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Demografia e família escrava em uma vila paulista, século XIX*
Maísa Faleiros da Cunha§
Palavras-Chave:
Resumo
Regimes demográficos são um tema que tem preocupado os estudiosos da população
européia desde os anos 1960. No caso do Brasil, apesar de a discussão desse tema na
demografia histórica nacional remontar à década de 1980, através do trabalho pioneiro
escrito por Maria Luíza Marcílio e, posteriormente (início dos anos 2000), retomada e
ampliada por Sérgio Odilon Nadalin, os regimes demográficos têm recebido pouca
atenção de nossos historiadores demógrafos. No intuito de avançar para a discussão
sobre os regimes demográficos propostos para o passado brasileiro, este trabalho
procura contribuir sobre os regimes demográficos da escravidão através da
caracterização da demografia escrava e da reconstituição de trajetórias familiares de
cativos em uma área voltada à criação de gado e ao abastecimento interno. Embora
Nadalin tenha avançado em relação a Marcílio na reflexão do regime demográfico da
escravidão ao incorporar novos elementos econômicos, socioculturais e demográficos,
esses autores apresentam o regime demográfico da escravidão partindo de uma
realidade muito mais próxima das plantations. Esperamos, dessa forma, chamar a
atenção para a existência de trajetórias demográficas da população escrava
diversificadas de acordo com o período e o contexto econômico em que se
encontravam, além de trazer novos ingredientes para o estudo da escravidão.
* Trabalho apresentado no III Congresso da Associação Latino Americana de População, ALAP, realizado em
Córdoba - Argentina, de 24 a 26 de Setembro de 2008.
§ IFCH/NEPO/UNICAMP, mcunha@nepo.unicamp.br.
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Demografia e família escrava em uma vila paulista, século XIX*
Maísa Faleiros da Cunha§
Introdução
Regimes demográficos é um tema que tem preocupado os estudiosos da população
européia desde os anos 1960. No caso do Brasil, apesar de a discussão desse tema na
demografia histórica nacional remontar à década de 1980, através do trabalho pioneiro escrito
por Maria Luíza Marcílio e, posteriormente (início dos anos 2000), retomada e ampliada por
Sérgio Odilon Nadalin, os regimes demográficos têm recebido pouca atenção de nossos
historiadores demógrafos.
De acordo com Robert Rowland, foi a partir de uma reflexão sobre as colocações de
Thomas Malthus que alguns historiadores demógrafos de Cambridge em finais da década de
1960 começaram a elaborar o conceito de regime demográfico tendo em vista o estudo das
relações entre os comportamentos demográficos e o sistema econômico e social (ROWLAND,
1997, p. 35). Através do acompanhamento do que se poderia chamar de história demográfica
européia se chegou à proposição do “sistema demográfico do Antigo Regime” (destacando-se
o papel crucial da nupcialidade como forma de controle mais efetivo sobre a reprodução no
velho continente). As contribuições de Rowland são instigantes ao articular o estudo dos
regimes demográficos aos sistemas familiares a partir de uma reflexão sobre a organização
social da reprodução, ou seja, a maneira como a reprodução biológica de uma população é
socialmente organizada e estruturada.
(...) Não será possível entendermos a dinâmica de uma população determinada se não
individualizarmos as relações sociais subjacentes à estruturação do respectivo regime
demográfico. Estas relações estão centradas na família, é certo, mas não se esgotam nas
relações que hoje definimos como “familiares”. O estudo dos regimes demográficos tem de
combinar-se com o dos sistemas familiares, mas o mais importante é a sua articulação no
âmbito de um enquadramento conceptual mais amplo (ROWLAND, 1997, p. 73).
Além de Rowland, destacamos as contribuições de Philip Kreager ao conceito de
regime demográfico (KREAGER, 1986). As definições de regime demográfico tanto em
Kreager como nas colocações de Rowland buscam individualizar as decisões dos agentes com
a estruturação dos regimes demográficos. Assim, para Rowland “o conceito de regime
demográfico especifica um conjunto de relações e de mecanismos que estão na base da
organização social, quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução do conjunto
de relações mediante as quais se regula a apropriação social (e a distribuição) dos meios de vida dessa
população” (ROWLAND, 1997, p. 14). Aos se basear em Kreager, Goldani assim define regime
demográfico:
O conceito de regime demográfico utilizado propõe modelar os processos ou como as
pessoas organizam seus eventos vitais e suas relações no interior de uma sociedade. A
proposta está em entender as restrições e oportunidades demográficas, mais do que entender o
* Trabalho apresentado no III Congresso da Associação Latino Americana de População, ALAP, realizado em
Córdoba - Argentina, de 24 a 26 de Setembro de 2008.
§ IFCH/NEPO/UNICAMP, mcunha@nepo.unicamp.br.
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papel do comportamento de uma variável demográfica, como por exemplo, o da queda da
fecundidade sobre a população (GOLDANI, 1999, p. 25)2.
As reflexões sobre a população no passado brasileiro levaram Marcílio (1984) a
elaborar uma tipologia do que chamou principais sistemas demográficos do Brasil no século
XIX: sistema demográfico das economias de subsistência, das economias das plantations,
das populações escravas e das áreas urbanas (MARCÍLIO, 1984).
Posteriormente, Nadalin ampliou a proposta de Marcílio ao levar em conta uma maior
variedade de realidades regionais (nove regimes demográficos3 versus os quatro sistemas
demográficos apresentados por Marcílio) (NADALIN, 2003; 2004). O trabalho de Nadalin,
segundo o próprio autor, é uma tentativa de se chegar ao mapeamento de um e outro regime
demográfico restrito4 que vigorou no Brasil colônia – alguns, certamente, até a metade do
século XIX, quais sejam: regime demográfico paulista, das plantations, da escravidão, da
“elite”, das sociedades campeiras, das economias de subsistência, das drogas do sertão, das
secas do sertão, das economias urbanas (NADALIN, 2004, p. 137, 133-142).
Diferente de Marcílio, Nadalin não fala de sistemas, mas de regimes demográficos,
deixando antever que não há um consenso, sobre o uso dos termos sistemas demográficos e
regimes demográficos. Marcílio não apresenta uma conceituação do termo sistema
demográfico e Nadalin, como ele mesmo afirma, sinonimiza sistema e regime demográfico5.
Neste trabalho que aborda especificamente a população escrava, optamos por utilizar o termo
regime demográfico.
Regime ou regimes demográficos da escravidão?
Maria Luíza Marcílio caracterizou o sistema demográfico das populações escravas
como aquele em que a mortalidade era extremamente elevada, que apresentava baixíssimas
taxas de nupcialidade e ausência da família estável e legal e a fecundidade das mais baixas do
Brasil, o que resultava em crescimento populacional negativo entre os cativos. (MARCÍLIO,
1984, p. 201-202).
Essa caracterização, provavelmente, refletia o que os estudiosos envolvidos com o
estudo da escravidão no Brasil vinham afirmando até então: a supremacia masculina, a
impossibilidade de constituição da família escrava, a vida sexual promíscua e lasciva do
2 A autora acrescenta: “Assim, ao utilizarmos o conceito de regime demográfico, em vez do conceito de
transição demográfica, assumimos que os estudos de população podem ser vistos como um aspecto das
estruturas sociais onde tanto os princípios de organização social como individual são importantes. Ainda nesta
perspectiva, se assume que o conceito de decisão, mais do que o resultado de um “cálculo consciente”, seria uma
propriedade de valores e de estruturas sociais particulares” (GOLDANI, 1999, p. 25).
3 O maior número de regimes demográficos se justifica pelas especificidades regionais. “Naquele estudo [2003],
tendo em vista (...) a ligação entre as variáveis populacionais e as estruturas sociais, foi aventado que o regime
colonial define restrições e oportunidades demográficas semelhantes e diferenciadas – se forem considerados os
distintos aspectos regionais e as configurações econômicas locais, sem mencionar as distinções possíveis entre as
diversas camadas sociais” (NADALIN, 2004, p. 133).
4 “Segundo Kreager, estes [“regimes demográficos restritos”] poderiam ser pensados e classificados não em
termos ideais ou normativos mas tomando em consideração os cursos alternativos de ações que os processos
vitais abrem ou fecham para grupos em particular (Kreager, 1986)” (GOLDANI, 1999, p. 25-26).
5 Encontramos no tópico regime demográfico do glossário proposto por Nadalin: “Desde Thomas MALTHUS,
os demógrafos têm se acostumado a lidar com este conceito [regime demográfico], que eu tendo a “sinonimizar”
com o conceito de “sistemas demográficos”” (NADALIN, 2004, p. 174).
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escravo e a ausência de laços familiares6. A partir da década de 1970, no entanto, novos
estudos de cunho histórico demográfico começaram a trazer informações que de certa forma
questionavam e relativizavam o sistema demográfico proposto por Marcílio7.
O regime demográfico da escravidão mapeado anos mais tarde por Nadalin, e já
beneficiado pelos avanços da historiografia sobre a escravidão e, em particular, da demografia
histórica sobre a população cativa, parte de uma perspectiva mais ampla em relação às
características dessa população, mas vinculando-o ao regime demográfico das plantations,
para em seguida apresentar as características do regime da demografia escrava.
Qualquer consideração a um regime demográfico das plantations deve levar em conta
o regime restrito da demografia escrava, a complexidade e as flutuações da produção e
exportação do açúcar, bem como no volume e custo do tráfico (existe uma relação entre a
importação e a mortalidade). Deve ser considerado, ainda, na continuidade do fluxo e seu
volume o reforço da cultura africana no Brasil (com variações regionais, Angola, Benguela,
Costa da Mina...), e em conseqüência a continuidade e ou rupturas de valores relacionados. Na
relação fluxo e volume (e as repercussões na fecundidade e na morbidade/mortalidade entre os
cativos), acima mencionado, função geralmente do desenvolvimento da economia, devem ser
levadas em conta, igualmente, as razões de masculinidade e a estrutura etária da população
africana. Finalmente, é importante mencionar as possibilidades postas pelo casamento,
famílias escravas mais ou menos estáveis e as próprias características das senzalas
(NADALIN, 2004, p. 138-139, grifo nosso).
Embora Nadalin tenha avançado na reflexão do regime demográfico da escravidão, as
pesquisas sobre essa temática, ainda restritas e localizadas no tempo e no espaço, apontam
para a existência de trajetórias demográficas diversificadas em contextos econômicos e
períodos diversos, como sinalizaram Paiva e Libby (1995).
Com efeito, parece que uma das mais importantes distinções que deve ser feita ao
comparar sistemas escravistas regionais ou mesmo microrregionais, diz respeito ao grau de
desenvolvimento na produção destinada ao comércio de exportação. Especialmente a partir do
século XVIII boa parte dos escravos no Brasil não trabalhava diretamente neste setor. Vastas
regiões do País, algumas das quais possuindo consideráveis populações escravas, passaram a
se especializar em produções destinadas ao crescente mercado interno, de modo que, ao chegar
ao século XIX, havia uma espécie de dicotomia entre economias escravistas ligadas ao
mercado internacional e aquelas dependentes do mercado regional. Para as várias regiões tal
distinção carrega importantes implicações em termos da experiência escrava, inclusive
demográfica (PAIVA e LIBBY, 1995, p. 204).
6 Sobre a historiografia clássica e seus principais expoentes (Gilberto Freyre, Emília Viotti da Costa, Florestan
Fernandes, dentre outros) ver SLENES, 1999, p. 27-43.
7 Ao escrever seu artigo, Marcílio teve acesso ao pionero estudo de Slenes (1976) cujas conclusões a respeito da
demografia escrava pós 1850 são de que as taxas de fecundidade escrava foram moderadamente altas (ao
contrário do que é sugerido, sobre taxas baixas) e as taxas de mortalidade reforçam o ponto de vista tradicional
de uma elevada mortalidade entre as pessoas escravas. No entanto, Marcílio não considerou as colocações de
Slenes, certamente por se tratar de um período específico da escravidão no Brasil, ou seja, após 1850. Fazemos
esta observação por considerar que Marcílio não pôde se ater a diferenças e especificidades da demografia
escrava de acordo com a economia, o contexto local e regional e as transformações ocorridas no sistema
escravista ao longo do século XIX (partir da década de 1980 os trabalhos têm ressaltado exatamente isso: como a
escravidão apresentou características distintas, por exemplo em São Paulo a nupcilidade escrava é
surpreendentemente mais elevada do que em outras províncias do Brasil nos oitocentos). Como seu objetivo era
uma proposta que generalizasse, é compreensível sua escolha. Em trabalho posterior, a autora não modifica suas
considerações em relação à demografia escrava para o Brasil colonial, assim como, se refere às características
demográficas da população escrava presente particularmente em áreas de grande plantação orientadas ao
mercado de exportação e nas zonas mineradoras (MARCÍLIO, 1990, p. 58).
5
Os historiadores mineiros não empregam o termo regime demográfico, mas padrão
demográfico. Ao analisarem a população escrava de Minas Gerais, Paiva e Libby reafirmam
a relevância do estudo de regiões que não se alimentaram exclusivamente do tráfico
internacional (ou do comércio interno) e que estavam fortemente ligadas ao abastecimento
interno, destacando o papel dos nascimentos para a manutenção de escravarias, ao menos até
1872.
No presente trabalho, reiteramos Paiva e Libby que já haviam chamado a atenção para
os diversificados padrões demográficos vigentes na sociedade escravista e buscamos
apresentar elementos que evidenciem uma proposta de regimes demográficos da escravidão
que vigoraram no passado brasileiro através do estudo da população escrava de uma vila
paulista, o município de Franca, entre 1804 e 18888.
Compartilhando das considerações de Goldani (1999), apresentadas anteriormente,
partimos do pressuposto de que a reprodução biológica da população escrava se dava
mediante as oportunidades e restrições apresentadas pelo contexto sócio-econômico, cultural e
demográfico, onde estavam presentes as relações com segmentos da população forra e livre e
com o próprio segmento escravo trazido através do tráfico internacional. Reprodução
biológica que era moldada e moldava a reprodução social dos cativos e da própria população
brasileira local.
Criando gado, plantando roças: povoamento e economia em Franca, século XIX
Na passagem do século XVIII ao XIX, o florescimento da lavoura canavieira e,
posteriormente, cafeeira de exportação em território paulista, foi acompanhado do
crescimento da mão de obra escrava africana crucial para a expansão dessas lavouras. Ao
mesmo tempo, a produção de gêneros para o mercado interno progredia, para atender e/ou
complementar o abastecimento daquelas áreas exportadoras e a Corte estabelecida no Rio de
Janeiro em 1808. A abertura dos portos às nações amigas nesse mesmo ano somou para
dinamizar as trocas comerciais no Brasil. Nesse contexto de ampliação dos mercados de
abastecimento e das áreas agro-exportadoras é que se deu o povoamento efetivo da região
norte de São Paulo.
O município de Franca, como muitos municípios brasileiros, teve sua origem como
pouso, uma vez que se localizava no sertão do rio Pardo e na rota do Caminho dos Goiases
(estrada que ligava São Paulo às regiões auríferas de Goiás e Mato Grosso).
Nesse primeiro momento de pousos (século XVIII) o sertão do rio Pardo foi povoado
por paulistas e sua evolução demográfica foi pouco expressiva. A economia da região estava
voltada para a produção de gêneros de primeira necessidade para o próprio consumo e o
abastecimento dos viajantes que percorriam o Caminho dos Goiases.
Essa configuração começou a se modificar, a partir da década de 1790, acentuando-se
sobretudo nas primeiras décadas do século XIX com a expressiva presença mineira no
povoamento efetivo da região norte paulista (CHIACHIRI FILHO, 1986, p. 54). Esse
movimento de mineiros em direção ao sertão do rio Pardo situa-se no contexto de ampliação
das fronteiras da pecuária e agricultura de abastecimento de Minas Gerais em direção a São
Paulo.
8 O recorte temporal compreende a data em que o arraial é elevado a freguesia (Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição de Franca) em 1804 e a abolição da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888. Os primeiros
registros paroquiais referentes à Freguesia de Franca datam de 1806.
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A região de Franca, além de apresentar condições naturais favoráveis à criação de
gado como pastos abundantes, clima ameno e vegetação de cerrado (o que facilitaria a
derrubada da mata), estava situada nas proximidades do Caminho dos Goiases, o que
permitiria o escoamento da produção (GARAVAZO, 2006, p. 27).
O movimento migratório, oriundo em grande parte do sul de Minas Gerais, modificou
a paisagem das colinas, capoeiras e matas que deram lugar mais tarde à Vila Franca do
Imperador. A criação da paróquia se deu em 1804, a elevação a vila e a abertura da Câmara
Municipal ocorreram em 1824. Dentre essas duas datas, o crescimento populacional foi
significativo e avançou os anos seguintes9, a população escrava esteve presente, mas sua
proporção no total de habitantes não ultrapassou um terço em todo o período para o qual
encontramos informações demográficas (final século XVIII e século XIX).
De acordo com a Lista Nominativa de Habitantes (1836), o segmento escravo teve sua
mais significativa participação no total da população, chegou a representar 32% dos 10.664
moradores da Vila Franca. A razão de sexo era de 134, relativamente equilibrada diante das
áreas de plantations (cujos valores facilmente ultrapassavam 200). Os escravos africanos
eram apenas um terço dessa população, sendo os demais crioulos. Acreditamos que uma
parcela desses crioulos tenha nascido na região, uma vez que a participação das crianças e
jovens (menores de 15 anos) era expressiva, 25%. A posse escrava encontrava-se bastante
difusa entre os domicílios francanos, cerca de 40% contavam com a mão de obra escrava e
63% dos proprietários possuíam até 5 cativos (de acordo com o levantamento realizado junto
aos inventários post mortem dos proprietários de escravos a estrutura de posse na localidade
não irá se alterar de modo significativo ao longo do século XIX)10.
Como podemos notar, Franca possuía uma economia muito menos dinâmica do que a
verificada nas áreas de plantations, uma vez que as posses eram diminutas e as escravarias
não tinham o tráfico de africanos como o principal fornecedor de cativos.
As principais atividades econômicas desenvolvidas em Franca eram a pecuária (gado
vacum e suíno), a produção de gêneros da terra voltados para o abastecimento interno, o
comércio do sal e uma produção razoável de tecelagem a qual, muito provavelmente,
ultrapassava o consumo interno. Nessa época, a produção do café era ainda irrisória.
A Lista Nominativa de Habitantes de 1835 mostra que o milho era o principal gênero
de subsistência produzido (alimento para pessoas e animais), seguido do feijão, arroz, fumo,
algodão, açúcar e café. Se os dados de Müller forem corretos, aproximadamente 35% das
fazendas de criar arroladas por ele, de um total de 501, encontravam-se em Franca (MÜLLER,
1923). O gado vacum era destinado aos engenhos de açúcar para tração/transporte e para o
consumo da população no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista. O toucinho, algodão, queijo e
feijão eram trocados por ferragens e sal na capital paulista, São Paulo (ZALUAR, 1953, p. 137-
138).
9 A população do sertão do rio Pardo era de apenas 365 habitantes em 1797 (Fonte: BRIOSCHI, 1995, p. 112). A
freguesia de Franca contava com 1.605 moradores em 1807 e 2.848 no ano de 1814 (Fonte: BACELLAR 1999,
p. 70). A Vila Franca do Imperador possuía 5.827 habitantes em 1824 e 10.667 em 1836 (Fontes: CHIACHIRI
FILHO, 1986, p. 186; MÜLLER, 1923, respectivamente).
10 Ao todo foram levantados 886 inventários cujos proprietários (as) inventariados possuíam escravos (as) (não
incluímos os inventários sem escravos). A única peça referente ao século XVIII data de 1776, as demais se
estendem de 1811 a 1887. Aqueles inventariados com até 5 escravos representam 62,2% dos inventários com
escravos e cerca de 80% dos senhores inventariados eram donos de até 10 escravos (Fonte: Arquivo Histórico
Municipal de Franca-SP).
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A demografia escrava em 1872 já refletia as diversas mudanças do sistema escravista
na segunda metade do século XIX: a proibição efetiva do tráfico transatlântico de escravos
(1850) e o conseqüente envelhecimento da população escrava de origem africana, a
diminuição proporcional dos africanos no total da população, a intensificação do tráfico
interno de escravos pós 1850 (para suprir a necessidade de mão de obra no Sudeste) com o
deslocamento de cativos de outras províncias para as fazendas paulistas. No entanto, a
população escrava em Franca quase dobrou de tamanho entre 1836 e 1874 (passou de 3.395
escravos para 6.461 respectivamente, desconsiderando os desmembramentos territoriais),
percebeu-se maior equilíbrio entre os sexos (a proporção de homens ficou em pouco mais de
50% no total da população cativa) e o envelhecimento da população cativa uma vez que a
partir do recenseamento nacional de 1872 não encontramos crianças escravas menores de 3
anos em virtude da sanção da Lei do Ventre Livre em setembro de 1871 que considerava livre
a criança nascida de ventre escravo e, pelo que tudo indica, em Franca não foi observada a
data de referência do censo de primeiro de agosto de 1872 (assim como na província de São
Paulo como um todo, o recenseamento nacional se deu somente em 1874).
Ao longo do século XIX, constatamos ter existido um relativo equilíbrio entre o
número de homens e de mulheres, assim como a presença significativa de crianças e jovens
(menores de 15 anos) que variou entre um quinto e um terço do total da população. A
proporção de africanos no total da população escrava sempre foi inferior à verificada nas
áreas de plantations.
A chegada da ferrovia a Franca em 1887 marcou o avanço da cafeicultura por São
Paulo na segunda metade do século XIX. A entrada da rubiácea à região e a de novos atores
nesse contexto socioeconômico - os fazendeiros capitalistas - em busca de terras para a
expansão do café, não irá solapar a agropecuária voltada ao abastecimento interno, já
estabelecida de longa data no norte paulista11.
Demografia escrava e trajetórias familiares
O sistema escravista que perdurou no Brasil por cerca de 350 anos foi o último a ser
abolido na América (1888) e foi marcado pela entrada permanente do braço escravo africano
nos portos brasileiros até 1850. A mão de obra escrava era empregada nas mais diversas
atividades econômicas e a presença do escravo negro se alastrou por todas as regiões do país,
sendo utilizado com maior ou menor intensidade de acordo com o dinamismo econômico de
cada área.
Através do acompanhamento de diversas trajetórias de famílias escravas, esperamos
vislumbrar a formação dessas famílias e suas características, que por sua vez foram
fundamentais na conformação da estrutura e dinâmica demográficas. Concomitantemente,
procuramos contrastar as considerações de Marcílio (1984) e Nadalin (2003, 2004) a respeito
do sistema/ regime demográfico das populações escravas.
Para o estudo da demografia da escravidão, da família cativa e de outros aspectos
socioculturais da população escrava em uma área voltada ao abastecimento interno, estamos
buscando suporte em um conjunto de fontes que se presta a esse tipo de estudo: fontes
nominativas como os registros paroquiais12, as listas nominativas de habitantes e os
11 Garavazo faz semelhante afirmação para Batatais (que se desmembrou de Franca e tornou-se vila em 1839)
(GARAVAZO, 2006, p. 69).
12 Os registros paroquiais referem-se à Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Franca no período 1806-1888.
Recolhemos todos os registros de batismo (total de 4.768 assentos), casamento (828 assentos) e óbito (2.072
assentos) de escravos e seus filhos que foram arrolados nos livros da igreja matriz da Vila Franca. É preciso
8
inventários post mortem, cujas informações permitem, inclusive, a reconstituição de famílias
escravas.
De início, gostaríamos de ressaltar que a amostra selecionada não é representativa da
família escrava em Franca e corresponde às trajetórias familiares dos cativos e cativas que
pertenceram aos proprietários que constaram concomitantemente nas cinco fontes
consultadas. De um total de aproximadamente 3.000 proprietários, 31 estão presentes nas
cinco fontes13. Consideramos que a seleção desses senhores possa ser um indicativo de maior
permanência dos mesmos na localidade e de estabilidade para seus cativos, o que nos ajudaria
a acompanhar por um período mais longo as trajetórias familiares dos cativos.
A identificação dos cativos foi feita a partir do nome do proprietário, uma vez que os
escravos não possuíam sobrenomes, apenas os prenomes. Confeccionamos listas tendo como
ponto de partida o nome do proprietário e, em seguida, buscamos seus escravos nos registros
de batismo, casamento e óbito, na Lista Nominativa de 1836 e nos inventários post mortem.
Essa escolha nos possibilitou individualizar muitas Marias, Anas, Antônios, Josés e identificar
suas famílias.
A partir dos registros de casamento e de batismo, procuramos identificar as famílias
escravas dos proprietários selecionados e chegamos um total de 179 casais com ou sem filhos
e mães com filhos14. Em seguida, consultamos os registros de óbitos a fim de verificar se
algum membro dessas famílias havia falecido. Como os registros de casamento e de batismo
não fornecem a idade ao casar dos noivos e dos pais ou mãe do batizando, respectivamente,
recorremos à Lista Nominativa de Habitantes de 1836 e aos inventários post mortem em busca
dessa informação. No entanto, nem sempre foi possível encontrar todos os membros das
famílias ou mesmo suas idades nas duas últimas fontes.
***
O casal de africanos Pedro e Vicência se casou na igreja matriz da Vila Franca em 29
de julho de 1832 às 14 horas. Pouco mais de um ano após a formalização da união perante a
Igreja Católica, Pedro Angola e Vicência Benguela levaram ao batismo o pequeno Luís em 17
de novembro de 1833, então com 17 dias. Nos anos seguintes, outras duas filhas do casal
foram batizadas, Custodia e Antonia. O casal teve outra filha, Ana, que localizamos apenas no
registro de óbito datado de 28 de julho de 1842. Ana morreu de febre ainda bebê, aos sete
meses de vida. Vicência também veio a falecer em março de 1848 de mal de engasgo.
Segundo a Lista Nominativa de 1836, Pedro e Vicência, juntamente com o crioulo Antonio de
apenas 12 anos, eram os únicos escravos do domicílio de Alexandre Pereira da Silva. Quando
o inventário desse senhor foi aberto, em 1853, Pedro foi arrolado ao lado de Antonio, 28
ressaltar que alguns distritos da Vila Franca possuíam suas próprias paróquias e seus livros de registros (Batatais
foi elevado a freguesia em 1815, Cajuru em 1843) que não foram contemplados neste estudo.
13 Segundo a Lista Nominativa de Habitantes de 1836, os proprietários eram todos do sexo masculino,
majoritariamente brancos e naturais de Minas Gerais (com exceção de dois portugueses e do único pardo e
paulista da amostra, José Curcino dos Santos), casados (um era viúvo e dois solteiros), apresentavam idades
entre 27 e 78 anos, sendo 51 anos a idade média. Para aqueles com informação sobre ocupação, 17 eram
lavradores, dois fazendeiros, um boticário e outro vivia de seu negócio.
14 Ainda que estejamos focalizando o parentesco afim e o consangüíneo, reconhecemos que as famílias
identificadas não são os únicos arranjos familiares existentes (ou possíveis) entre os escravos, mas aqueles
passíveis de serem identificados mais facilmente nas fontes consultadas.
9
anos15 e da africana Ana, 30 anos. Sobre os filhos de Pedro e Vicência, não sabemos o que se
passou com os mesmos (provavelmente não sobreviveram aos primeiros anos de vida).
Todos os registros anotaram Alexandre Pereira da Silva como o proprietário dos
cativos citados. Alexandre Pereira da Silva era lavrador (segundo a Lista Nominativa) e
também criador, pois estava presente na relação de criadores do Assentamento de Gados da
Vila Franca de 1829 possuindo 90 reses em Macaúbas (distrito da Vila Franca). Como
podemos notar, Alexandre P. da Silva não foi um importante senhor de escravos e teve que
recorrer ao tráfico transatlântico de escravos para adquirir mão de obra, apesar da ocorrência
de nascimentos em sua posse.
Apesar das lacunas que marcam a trajetória familiar de Pedro e Vicência, gostaríamos
de chamar a atenção para alguns pontos nela observados que se assemelham ou divergem de
outras famílias que constituíram a população escrava de Franca.
Primeiramente, destacamos a existência da família estável e legal entre os cativos de
Franca. O matrimônio religioso (monogâmico e indissolúvel) significa o início de uma nova
família (ou a formalização de uma já existente) calcada no reconhecimento de seus filhos
como legítimos. Este modelo de família cristã transposto à América Ibérica pelo clero católico
norteava a vida de negros, brancos, índios e mestiços. No entanto, no cotidiano enfrentava
questões de ordem prática que impossibilitavam sua efetivação, especialmente no tocante aos
custos de uma cerimônia e a apresentação de licenças de impedimento (CELTON, 1997).
Especificamente para a população escrava, o casamento cristão implicava uma série de
questões: qual o seu significado para os escravos de origem africana? Quais os limites entre a
vontade escrava e a intromissão senhorial?
Certamente o casamento para um escravo era vantajoso. Além de um companheiro (a)
para compartilhar o fardo de cada dia, havia a chance de conseguir uma habitação própria
(separada das senzalas) e até mesmo um pedaço de terra para cultivar seus alimentos
(SLENES, 1999).
Os escravos africanos em Franca se uniram em proporções mais elevadas do que
aqueles nascidos no Brasil (crioulos). Dentre os homens, os africanos com 11 anos e mais
casados ou viúvos chegavam a 29,8% e dentre os crioulos, 13,4%. Para as mulheres, a
porcentagem de casadas ou viúvas abrangia 45,8% das africanas e 24,0% das crioulas16.
Segundo Costa, Slenes e Schwartz (1987, p. 286), através das uniões conjugais os africanos
buscavam estabelecer laços de parentesco que os ajudassem a enfrentar as duras condições na
nova terra no intuito de se integrarem à comunidade escrava, uma vez que os nascidos no
Brasil tinham maior probabilidade de participarem de redes de sociabilidade já estabelecidas.
A partir dos registros paroquiais podemos caracterizar a união escrava segundo as
informações arroladas nos assentos de casamento e de batismo dos filhos legítimos. De um
total de 729 casamentos em que ambos os noivos eram escravos, apenas 11 casais (1,5%)
pertenciam a proprietários diferentes. Isto demonstra que a endogamia foi bastante recorrente
em Franca, o que certamente foi um impedimento à união escrava diante da ausência de um
15 Ao que parece, Antonio nasceu e morreu na mesma escravaria. Encontramos os registros de batismo e óbito
desse escravo, respectivamente em 1824 e 1854 (este último tendo como proprietária Maria Gomes Moreira,
esposa e inventariante de Alexandre Pereira da Silva). A mãe de Antonio, Joaquina, se casou em 1820 com
Joaquim e faleceu em 1831. Apesar de ter sido casada, acreditamos que em 1824 Joaquina já estivesse viúva,
pois Antonio foi arrolado como ilegítimo em seu registro de batismo. Nada sabemos sobre Joaquim, encontrado
apenas no registro de casamento.
16 De acordo com a Lista Nominativa de Habitantes de 1836 (CUNHA, 2005, p. 121-122).
10
parceiro (a) disponível na mesma escravaria. Mas o mundo da escravidão não impediu o
casamento entre pessoas de condições sociais diferentes. Escravos (as) casando-se com forros/
libertos/ ex-cativos (as) (total de 22 uniões) indicam que a liberdade destes últimos não
encerrava o contato com a comunidade cativa , apesar dos ex escravos (as) preferirem casar-se
entre si (40 casamentos no quais ambos os nubentes eram forros/ libertos/ ex escravos).
Os escravos homens casavam-se mais com mulheres livres ou ex escravas do que as
escravas, garantindo, desta forma, que seus filhos fossem livres. Mas a explicação para o
menor número de livres se casar com escravas estaria na condição social de seus filhos,
também escravos? Certamente isto poderia influenciar na escolha do cônjuge, mas é preciso
levar em conta também a razão de sexo entre os escravos (mais elevada entre os homens) que
impedia muitos deles de encontrarem parceiras no seu grupo social.
Os casamentos na Paróquia de Franca ocorreram também de forma mais acentuada
entre os cativos de mesma origem ou cor. Dentre os grupos de pretos, crioulos, pardos e
africanos, a maioria se casou com pessoas da mesma categoria. Os africanos apareceram
casando-se mais com crioulas, uma vez que na população africana havia também mais
homens que mulheres. Mas, a justificativa não se restringe apenas a uma questão numérica. Se
os africanos preferiam se casar com suas conterrâneas (e vice-versa) é provável que diante da
opção entre uma crioula e uma africana, as africanas fossem as eleitas devido à maior
afinidade com outra pessoa de sua terra e à restrição das crioulas que preferiam seus pares
crioulos.
Ao menos foi o que relatou Saint-Hilaire ao descrever uma conversa que teve com um
negro da Costa da África em Minas Gerais em fins da década de 1810. O escravo afirmava
que seu senhor havia lhe oferecido primeiro uma crioula, mas que não a queria mais porque as
crioulas desprezam os negros da costa e completou que em breve se casaria com outra mulher
que sua senhora acabara de comprar já que essa é de sua terra e fala sua língua (SAINT
HILAIRE, 1938, p. 100).
Como já dissemos, as africanas (assim como os africanos) se casavam
proporcionalmente mais do que as crioulas, segundo a Lista de 1836. Mais da metade de seus
filhos foram batizados como legítimos, o que podemos concluir que a família nuclear (pai,
mãe e filhos) esteve mais presente entre os africanos (que muitas vezes eram citados apenas
como pretos).
Tabela 1
Filiação dos filhos de escravas batizados segundo a origem ou cor da mãe.
Paróquia de Franca, 1086-1888.
Filiação Africana Crioula Preta Parda S/I Total
Legítima 112 252 224 24 1.540 2.152
Ilegítima 108 559 147 111 1.631 2.556
S/I 1 60 61
Total 220 811 371 135 3.231 4.768
Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca.
S/I = sem informação.
Vale lembrar que muitos nascimentos ocorriam antes do casamento de seus pais ou de
suas mães (como não há menção do nome do pai nos registros de batismo, não há como saber
se o marido da mãe é o pai de seus filhos naturais – termo usado nos registros paroquiais para
se referir aos ilegítimos) e o matrimônio legal apenas formalizaria uma união consensual.
É o que pode ter ocorrido com os filhos do africano Antonio e da parda Rita. Tiago e
11
Jerônimo nasceram, respectivamente, em 1833 e 1835 e foram batizados como ilegítimos, ao
passo que João, nascido em 1839, foi arrolado como filho de Antonio e Rita. Anselmo
Ferreira de Barcelos, o proprietário desses escravos, realizou o casamento de cinco casais em
um mesmo dia: 05 de abril de 1837. Os escravos Vicente e Joana, Pedro e Bárbara, Antonio e
Rita, Cristovão e Eva e, por fim, Florinda e o forro Antonio Vieira se dirigiram à igreja da
Vila para se unirem perante a Igreja Católica em uma celebração coletiva. Teria Anselmo
Barcelos esperado a formação de uma turma de escravos para que os casamentos fossem
feitos em um único dia sem a necessidade de ter que se dirigir várias vezes à Vila,
minimizando a ausência de seus cativos do trabalho? Essas parecem ser possíveis
justificativas para tal comportamento.
Tendo como exemplo a escravaria de Anselmo Ferreira de Barcelos poderíamos
indagar se a vontade senhorial não se sobrepunha às escolhas escravas. A interferência do
senhor certamente existia, mas não se impunha à revelia do escravo, afinal, o preço a ser pago
poderia ser elevado (como a fuga, resistência ao trabalho, assassinatos).
Por outro lado, muitos escravos tinham seus serviços de alguma forma reconhecidos e
eram gratificados com a própria liberdade ou a de seus filhos. Dentre as famílias
reconstituídas, Bonifácio e Felicidade eram casados e foram listados no inventário de José
Curcino dos Santos como “libertos por testamento” em 1862. O casamento havia sido
realizado em agosto de 1844, após o nascimento dos cinco filhos ilegítimos de Felicidade (a
filha mais nova foi batizada em julho de 1844). Cristina, batizada um mês antes do
casamento de sua mãe, estava listada no inventário de José Curcino e encontrava-se adoentada
naquele momento. Cristina continuou no cativeiro, mesmo com a liberdade de seus pais.
Encontramos apenas Veríssimo sendo batizado por liberto como determinara
Francisco Antonio Lopes, proprietário de seus pais Vicente e Zeferina. Nos inventários post
mortem também encontramos referência a três escravos sendo libertos: Francisco, Bonifácio e
Felicidade. Francisco e sua esposa Eufrasia se casaram em 1822, batizaram cinco filhos entre
1823 e 1840 e sua família chegou à geração de seus netos. Assim, Francisco (provavelmente
já viúvo) estava juntamente com dois de seus filhos, nora e neto quando foi inventariado e
liberto em 1860.
Esta família em especial perpetuou-se por três gerações na escravaria de Francisco
Lopes. Quando Laureano foi batizado, seus pais Reinaldo e Rita (esta também era nascida na
mesma posse do marido) confiaram a Rosa e Francisco (provavelmente tia e avô paternos) a
tarefa de serem seus padrinhos.
Pudemos constatar a permanência da família escrava também na escravaria de Inácio
Nunes da Silva. Rita levou ao batismo cinco filhos ilegítimos na década de 1820 e após se
casar com Francisco em 1829 encontramos outros dois filhos legítimos arrolados nos livros de
batizados. Duas de suas filhas, Eva e Custodia, quando batizaram suas filhas na primeira
metade da década de 1840 ainda pertenciam a Inácio Nunes. Se os pais de Eva e Custódia já
não estavam mais ao lado das filhas, ao menos as duas irmãs permaneciam unidas.
A separação da família escrava era um risco eminente, seja através da venda ou
partilha por morte do senhor, seja pela mortalidade elevada. Embora saibamos que os
registros de óbitos são entre os registros paroquiais do passado os mais problemáticos, pois
são os que apresentam maiores problemas de subnumeração, eles não podem ser descartados.
Além de contribuírem para a identificação das pessoas e reconstituição de família, no caso de
Franca, estes documentos trazem a causa mortis o que ocorre muito raramente em outras
paróquias. Sua análise pode, então permitir conhecer melhor as condições de saúde e
mortalidade dos escravos. É um tema, ainda hoje, muito pouco explorado.
12
Através da reconstituição de famílias escravas pudemos confirmar como a mortalidade
era devastadora, especialmente a mortalidade entre as crianças. Talvez o caso mais trágico,
tenha sido o da família da africana Joana. De acordo com os registros de batismo, sua
primeira filha nasceu em 1815 e o segundo filho em 1817. Efigênia, a primeira criança, não
sobreviveu aos seis primeiros meses de vida e seu irmão Francisco faleceu nas primeiras
semanas de vida. Joana morreu solteira aos 25 anos em 1818.
Outro exemplo que demonstra a dificuldade das crianças em sobreviverem aos
primeiros anos de vida é o dos filhos de Florinda. Esta escrava crioula levou ao batismo nove
filhos, todos ilegítimos, dos quais ao menos quatro faleceram em diferentes estágios da
infância.
Os registros de óbito atestam que o primeiro ano de vida de uma criança era crucial
para sua sobrevivência. Passada essa fase, o perigo diminuía, mas continuava presente. Os
óbitos de crianças com menos de um ano de vida chegavam a 20,2% do total e os de infantes
menores de 9 anos, 36,8%. Muitas das crianças morriam nos primeiros dias de vida e nos
registros de seus óbitos sequer havia seus prenomes. No primeiro ano de vida, constatamos
sobremortalidade masculina, uma vez que nascia maior número de homens e
conseqüentemente maior mortalidade, como os estudos demográficos já apontaram. As
mulheres morriam proporcionalmente mais nas idades jovens (1 a 14 anos) e na fase
reprodutiva (15-44 anos), o que evidencia o fato de que gerar e parir os filhos era uma das
principais causas de mortalidade feminina nesse período da vida.
Tabela 2
Óbitos de escravos e ex escravos por sexo e grupos etários.
Paróquia de Franca, 1807-1888.
Idade Homens Mulheres S/I Total
< 1 189 151 79 419
1-4 130 147 277
5-9 33 34 67
10-14 51 37 88
15-19 44 52 96
20-24 60 59 1 120
25-29 39 28 67
30-34 77 66 143
35-39 22 26 48
40-44 76 67 143
45-49 38 19 57
50-54 79 47 126
55-59 12 4 16
60-64 57 48 105
65-69 10 5 15
70 e + 80 37 117
S/I 81 86 1 168
Total 1.078 913 81 2.072
Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca.
S/I = Sem Informação
13
Segundo Nadalin (2004, p. 138), a possível concentração demográfica típica dos
engenhos e das fazendas de café contribuiriam para a transmissão de epidemias entre os
escravos. Como as escravarias francanas não se caracterizavam pelo grande número de
escravos, um simples olhar sobre as causas mortis de escravos arrolados nos registros de óbito
demonstra que as epidemias não acometaram os cativos em Franca.
Tabela 3
Causas mortis de escravos e ex escravos.
Paróquia de Franca, 1807-1888.
Causas mais freqüentes N. %
Febres (diversas) 364 17,6
Hidropsia 191 9,2
Inflamação 130 6,3
Causas externas* 117 5,6
De repente 116 5,6
Tosse 64 3,1
Gravidez e parto 56 2,7
Moléstias (diversas) 56 2,7
Defluxo 53 2,6
Lombrigas 49 2,4
Maligna 48 2,3
Doenças da pele 30 1,4
Encalhe 29 1,4
Estuporado 28 1,4
Pleuri 27 1,3
Diarréia 19 0,9
Feridas (diversas) 16 0,8
Sarampo 16 0,8
Gota 15 0,7
Recém nascido 13 0,6
Sarnas 12 0,6
Constipado 11 0,5
Fogo selvagem 11 0,5
Velhice 11 0,5
Dores (diversas) 10 0,5
Outras causas (diversas) 286 13,8
Sem informação 295 14,2
Total 2.072 100,0
Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de Franca.
* Causas externas= picada/mordedura de cobra, assassinado,
tiro, raio, afogado(a), sufocado(a), pancadas, queda, queimaduras.
A partir da reconstituição de famílias escravas, verificamos como a comunidade
escrava presente em uma economia com relativo dinamismo, mas nunca tão rica como a
verificada nas plantations, forjou laços familiares ora formal, ora consensualmente instituídos.
A importância dos nascimentos e a presença de crianças e jovens (menores de 15 anos) na
localidade como um todo e nas escravarias cujas famílias escravas foram reconstituídas,
sugerem-nos uma possível reprodução natural da população escrava.
Ainda que a cultura centro-africana tenha estado presente através da relevante
participação dos africanos e africanas na constituição da família escrava legal em Franca e
sido de extrema relevância para as seguintes gerações escravas crioulas, é necessário
aprofundar nas continuidades e rupturas de valores a ela relacionados, como já colocado por
14
Nadalin (2004, p. 138-139). Não descartamos o papel da família escrava na manutenção das
posses dos senhores escravistas de Franca, pois ela existiu e contribuiu para perpetuar a posse
escrava especialmente no período posterior a 1850.
Em nosso trabalho, estamos buscando não apenas caracterizar uma paróquia e suas
famílias escravas, mas sim propor elementos para se pensar as trajetórias familiares escravas
de uma perspectiva de regimes demográficos da população escrava, levando em conta os
diferentes períodos e contextos socioeconômicos em que esse segmento populacional está
inserido. As colocações de Marcílio (1984) e Nadalin (2004) ora se aproximam ora se
distanciam de diferentes realidades socioeconômicas e demográficas da diversificada
população escrava que se constituiu nas variadas regiões do Brasil, sendo cada vez mais
importantes estudos regionais e sobre micro-regiões.
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