terça-feira, 1 de novembro de 2011

11120 - ALFREDO I, O GRANDE (INGLATERRA)

Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
77
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEGITIMIDADE RÉGIA
DE ALFREDO, O GRANDE, REI DOS ANGLO-SAXÕES NA
BRITÂNIA DO SÉCULO IX.
Monah Nascimento Pereira1
Alfredo foi rei de Wessex no período de 871 a 899, sendo que
terminou seu reinado como rei dos Anglo-Saxões, o regente
dominante na Britânia2 Medieval. Teve atuação destacada em
aspectos políticos, militares e culturais, motivos pelos quais recebeu
o epíteto “O Grande”, nunca associado a nenhum outro monarca
desta região. Isso ocorreu de forma tardia, sendo que durante sua
época ele não possuía essa denominação. Foi posteriormente que se
procurou atribuir a ele tal epíteto, o que, não obstante, não significa
que não fosse valorizado por seus contemporâneos e sucessores
imediatos. Em realidade, todos os seus feitos, especialmente seu
sucesso em conter as invasões nórdicas no sul das ilhas britânicas,
permitiram uma posterior unificação da Inglaterra, o que acabou por
ser mais valorizado apenas em um período posterior, quando o
monarca foi considerado também o pai da marinha inglesa.
Nascido em 849, Alfredo era o filho mais novo do então rei
Æthelwulf, o que não o tornava o primeiro a ser designado para subir
ao trono. De fato, seus quatro irmãos mais velhos tinham a
preferência, mas ante a morte de dois deles, tomar conta do reino
tornou-se uma tarefa de Æthelred e Alfredo, que dividiam as funções
administrativas. Em 871, com a morte de seu último irmão varão,
1 Graduanda em História pela UFPR, sob orientação da Professora Doutora Fátima
Regina Fernandes.
2 Optamos por utilizar a nomenclatura “Britânia” ao invés do termo “Inglaterra”,
muitas vezes utilizados pelos autores que tratam desse período. Tal opção se deve
ao fato de a Inglaterra como concebemos hoje não ser a formação política que se
configurava na época, não sendo mais que, talvez, um projeto. Da mesma maneira,
não foi utilizado o termo “Bretanha”, pois este está associado a uma específica
região litorânea do que hoje conhecemos como França.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
78
Alfredo sucedeu ao trono em uma situação bastante complicada, já
que o “exército de incursão pagão”3 dos Daneses estava para ser
reforçado pela chegada de mais homens vindos do Norte. Na guerra
pela sobrevivência dos reinos anglo-saxões já se tinham perdido
muitos homens e os sobreviventes se encontravam exaustos.
Além de todos estes fatores, o jovem monarca também sofria
com alguns problemas pessoais, como o aparecimento de uma
doença súbita (que o afligiria até o fim de sua vida) e as
reivindicações de seus dois sobrinhos, que poderiam lhe contestar o
direito de reinar.
Ao se analisar o reinado de Alfredo é preciso levar em conta
o contexto histórico em que se insere, com destaque especial para
questões regionais que moldaram a configuração política da Britânia
no século IX. Até o primeiro quarto do século IX, o reino de Mércia,
imediatamente ao norte de Wessex, era o centro político da Britânia,
sendo que dominava muitos outros reinos menores ao redor. Wessex
era um reino independente, mas não possuía a importância política
do vizinho. Isso se modificou a partir do reinado do avô de Alfredo,
Egbert, que derrotou os mércios, alterando o panorama então vigente.
Os territórios que antes se encontravam sob o julgo de Mércia
estavam agora submetidos a Wessex, que aumentou
consideravelmente seu território e a influência política que exercia.
Paralelamente, as invasões nórdicas ganhavam cada vez mais
força, sendo que as campanhas militares eram bastante freqüentes.
Ao governante de Wessex era atribuído um papel essencial nessa
conjuntura. O reino mais poderoso da Britânia precisava ser capaz de
repelir os ataques, resguardando o território dos saxões do oeste4 e,
em ultima instância, apoiar seus vizinhos também. Mesmo antes de
chegar ao trono, Alfredo já estava envolvido nessas batalhas, sendo
comandante do exército ao lado de seu irmão e, até então rei,
Æthelred.
3 “heathen raiding-army”. Cf. SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicles.
London: Phoenix, 2000. p. 68.
4 Refere-se ao povo de Wessex e arredores imediatos.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
79
Nesse sentido, estes elementos básicos apresentados devem
ser observados: uma diminuição da importância do reino de Mércia
no panorama político em detrimento de uma nova supremacia de
Wessex e, obviamente, as invasões dos homens do norte, iniciadas
ainda no século VIII.
A grande extensão de Wessex tornou a sucessão complexa,
sendo que Æthelwulf dividiu o reino com seu filho mais velho ainda
em vida. Este veio a falecer no início da década de 50 e, antes da sua
própria morte, o rei dividiu o reino entre seus outros dois filhos mais
velhos. Após uma sucessão de mortes, Alfredo foi o único filho de
Æthelwulf a continuar vivo, tornando-se rei de Wessex em 871. Seus
sobrinhos, obviamente, tinham restrições quanto ao novo governante.
Por conta de todos estes fatores aqui expostos, torna-se
importante analisar não apenas as circunstâncias em que Alfredo
assumiu o poder, mas também a forma como este ato foi visto e
difundido. A ascensão do monarca ao trono foi descrita em diversas
fontes, sendo que as Crônicas Anglo-Saxônicas5 a apresentam de
maneira clara e incontestável. Esta fonte seria, basicamente, os anais
que registram os acontecimentos mais importantes do povo em
questão, com ênfase nas questões políticas, militares e religiosas,
descritas com base em uma ordem cronológica dos anos. No registro
de 871 consta a morte de Æthelred, um bom rei durante os cinco
anos em que governou. Logo em seguida aparece como conseqüência
direta a coroação de Alfredo, que assume a posição de seu irmão.
Inicialmente o silêncio em relatar qualquer contratempo faz parecer
que não houve qualquer dificuldade para se concretizar esse fato, o
que, todavia, não foi exatamente dessa forma.
As duas outras fontes utilizadas apresentam uma descrição
mais alongada desse processo, o que permite analisar com mais vagar
a questão da sucessão. A primeira fonte em questão é a Asser’s life of
5 SWANTON, op. cit., p. 72-73.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
80
king Alfred6, escrita aproximadamente em 893 pelo bispo galês
Asser, que conviveu diretamente com o rei. Esse texto pode ser
caracterizado como uma biografia régia e de fato o é por parte de
alguns historiadores que estudam o assunto. Todavia, é passível de
nota que tal obra não é homogênea no que diz respeito a sua escrita,
já que ela pode ser dividida em duas grandes partes, sendo que a
primeira delas é uma transcrição de algumas partes das Crônicas
Anglo-Saxônicas, com algumas alterações e acréscimos. A segunda
fração da obra trata mais detidamente da figura do próprio rei,
falando a respeito de suas virtudes e qualidades. Por mais que se
considere esta uma biografia, até por ter sido provavelmente
inspirada pela Vita Caroli7, é algo bastante complexo incluí-la em
um gênero literário fixo, já que há uma mescla de diversos elementos
presentes nas fontes de inspiração de Asser.
O autor faz questão de apontar, ao tratar da sucessão8,
primeiramente, que o reinado de Alfredo era legítimo, tendo sido
aceito primeiramente por Deus e também por todos os habitantes do
reino. E acrescentado, inclusive, que Alfredo poderia ter se tornado
rei mesmo com seu irmão vivo se quisesse, pois era digno dessa
posição, por se tratar do mais inteligente dos irmãos e, sobretudo, ser
virtualmente invencível em todas as batalhas. Mesmo sem desejar a
guerra, tão numeroso era o exercito pagão, Alfredo se viu
empenhado novamente em batalhas contra os nórdicos, sempre
contando com a ajuda de Deus, pois sozinho ele não teria conseguido
lutar contra todos eles, segundo seu biógrafo.
Essa descrição aponta para uma necessidade de afirmar
Alfredo como governante frente ao contexto em que se inseria. Ele é
aceito, segundo Asser, por toda a população, mas, mais importante
que isso, ele é escolhido por Deus. Dessa forma torna-se
6 KEYNES, Simon; LAPIDGE, Michael. Alfred the Great: Asser’s Life of King
Alfred and Other Contemporary Sources. London: Penguin, 2004 (1st edition:
1983).
7 Biografia da vida de Carlos Magno, imperador franco de início do século IX.
8 KEYNES; LAPIDGE, op. cit., p. 80.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
81
inquestionável a sua legitimidade, já que mesmo durante as batalhas
ele, que era exímio guerreiro, contava com a ajuda do divino para
vencer tamanha ameaça. O possível objetivo dessa obra seria uma
tentativa de convencimento dos galeses, povo de Asser, de que
Alfredo era de fato um bom governante, a quem os antigos habitantes
da Britânia deveriam se sentir felizes por estarem submetidos9,
apontando para uma tentativa de legitimar ainda mais o reinado do
presente monarca.
O testamento de Alfredo10 também aponta nessa direção,
sendo que logo no início do documento, antes de começar a tratar da
herança que deixaria, o rei descreve também a maneira pela qual
chegou ao poder e como recebeu as propriedades de seu irmão, de
maneira legítima. Ele conta como pediu sua parte a Æthelred, que
disse não poder dividir, pois era algo difícil de se fazer; no entanto,
após sua morte garantiu que Alfredo seria o único a receber tais bens,
em detrimento dos próprios filhos, que não seriam tão beneficiados.
Essa postura já demonstra a primazia de Alfredo no que diz respeito
também aos assuntos do reino, sendo ele aquele que receberia o
encargo de reinar no caso da morte do irmão, talvez até por sua
maior maturidade em relação aos sobrinhos, que eram mais novos.
Quando da morte do irmão, ele perguntou a todos se aquilo que fora
arranjado entre ele e o falecido estava correto, sendo que os
conselheiros aprovavam a decisão, de forma que as propriedades
passavam para ele legitimamente, tal qual o trono, coisa que não se
apresenta como sendo questionada, mas que está também atrelada à
questão das propriedades.
Dessa forma, fica clara a intenção de Alfredo de se colocar
como legitimo dono de tais terras, de forma que pudesse, em seu
testamento, dividi-las como bem entendesse. Em ambos os casos, é
interessante ressaltar que a questão da legitimidade é tratada em
9 “Asser intended his Life of King Alfred to reassure the Welsh that they had
submitted themselves to a wise, just, effective and Christian King.” Cf. KEYNES;
LAPIDGE. op. cit., p. 56.
10 Idem, p. 173-178.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
82
fontes relativamente tardias no que diz respeito ao reinado de
Alfredo, já que o texto de Asser é escrito poucos anos antes da morte
do rei e que seu testamento não é escrito logo no inicio do reinado,
datando de algum ano da década de 80, provavelmente. Percebe-se
então que não existia apenas a necessidade de auto-afirmação e de
legitimação de sua figura como rei, mas também com relação a sua
descendência. Ressaltando sua própria legitimidade, Alfredo garante
que seus filhos não sofram contestações, o que é ainda mais latente
no caso da divisão de terras, que poderia não agradar aos seus
sobrinhos, como de fato aconteceu11. Deve-se pensar que a questão
da posse de terras importantes está intimamente ligada com a
hierarquia, sendo que é natural que o rei disponha de mais
propriedades. O testamento de Alfredo aponta para isso, enquanto
que o relato de Asser traz consigo o aspecto legitimador da tradição
cristã, de forma que o rei possuía e utilizava diferentes discursos em
diferentes situações para demonstrar a validade de seu reinado.
A questão da legitimidade de Alfredo perpassa também
outros pontos que podem ser evidenciados a partir do discurso escrito
elaborado durante o período alfrediano. Tanto no que diz respeito aos
seus documentos legais mas também, e especialmente, na tradição
literária desenvolvida em fins do século IX observa-se, além dos
idéias particulares do rei, a busca por uma legitimação de sua
posição. Alfredo iniciou uma espécie de regeneração moral e
religiosa, como se percebe ao observarem-se as leis por ele
elaboradas, que estavam baseadas em uma tradição legislativa do
Antigo Testamento. Nisso ele foi certamente influenciado pelo ideal
de rei cristão presente no continente, desenvolvido especialmente no
início da dinastia carolíngia, mais especificamente no reinado de
Carlos Magno. Nesse sentido, a maior contribuição feita por Alfredo
foi o programa de traduções estabelecido por ele, cujo objetivo era
traduzir para o Inglês Antigo textos em Latim que o rei considerava
importantes para todo cristão conhecer. Quatro textos, a citar Regula
11 Um dos sobrinhos de Alfredo veio a se rebelar contra seu filho, Eduardo depois
que este assumiu o poder. KEYNES; LAPIDGE. op. cit., p. 173.
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
83
pastoralis de Gregório Magno, De consolatione Philosophiae de
Boécio, Soliloquia de Santo Agostinho e vários dos primeiros
Salmos, foram traduzidos pelo próprio monarca; dois outros foram
traduzidos sob sua orientação direta, sendo eles Dialogi de Gregório
Magno e Historiae adversus paganos de Paulo Orósio, além de seu
envolvimento com a tradução de alguns outros textos.
Muitas vezes a tradução alfrediana das obras já mencionadas
divergia do texto original em latim, sendo que em alguns momentos
passagens eram suprimidas e em outros, especialmente no caso do
texto de Agostinho, eram adicionados conteúdos que o rei
considerava importantes à sua realidade; adaptando-os e revalidando
seu conteúdo, em função de seu contexto. Da mesma maneira, a
utilização de textos cristãos de tal importância conferia legitimidade
ao reinado de Alfredo, aproximando-o de uma tradição cristã
presente no continente. Nas obras traduzidas dois assuntos têm lugar
de maior destaque, quer seja por conta de seus autores originais, quer
por acréscimo dos tradutores: temas relacionados com liderança e
governo e a responsabilidade do governante sobre os outros e a
relação humana com Deus, mais especificamente falando do cuidado
com a alma. Dessa maneira, torna-se perceptível a importância dada
para o aspecto religioso, sempre o relacionando às questões políticas,
de forma que o Cristianismo atuasse como um aliado do monarca
ante a população. Alfredo destaca em sua obra a importância do
papel do rei como representante de Deus na Terra, tradicionalmente
trabalhado na teorização do poder pelos cristãos, tendo como base
principal o reino franco, que já havia visitado quando criança.
Talvez pelo fato de não ter sido inicialmente preparado para
governar, Alfredo teve uma formação que acabou por ressaltar as
questões religiosas, tendo ele visitado o Papa em Roma por duas
vezes, acontecimentos que seriam sempre lembrados com intuito de
fortalecer o reinado do mesmo. Além da influência que recebeu de
suas visitas ao Pontificado, foi afetado também por sua passagem
pelo reino carolíngio, no qual se baseou em diversos aspectos como,
por exemplo, o tratamento dado aos homens do norte. De fato, seu
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
84
pai chegou a contrair matrimônio pela segunda vez com a filha de
Carlos, o Calvo, descendente de Carlos Magno. Tudo isso aponta
para uma busca de conexões com outras realidades vividas no
continente, que partilhavam da tradição em que se pautava Alfredo.
De qualquer forma, o elemento da legitimidade sempre figurava
como extremamente importante para o monarca, que se utilizava de
diferentes aparatos para confirmar a validade e qualidade de seu
governo.
O rei deveria possuir, por exemplo, virtudes militares e
também virtudes religiosas para que fosse digno de exercer sua
posição. Era preciso que tivesse meios de proteger seu reino, motivo
pelo qual a habilidade militar era tida em alta conta; da mesma
forma, precisava estar atrelado aos ideais cristãos de virtude,
respondendo sempre a Deus, sendo ele seu maior espelho. Tudo isso
deve estar aliado ao elemento de aprovação e consentimento
daqueles que serão governados, especialmente da nobreza, a parcela
politicamente mais importante da população, sem o aval da qual se
torna inviável a qualquer monarca governar.
BIBLIOGRAFIA
KEYNES, Simon; LAPIDGE, Michael. Alfred the Great: Asser’s
Life of King Alfred and Other Contemporary Sources. London:
Penguin, 2004 (1st edition: 1983).
SWANTON, Michael. The Anglo-Saxon Chronicles. London:
Phoenix, 2000.
CAMPBELL, James (ed.). The Anglo-Saxons. Londres: Pengin, 1991
(1st edition: 1982).
HUNTER BLAIR, Peter. An Introduction to Anglo-Saxon England.
Cambridge: Cambridge University press, 2003, 3rd edition (1st
edition: 1956).
Revista Vernáculo, n. 21 e 22, 2008
85
LAPIDGE, Michael; BLAIR, John; KEYNES, Simon and SCRAGG,
Donald (ed.). The Blackwell Encyclopaedia of Anglo-Saxon England.
Oxford: Blackwell Publishing, 2001.
LE GOFF, J.; SCHIMITT, J.-C. Dicionário temático do ocidente
medieval. Bauru: EDUSC, 2002.


COPYRIGHT MONAH NASCIMENTO PEREIRA

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas