa de um fidalgo, nesse caso, consistiria em suprimir os impropérios de um tal leviano, não através da arrogância, mas da imposição de uma conduta altiva, que humilhasse moralmente o falso soberbo. O homem nobre prima acima de tudo pela honra, e o ato de fazer calar um indivíduo inconveniente nada mais é do que exercer o seu direito de legislar sobre a massa vulgar. Entretanto, Gonçalo se acovarda em diversos momentos diante de seu antagonista, numa espécie de inversão de papéis: ele acaba se tornando o inferior, o “servo”. Essa interação ruim com seu opositor impossibilita ainda mais a ampliação de sua potência de agir, travada continuamente por sua insatisfação consigo próprio, decorrente, conforme vimos, pela exaltação desmedida da figura de seus heróicos ancestrais. Nessa comparação entre um herói do quilate de Trutesindo e o “teórico” Gonçalo, podemos dizer que este não é merecedor nem mesmo de ficar à sombra do valoroso nobre medieval. A distância entre ambos é tão extensa que poder-se-ia até mesmo indagar se porventura Gonçalo integra a valorosa dinastia Ramires. Nessas condições, Gonçalo parece portar consigo apenas o anêmico reflexo da história gloriosa de sua família.
Contudo, após passar por uma série de percalços e situações atribuladas que poderiam colocar em dúvida se realmente Gonçalo seria digno do passado que herda em seu sangue, o decadente fidalgo enfim se torna capaz de honrar o glorioso nome da sua família, pois o conhecimento dos grandes feitos de seus ancestrais serviu finalmente de estímulo para a atividade. Tal reviravolta ocorre quando Gonçalo, após se deparar mais uma vez na narrativa com o seu rude antagonista, ao invés de se retrair, como até então o fazia, impõe vigorosamente a sua força sobre o seu rival, prevalecendo na disputa ao impor ao maganão um corretivo. Podemos dizer que não se trata apenas de uma vitória no plano concreto, mas o renascimento do espírito nobre que estava recalcado sobre densas camadas de mediocridade. Essa elevação moral faz com que Gonçalo sinta no seu coração a importância do legado dos Ramires na constituição da honra portuguesa no decorrer das eras. Certamente que os seus ancestrais obtiveram vitórias muito mais extraordinárias e importantes para o destino glorioso de Portugal do que ele, um fidalgo dos tempos modernos, cujo modo de viver se caracterizou sobretudo pelo olvido e afastamento da dignidade monumental dos seus antepassados. Todavia, essa superação do estado de inércia que até então Gonçalo se encontrava é uma demonstração de que a heróica pujança da família Ramires permanece ainda preservada da ação corrosiva do tempo e da ausência de memória entre grande parte do povo. A partir da vitória contra o seu grande entrave, Gonçalo passa a compreender a vida através de uma perspectiva completamente diferente, conforme o próprio Eça de Queirós ressalta na parte final da obra. A existência de Gonçalo adquire um novo significado, decorrente da sua feliz possibilidade de viver sob a égide do heroísmo. Além disso, o portentoso escrito que Gonçalo redigia com tanto afinco recebe o justo acolhimento da comunidade literária, fato este que, somado com ao reconhecimento popular, acaba por favorecer a sua promoção ao cargo de deputado. Podemos dizer que, enquanto não afirmara adequadamente a sua potência de agir, Gonçalo se acovardava diante do fantasma luminoso de seu grande ancestral Trutesindo Ramires, numa situação indigna de um homem dotado de sangue nobre. Todavia, ao reverter essa incômoda situação de inércia, o Fidalgo da Torre venceu o triste estado de declínio no qual até então encontrava.
Considerações Finais
Pretendi, ao longo deste escrito, realizar uma possível interpretação de uma obra literária por meio da perspectiva de Nietzsche acerca do problema do conhecimento histórico para a vida. Justifico tal empreendimento pela grande riqueza que considero existir na possibilidade de se estabelecer um frutífero diálogo entre a Filosofia e a Literatura. Dessa maneira, conforme exposto, as questões levantadas por Nietzsche sobre os benefícios e malefícios decorrentes do uso do conhecimento histórico ilustram perfeitamente o caso do personagem Gonçalo Ramires. Enquanto este não conseguia criar um vínculo entre conhecimento do passado e a ação no presente, a História se tornava prejudicial para a sua vida, pois a recordação dos feitos de seus ancestrais sufocava seu ímpeto para a atividade; por outro lado, quando Gonçalo, ao conhecer os momentos extraordinários do passado de sua família, se propõe a dar continuidade ao nome valoroso de sua nobre origem, esse conhecimento serve de estímulo para a sua ação. Desse modo, manifestando grandes ressonâncias com a proposta capitaneada por Nietzsche na sua Segunda Consideração Intempestiva, o personagem do romance conseguiu utilizar o conhecimento da História como motor para a ação e, consequentemente, para a vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EÇA DE QUEIRÓS, J. M. A ilustre casa de Ramires. São Paulo: Ática, 1999
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Trad. de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: EdUnB, 1999.
––––––. Princípios de Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
––––––. Terceira Consideração Intempestiva: Schopenhauer como educador. In: Nietzsche. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Coleção “Os Pensadores”.
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