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REVOLUÇÃO FRANCESA
UM BLOG SOBRE FRANÇA E PORTUGAL
domingo, 23 de maio de 2010
a paixão pela educação
Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat
O modelo educativo português, que seguimos, pelo menos, desde a implantação da República, é seguramente o mais marcante vestígio ideológico da Revolução Francesa na nossa mentalidade social e política. Esse modelo é estatista, porque pretende que o estado monopolize a educação, ou através de uma rede pública de escolas, ou da imposição dos seus valores e das suas regras às escolas particulares, e vê a educação como um meio para a formação de cidadãos e não de indivíduos. Estas duas características são dominantes no nosso sistema de ensino – desde o infantil ao superior – e atravessam todo o século passado e aquele em que vivemos. Na verdade, quer na República, quer no Estado Novo, quer na III República, a Escola tem sido essencialmente um veículo de transmissão dos valores que o estado quer, em cada momento, transmitir à sociedade, formando cidadãos, isto é, pessoas que se identificam com esses valores públicos e com o estado que os promove (sucessivamente o republicanismo, o anticlericalismo, a laicização, o nacionalismo antidemocrático, o socialismo e a democracia social e estatista), em vez de formar indivíduos, transmitindo valores éticos e conhecimentos que os habilitem a pensar autonomamente. Por isso também, os três regimes nunca abdicaram do primado do ensino público, sobretudo na Universidade, onde se propricia a formação das consciências. A República, Salazar e Abril tiveram e tem este último uma aversão profunda à educação privada, isto é, toda a que se realiza fora do estado. Herdaram-na da Revolução Francesa, por cujos valores orientaram e orientam o seu sistema e as suas políticas educativas.
Muito antes de 1789, ainda na França absolutista, já o país debatia vigorosamente a educação, as funções que lhe cabiam cumprir, o modelo que deveria seguir, os métodos pedagógicos mais eficazes, a natureza laica ou eclesiástica das temáticas, e, socretudo, o papel histórico da Igreja na formação e administração das escolas e o futuro que deveria desempenhar nessa importante actividade social. Os philosophes anteriores à Revolução não foram estranhos a este debate. O espírito das «luzes» impele-os a afastarem-se de uma educação que, como escreve Georges Gusdorf (Le fin de l’éducation), cuide de «preparar os espíritos cultivados capazes de brilhar na boa sociedade», dando a sua preferência a um modelo educativo que se destine a formar «cidadãos úteis, suscetíveis de contribuir à empreitada coletiva da civilização», conclui. Desde logo, Rousseau, com o Émile, ou Da Educação, livro no qual fazia a defesa de uma pedagogia naturalista, distanciada dos vícios adquiridos pelo homem na vida em sociedade. Uma educação eminentemente moral que reforçasse a criança, para que ela pudesse enfrentar, no futuro, um mundo corrupto e desviante. Para Rousseau este naturalismo educativo e pedagógico tinha por finalidade essencial formar os futuros cidadãos capazes de exercer a soberania, que compreendessem e contribuissem para a formação da vontade geral. Por outras palavras, para o estado.
Mas outros pensadores contribuiram, antes da Revolução, para este debate, muitos deles com sugestões e animosidades bem menos especulativas do que a de Rousseau. Entre eles, La Chalotais (Louis-René de Caradeuc de La Chalotais: 1701 – 1785), autor do Ensaio sobre a Educação Nacional. Como todos os autores que pretendiam, nessa época, inovar, La Chalotais defendia a secularização da educação, retirando-a à Igreja e entregando-a ao Estado. Todavia, é devid a Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet: 1743 – 1794) a teoria geral da educação que marcaria o espírito da Revolução e dos tempos vindouros, neles se incluindo os nossos.
Condorcet foi um dos derrareiros filósofos das «luzes». Segundo Michelet, terá mesmo sido «o último dos filósofos». Matemático, aristocrata com ideias liberais, amigo e companheiro de Turgot sobre quem escreveu uma biografia laudatória (Vie de M. Turgot), aderiu à Revolução sem ser um revolucionário, menos ainda um político. Acreditava firmemente na educação como força motriz das transformações sociais, e, eleito deputado ainda na Assembleia Nacional, submete-lhe um projecto de instrução pública e um outro de uma Constituição (este último elaborado com Thomas Paine). Ambos foram reprovados por influência de Robespierre. Em bom rigor, o projecto de instrução pública padeceu do veto à Constituição, que Robespierre considerava moderada e à qual haveria de contrapor a sua, aprovada em 93. Todavia, em quase nada ele desmerecia do espírito da época e da prórpia Revolução. Essa proposta fundava-se numa obra que Condorcet publicou em 1791, intitulada Cinq Mémoires sur l 'instruction publique, na qual defendia que a desigualdade da educação era uma das «principais fontes da tirania». Por essa razão, ele entendia que a instrução era uma obrigação social que o estado devia assumir. A educação pública, universal, laica e distanciada da Igreja era assim «un devoir de la société à l'égard des citoyens», como o autor defende ao longo da primeira das cinco partes das Cinq Mémoires, toda ela dedicada à instrução enquanto bem e serviço público. Morreria no cárcere de Bourg-Clamart (ao que se julga cometendo suicídio com um veneno que lhe foi facultado por Pierre-Jean George Cabanis, seu companheiro de presídio), para o qual fora remetido em Março de 94, após uma fuga de oito meses, sob a acusação de conspirar contra a República que lhe foi movida por François Chabot, em Julho de 93, um dantonista obtusamente adversário dos girondinos, que seria ironicamente guilhotinado com Danton sete dias depois.
Condorcet não assistiria ao triunfo inequívoco das suas ideias, não só em França, como na grande maioria dos países europeus, entre eles Portugal. Infelizmente, elas assistem ao espírito que orienta a educação de cariz estatista que é o nosso. A educação forma os cidadãos da República, imprime-lhes os seus valores, em vez de contribuir para a formação de indivíduos autónomos da ideologia do regime, isto é, de verdadeiros homens livres. As suas ideias eram, contudo, as da Revolução. A 13 de Agosto de 93, num discurso à Convenção, Danton proclamava-as: «O filho do povo será criado às custas do supérfulo dos homens de fortunas escandalosas», dizia. «Ao semear no vasto campo da República», continuou, «não deveis contar o preço da semente. Depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo! Meu filho não me pertence, ele é da República!» Uns meses antes, a 19 de Abril, afirmara perante a mesma assembleia: «A educação pública é uma dívida social que é preciso saldar desde que os vossos esforços lograram derrubar o despotismo e o reinado dos padres.» E Saint-Just, nas suas medíocres Instituições Republicanas, indo mais longe no estatismo, antecipava em boa medida os excessos do modelo comunista, ao defender a tutela das crianças pelo estado desde pequena idade, impondo-lhes uma educação «cívica», desde a transmissão das regras da moral republicana, até à imposição de hábitos alimentares (vegetarianismo!) e sexuais (virgindade feminina até à idade adulta). De todo em todo, é o mesmo espírito com variações de grau: a educação como bem público gerido pelo estado.
Esses princípios são inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada pela Convenção, ironicamente, em pleno Terror (a versão original, de 89, não os incluía, dada a sua natureza essencialmente burguesa e garantística dos direitos fundamentais de primeira geração, conforme a tradição constitucional da época, e não de direitos sociais). Diz expressamente o seu artigo 22º: «A instrução é uma necessidade de todos. A sociedade deve favorecer com todo o seu poder o progresso da inteligência pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos.» Onde se lê «sociedade» deverá ler-se «estado», como por experiência própria infelizmente sabemos.
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terça-feira, 18 de maio de 2010
jacobinos
Michel Vovelle, catedrático de História da Revolução Francesa na Sorbonne e Director do Instituto da História da Revolução Francesa, publicou, em 1999, um livro interessante sobre o seu tema de eleição intitulado «Les jacobins: de Robespierre à Chevènement». Verdadeiramente, o livro não começa em Robespierre e é aí que ganha verdadeiro interesse. Para quem julga que o jacobinismo começa e termina com o Incorruptível e quiser prescindir de obras de maior fôlego, este livro é um auxiliar necessário.
Não sendo uma análise original (Michelet já a fizera antes), a perspectiva de Vovelle sobre o jacobinismo divide-o, pelo menos, em três fases a ter em conta: a) o jacobinismo primitivo; b) o jacobinismo misto; c) o jacobinismo de 1793.
A primeira fase é a da fundação do clube no Convento de São Tiago (Saint-Jacques), na velha Rua de Saint-Honoré, e nele predominava um grupo de raíz parlamentar e de elevada posição social (alguma nobreza, alta burguesia), onde se incluiam Duport, Barnave e Lameth, mas também Condorcet, Cazotte, Aiguillon, e mesmo até Mirebeau e La Fayette. Ao Clube pertenciam já Robespierre e Brissot, os futuros líderes jacobino e girondino, cujo confronto levaria à queda do segundo e à ascensão do primeiro à chefia do Comité de Salvação Pública, embora as suas presenças não fossem ainda dominantes. Esta fase estende-se até ao fim de 90, e é marcada pela defesa da monarquia constitucional, do voto censitário e de um entendimento da Revolução como um processo de reforma do regime e não da sua radical destruição. Nesse sentido, o directório do Clube publicou uma circular em Janeiro de 91, onde se podia ler: «A revolução está terminada, o império das leis está consagrado, somente a sua execução tranquila pode consolidar a Constituição.» Como todos sabemos, não foi isso que veio a suceder.
Em Junho de 91, com a fuga de Luís XVI para Varennes, consagrou-se a cisão entre os dois grupos do Clube, os «moderados» e os «democratas». A 16 de Julho, Antoine Barnave constituiu uma nova Sociedade dos Amigos da Constituição, para a qual levou a maior parte dos jacobinos institucionais, nomeadamente os deputados da Assembleia Nacional. Esse novo Clube ficou conhecido pelos «feuillants», devido também ao local onde decorriam as reuniões, o Convento dos Feuillants de Paris, na mesma Rua de Saint-Honoré onde reuniam os Jacobinos, agora com a presença ascendente de radicais como Robespierre, Pétion, Brissot e Buzot. Deste grupo, que não era homogéneo, que aceitava discutir a eventual substituição do Rei, mas não era uniforme na defesa da República nem o fim da Monarquia, surgiriam os Girondinos e os Jacobinos da terceira vaga, isto é, do Ano II.
Durante a segunda fase do jacobinismo, que vai da cisão de Julho de 91 a Agosto de 92, sobreleva a separação progressiva entre o Clube e o Parlamento, arrastando o primeiro para uma sociedade popular, assente no predomínio «sans-culotte». A segunda cisão que o Clube haveria de conhecer, que provoca a exclusão da Gironda, segue esse meridiano: os girondinos defendem a ordem parlamentar estabelecida, os jacobinos stricto sensu advogam a revolução popular e radical. Se em 29 de Julho de 92 Robespierre acentuava as diferenças pedindo, em discurso no Clube, a destituição do Rei e a eleição de uma Convenção por sufrágio universal e não já pelo tradicional sufrágio censitário, o golpe revolucionário de 10 de Agosto seguinte, levando à queda de Luís XVI, consumou a inevitável separação. A partir desse momento, a cena pertence, por inteiro, a Maximilien Robespierre.
A consumá-la o Clube mudaria de nome para Sociedade dos Jacobinos Amigos da Liberdade e da Igualdade. A Constituição era posta à margem, o que, de resto, o Clube se encarregaria de fazer com a sua substituição por um documento revolucionário, em 93, que nunca chegaria a vigorar na ordem jurídica. Os jacobinos abandonam definitivamente a legalidade, ainda que revolucionária, e entregam-se decididamente ao poder popular. O domínio pertence agora a Couthon, Saint-Just, Dumas, Billaud-Varennes, Coullot d’Herbois, mas, sobretudo, a Robespierre, que tem no Clube o seu refúgio, ao qual recorre quando se sente inseguro na Convenção ou mesmo no Comité.
Foi exactamente o que ele fez na noite de 8 Thermidor, no último discurso público que proferiu perante uma assembleia. Consciente do perigo em que se encontrava, embora ainda embevecido com a sua oratória que julgava capaz de inverter todas as dificuldades, dirigiu-se aos jacobinos, dramatizando os reveses da manhã na Convenção, e dizendo-lhes no fim de um longo discurso: «Eis meu testamento. Meus inimigos, ou antes, os da República, são tão numerosos e tão poderosos que não poderei escapar por muito tempo aos seus golpes.» Estava, involuntariamente, certo: no dia seguinte a Convenção já o não quis esctutar. O derradeiro golpe viria dois dias depois, executado pela experiente mão de Samson.
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segunda-feira, 3 de maio de 2010
bancarrota
Turgot não conseguiu manter-se por muito tempo no governo de S.ª Majestade, o Rei Luís XVI, que o nomeara Controlador-Geral do Reino a 24 de Agosto de 1774. Ele sabia que as suas ideias, próprias de um fisiocrata e de um verdadeiro liberal, podiam ser simpáticas nos debates diletantes da corte e da burguesia ascendente, mas afugentavam os detentores do poder político da França do seu tempo. Turgot acreditava no livre-comércio, quando as corporações exigiam proteccionismo; não queria aumentar impostos, quando a Corte via neles o único meio de se sustentar; pugnava pelo fim dos velhos privilégios fiscais da aristocracia e do clero, contra o que estas duas importantes ordens sociais estavam dispostas a ceder; desejava pôr fim ou reduzir substancialmente os impostos reais, como a talha, e eclesiásticos, como o dízimo, e opôs-se firmemente à corveia (um imposto pago ao rei e à nobreza territorial traduzido em alguns dias de trabalho gratuíto por ano, sem qualquer retribuição ou compensação) e, pior de tudo, exigia que a França fosse rigorosa nas suas despesas, não gastasse mais do que tinha disponível (na verdade, já nessa altura, quase nada), e não se endividasse contraindo empréstimos no estrangeiro. Turgot era um verdadeiro liberal clássico, admirado, nos nossos dias, por homens como Rothbard e Hayek, e estava claramente desinserido do seu tempo. Quando assumiu as suas funções no governo, estabeleceu três objectivos prioritários: evitar as falências, o aumento dos impostos e os empréstimos. «Para satisfazer esses três pontos, só há uma maneira. Reduzir os gastos a um nível inferior aos das receitas», escreveu ele ao Rei. Em 12 de Maio de 1776, menos de dois anos após a sua nomeação, estava demitido.
Foi sucedido por Necker, Jacques Necker, banqueiro e economista suiço, que não simpatizava com o liberalismo de Turgot. Necker dominou as finanças francesas em três mandatos, dos quais foi também por três vezes demitido: de 1776 a 81, de 88 a 89 e ainda novamente em 89 até 3 de Setembro do ano seguinte. Como um bom banqueiro, aplicou-se a procurar e a obter crédito para o seu cliente, o estado francês. Proteccionista, impôs medidas restritivas ao comércio externo e programas de incentivos às importações. E, apesar de alarmado com o despesismo da Corte, foi incapaz de o conter.
Por essa altura, a França gastava desalmada e alegremente. Calcula-se que as despesas pessoais da corte, da alta nobreza e da administração pública do reino consumiam praticamente um quarto do orçamento geral do reino. No começo da Revolução, em 89, a dívida externa do país ascendia a 3 biliões e 119 milhões de libras. Alguns meses após somava-se-lhe mais um bilião. Ou seja, à dívida acumulada do Ancien Régime, acrescentavam-se agora os custos da Revolução, sobretudo os decorrentes das reformas dos antigos privilégios. A França estava, no fim de 89, à beira da bancarrota e ninguém parecia ter solução para isso.
Foi Talleyrand, na altura ainda padre católico, quem se lembrou de nacionalizar os bens da Igreja para pagar a dívida da França. Segundo ele, esses bens tinham sido doados, ao longo dos tempos, pelos fieis à Igreja, isto é, ao próprio conjunto dos crentes, logo, à nação que agora os reclamava numa situação de emergência. Não eram pertença da hierarquia e deviam estar à disposição da pátria. Entre 2 de Novembro de 89 e 19 de Abril do ano seguinte, a Assembleia Constituinte nacionalizou e assumiu a gestão de todos os bens da Igreja. Para conseguir liquidez, sendo impossível a venda imediata de todos esses bens, o governo montou uma operação ardilosa, criando os célebres assignats, títulos de empréstimo ao estado garantidos pelos bens confiscados, para vender aos cidadãos franceses, garantindo-lhes um juro anual de 5%. A venda posterior desse património permitiria pagar os empréstimos, e à medida que os assignats regressassem à Caisse de l’Extraordinaire (a Caixa de Descontos, que fora expressamente criada para esta operação), deveriam ser queimados, ficando a dívida nacional paga.
Só que os assignats não foram queimados, à medida que regressavam à Caixa donde tinham saído. Pelo contrário, começaram a ser impressos desalmadamente, perdendo qualquer relação real com o valor dos bens que os deviam garantir. Acabam por se transformar no papel moeda de França, e, em consequência do aumento de papeis em circulação, perderam valor. Só em três anos, de 90 a 93, perderam mais de 60% do seu valor facial. A partir de 93, em pleno Terror, o Comité de Salvação Pública decretou todas as medidas possíveis e imaginárias para tentar salvar e manter algum valor à moeda da Revolução. Chega ao limite, em Setembro desse ano, de decretar a pena de morte a quem recusasse pagamentos nessa moeda.
A Revolução Francesa não inaugurou os expedientes modernos com os quais os governos dos nossos dias costumam tratar das crises financeiras em que lançam os seus países. Mas o governo revolucionário jacobino lançou mão de um conjunto de medidas que praticamente as juntou a todas, elevando-as a um paroxismo do disparate raramente igualado de novo: novos empréstimos (100 milhões em 5 de Setembro de 93); emissões descontroladas de papel-moeda, os célebres assignats (2 biliões em 28 de Setembro de 93, 1 bilião e 205 milhões em 19 de Junho de 94); novos impostos sobre os “ricos” (11 de Novembro de 93, destinado aos “ricos” de Nancy, numa medida decretada apenas por Saint-Just...); estabelecimento de preços e valores máximos para certos produtos e serviços (cereais, em 11 de Setembro de 93, géneros de primeira necessidade e salários, em 29 de Setembro do mesmo ano, esta última lei conhecida pela «Lei do Máximo»); confisco e nacionalização da propriedade («Decretos do Ventoso», de Março de 94); criminalização violenta de actos considerados ilícitos económicos (pena de morte para os açambarcadores em 27 de Julho de 93; pena de morte para quem rejeitasse os assignats e recompensa para os seus delatores); etc.
Somadas às loucuras do Ancien Régime, as loucuras da Revolução levaram a França à efectiva bancarrota. A guerra permanente com o estrangeiro agravou a situação. O governo revolucionário recusava responsabilidades na crise, imputando-as a todos os seus inimigos reais e imaginários. A culpa era dos emmigrés, dos conspiradores internos, dos contra-revolucionários, dos aristocratas, de Dumouriez, Pitt, dos credores, em suma, de todos menos de quem a provocara ou agravara irremediavelmente. Esta cultura de despesismo e irresponsabilidade deixou um traço profundo na mentalidade de muitos países que sofreram a influência da Revolução. Portugal não constituiu, nem constitui, uma excepção.
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quarta-feira, 7 de abril de 2010
janelas quebradas
Existem algumas facetas verdadeiramente admiráveis na Revolução Francesa, que constituem impressionantes lições de História e de Política. Desde logo, a sucessão de acontecimentos e de factos ocorridos entre 1789 e 1795 revela um sem número de erros, disparates e imprudências políticas com consequências trágicas, para as quais o liberalismo clássico não se cansa de alertar.
A mais evidente lição de todas é a dos resultados não pretendidos das acções humanas. Sobretudo quando estas dispõem de poder político, isto é, da capacidade de tomar decisões que influenciam milhares de indivíduos. Não restam dúvidas para ninguém que conheça minimamente a história deste período, que a maioria dos líderes da Revolução estava animada de boas intenções: quase todos queriam sinceramente o bem da França e dos franceses, o desenvolvimento do país e a criação de um regime constitucional assente nos princípios da liberdade e da igualdade de todos perante a lei. Todavia, os resultados das suas acções foram exactamente o oposto dos desejados: terror, violência, desrespeito pelos direitos individuais mais elementares e, na generalidade, a supressão de todas as liberdades antigas do Reino. A lição a recolher daqui é evidente: não bastam as boas intenções para que a acção política dê bons resultados. Hayek explicaria isso mais tarde e sintetizaria o princípio dizendo que somos mais o resultado dos nossos actos do que das nossas intenções. E mesmo em França, pouco após o início do ciclo napoleônico, Frédéric Bastiat explicaria, com simplicidade, as consequências não previstas nem pretendidas do comportamento dos agentes políticos. Em França, durante a Revolução Francesa, os seus dirigentes dispuseram de um poder que nunca deveria ter estado ao seu alcance. Exerceram-no para atingir o bem do seu país e dos seus concidadãos. Obtiveram o resultado exactamente inverso.
Outra lição importante, que pode ser vista como um corolário da anterior, é a de que homens comuns podem causar danos extraordinários, se tiverem à sua disposição um aparelho de poder sofisticado e um governo sem limites. Na verdade, os principais protagonistas da Revolução são pessoas normais. Nenhuma delas é uma figura excepcional, e muitas estavam bem abaixo das capacidades humanas médias. Robespierre é um leitor vulgar de Rousseau e dos Enciclopedistas, que assimilou mal e divulgou ainda pior. Não dispunha de especiais talentos oratórios, nem de uma inteligência fulgurante. Era obsessivo e pertinaz nos seus objectivos, mas era imensamente cobarde e não dava o rosto por eles. Para além do mais, pelo menos a partir de um certo período, desenvolveu uma personalidade neurótica e esquizofrénica, permanentemente perseguido por complôs imaginários e conspirações inexistentes. Danton era um rufião inteligente e capaz, mas com uma personalidade duvidosa e que deixava muito a desejar. Venal, deixava-se seduzir facilmente pelo dinheiro, tendo-se envolvido em inúmeras situações mais do que duvidosas, que os seus adversários exploraram até à exaustão. Não tinha escrúpulos, nem era propriamente um defensor de princípios. No fim da sua vida deixou-se derrotar infantilmente e, assim, condenou-se e condenou irresponsavelmente os seus amigos à morte. Mirebeau era um homem superiormente inteligente, mas um charlatão. Liderava a Revolução enquanto se vendia à coroa. Movido por alguns princípios e, sobretudo, por objectivos políticos razoáveis, condenava-os em troca de um prato de lentilhas. A sua morte radicalizou a Revolução, mas é mais do que duvidoso que a tivesse conseguido suster, caso vivesse alguns anos mais. Saint-Just é um jovem delinquente, com uma personalidade fortemente psicopata. Quando tinha 19 anos a sua mãe viu-se obrigada a interná-lo numa casa de correcção, dado o seu comportamento violento e insubmisso. Mais tarde, já na Revolução, toma atitudes desumanas e desrespeitadoras dos mais elementares direitos individuais que dizia proteger. Em “homenagem” ao seu carácter, Michelet pôs-lhe a sinistra alcunha do “Arcanjo da Morte”. Desmoulins não passava de um jornalista incendiário, com deficiências de carácter muito acentuadas. Brissot, que tinha sido, em jovem, um aventureiro inescrupuloso, foi um político também sem escrúpulos e que se orientava exclusivamente ao sabor do que pensava serem as suas conveniências. Collot d’Herbois fora um medíocre actor de teatro e desempenhou, na Revolução, o papel de um psicopata sanguinário que se orgulhava de massacrar “traidores”. Billaud-Varenne era um medíocre, com uma personalidade violenta e sem escrúpulos. Fouquier-Tinville não passava de um tratante capaz das maiores pusilanimidades. Mme. Roland era uma arrivista esperta, mas com vistas muito limitadas, tão limitadas que acabaria no cadafalso, graças a elas. E poderíamos continuar a lista sem garantidamente encontrar uma personagem de excepção. Todavia, foram estes homens vulgares, talvez até demasiadamente vulgares, que provocaram acontecimentos extraordinários, o que demonstra que as consequências do exercício do poder dependem menos de quem o exerce, do que da sua própria natureza.
A Revolução Francesa é, assim, um inesgotável repositório histórico de lições sobre política, sobretudo para aprendermos aquilo que nunca devemos fazer ou deixar que nos façam. É, por consequência, uma eloquente demonstração da necessidade de um poder público mínimo e o mais controlado que for possível
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segunda-feira, 5 de abril de 2010
a direita que era de esquerda
Todas as revoluções começam por ser sucessões desordenadas de actos e de reacções contra um poder estabelecido, até que um grupo consiga assumir o seu controlo e imprimir-lhe uma orientação e uma finalidade determinada. Isso mesmo aconteceu na Revolução Francesa até ao momento em que os jacobinos de Robespierre claramente a dominaram, a partir da entrada do Incorruptível para o órgão executivo da estrutura de poder, o célebre Comité de Salvação Pública, em 27 de Julho de 1793.
Até então, a Revolução percorreu uma sequência de ciclos, cuja evolução seria a radicalização revolucionária à esquerda, corporizada na ideia da República democrática e popular. O primeiro deles, iniciado com os acontecimentos da transformação dos Estados Gerais (5 de Maio de 1789) em Assembleia Nacional (17 de Junho do mesmo ano), primeiro, e em Assembleia Nacional Constituinte (9 de Julho), depois, juntou todos os adversários do Ancien Régime em torno da ideia da criação de uma monarquia constitucional à inglesa, fundada numa legitimidade política nacional assente na representação igualitária da Nação, com um monarca com poderes limitados por uma Constituição política. Neste período da Revolução predominaram os homens que, ligados à nobreza descontente com o anterior regime e à burguesia emergente, admiravam os princípios constitucionais da monarquia inglesa e se reviam na nova ordem política instituída nos Estados Unidos da América. Alguns deles, como La Fayette, tinham estado no continente americano e ajudado na guerra pela independência das antigas colónias inglesas. Outros, como Mirebeau e Sieyès, pertenciam às elites letradas de Paris, embora, por uma ou outra razão, estivessem distanciados do exercício do poder.
O segundo ciclo da Revolução é marcado por um antimonarquismo claro, e inicia-se com o episódio da fuga da família real e a sua detenção em Varennes (20-21 de Junho de 1791). A este acto desesperado do Rei não foi estranha a morte de Mirebeau, a 2 de Abril do mesmo ano e, por consequência, a radicalização do processo revolucionário. Na verdade, Mirebeau era talvez o único dirigente da Revolução capaz de salvar o rei e a Monarquia. A sua morte provocou um vazio de poder que seria temporariamente preenchido por um governo girondino, a partir de 15 de Março de 92, até à subida ao poder de Robespierre.
Os girondinos deviam o seu nome à origem geográfica do seu chefe, Jacques-Pierre Brissot, e de boa parte dos seus deputados, oriundos do departamento da Gironda. Entre eles estavam Vergniaud, um eloquente advogado de Limoges, Pétion, outro advogado que fora íntimo amigo de Robespierre e que, em 1791, é feito Maire de Paris, e, sobretudo, Manon Phlipon, a célebre Mme. Roland por casamento com Jean-Marie Roland de La Platière, este último um burocrata cinzento e apagado que é feito Ministro do Interior no gabinete girondino. Mme. Roland era quem verdadeiramente orquestrava a estratégia da gironda. A sua casa era, de facto, a sede do partido girondino, e foi graças a ela e ao confronto que manteve com Danton que os girondinos se perderam.
Na célebre divisão “esquerda-direita” que a Revolução Francesa legou à cultura política contemporânea, a gironda era a “direita” da revolução. Todavia, pouco, ou quase nada, os separava dos jacobinos. Na verdade, como estes últimos, os girondinos eram revolucionários e tinham participado nos principais eventos da Revolução, sempre nas posições mais extremas. Muitos deles tinham sido originariamente jacobinos e até compagnons de route de Robespierre, como o já referido Pétion. Defendiam o fim da monarquia e a instauração da república. No processo do Rei votaram quase todos pela condenação à morte do “tirano”. Queriam a guerra contra a Áustria como forma de unir a Nação, no que, aliás, sentiram pela primeira vez a oposição firme de Robespierre, que defendeu tacticamente a paz (“Só poderemos estar tranqüilos quando a Europa, e toda a Europa, estiver em fogo”, diria Brissot à Convenção, num discurso proferido a 26 de Novembro de 92). Muitos dos seus principais protagonistas apoiaram alegremente a Constituição Civil do Clero (12 de Julho de 1790), e aprovaram, em 20 e Setembro de 92, as leis sobre a laicidade do estado e o divórcio. Eram, pois, adeptos fervorosos das “causas fracturantes” do seu tempo. Ideologicamente, pouco os separava dos jacobinos de Robespierre: uma vaga defesa do federalismo (o que os levaria à acusação de “divisionistas” e “facciosos”) e uma reforçada defesa da propriedade, esta última mais em contraponto aos extremistas do bando de Hébert e de Marat, do que propriamente a Robespierre e aos seus.
Quando pressentiram, nos Massacres de Setembro de 92, que o fogo lhes poderia chegar perto, viraram-se estupidamente contra Danton, que lhes propôs uma aliança e que era o único que os poderia salvar. Acusando Danton de todos os crimes revolucionários cometidos, sobretudo dos Massacres de Setembro, e, até mesmo, da intenção de restaurar a monarquia, rejeitaram a aliança que ele lhes propôs na Convenção. Ouviram, então, da sua boca a sentença final: “Desejais a guerra? Então, tereis a morte.” A partir do começo do ano de 93, os girondinos são frontalmente atacados. Em Março, os jornais que lhes são próximos saqueados por grupos de sans-coulottes. Em Abril é preso Sillery, um dos seus deputados, juntamente com Philippe Égalité. A 15 desse mês, a Comuna de Paris exige a demissão de 22 deputados girondinos da Convenção. Entre 31 de Maio e 2 de Junho, são presos 29 dos seus deputados. A 31 de Outubro são executados os girondinos que estavam presos. Dos que tinham conseguido fugir, Pétion e Buzot suicidam-se num campo de trigo próximo de Bordeaux, quando tentava fugir provavelmente para o estrangeiro.
Nos primeiros dias de Novembro, quando descansava na sua casa provinciana de Arcis, onde frequentemente se refugiava para temperar forças, um amigo trouxe-lhe a notícia da execução dos girondinos. Perante a euforia do amigo, que achava tratar-se de uma “boa notícia” que condenara “facciosos” inimigos da República, ter-lhe-á dito Danton: “Facciosos! Facciosos? Qual de nós está isento de ser chamado faccioso? Todos mereceríamos, bem mais do que eles, ser guilhotinados. Todos, um após o outro, teremos o mesmo destino. Esses homens de Paris desejam guilhotinar toda a República”. Danton, que apesar das ameaças nada teve a ver com a sentença final dos girondinos, subiria poucos meses mais tarde ao cadafalso, cumprindo os seus vaticínios. Menos de quatro meses depois seria a vez de Robespierre.
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domingo, 4 de abril de 2010
asfixia democrática
Não fosse o Le Vieux Cordelier, jornal que fundara por sugestão de Danton para tentar conter os ímpetos extremados da Revolução, talvez Camille Desmoulins tivesse sobrevivido à sanha persecutória de Maximillien Robespierre contra Danton e os seus próximos.
Camille era um dos mais célebres e celebrados jacobinos, e um dos mais precoces revolucionários parisienses, tendo começado a sua carreira de agitador muito cedo, logo nos acontecimentos da Bastilha, em Julho de 1789. Estava, então, com apenas 29 anos de idade. Foi ele quem, no dia 12 desse mês e nos que se seguiram até e depois da queda da velha prisão de Paris, instigou a populaça à revolta e à queda da ordem estabelecida. Até ao dia da sua morte, a 5 de Abril de 1794, em pleno Terror, foi sempre um agitador e um revolucionário. Revelou-se, também, um excelente jornalista e um polemista de excepção. Seriam estas suas duas últimas qualidades que o levariam ao cadafalso, às ordens de Robespierre e de Antoine Saint Just.
Com Danton e com muitos outros, Camille fundara o Clube dos Cordoeiros nos primórdios da Revolução. Tratava-se de um grupo revolucionário popular, de acesso fácil e barato, ao invés do Clube dos Amigos da Constituição, o clube jacobino mais destacado, fundado e frequentado por La Fayette, Mirebeau e Robespierre, onde o ingresso era mais selectivo e quase exclusivamente reservado à burguesia. O Clube reunia-se no Convento dos Franciscanos de Paris, os «Cordieliers», como eram popularmente conhecidos os devotos dessa Ordem em virtude do cordão branco e nodoso com que cingiam os seus hábitos, e foi nele que ganharam visibilidade algumas das personalidades da extrema-esquerda da Revolução, entre elas, para além de Danton e do próprio Desmoulins, Marat e Hérbert. No espírito romântico do revolucionário Desmoulins, os velhos cordoeiros eram a essência da Revolução e era a esse espírito que se deveria regressar em 93 para a salvar de si própria e dos seus excessos. Daí o nome do jornal que fundou em 1793, em pleno Terror.
Robespierre – que dominava a Revolução por essa altura – começou por ver alguma utilidade na publicação do jornal do seu afilhado de casamento. Nos dois primeiros números, Camille dedicara-se a atacar Hébert e os extremistas do Le Père Duchesne, o que abriu caminho a Robespierre para depurar mais esse grupo “divisionista” que ameaçava a sua autoridade e que punha frequentemente em questão o rumo que ele queria para a Revolução. Entre outras coisas, desagradavam-lhe a imoralidade do bando, frequentemente dedicado a celebrações que o Incorruptível considerava degradantes, e o anticlericalismo e a aversão à religião que caracterizavam os seus chefes. A 24 de Março de 94, Hébert e os seus sobem ao cadafalso, entregando-se, a contragosto, aos cuidados de Samson.
As denúncias dos dois primeiros números do jornal de Desmoullins não foram irrelevantes para o ambiente criado para atacar o bando. Mas os números 3 e 4 do jornal, saídos em Dezembro de 93, já foram muito menos agradáveis e úteis para o Comité de Salvação Pública e para o seu chefe. Nesses números exigia-se a libertação dos milhares de presos políticos que enchiam as prisões de França e a revogação da lei de 22 de Prairial (10 de Junho), a famosa «lei dos suspeitos», que legitimara todas as arbitrariedades e atrocidades cometidas em seu nome. Debatido o assunto nos Jacobinos, Robespierre, que tinha para com Desmoullins uma incomum tolerância, sugeriu que «os números ofensivos desse jornal sejam queimados no recinto desta sociedade!». Ao que Camille lhe respondeu, enfrentando-o e condenando-se irremiavelmente, com a velha frase de Rousseau, em defesa do seu Émile, «Brûler n’est pas répondre».
«Ouve bem, Camille! Não fosses tu quem és, a indulgência demonstrada há pouco não teria o menor cabimento. A tua atitude para comigo é a prova de que as tuas intenções são desonestas». Com estas palavras proferidas num ímpeto de cólera, Robespierre condenou irremediavelmente Camille Desmoulins. Este tentou ainda recuperar a sua posição perante Robespierre, e os números seguintes do seu jornal, publicado até ao número 7, evidenciam bem essa tentativa. De nada lhe valeria o esforço: seria executado a 5 de Abril de 94, juntamente com Danton e com outros dantonistas acusados de venalidade e corrupção na Companhia das Índias Orientais. Os réus políticos tinham sido intencionalmente misturados no mesmo julgamento com outros mais vulneráveis de modo a diminuir o seu estatuto. O acusador público, Fouquier-Tinville, não o poupou. De resto, era ainda seu primo e conseguira o lugar meses antes por intercessão de Camille junto de Danton, quando este era ministro da justiça.
Camille Desmoulins deixou um filho muito pequeno e a mulher, Lucile, que se lhe juntou uma semana mais tarde, sob a acusação de ter conspirado para libertar Danton do cadafalso. Foi vítima da forma livre como exerceu a sua opinião, num país que acabara de reclamar, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que «La libre communication des pensées et des opinions est un des droits les plus précieux de l'homme ; tout citoyen peut donc parler, écrire, imprimer librement, sauf à répondre de l'abus de cette liberté dans les cas déterminés par la loi». Pois é.
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quinta-feira, 1 de abril de 2010
danton e robespierre
Ainda que paradoxalmente, Georges Jacques Danton e Maximilien Marie Isidore de Robespierre foram, a um só tempo, homens de excepção e duas pessoas perfeitamente comuns e banais. A actuação de cada um dos dois produziu efeitos absolutamente notáveis na História de França e na da própria Humanidade, muito embora nenhum deles fosse particularmente dotado intelectualmente, nem exibisse uma cultura ou vocação reflexiva por aí além. Danton era um homem de acção, que vivia do seu próprio movimento e do movimento que, quantas vezes involuntariamente, imprimiu ao mundo que o rodeava, enquanto que Robespierre temia a acção e era cerebral, frio e matemático. Nenhum dos dois produziu uma ideia original digna desse nome. Por definição, Danton não tinha ideias. Não as temia, não era incapaz de as produzir, mas não lhes via utilidade. As suas peças de oratória – em estilo, muito superiores às de Robespierre – eram, invariavelmente, declamadas para atacar os seus inimigos ou para se defender deles. Sobre uma das “ideias” que agitaram a vida de Robespierre – a “virtude” – Danton terá dito, em jeito de galhofa desafiadora, que “a virtude é o que todas as noites faço com a minha mulher”. Robespierre, apesar de cerebral, não passou de um leitor apressado de Rousseau e dos Enciclopedistas. As suas ideias são, mesmo para o seu tempo, vulgares. Em toda a sua existência não se lhe viu um pensamento original que não tivesse a ver com a fria matemática que o levou ao poder.
A História da Revolução Francesa e da própria França foi marcada, pelo menos a partir de 1792, pelo percurso destes dois homens e pela tensão que entre eles se estabeleceu. Perdido às mãos de Robespierre, que provocaria a sua morte em 5 de Abril de 94, Danton profetizou, a caminho do cadafalso, igual destino para o seu rival: «Vil Robespierre! Tu me seguirás. Tua casa será arrasada, e o solo que a sustém semeado de sal!”. A 28 de Julho do mesmo ano seria a vez da cabeça de Robespierre rolar para o cesto de Samson.
A personalidade de Danton é controversa, difícil e chega mesmo a ser incomodativa. Ele fora, como já se disse, essencialmente um homem de acção, de movimento. Um revolucionário. Quando se rendeu ao seu destino, deixou de se mover e, vencido, foi morto pouco tempo depois. Depois de um protagonismo ímpar na Revolução, Danton deixou-se apanhar e matar. Estava farto dos homens, dizia-se. Depois de ameaçar Robespierre («Se soubesse que aquele homem está a conspirar contra mim, comeria as suas entranhas”), foi derrotado e morto sem praticamente oferecer resistência, ele que, apenas alguns meses antes, mandara e dispusera da França como ninguém o fizera na Revolução. Ao sugerirem-lhe a fuga, terá respondido que “não se carrega a Pátria na planta dos pés”. Tendo-lhe sido proposta a resistência, afirmou: “Isso significaria apenas o derramamento de mais sangue. Já correu sangue demais. É melhor ser guilhotinado do que guilhotinar”.
Mas foi esta personagem trágica e rendida à fatalidade quem agitou as ruas de Paris para levar à queda da Monarquia em Agosto de 92. Que legitimou (há quem afirme que organizou) os Massacres de Setembro desse mesmo ano (“Estas execuções eram necessárias para acalmar o povo de Paris... É um sacrifício indispensável; aliás, o povo não se engana...”). Que provocou a queda da Gironda e levou à morte os seus protagonistas. Que instituiu o Tribunal Revolucionário para julgar, apressada e levianamente, os “crimes” políticos contra a Revolução. Que votou a morte de Luís XVI. Que enfrentou e derrotou La Fayette. Que esteve envolvido em inúmeros escândalos e suspeitas de corrupção. Que se julga até ter sido comprado e corrompido por Mirebeau e pelo partido da corte. Mas foi este homem também que tentou salvar Luís XVI do cadafalso. Que não uniu a Convenção por culpa dos Girondinos, vítimas do rancor cego que Mme. Roland lhe votava, e que, não obstante, ele não deixou de avisar do destino que os esperava nas muitas respostas de guerra às suas propostas de paz. Que levantou as defesas da França aos brados de “audácia, audácia e sempre audácia”. Que reclamou a indulgência para as vítimas da Revolução e a pacificação dos franceses no Le Vieux Cordelier, do seu amigo e companheiro de cadafalso Camille Desmoulins. Que enfrentou os esbirros do Tribunal Revolucionário e que, por fim, soube morrer de pé, segurando e dando força aos seus companheiros de infortúnio.. Danton foi a pedra angular da Revolução, simultaneamente o seu operacional, o seu governante, o seu diplomata e a sua vítima mais indesejada.
Em contrapartida, Robespierre não gostava da acção, temia a oratória, inquietava-se com as multidões, era frio, racional, quase matemático. O seu envolvimento na Revolução começara cedo, mas foi sempre mais ideológico do que operacional. É já ele quem, no meio dos Estado Gerais de 89, cedo transformados em Assembleia Nacional, proclama aqueles que seriam, mais tarde, os valores e princípios estruturantes do novo mundo político que emergiu da Revolução. É a ele que se devem as principais peças de oratória em defesa da liberdade e da igualdade. É nos seus discursos que se encontram os fundamentos da subversão do Ancien Régime e os alicerces da ordem nova que estava a nascer. É ele quem contesta a inviolabilidade do monarca e anuncia a emergência da República. Que lhe dá as cores da imaginada “virtude” da velha República Romana. Que sobrepõe a igualdade à liberdade; a Revolução à liberdade; o “povo” à liberdade; o Estado e as suas razões, mais uma vez, à liberdade. Robespierre é um filho das Luzes e um leitor de Rousseau, a quem idolatra venerandamente. É o ideólogo da Revolução e simultaneamente o seu coveiro. E um exímio estratega político que, sem necessitar de por si mesmo agir, justapõe as peças do jogo de tal modo que elas quase fatalmente se encaminham no sentido das suas vontades. O seu fanatismo revolucionário é absolutamente religioso, e, conduzindo a Revolução, manipulando atrás da cortina os finos fios que o prendem aos protagonistas da História, não consegue perceber, nem antever, o destino fatal que a sua pertinaz loucura lhe reserva. No fim de contas, Robespierre é uma vítima de si mesmo e de um caminho que traçou para os outros e também para si. Quando Danton lhe pede para ser indulgente e parar com o Terror que ele criara e mantinha (“quem te disse que alguma vez foi condenado um inocente!") e lhe implorou para libertar a França e os franceses, adverte-o que o regime terrorista que ele instituira em 93 não cabia na alma e na índole dos franceses. E que, mais cedo ou mais tarde, o povo se cansaria dele e do seu inspirador. Robespierre conduz a Revolução, mas é também ele conduzido por ela. Dito embora com outro propósito, a frase de Mirebeau aplica-se-lhe na perfeição: “Quando nos empenhamos em dirigir uma revolução, a dificuldade não é fazê-la marchar, mas contê-la”. Robespierre não cuidou de se proteger de si mesmo, e se dele se pode dizer, como Mirebeau disse ao escutá-lo as primeiras vezes na Assembleia, “Ele vai longe: acredita em tudo o que diz”, há que acrescentar que quase tudo o que diz e no qual acredita não poderia perdurar longamente. Robespierre é o ideólogo da Revolução, o seu protagonista maior, porque o que mais influenciou o futuro e que marcou a nova era política, muito para além da sua própria morte. Mas não só não lhe sobrevive, como a História não guarda dele boa memória.
Estes dois homens, mortos há mais de duzentos anos, influenciam-nos, hoje, mais do que poderemos alguma vez supor. Não só em França, onde ainda se dividem os estudiosos e os académicos entre os defensores de um e de outro, que invariavelmente abominam o outro (ainda há pouco tempo, o professor comunista da Sorbonne Albert Mathiez, um dos ícones da Escola Histórica que se dedicou a recuperar Robespierre e a condenar Danton, evitava, no percurso de sua casa para o trabalho, a estação do Metro mais próxima do seu destino profissional para não ter de cruzar-se com uma estátua aí existente de Danton...), mas também em Portugal, onde a Revolução que instituiu o regime democrático foi profundamente influenciada pelo culto dos valores jacobinos destes dois homens: a igualdade sobre a liberdade; a república sobre a monarquia; o primado do poder público sobre a sociedade civil; a laicidade; a limitação da propriedade; o receio da Igreja e o rancor para com os seus representantes (“os padres”); a manipulação e a articulação da economia pelo poder central. De certo modo, tivemos até duas figuras que lhes são paralelas, pelo menos no contexto do período revolucionário, embora com destinos, cada um deles, muito diferentes de cada uma das suas figuras patriarcais. Foram eles Mário Soares e Álvaro Cunhal.
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o ópio dos intelectuais
No ano já distante de 1957, ia de vento em popa o regime de António de Oliveira Salazar, o professor Óscar Lopes, deu à estampa um panfleto político em forma de introdução ao livro de Albert Mathiez, a História da Revolução Francesa. Óscar Lopes era um comunista confesso – no que estava no seu pleníssimo direito, que aderiu corajosamente ao Partido Comunista Português, na clandestinidade, em 1945. Por sua vez, o autor do livro traduzido, Albert Mathiez, era também um comunista militante, e pertencia, enquanto historiador, a uma tendência que vê – e bem - na fase jacobina da Revolução Francesa o momento da fundação histórica do movimento comunista. Essas convicções e uma profunda admiração por Robespierre e pelo seu Comité de Salvação Pública são patentes ao longo de toda a obra de Mathiez. Na introdução feita por Óscar Lopes estão também presentes, podendo ler-se coisas deste género: «Assim, por exemplo, apesar da sua visível apologia de Robespierre, que surge como a mais elevada e lúcida consciência da tragédia central da Revolução. (...) Mathiez não se esquece de sublinhar, muito melhor, em geral, que os seus discípulos, que as medidas revolucionárias do Incorruptível estavam na sequência inelutável, e por ele imprevista, da sua estratégia e, portanto, da sua táctica, que foram, pode dizer-se, as da pequena burguesia do seu tempo. (...) a táctica de procurar para a pequena burguesia, que representa, a aliança dos camponeses sem terra e dos assalariados sem trabalho nem pão, e porque, levado insensível e involuntariamente até à ditadura por pressão da guerra exterior e da guerra civil; (...) embora estas alterassem a proporção das forças que Robespierre desejou unir e fizessem o seu individualismo burguês ceder terreno aos métodos, hoje largamente aceites, da planificação democrática e do cooperativismo voluntário e consciente.». Esta apologia do modelo econômico, político e social jacobino, muito próxima do que seria, ao tempo em que escreve o historiador, o modelo soviético, foi publicada, em Portugal, no ano de 1957.
É certo que Óscar Lopes conhecera a prisão política durante o ano de 1955. Mas foi julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto e reintegrado em 1957 no ensino oficial no Liceu Rodrigues de Freitas. Veja-se, em contraponto, o que sucedeu na Revolução Francesa, em pleno jacobinismo no ano de 94, aos jacobinos indulgentes, como Desmoullins, por ter escrito no nº 3 do seu jornal, o Le Vieux Cordelier, em defesa da pacificação nacional e do fim do Terror... Ou o que sucedia diariamente, nessa mesma época, no espaço de influência soviético aos intelectuais como Soljenitzine. Por outro lado, não deixa de ser curioso ter sido nesse mesmo ano de 57 que foi publicado o livro de cujos excertos introdutórios reproduzimos e que consistem, na sua generalidade – o livro e a sua introdução – na defesa do papel histórico de Robespierre e justificação da «necessidade» da ditadura jacobina, sem atender ao que ela verdadeiramente significou e à tragédia que causou.
Óscar Lopes pertencia a um grupo expressivo de intelectuais portugueses que, influenciados pelo marxismo literário e académico, dominava, muito antes do 25 de Abril, a Universidade e a Escola portuguesas, e muitos dos círculos culturais nacionais (o que era uma forma de se dizer, ao tempo, políticos). A sua referência maior era a universidade francesa, sobretudo a Sorbonne (por onde pairava Duverger), e esses intelectuais, ditos «progressistas», tiveram uma verdadeira apostasia em 1968, nos tumultos de Maio, onde julgavam vislumbrar a vitória aliada da universidade (a que pertenciam) e da revolução (a que gostariam de pertencer). Desses ruídos chegariam a Portugal, nos anos seguintes, réplicas de muito menor intensidade sísmica e gravidade.
A desculpabilização histórica e moral do terror jacobino a que se dedicaram, foi seguida, ipsis verbis, na desculpabilização do terror soviético, mesmo até com os mesmíssimos argumentos: a necessidade da ditadura esquerdista («patriótica») por causa do estado de miséria do povo e da guerra agressora imperialista (na Revolução Francesa, da Áustria e da Inglaterra, no século XX, dos Estados Unidos da América); a importância dos sacrifícios pessoais perante a grandeza e magnificência da transformação a operar; a inevitabilidade das medidas económicas e sociais introduzidas em virtude da concentração do capital e da exploração do povo, etc., etc., etc..
Foi com este verdadeiro «ópio dos intelectuais» de que nos falava Aron, que vivemos em Portugal durante décadas. Mesmo antes do 25 de Abril elas circulavam com relativa tolerância: a ditadura académica de Salazar perseguia menos as idéias do que algumas pessoas, sobretudo se estas fossem militantes oposicionistas activos do regime vigente. Mas as ideias tinham uma razoável e, por vezes, próspera liberdade, sobretudo se travestidas de cultura e se não colidissem frontalmente com o status quo salazarista. O próprio regime resignou-se, aliás, a aceitar que, nesses tempos, a inteligência e a cultura estavam à esquerda, complexo que ainda hoje assombra a direita. E face a esse enorme poder cultural e político – que o regime temia e endeusava -, raramente se respondia com armas equivalentes.
A elite política que assumiu os destinos do país no pós-25 de Abril foi resultado dessa mentalidade socialista académica, snob, elitista e preconceituosa - muito de origem francesa e dos quadros mentais que nela introduziu a Revolução, e só se atenuou nos dias correntes, regra geral pela ignorância crassa e generalizada dos quadros políticos médios que por aí andam. Todavia, ainda que muitos deles não o saibam e disso não se apercebam, a herança genética dos pais perdura-lhes na massa do sangue, e é por essa razão e por esta mentalidade que continuamos a ser um país estruturalmente socialista.
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uma tradição
«Era um desses homens que possuem tantas facetas e tanta profundidade sob cada faceta, que se tornam insondáveis no momento da acção e só vêm a ser compreendidos muito tempo depois dos acontecimentos», escreveu Balzac sobre Joseph Fouché, uma das figuras mais impressionantes da Revolução Francesa, que a atravessou e lhe sobreviveu, tendo sido, segundo muitos historiadores, o primeiro responsável pela queda de Robespierre, pela queda do Directório, e pela ascensão e queda do Consulado e de Bonaparte.
Fouché iniciou a Revolução com uma participação discreta e relativamente moderada, mais próximo da burguesia girondina do que do radicalismo jacobino. Na votação sobre o destino de Luís XVI levada a cabo na Convenção no fim do seu julgamento, Fouché anunciara, na véspera, que votaria contra a pena de morte. No dia seguinte, a votação foi feita por declaração pública de cada um dos deputados por imposição de Marat e Robespierre. Fouché mudou de ideias à última hora...
O reconhecimento pelo seu fervor regicida levou-o até Lion, nomeado pelo Comité de Salvação Pública, como seu representante em missão, juntamente com Collot d’Herbois, um inqualificável facínora. As instruções eram claras: castigar e lançar o terror na cidade que se atrevera a resistir à «liberdade», e para a qual a Convenção determinara a mudança de nome para Ville-Affranchie e a divisa «Lion lutou contra a liberdade; Lion não existe mais». As instruções foram cumpridas a preceito e os dois mandatários da Revolução chacinaram multidões com requintes de crueldade, e sem o vestígio do menor escrúpulo ou hesitação moral. Sobre as façanhas de ambos cometidas nessa cidade, disse, a certo passo, Collot: «Nós fuzilamos duzentos criminosos de uma só vez. E vêm dizer-nos agora que isso foi um crime! Quem não é capaz de ver que esse foi um acto de misericórdia? Quando se guilhotinam vinte culpados, o último a ser executado morre vinte vezes, mas os duzentos que fuzilamos morreram todos ao mesmo tempo».
Regressado a Paris em Abril de 94 por ordem do Comité que o nomeara, Fouché, que não se apercebera, por ter estado muito tempo ausente da cidade, do crescimento político de Robespierre, hostilizou-o de forma que este considerou grave e irremediável. A partir desse momento, Robespierre moveu-lhe uma perseguição implacável, que acabaria fatalmente no cadafalso, não lhe fosse Fouché muito superior em inteligência e falta de escrúpulos. No meio de mil e uma peripécias, entre as quais a mais notável foi fazer-se eleger presidente dos jacobinos à revelia de Robespierre (lugar que ocupo, de resto, por pouco tempo), Fouché foi o principal obreiro do golpe de 9 Thermidor. Ele intrigou na sombra, junto dos deputados da Convenção, dizendo a todos e a cada um deles que estavam na próxima lista de proscritos e condenados de Robespierre. O Incorruptível tentou apanhá-lo e levá-lo a julgamento, mas Fouché não saiu da sombra. Num ataque de cólera durante um discurso aos jacobinos, Robespierre vociferou: «Vil impostor! Conspirador desprezível! Exijo que Fouché seja chamado a julgamento aqui». De nada lhe valeu: dois meses depois era a sua cabeça a cair na guilhotina, às competentes mãos de Sanson.
A cabeça de Fouché continuou solidamente assente sobre os ombros, por muitos e bons anos. Remetendo-se a uma discreta mas muito influente existência durante o Directório, seria um dos obreiros do 18 Brumário e do Consulado Napoleónico. Feito Duque de Otranto e Ministro das Polícias, Fouché montou uma temível rede de informação e espionagem que o tornou temido em toda a França, mesmo até pelo Imperador, que nunca confiou inteiramente nele. Tentando, certa vez, diminuí-lo, Napoleão pergunto-lhe publicamente se ele votara pela morte de Luís XVI. A resposta não se fez esperar: «É verdade, Senhor. Foi esse o primeiro serviço que prestei a Vossa Magestade».
Mas foi Fouché quem sobreviveu a Napoleão e que presidiu à Comission Executive e ao governo provisório de França que negociariam, em fins de Junho de 1815, a segunda abdicação do Imperador e o regresso de Luís XVIII ao poder. Luís XVIII não lhe perdoou o passado regicida, e baniu-o de França no ano seguinte. Em 1820, morre em Trieste, com a respeitável idade, pelo menos para um revolucionário, de 61 anos.
Durante a sua vida, Fouché atravessou incólume pelo menos quatro regimes políticos, que influenciou determinantemente, e foi decisivo na ascensão e queda dos seus protagonistas. Mas mais do que isso: com excepção de Luís XVIII, os governos temeram-no e respeitaram-no. E deram-lhe poder e dinheiro. Muito dinheiro e muito poder.
Consta que, muitos anos mais tarde, António Oliveira Salazar costumava dizer, sobre alguns dos seus adversários a quem fazia ministros, que «os inimigos querem-se por perto». Marcelo, seu sucessor, aplicou a mesma receita com Costa Gomes e Spínola, mas não foi tão bem sucedido. O regime de Abril recebeu e integrou muitos dos quadros do regime deposto, alguns dos quais, não se fazendo rogados, atingiram posições cimeiras na política e no governo. A tradição, em política, não se deve desprezar.
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à portuguesa
Na noite de 8 Thermidor (26 de Julho) do ano II (1794) Maximilien Robespierre dirigiu-se ao Clube dos Jacobinos de Paris, que frequentava assiduamente, e discursou sob uma chuva unânime de aplausos. A essa unanimidade falharam Billaud-Varenne e Collot d’Herbois, jaconinos influentes e seus colegas no temível Comité de Salvação Pública, que, embora presentes na reunião, foram apupados e expulsos com brados e gritos de «À guilhotina! À guilhotina!» por se terem incompatibilizado com o Incorruptível. Nesse dia, como em todos os outros do passado, Maximilien Robespierre era a inspiração, a referência maior, o líder incontestado dos jacobinos.
Na manhã daquele dia, Robespierre sofrera uma derrota amarga na Convenção: parte da Montanha hostilizara-o e negara-lhe o apoio habitual. No cerne da questão, o temor sentido por quase todos (e que Fouché, sobre quem escreverei por um destes dias, se dedicara a atiçar) de poderem figurar na próxima lista para o patíbulo que Rosbespierre e Saint-Just estavam a preparar. Nessa manhã, lendo um discurso que não mostrara a ninguém, o chefe jacobino cometeu um erro que lhe seria fatal: não nomeou os seus inimigos, tendo ficado por acusações gerais, sem destinatários concretos. Consequentemente, todos os convencionais recearam figurar nessa lista, como Fouché lhes garantira nas horas dos dias anteriores.
No dia seguinte, a 9 Thermidor (27 de Julho), Robespierre perderia o seu poder na Convenção, perante a qual tentou falar por onze vezes e por onze vezes foi eficazmente silenciado pelos seus adversários. Preso, acabou por conseguir refugiar-se no Hôtel de Ville, a Câmara Municipal de Paris, numa sala ironicamente baptizada de Sala Egalité, onde aguardava o auxílio de François Hanriot, que chefiava a Guarda Nacional. Só que Hanriot apreciava mais as virtudes do álcool às virtudes da disciplina militar, e, após ter esboçado uma resistência incapaz (durante a qual vociferou que guilhotinaria as cabeças dos «trezentos criminosos com assento na Convenção»), deixou-se também surpreender pelos gendarmes de Barras, que irromperam na Sala Egalité. Entre eles o soldado Merda, que terá acertado um tiro nos maxilares de Robespierre, prostrando-o e quebrando-lhe os derradeiros e já muito frágeis ímpetos de resistência. Todos os presentes foram presos, com excepção de Hanriot, que se precipitou pela janela e veio a cair sobre um monte de esterco (provavelmente influenciado pelo gendarme que visara Robespierre...) donde o retiraram no dia seguinte, ainda adormecido e a ressacar, directamente para a guilhotina na companhia dos outros jacobinos depostos.
A 11 Thermidor, um dia após a morte de Robespierre e nem três dias completos sobre o se último e aplaudido discurso perante os jacobinos, o mesmo Clube dos Jacobinos de Paris lavrava uma acta da reunião do dia, da qual vale a pena ler algumas passagens sobre o chefe deposto e já morto:
«Porque o celerado que, em conluio com os seus covardes cúmplices, colocou a República a dois dedos da sua perdição não foi desmascarado antes? (...) É porque a máscara de que ele estava coberto era quase impenetrável; (...) Quem podia despertar a suspeita? Acreditava-se que esse monstro fosse inacessível à sede do outro e o seu despotismo era olhado como a autoridade de um republicano sincero. A máscara caiu, Catalina não existe mais.»
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ética republicana
A convicção de que uma determinada forma de organização política ou de regime político pode comportar uma valoração ética superior aos demais gerou, no caso da República, a ideia da existência de uma “ética republicana”.
A origem da coisa reside na Revolução Francesa e nós, em Portugal, rapidamente a incorporamos desde, pelo menos, a Revolução de 1820, verdadeiramente portadora dos valores da república nascida em França, como bem notou recentemente o historiador Rui Ramos. Durante o nosso século XIX, sobretudo no último quartel, ao longo da I República e no regime instaurado no 25 de Abril, a República foi divinizada como portadora de uma ética que se contrapunha à natureza dissoluta e injusta da monarquia.
A Revolução Francesa operou uma ruptura com o Ancien Régime vigente em França e esse corte com o passado visava essencialmente o valor da igualdade política. Na verdade, o regime deposto em 1789 e nos anos que se lhe seguiram caracterizava-se pela estratificação social e pelo privilégio. De todo em todo, a igualdade política era bem maior em França antes de 79 do que se possa supor, como bem notou Tocqueville: a burguesia ascendera já à alta administração pública local e central e mesmo ao governo do reino. Só isto poderia, de resto, explicar que a burguesia pudesse ter imposto sistematicamente a sua vontade ao rei e aos outros estados da nação francesa, o que sucedeu imediatamente na reunião dês Estados Gerais, na qual o clero se encontrava profundamente dividido e a própria nobreza não estava unida.
Os privilégios mantidos ainda pela nobreza e pelo clero na França do Ancien Régime consistiam essencialmente em benefícios fiscais e em direitos de tributação herdados dos tempos medievais. Ao longo dos anos, os monarcas franceses esvaziaram o poder público e político dessas duas ordens sociais, abriram espaço à burguesia emergente, mas mantiveram-lhe esses privilégios de casta para os manterem sossegados e fieis. Nessa medida, a monarquia francesa dos Bourbon cometeu o erro de dar poder a quem era obrigado a sustentar economicamente o país e as demais ordens sociais. Nota também Tocqueville que o processo foi exactamente o inverso do que foi seguido pela monarquia inglesa, onde desde muito cedo vigorou o princípio da igualdade fiscal, sendo concedidos benefícios apenas a quem deles necessitava por carência económica e não por razão hereditária.
Assim, a Revolução de 1789 começou por ser um movimento de protesto da burguesia, reivindicador de igualdade social e fiscal, menos do que de igualdade política. Nessa altura ainda e, pelo menos, até 92, ano da deposição de Luís XVI, a República não era o fim comum da Revolução e dos revolucionários, sendo-o somente de uma minoria agrupada em torno da Montanha, e, mesmo esta – muito dividida – não pensava uniformemente nesta matéria. A Planície e a Gironda não se incomodavam por aí além com a criação de um regime de monarquia constitucional, que, de resto, chegaram a conceber na Constituição de 91.
A República foi a bandeira de uma minoria revolucionária jacobina, defendida por uma verdadeira “vanguarda sans-coulote” (embora quase todos pertencessem à burguesia e fossem juristas e advogados), nomeadamente por Robespierre, Danton, Marat, Couthon, Collot d’Herbois, Sain-Just, entre outros, que radicalizaram a Revolução a partir de 92 e instauraram a República em Setembro desse ano.
A inspiração valorativa do novo regime era colhida na leitura enviesada e romântica da história da República Romana. Aí perscrutavam-se elevados valores morais de honradez pessoal e de amor à pátria e à igualdade. Imaginavam-se heroísmos e sacrifícios notáveis dos republicanos virtuosos em defesa da liberdade e da comunidade. Pretendia-se uma sociedade politicamente assexuada e fraterna, onde aos inimigos só caberia um destino: a morte. É nesse contexto que Maximilien Robespierre, o Incorruptível e o máximo expoente da virtude republicana, sobe ao poder absoluto em 93 e instaura o Grande Terror, que vigoraria em França sensivelmente por um ano.
O legado da I República Francesa é, pois, um rio de sangue vertido por um regime despótico e completamente distanciado e avesso a qualquer ideia de liberdade e de igualdade. Mesmo nos plano dos princípios, a ideologia republicana destes tempos é profundamente anti-democrática. Os direitos individuais viram-se completamente negados, mesmo no direito mais elementar de defesa perante uma acusação pública de crime contra a República. A partir de 22 de Prairial do ano II da Revolução (10 de Junho de 94, segundo o novo calendário revolucionário), com a chamada “lei dos suspeitos”, o direito à defesa de um acusado perante o Tribunal Revolucionário passou a ser inexistente e qualquer cidadão podia ser levado a essa corte por qualquer denuncia feita por um “bom” cidadão. O caminho era sabido: julgamento de manhã, acusação antes do almoço, patíbulo ao fim da tarde.
Quando a política se impôs à alucinação ideológica e revolucionária, os montanheses responsáveis pelo Terror foram depostos e, por sua vez, guilhotinados (10 Thermidor, 28 de Julho de 1994). No dia anterior quando são depostos e aprisionados por uma facção da Convenção chefiada por Barras e Fouché, Saint-Just, o virtuoso “Anjo da Morte” do Comité de Salvação Pública, terá olhado para uma Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão afixada na sala do Comité e dito que aquele era o único legado que deixavam. Foi escasso, e não chega para valorar um regime acima dos demais, sobretudo quando o exemplo dado no exercício do poder contraditou cada um dos seus artigos.
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os discípulos de são tiago
Não nutro qualquer tipo de “desprezo” por esta forma de hobbesianismo latente neste post do Corcunda, tão pouco pela fobia anti-democrática que sempre fundamenta as suas opiniões. Só lamento que pessoas bem preparadas, como ele, não consigam manter uma distância saudável em relação a perversões políticas, como o jacobinismo. Porque, não aceitar que as galinhas possam conviver ordeiramente no galinheiro e entre si mesmas possam encontrar as regras e garantias necessárias a essa convivência, equivale a entregar o comando do galinheiro a alguns galináceos de pena mais ou menos comprida. A questão reside no ethos que inspira o comportamento e a acção (política) destes últimos? Talvez, meu caro. Mas desengane-se se pensa que esse ethos estava ausente do pensamento dos galináceos jacobinos, como, por exemplo, no pensamento que fundamentou as acções do Incorruptível. Ele próprio, dirigindo-se aos jacobinos mais radicais, a propósito da questão religiosa que agitou a França no começo da década de 90, do século XVIII, justificou-se assim: “Eu mesmo acredito nos princípios eternos sobre os quais repousam a fraqueza humana antes de ela começar a seguir o caminho da virtude. Essas não são palavra vãs na minha boca, não mais do que foram vãs na boca de muitos grandes homens, não menos morais pela crença na existência de Deus. (...) Sim, é arriscado invocar o nome da Providência e expressar a ideia do Ser Eterno que afecta intimamente os destinos das nações, e que a mim, pessoalmente, parece cuidar de forma muito especial da Revolução Francesa. Mas a minha crença é sincera; é um sentimento que não posso deixar de lado.” Ora, se um justo peca sete vezes ao dia, porque razão não haveria de pecar também o Incorruptível?
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as dicotomias virtuosas
Eu hoje sinto-me voltado para as dicotomias. Provavelmente pela benfazeja influência do Prof. Cardoso Rosas – um portento insuperável nestes domínios -, talvez por elas ajudarem o meu espírito simples a compreender a complexidade da existência e da política, talvez por ambas as razões, não sei. O que sei é que estou virado para elas, e vou, por isso, socorrer-me da técnica para tentar compreender o comportamento da esquerda e da direita nestas eleições.
Não deixa de ser impressionante a semelhança histórica dos métodos usados pela esquerda para ganhar poder e eleições. Nestas eleições, ela apostou – como quase sempre o faz – no medo do eleitorado. A técnica foi – é – a de agitar inimigos terríveis e difusos, como o regresso ao passado, a parcialidade do Presidente da República, as semelhanças da líder da oposição com António de Oliveira Salazar. A mensagem é simples: o povo português corre o perigo, se não votar na esquerda, de estagnar, de voltar aos sinistros tempos do “fássismo”, e, pior do que isso, ficará nas mãos de conspiradores inescrupolosos e imorais que atentam contra o progresso e a felicidade do povo.
Nos tempos idos da Revolução Francesa, quando estes conceitos operacionais de esquerda e direita se estabeleceram, os Montanheses usaram a mesma técnica para chegarem ao poder. Agitaram o fantasma do Rei, o pobre Luís XVI que só queria paz e sossego, do perigo austríaco, das traições sucessivas dos aristocratas e dos emigrés, inventaram armários secretos cheios de “provas” das conspirações, primeiro. Mais tarde, debelados estes “perigos”, iniciaram as purgas internas para melhor concentrarem o poder, e acusaram de conspiração e traição os próprios republicanos menos radicais do que eles, atacando os Bernardinos e os Girondinos, chegando a pôr a cabeça de muitos deles – entre os quais o célebre Danton – no cadafalso. À cabeça (literalmente falando) deste processo, estava um homem que fazia da virtude e da incorruptível honestidade (a tal “moralidade” de que nos fala o Prof. Rosas) a sua imagem de marca política: Maximilien Robespierre. Este, que já muito antes dominava praticamente a Convenção, assumiu o poder absoluto em Julho de 1794. Durante um ano, até o deceparem em Agosto de 1795, governou pelo Terror e condenou à morte milhares de cidadãos franceses. A maioria condenada em julgamentos sumários, no célebre Tribunal Revolucionário (caricatamente criado pelo próprio Danton...), presididos por juízes corruptos e com jurados comprados. Tudo em nome da virtude e da honorabilidade da República, obviamente, e honrando os vaticínios proféticos de Voltaire, que anos antes escrevera: “Esmaguemos os fanáticos e os patifes (...). Não permitamos que os possuidores de inteligência sejam dominados pelos que a não têm”. E assim foi feito.
Em contrapartida, a direita manifestava também, já nessa altura, os tiques que hoje mantém. Receosa, temerária, com medo das acusações que a Montanha lhe movia, colaboracionista até estar em jogo o próprio pescoço, deixou-se salamizar (outra técnica clássica da esquerda) e levar ao cadafalso, até à sua quase extinção.
Quando agora ouço falar na superioridade intelectual e, consequentemente, na honestidade intrínseca da esquerda, versus a arrogância moral e aristocrática da direita, e da sua ambição conspirativa do passado, vêm-me à cabeça estas coisas delirantes e exageradas. Certamente que não fazem qualquer sentido, e que não será no próximo dia 28 de Setembro que introduziremos a guilhotina no nosso sistema penal. As nossas técnicas foram sempre mais sofisticadas.
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