sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

7122 - REVOLUÇÃO FRANCESA

História, imagem e narrativas
No 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
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Mangá feminino, Revolução Francesa e feminismo:
um olhar sobre a Rosa de Versalhes
Valéria Fernandes da Silva
Doutoranda em História na UnB
valeria.historia@uol.com.br
Resumo:
No Ocidente os quadrinhos têm mantido um diálogo intenso com a História, como pano de fundo, recurso para a
ação, fonte de inspiração. No Japão não é diferente. Tradicionalmente os quadrinhos para rapazes, shounen mangá,
recorrem à história local como fonte de inspiração para suas narrativas. No caso do quadrinho feminino, ou shoujo
mangá, o primeiro mangá histórico foi buscar na Revolução Francesa a ambientação para contar a história da Rosa
de Versalhes, uma moça criada como homem e que se torna chefe da guarda da Rainha. Em nosso artigo
pretendemos discutir o caráter didático quadrinho feminino japonês como veículo de discussão da inserção das
mulheres no mercado de trabalho e de questões sociais urgentes, como as demandas feministas, além, de meio de
informação sobre uma história que não era tão próxima do cotidiano das meninas japonesas. Atentaremos também
para a importância da Rosa de Versalhes como marco cultural importante dentro da história dos quadrinhos
japoneses.
Palavras-chave: Revolução Francesa, Histórias em Quadrinhos, Mangá, Feminismo
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Os quadrinhos sempre mantiveram um diálogo criativo e produtivo com a História. A
aproximação se dá de várias formas: há a releitura heróica de um passado mítico, como no caso
do Príncipe Valente; há projeção de discussões contemporâneas em uma realidade histórica
idealizada, como em Asterix; há também a narrativa autobiográfica, como em Persépolis. As
possibilidades são infinitas, e vários autores e autoras têm oferecido obras que combinam de
forma didática e inventiva o saber historiográfico com a ficção.
Figura 1: Oscar François e a Maria Antonieta na visão de Riyoko Ikeda. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2,
1987. Ilustração avulsa especial sem número de página.
Mesmo assim, aqui no Brasil, estamos bem defasados em publicações quando o assunto
são quadrinhos japoneses, os chamados mangás, com pano de fundo histórico. A questão é ainda
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mais evidente quando se trata daqueles produzidos para o público feminino, os shoujo mangá.
Nesse sentido, decidi escrever este artigo focando em uma das obras mais bem sucedidas dessa
área no Japão e que em 2007 está completando 35 anos, trata-se de Berusaiyu no Bara ou, em
nossa língua, a Rosa de Versalhes.1
Pretendo ressaltar a importância desta obra e o diálogo da autora com a historiografia
além da influência do pensamento e das demandas feministas dentro dos shoujo mangá nos anos
70. Fatos considero que foram fundamentais para tornar a Rosa de Versalhes um marco dos
mangás e da cultura pop japonesa.
MANGÁ
O Japão tem o maior mercado de quadrinhos do mundo e aproximadamente 30% do que é
impresso no país é mangá e a quantidade de revistas é gigantesca para os padrões Ocidentais ou
de qualquer outra região do mundo. Os formatos e periodicidades podem variar, mas em geral as
revistas em quadrinhos são bem grossas, no mínimo 150 páginas, monocromáticas, e feitas em
papel ordinário, o que as torna descartáveis. Dessa maneira, boa parte dos japoneses coleciona
suas histórias favoritas somente quando elas saem encadernadas em separado. (GRAVETT,
2006, p. 17)
No Japão, todos lêem quadrinhos – meninos e meninas, homens e mulheres – e há revistas
para todas as faixas etárias, desde as crianças em idade pré-escolar até adultos de mais de 40 anos.
2 Neste país, a idéia de que HQs são material infantil ou do sexo masculino nunca criou raízes,
assim o território permaneceu aberto para todos. Deste modo, enquanto no Ocidente o discurso
virulento contra os quadrinhos ganhou corpo impulsionado pelo livro A Sedução dos Inocentes,
do psicólogo Frederick Werthan, publicado nos 50 nos EUA, no Japão a indústria de mangá
começou a crescer exatamente no mesmo momento. O fato é que os mangás ajudavam a
desanuviar as pressões resultantes do grande esforço de recuperação do pós-guerra, divertiam,
informavam e davam esperança.
1 Ou ainda, Lady Oscar como a série ficou conhecida na maioria dos países ocidentais, como França, Itália, Espanha
e, mesmo o Brasil.
2 Há toda uma nomenclatura ligada aos quadrinhos japoneses. Os mangás para o público infanto-juvenil são
chamados de shounen quando para o público masculino e shoujo, quando para o público feminino. Os quadrinhos
para jovens do sexo masculino são chamados de seinen, os para o público feminino com o mesmo corte etário são
chamados de josei ou de lady’s comics.
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Nos EUA, o Dr. Werthan identificou nos quadrinhos, em especial os de super-heróis e
terror, uma ameaça à juventude. O autor argumentava que os comics estavam impregnados de
violência, imoralidade, apologia ao crime e mesmo um incentivo à prática homossexual.
(ROBINSON, 2004, p. 40-46 e 76-80) Essas investidas deram origem, ainda nos anos 50, ao
rígido código de ética que passou a controlar a produção norte-americana de quadrinhos,
limitando a criatividade, infantilizando as personagens e temáticas, enfim, impondo um
conservadorismo que quase imobilizou roteiristas, desenhistas e estúdios. Tal fenômeno nunca
ocorreu no Japão, onde qualquer tema pode aparecer nos mangás.
Outra singularidade do país é que há uma grande fatia desse mercado voltada
exclusivamente para o público feminino, são os chamados shoujo mangá. 3 Não somente uma
quantidade imensa de títulos é voltada para as meninas e mulheres, que no Ocidente representam
uma parcela muito pequena dos consumidores declarados de quadrinhos, como a maioria das
autoras são, também, mulheres. (FUJINO, 1997, p. 15-18) Nem sempre foi assim, e a autora da
Rosa de Versalhes, Riyoko Ikeda, foi uma das muitas quadrinistas que ajudaram a consolidar a
participação das mulheres nesse campo de trabalho.
QUADRINHOS FEMININOS?
Nos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos havia quadrinhos para meninas com
títulos como Flaming Love, Romantic Thrill, e Teenage Diary Secrets. Eles eram
criados por homens, e tiveram vida curta. Quadrinhos como a Mulher Maravilha,
populares hoje, são extensão do fenômeno do super-herói masculino, e muitos dos
leitores são garotos. (SCHODT, 1983, p. 88) 4
É assim que Frederick L. Schodt, um dos maiores especialistas em quadrinhos japoneses
dos Estados Unidos, inicia seu capítulo sobre shoujo mangá. O autor deixa claro que houve uma
série de quadrinhos para o público feminino nos Estados Unidos, material feito em geral por
3 De acordo com o antropólogo americano Matt Thorn, mais da metade das mulheres japonesas com menos de 40
anos lêem mangá e mais de três quartos das adolescentes lêem quadrinhos com regularidade. Ainda segundo este
autor, há cerca de 100 publicações de quadrinhos para o publico feminino em publicação no Japão atualmente.
(THORN, 2001)
4 “In the 1940s and 1950s in the United States there were comic books for girls with titles like Flaming Love,
Romantic Thrills, and Teenage Diary Secrets. They were all created by men, and all were short-lived. Comics like
Wonder Woman popular today are an extension of the male superhero phenomenon, and most of their readers are
young boys.” (SCHODT, 1983, p. 88)
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homens. Seu objetivo não era investigar esse fenômeno, mas falar de shoujo mangá, marcar a
diferença em relação a um quadrinho que morreu, entre outras coisas por que não fez a transição
para mãos femininas.
Trina Robbins, estudiosa dos quadrinhos femininos norte americanos, tem outra versão.
Houve quadrinhos femininos feitos por homens nos EUA, e eles eram a maioria, mas houve
mulheres no mesmo país que fizeram quadrinhos, não só para público feminino, não só com
recorte romântico, e isso desde o século XIX. O mapeamento feito pela autora em seu livro The
Great Women Catoonists é extenso, (ROBBINS, 2001) mas aponta para o mesmo caminho: os
quadrinhos femininos nos EUA, praticamente desapareceram depois dos anos 50 e as mulheres
quadrinistas se tornaram uma raridade, a ponto de nem serem citadas, como bem ilustra o
comentário de Schodt.
Houve um processo de exclusão, e é o que Trina Robbins defende em seus livros. Um
fenômeno que se acentuou particularmente com o fim da II Guerra Mundial e o retorno dos
homens aos seus postos de trabalho, que algumas mulheres haviam ocupado. (ROBBINS, 2001, p.
79-105.) As mulheres tiveram que abandonar os empregos e retornar aos lares, esse backlash,5
junto com a campanha anti-quadrinhos movida nos anos 50, fez com que os quadrinhos,
produzidos por e para mulheres, fossem progressivamente asfixiados, marcando os comics como
masculinos e fazendo com que as leitoras migraram para outras mídias, como as novelas de TV e
os romances populares.
É verdade que algumas resistiram, mas as leitoras escassearam, mesmo aquelas que
amavam a Mulher Maravilha. No mesmo período, ocorreu o inverso no Japão, as mulheres
começaram a se tornar quadrinistas e criaram um mercado tão importante que esta talvez seja a
única profissão no Japão na qual as mulheres podem efetivamente ganhar salários maiores que os
dos homens.
Desde o final do século XIX, de acordo com pesquisadora Yoko Fujino, houve revistas
femininas no Japão que traziam alguns quadrinhos. (FUJINO, 2002, p. 31-53) Eram em
quantidade menor que os contos e geralmente episódicos. Já as gravuras dessas revistas se
utilizavam de alguns signos visuais que irão marcar a estética do shoujo mangá como, por
5 “Backlash” é uma palavra que em língua inglesa significa retrocesso, em especial, aquele que implica em perda de
direitos, de espaço, em uma virada conservadora.
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exemplo, as figuras delgadas, os grandes olhos. (FUJINO, 2002, p. 70-71) O primeiro passo para
o formato atual se deu com a revista Shoujo Club (Clube das Meninas), fundada em 1923 nos
moldes antigos, e que foi reestruturada depois da II Guerra para se tornar uma revista de
quadrinhos para meninas. (FUJINO, 2002, p. 51)
Se a estética já estava mais ou menos estruturada, coube Osamu Tezuka, considerado o
maior autor de mangás de todos os tempos, criar o shoujo mangá através da série A Princesa e o
Cavaleiro (Ribon no Kishi, literalmente, O Cavaleiro da Fita – 1953-1956). (SATO, 2007, p.
128-129) Foi Tezuka quem introduziu no universo dos quadrinhos japoneses os recursos
cinematográficos e colocou fim ao modelo de histórias curtas e fechadas, dando início o sistema
de longas séries publicadas em capítulos e acompanhadas com ansiedade durante meses, até anos,
pelos leitores e leitoras.
Figura 2: Osamu Tezuka. A Princesa e o Cavaleiro, JBC, 2002. Capa da edição brasileira.
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A Princesa e o Cavaleiro é uma série de fantasia que mostra a história de uma princesa,
que por erro de um anjo recebeu dois corações, um de menina e outro de menino. A garota,
chamada Safiri, foi obrigada a viver como príncipe, pois só assim poderia reinar. Publicada pela
primeira vez em 1953 na revista Shoujo Club, a série foi um sucesso imediato. Além disso,
inaugurou a discussão sobre papéis de gênero e a força das convenções sociais questões que se
fazem presentes nos quadrinhos femininos japoneses até os nossos dias. E que são algumas das
discussões que Riyoko Ikeda feitas na sua obra A Rosa de Versalhes.
Com o fenômeno “Osamu Tezuka” muitos jovens passaram a se dedicar a produção de
mangás e a marca principal dessa primeira geração é a quase ausência de mulheres na profissão.
Assim, os primeiros shoujo mangá eram escritos por homens para meninas que estavam
principalmente no primário e a temática girava em torno dos conflitos familiares, em especial a
relação mãe e filha, e dos romances idealizados.
Mas as meninas crescem, e os homens não estavam conseguindo dar conta das suas
demandas. As editoras temiam perder o seu público e começaram a abrir espaço para que um
maior número de mulheres pudesse atuar na área. A mudança começou realmente em 1966 com
uma jovem de 16 anos chamada Machiko Satonaka que ganhou um concurso de mangá e abriu
caminho para uma nova geração de mulheres quadrinistas. Satonaka definiu assim as suas
motivações para se tornar autora de mangá:
Eu achava que poderia fazer um trabalho melhor eu mesma, e que as mulheres
eram mais capacitadas para entender o que as meninas queriam ler do que os
homens. Desenhar quadrinhos era também uma forma de ganhar liberdade e
independência sem ter que ficar na escola por longos anos. Era alguma coisa que
eu poderia fazer por mim mesma, era um tipo de trabalho que permitia que as
mulheres fossem iguais aos homens. (SCHODT, 1983, p. 97) 6 (Grifo meu)
A entrada em massa das mulheres no mercado de quadrinhos japoneses é fruto de vários
fatores, mas aponta para uma espécie de empowerment, isto é, uma tomada de poder, no caso da
consciência de suas próprias capacidades e da busca por um espaço profissional que permitisse a
igualdade com os homens. Tais questões não eram estranhas nos anos 60, pois a igualdade era
6 "I thought 1 could do a better job myself, and that women were more capable of understanding what girls want
than men. Drawing comics was also a way of getting freedom and independence without having to go to school for
years. It was something I could do by myself, and it was a type of work that allowed women to be equal to men."
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uma das bandeiras do movimento feminista e de outros movimentos de direitos civis. (LOURO,
1997, p. 14-15)
Riyoko Ikeda, autora da Rosa de Versalhes, entrou no mercado no ano seguinte, 1967, e
tornou-se parte do grupo de quadrinistas, conhecido como Nijûyonen Gumi, grupo do ano 24,
pois a maioria delas era nascida no ano 24 da Era Showa,7 o nosso ano de 1949. Essas autoras
introduziram uma série de inovações nos shoujo mangá tanto no campo da estética, quanto no
quadro de temáticas. (THORN, 2001) Homossexualidade, gravidez na adolescência, estupro,
conflitos raciais, a lutas das mulheres por um lugar no mundo público e no mercado de trabalho.
Não havia fronteira e as ambientações iam desde o romance escolar até a ficção científica,
dramas históricos e quadrinhos de esporte.
Coube à Riyoko Ikeda inaugurar essa nova fase dos quadrinhos femininos no Japão em
1972 com a publicação, na revista Margaret, da série A Rosa de Versalhes (Berusayiu no Bara).
Foi o primeiro shoujo mangá com uma temática histórica tratada com certa seriedade e riqueza de
detalhes. Os editores não acreditavam que a série poderia ser um sucesso, mas ela foi um hit
instantâneo que persiste como referência, inclusive utilizada em cursos universitários sobre
mangá e cultura pop japonesa, até os dias de hoje.
O QUE É A ROSA DE VERSALHES
A Rosa de Versalhes, desenhada e escrita, por uma ex-estudante de filosofia chamada
Ryoko Ikeda, tinha como proposta contar a trágica história de Maria Antonieta, última rainha da
França antes da Revolução de 1789. Esse foi o ponto de partida, no entanto, havia outra mulher,
Oscar François, que terminou se tornando a verdadeira “Rosa de Versalhes”. Esta personagem,
filha caçula do General de Jarjayes,8 que foi educada como homem para satisfazer as ansiedades
do pai, transformando-se em capitã da guarda da Rainha.
7 A Era Showa corresponde ao governo do Imperador Hiroito e se estendeu de 1926 até 1989.
8 François Régnier de Jarjayes é uma figura histórica que tentou salvar a rainha Maria Antonieta às vésperas de sua
execução na guilhotina. (FRASER, 2006, p. 452)
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Figura 3: Oscar François, uma mulher comandante dos guardas reais. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, 1972.
O tema da moça travestida de homem – por vontade própria, ou não – na ficção ou mesmo
na vida real, lembremos de nossa Maria Quitéria, não é incomum e no início da série, que contou
com 10 volumes,9 Oscar não deveria ser a protagonista. Riyoko Ikeda pretendia fazer uma
biografia de Maria Antonieta, enfocando desde a sua educação na Áustria, sob a tutela da mãe, a
Imperatriz Maria Teresa, até a guilhotina, mostrando seus anos em Versalhes, as intrigas dentro e
fora da corte e a deterioração da sua popularidade, além do romance com o sueco Conde Fersen
que Stefan Zweig, a fonte maior de Ikeda, e outros autores consultados por ela davam como certa.
Oscar aparece pouco no primeiro volume e toda a atenção está sobre Antonieta, só que
rapidamente a personagem ganhou popularidade entre as leitoras, é fundado um fã-clube, as
cartas se multiplicam. Oscar acaba tornando-se a heroína da série, uma mulher que serve
fielmente e protege sua senhora, apesar de sofrer por amar o mesmo homem que a rainha, o
Conde Fersen. Com o tempo, a personagem acorda para a situação miserável em que vivia boa
parte da população francesa, trava contato com gente como Robespierre e Saint-Just. Lê os
9 A edição que estamos usando como fonte para as imagens é uma republicação de 1987 em dois volumes, mas a
série já foi publicada em vários formatos.
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iluministas mesmo contra a vontade de seu pai. E, por fim, escolhe se juntar aos revolucionários
no 14 de julho.
Acima de tudo, Oscar luta para conseguir que os homens que comanda reconheçam a sua
competência, que não é somente um bibelô, um capricho de um pai frustrado. O interessante é
que ao contrário de personagens que escondem sua condição feminina, todos sabem que Oscar é
uma mulher, e ela se comporta como um oficial como outro qualquer.
Acredito ser importante ressaltar que houve uma matéria recente do New York Times
intitulada Tradição é obstáculo para carreira das trabalhadoras japonesas, mostrando um
caso semelhante ao do quadrinho de Riyoko Ikeda. Eis o trecho da matéria:
Takado Ariishi, 36, conheceu uma versão radical desse fenômeno ao crescer como
a única filha do presidente da Daiya Seiki, a pequena fábrica da sua família que
fornece peças para a Nissan. No início, o seu pai, desapontado, cortou o cabelo
dela como o de um garoto e proibiu que ela brincasse com bonecas. Quando ela
teve o primeiro filho, dez anos atrás, o pai a despediu da companhia e nomeou
como seu sucessor o neto recém-nascido. Mesmo assim, Ariishi assumiu o cargo
de presidente três anos atrás, após a morte do pai (o filho dela era ainda muito
novo). Ela afirma ser a única mulher em um grupo de cerca de 160 diretores de
empresas fornecedoras da Nissan. A primeira vez em que Ariishi participou das
reuniões bianuais do grupo, pediram que ela aguardasse em uma sala junto com as
secretárias. "Ainda tenho que provar o tempo todo que uma mulher pode ser
presidente", lamenta Ariishi, uma engenheira que no seu escritório usa o mesmo
uniforme azul unissex dos operários. (FACLER, 2007)
Até que ponto Oscar é obra de ficção ou retrata casos que a autora conheceu? A Senhora
Ariishi nasceu um ano antes do início da quadrinização da Rosa de Versalhes e sua vida é muito
próxima daquela da personagem de Riyoko Ikeda. Aproxima-se de Oscar na educação, nas
imposições de papéis de gênero masculinos. Também a personagem de Ikeda terá que resistir ao
pai quando este se arrepende da criação que lhe deu e decide que ela deve passar por um reenquadramento,
abrindo mão da vida militar a abraçando o casamento e a maternidade. Oscar
não se dobra e ela representa para suas leitoras um modelo, alguém que se torna sujeito de sua
própria História e lute por um lugar no “mundo dos homens”. Já Maria Antonieta é apresentada
na série como alguém que está prisioneira de um papel que lhe conduz a um fim trágico.
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Figura 4: Maria Antonieta, prisioneira do seu papel de Rainha (detalhe).
Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2, 1987, p. 5.
Quando falamos de “gênero” estamos nos remetendo a categoria criada pelas teóricas
feministas e, em especial, Joan Scott que diz:
(...) gênero significa saber a respeito das diferenças sexuais. Uso saber, seguindo
Michel Foucault, com o significado de compreensão produzida pelas culturas e
sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mulheres.
Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. (...) O saber não se
relaciona apenas a idéias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e
rituais específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo de
ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável
dela. (SCOTT, 1994, p. 12)
A categoria gênero é uma categoria relacional, isto é, se refere à construção dos papéis
feminino e masculino em uma dada sociedade, pressupondo-se, num primeiro momento, que essa
organização binária seria incontornável. Neste caso, Jane Flax acrescenta que o gênero é uma
relação social prática e devemos nos propor a fazer um exame daquilo que significa o “feminino”
e o “masculino” em uma determinada sociedade. (FLAX, 1991, p. 230) Assim, através do gênero
“(...) dois tipos de pessoas são criadas” e que dessa construção histórico-social decorrem “(...)
divisões e atribuições diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades
humanas.” (FLAX, 1991, p. 228).
Ikeda deixa bem claro através de sua protagonista que é o gênero que cria a diferença.
Oscar tem um corpo feminino, moldado por uma criação “masculina” que não tolheu suas
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capacidades, como ocorreu com suas irmãs mais velhas ou com uma Maria Antonieta. A
frustração do pai não produziu uma mulher infeliz, mas alguém que toma o destino em suas
próprias mãos. Oscar não se vê como inferior a homem algum, nem aceita um papel passivo,
nem se dobra à autoridade do pai porque é a tradição. Talvez por esses e outros motivos, as
meninas passaram a admirar tanto a personagem, mas do que a figura de Antonieta, a heroína
romântica e trágica.
Uma característica interessante da personagem de Ikeda é que ela também não abre mão
do amor e, nesse sentido, a autora se coaduna com aquilo que era o esperado de um quadrinho
voltado para o público feminino. Só que Ikeda dá à sua protagonista a possibilidade de viver um
romance entre iguais, coisa que para a maioria das mulheres japonesas seria um sonho impossível.
O corpo feminino de Oscar, moldado por comportamentos de gênero masculinos, não
deixou de manifestar uma sexualidade feminina. Ikeda rompe assim com o sistema sexo-gênero
que estava sendo discutido nos anos 70, abandona o binarismo e nos oferece a estrutura que
admite a relação entre sexo-gênero-sexualidade que se constroem e se relacionam. (BENTO,
2003)
Os papéis de gênero incorporados por Oscar, o fato de ter assumido uma identidade que
em todos os sentidos é masculina, não a obriga a ter uma sexualidade (desejo) homossexual.
Alguém poderia dizer que Ikeda ainda não estava pronta para tamanha ousadia, que manter sua
personagem como heterossexual foi uma incoerência, ou uma tentativa de satisfazer suas leitoras,
mas o fato é que ela também rompeu com um arranjo simplista, e não transformou a
personalidade de sua personagem; não a despiu de seus comportamentos de gênero quando ela
descobre o verdadeiro amor nos braços do amigo de infância, André.
Na verdade, Ikeda flerta com a homossexualidade. Em um dado momento do mangá,
antes de admitir sua paixão por André ou se livrar do fantasma de Fersen, Oscar lamenta não
poder retribuir o amor de uma moça que a ama, exatamente por não ser um homem. Ikeda
também oferece à suas leitoras uma heroína masculinizada – ou andrógina, no entender de alguns
– que encontra o amor nos braços de um homem que, na verdade é seu igual, não alguém que
complete o binômio masculino-feminino. E é Oscar quem escolhe a quem amar, não seu pai; e
escolhe de acordo com seu coração, e não de acordo com as convenções sociais. Ela não ama
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conforme a sua classe, nem como as heroínas tradicionais costumavam amar. Como diz Cristiane
Sato:
(...) embora o enredo de Berusaiyu no Bara ocorresse séculos no passado, Oscar e
André representavam um relacionamento moderno idealizado para suas leitoras,
no qual papéis socialmente pré-determinados entre homens e mulheres estavam
sendo discutidos. (SATO, 2007, p. 52)
HISTORICAMENTE VEROSSÍMEL
Mas a Rosa de Versalhes era também um quadrinho histórico, o primeiro mangá desse
tipo feito para o público feminino no Japão. A escolha do contexto da Revolução Francesa como
pano de fundo representou uma novidade, pois mesmo entre os quadrinhos feitos para o público
masculino a escolha era sempre o próprio passado japonês, em especial o período dos grandes
samurais. Foi uma proposta arriscada e a série poderia ser cancelada, mas encontrou acolhida
entre as leitoras e não decepcionou a editora Kodansha. Nas palavras da própria autora:
O mais duro foi convencer o meu editor a respeito da publicação da Rosa de
Versalhes, e não por ser mulher, mas sim porque ele considerava que minhas
leitoras não iriam se interesar por uma história tão complicada ambientada em um
contexto histórico tão complexo e, ao mesmo tempo, tão distante.10
O temor do editor estava ligado ao possível estranhamento das leitoras em relação a algo
muito estranho à sua realidade. Eis outro ponto de ruptura da obra de Ikeda, pois até então a
maioria das histórias tinha um recorte intimista e estava ligada ao cotidiano, à escola, à vida
familiar, ou tinha um tom de fantasia assumido com reinos distantes ou colégios internos
europeus idealizados.
Há fantasia na Rosa de Versalhes, personagens, como a protagonista, saídas da
imaginação da autora, mas a matéria histórica, as personagens reais, da nobreza, do povo,
estavam presentes com um realismo até então nunca visto em quadrinhos femininos. O romance,
os bailes, as belas roupas, os atrativos tradicionais, estão lá, mas os sansculottes, a miséria dos
camponeses e trabalhadores urbanos, a prostituição, a violência contra os mais fracos, a etiqueta
10 “No, creo que no. Lo más duro fue convencer a mi editor de la publicación de La Rosa de Versalles, y no porque
yo fuera mujer, sino porque él consideraba que mis lectoras no tendrían interés en una historia tan complicada
ambientada en un contexto histórico tan complejo y a la vez lejano”.
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sufocante de Versalhes, a imprensa que difamava a Rainha, e, por fim, a guilhotina, também
estão no mangá.
Figura 5: Napoleão Bonaparte é uma das figuras históricas que faz uma aparição na Rosa de Versalhes (detalhe).
Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2, 1987, p. 280.
A fonte principal utilizada pela autora foi a biografia de Maria Antonieta escrita por
Stefan Zweig, acadêmico austríaco judeu, falecido no Brasil em 1942.11 É uma biografia famosa,
traduzida para várias línguas, e foi referência para o filme hollywoodiano Marie Antoinette de
1938 com Norma Shearer que foi muito elogiado.12 Ikeda foi detalhista ao extremo e buscou o
máximo de referências visuais e bibliografia para recriar Versalhes e a França das vésperas da
Revolução.13
O sucesso da série fez com que muitas japonesas se interessassem por História Ocidental,
pela História da França, visitassem o país de Oscar, seguissem carreira como professoras ou
pesquisadoras. Além disso, quando a versão em desenho animado da série chegou à Europa,
11 “Estando en el instituto, a los 17 o 18 años, cayó en mis manos una biografía de Maria Antonieta escrita por
Stefan Zweig, elaño 1933.Se titulaba. Marie Antoinette: The portrait of an ordinary woman. A partir de entonces se
comenzó a formar en mi cabeza la idea de escribir una historia sobre la vida de Maria Antonieta”.
12 Marie Antoinette in The Internet Movie Database. http://imdb.com/title/tt0030418/, 01 de setembro de 2007.
13 Nem todas as referências estavam corretas, como ela mesma confessa: “(...) Por ejemplo, en mi obra dibujo la
Basílica del Sagrado Corazón, en Montmartre, que es posterior a la Revolución Francesa. Fue construida en el
siglo XX, concretamente en 1910. Mis asistentes la vieron en fotos y la reprodujeron, y cuando nos dimos cuenta ya
se estaba publicando el comic en todo Japón y no había marcha atrás .De todas formas no ha llegado ninguna
crítica de Francia. No se habrán dado cuenta…”.
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incluindo aí a França, onde recepção foi positiva, e possibilitou que o mangá tivesse boa acolhida,
não somente por causa das personagens ou da beleza do traço, mas pela sua grande relevância
enquanto leitura ficcional bem fundamentada da Revolução Francesa. (SATO, 2007, p. 53)
Sato ressalta que Ikeda também agrega à sua série padrões de comportamentos japoneses.
Assim, Oscar é na verdade um samurai, guerreiro fiel ao seu senhor, no seu caso, senhora, a
Rainha Maria Antonieta. Só que conforme seus olhos vão se abrindo para as misérias do povo
francês, Oscar rompe com sua classe e seus deveres, tornando-se um ronin, um samurai sem
mestre, um proscrito, e é assim que morre lutando ao lado do povo na Queda da Bastilha. (SATO,
2007, p. 52)
Figura 6: Oscar, um samurai na corte de Versailles, interrompe o primeiro encontro do Conde Fersen com Maria
Antonieta (detalhe). Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 1, 1987, p. 195.
No Japão, o sucesso da série atravessa três décadas sem perder o fôlego. Além das muitas
republicações, há o desenho animado com 40 capítulos de 1979 e um filme feito na França, em
1978,14 com atores europeus, algo inédito até então. Um filme animado estreará em breve no
Japão para comemorar os 35 anos da série. Mas talvez o produto mais duradouro e significativo
14 Lady Oscar in the Internet Movie Database. http://imdb.com/title/tt0077827/, 01 de setembro de 2007.
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ligado à Rosa de Versalhes sejam os espetáculos musicais encenados pelo Teatro Takarazuka,
que é formado somente por mulheres. O Takarazuka, que é o primeiro teatro de revista japonês,
foi fundado em 1914 e encena tanto peças ocidentais, quanto japonesas, além de adaptações de
mangás famosos, especialmente shoujo mangás.
A primeira peça da Rosa de Versalhes foi encenada pelo Takarazuka em 1974, e o teatro,
cuja audiência é basicamente feminina, que na época vinha perdendo importância frente novas
formas de divertimento, voltou a ser popular. (SATO, 2007, p. 142) Desde a primeira montagem
já ocorreram mais de 1400 apresentações, com duas peças baseadas na série, apresentadas
inclusive fora do Japão. Foram duas temporadas, 1974-76 e 1989-91, mas novas apresentações
foram feitas para comemorar os 250 anos de nascimento de Maria Antonieta e nas celebrações de
aniversário do mangá. A Rosa de Versalhes é o maior sucesso do Takarazuka depois da II Guerra.
(ROBERTSON, 1998, p. 74-75)
UMA OBRA FEMINISTA?
Como estudante de Filosofia na segunda metade dos anos 60, Riyoko Ikeda não podia
estar alheia às discussões feministas. Cristiane Sato enfatiza, em seu capítulo sobre a Rosa de
Versalhes, que o início dos anos 70 foi uma época grande agitação social no Japão, com várias
manifestações estudantis e dos movimentos feministas. Foi também o momento em que muitas
jovens começaram a sonhar com uma carreira, mesmo que temporária, e com o amor romântico
em substituição aos casamentos arranjados. (SATO, 2007, p. 50-51) A própria Riyoko Ikeda
comentou em uma entrevista a respeito das ansiedades das mulheres de sua geração:
(...) as pessoas da minha geração que queriam expressar um sentimento ou contar
uma história e até esse momento só haviam podido fazer isso através dos romances
ou da poesia, descobriram um novo modo de expressão igualmente válido: o
mangá. As mulheres também descobriram o mangá e se interessaram por esse
novo meio. (...) Finalmente, ao terminar a guerra as mulheres japonesas já não
podiam continuar sendo donas de casa e cuidando dos filhos: sentiam que
precisavam trabalhar para levantar o país e contribuir para manter a família. As
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que puderam buscaram um trabalho que as compensasse não só economicamente,
mas também psicologicamente, um trabalho ao qual se dedicar por toda a vida.15
A experiência social como mulher, compreendida como o percurso de sua construção
pessoal em uma dada sociedade, é algo profundamente histórico e cultural. As experiências da
autora terminaram por conduzi-la a reflexões sobre a condição das mulheres na sociedade
japonesa de sua época e, talvez, em outras épocas e lugares. É possível perceber isso claramente
na Rosa de Versalhes.
Enquanto feministas de vários países teorizavam nas academias e em grupos políticos,
quadrinistas japonesas da geração de Ikeda colocavam em suas obras de ficção suas inquietações
sobre os papéis de gênero e a rigidez com que os espaços estavam demarcados em sua sociedade.
Assim, as discussões de ponta do feminismo eram adaptadas para os quadrinhos e
disponibilizadas para a grande massa de leitoras, a maioria na puberdade.
Como pontuei anteriormente, Ikeda rompe com o binômio sexo-gênero, além de
desnaturalizar a idéia de que o corpo seria uma realidade pré-discursiva. Nesse sentido, ela
precede Judith Butler para quem “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência
significável anterior à marca de seu gênero”. (BUTLER, 2003, p. 27) Na obra de Ikeda é o
gênero que constrói os corpos, atribuindo-lhes sentidos, um destino, uma função social.
Há uma passagem da série que ilustra bem isso que é quando Oscar decide vestir-se como
“uma dama” pela primeira vez, movida pela atração que sente pelo Conde Fersen. Ikeda mostra
com humor o drama da personagem que não está acostumada às disciplinas do corpo feminino.
O espartilho a sufoca, a barra do vestido restringe seus movimentos, o salto alto a faz
desequilibrar e ela cai e jura que nunca mais se submeterá a tal tortura.
Nesse sentido, Ikeda antecede também Teresa de Lauretis, pois acaba construindo uma
situação onde fica claro que o gênero é “o conjunto de efeitos produzidos em corpos”, de forma
15 “(…) la gente que quería expresar un sentimiento o explicar una historia y que hasta ese momento solo había
podido hacerlo a través de la novela o la poesía, descubrió un nuevo modo de expresión igualmente valido: el
manga. Las mujeres también descubrieron el manga y se interesaron por este nuevo medio. Finalmente, al terminar
la guerra las mujeres japonesas ya no se podían quedar haciendo de amas de casa y cuidando a sus hijos: sentían
que tenían que trabajar para levantar el país y contribuir a mantener la familia. Las que pudieron buscaron un
trabajo que las compensara no solo económicamente, sino también psicológicamente, un trabajo al cual dedicarse
de porvida.”
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que Oscar não poderia tornar-se automaticamente uma dama perfeita como em um passe de
mágica e, mais, ela também não o desejava. (LAURETIS, 1994, p. 208). Interessante é que na
animação, que funciona como uma releitura masculina do quadrinho, Oscar consegue dominar
todo o aparato de feminilidade sem problema algum, é como se seu eu interior feminino se
manifestasse, afinal, ela estaria dando vazão à sua natureza. Assim, ela desliza linda e loura sem
nenhum incômodo.
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Figura 7: Oscar sofre ao tentar se vestir como uma dama. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 1, 1987, p. 712.
Esta idéia não está presente no original, nem a frase dita por André em outra parte da série
animada para lembrar a Oscar que não adianta lutar contra a sua “natureza” feminina: “Uma
Rosa será sempre uma rosa, uma rosa nunca poderá ser um lilás”. Muitos fãs ocidentais
consideram tal frase extremamente romântica, mas ela somente expressa de novo a ênfase na
naturalização dos comportamentos, na idéia de destino biológico. São as expectativas culturais
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em torno do desempenho de certos papéis que possibilitam que os corpos sejam moldados como
femininos ou masculinos, e não há nada de natural nisso, não na Rosa de Versalhes de Riyoko
Ikeda.
Sonia Bibe Luyten é muito crítica a respeito dos shoujo mangá e os vê como instrumento
de reforço dos papéis tradicionais femininos. Assim, a autora diz em seu livro Mangá – O
Poder dos Quadrinhos Japoneses que o fato das mulheres fazerem quadrinhos de massa no
Japão poderia despertar inveja nas colegas de outros países, porém o que “(...) poderia ser um
passo, uma condição especial para que a mulher construísse sua imagem e até fosse um agente
modificador”, nada produz, porque as autoras “de posse da ferramenta (...) ainda martelam no
mesmo lugar” (LUYTEN, 2000, p. 85).
Pergunto-me se tal pessimismo procede quando nos deparamos com obras como a Rosa
de Versalhes, ou é fruto da estranheza em relação aos shoujo mangá, algo totalmente japonês,
com estruturas próprias e contraditório, como qualquer outra mídia. Aliás, qual veículo de massa
não oscila entre o revolucionário e o já dito? O novo e o tradicional? Será que realmente isso
indica que se martela em um mesmo lugar? É possível pensar assim depois de falas como as de
Machiko Satonaka e Riyoko Ikeda?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Rosa de Versalhes de Riyoko Ikeda representa um marco tanto em termos de
representação histórica dentro dos quadrinhos japoneses quanto em relação à construção das
personagens femininas nos shoujo mangá. A série é um testemunho da capacidade das autoras
de mangá de colocar dentro de suas obras tanto as questões imediatas ligadas ao seu campo de
experiências, vivências e demandas, e também, de articular questões de cunho mais amplo,
histórico, social, e apresentá-las de maneira didática e acessível mesmo ao público infanto-juvenil.
Considero que a Rosa de Versalhes é uma obra que incorpora consciente ou
inconscientemente as discussões feministas que estavam ocorrendo nos anos 60 e 70, além de
antecipar discussões que são muito caras às teóricas feministas atuais, como a naturalização do
corpo ou o binarismo sexo-gênero. Partindo da experimentação e da ousadia, a Rosa de
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Versalhes abriu caminho para toda uma série de mangás que desconstruíram as relações de
gênero e discutiram o desejo e os lugares sociais femininos e masculinos na sociedade japonesa,
em outras épocas históricas, ou mesmo em outros planetas e universos.
Figura 8: Oscar participa da Revolução Francesa e é desenhada por Ikeda incorporando os símbolos desse
movimento, como a bandeira tricolor. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2.
Ilustração avulsa especial sem número de página.
Nesse sentido, mesmo que Ikeda pareça tímida em abordar algumas questões, como a
homossexualidade feminina, ela é exemplar em outras e oferece para suas leitoras de uma só vez
o sonho de um relacionamento equitativo entre homens e mulheres, e o incentivo para que as
meninas tomassem as rédeas de seu destino, como a personagem fez ao lutar por sua carreira
militar, e ao decidir-se contra sua classe e seus deveres por André e, também, pela Revolução
Francesa.
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CO´PYRIGHJT AUTOR DO TEXTO

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