Existe Uma Ideologia do Poder?
A ideologia de um poder eclesiástico romano fundamentou-se em Roma capital do Império
Quando eu morava em Beirute, uma das queixas que os cristãos ortodoxos faziam contra o Vaticano era a insistência romana para que reconhecessem o bispo de Roma como chefe supremo de todos os cristãos.
Por que esta insistência? Porque existia no Vaticano a ideologia do poder papal centralizador. Vou dar aqui o mais recente caso, entre os tantos já ocorridos, relatado pela revista alemã Der Spiegel (número 1; jan/96) que escreve: “mesmo que o Vaticano não esteja disposto a escutar-nos, nós tentaremos, com insistência, ser ouvidos".
É o resumo de uma longa queixa contra o poder autoritário do bispo de Roma; e quem se queixa são 40 bispos americanos cujo porta-voz é o arcebispo de Milwankee, Rambert Weakland.
De que se queixam? Que o princípio da colegialidade promulgado pelo Concilio Vaticano II é esquecido propositadamente por João Paulo II que governa a Igreja "como um consórcio multinacional com o quartel-geral em Roma, enquanto as dioceses são relegadas à condição de filiais sem autoridade própria".
Os americanos tiveram a coragem de dizer isto porque, como é público e notório, são eles que mais contribuem com as finanças do Vaticano: "sem o dinheiro americano o Papa faria suas viagens intercontinentais no barco de São Pedro". (Entrevista à Rumos; Brasília, número 56; jan. 1990; p. 8).
Mas porque o Papa age assim? Porque existe lá, em Roma, a ideologia do poder: um poder que já foi eclesiástico e, depois, político, e, agora, espiritual. Assim veio surgindo nestes dois mil anos de cristianismo a ideologia do poder centralizado no bispo de Roma.
Há, sim, uma ideologia do poder!
O que é ideologia do poder? Bertrand Russel pensava que o poder, com a glória de que se reveste, permanece como a mais alta aspiração e a maior recompensa dos homens: "Dos infinitos desejos do homem, o principal é o desejo do poder coroado de glória" (em: "Power, a new social analysis"; Ed. W. Norton; New York; pg. 11).
Há toda uma séria de poderes: poder físico, como por exemplo o poder militar; poder intelectual; poder econômico; poder espiritual; e todos os demais aspectos que a sociedade humana
atribui à capacidade de fazer, ou mandar fazer alguma coisa.
Quando, do ponto de vista abstrato, o poder se torna uma função social que envolve, consciente ou semiconsciente, sentimentos e vontades, juntamente com idéias e valores típicos de uma determinada classe social, então podemos falar de ideologia do poder.
Ou, noutras palavras, de como, surgindo (consciente ou inconscientemente) de desejos, sensações e vontades abstratas, se forma a idéia do poder: qualquer que seja o tipo do poder.
Por exemplo, quando Jesus perguntava aos seus discípulos: "quem dizem os homens que eu sou?" poderia ser interpretada como a busca do conhecimento de seu próprio poder.
E quando Pedro disse: "tu és o filho de Deus", ele teve a representação clara do seu poder, quase um claro conhecimento de si dentro de uma função social.
Então lá pelo fim de sua vida Ele dirá: "todo poder foi-me da¬do no céu e na Terra: ide, pois..."
Entre a pergunta que fez aos discípulos e o exercício do seu poder (neste caso, poder espiritual) houve todo um complexo de situações (psíquicas, afetivas, volitivas, etc.) que constituíam a ideologia do seu poder espiritual: não que este poder tenha-lhe vindo dos outros; mas os outros foram apenas a ocasião, o espelho para Ele ter consciência e confirmação daquilo que interiormente Ele sentia e queria, isto é, a busca e o reconhecimento do seu poder espiritual.
J. Kenneth Galbraith escreveu o livro "Anatomia do Poder" (Livraria Pioneira Ed.; S.P.; trad. Port.; 1984) onde fala dos três meios pelos quais o poder se exerce: pela persuasão, apelando à ciência; pela compensação e pela punição.
Também fala sobre as fontes do poder: o poder origina-se na personalidade, na propriedade e na organização. E uma espécie de ideologia do poder considerada no seu aspecto prático (mais do que teórico) e social.
Por isso o livro constitui uma tese que poderia ser muito bem aplicada, por exemplo, em primeiro lugar a São Paulo apóstolo (São Pedro, neste caso, é mais um "inocente útil), e, depois, a alguns bispos de Roma antes do Concilio de Nicéia, em 324; e a todos os bispos de Roma, depois de Nicéia.
O apóstolo Paulo, como os bispos de Roma, a partir de Constantino e, sobretudo, de Teodósio, estava imbuído da ideologia do poder: um poder que exercia pela persuasão, pelas ameaças e pela promessa de recompensas - três momentos diferentes que brotavam da sua personalidade e da sua capacidade organizacional.
Também os bispos de Roma, depois do Concilio de Nicéia, fundamentaram sua autoridade, ou seja, seu poder eclesiástico, político e espiritual, no fato de serem os sucessores ininterruptos do apóstolo Pedro.
Com efeito, a ideologia do primado do bispo de Roma se fundamenta em primeiro lugar no evangelho de Mateus (16, 17-19) e, em segundo lugar, na tradição que aponta Roma como sendo a cidade onde Pedro esteve.
Quanto à autenticidade de Mateus 17,17-19, há muita controvérsia. Os católicos evidentemente aceitam este trecho; mas os teólogos protestantes e a crítica histórica negam a sua autenticidade, mesmo depois que R. Bultmann a tenha aceitado.
Mas isto não interessa porque seja ela verdadeira, ou não, contribuiu a criar uma ideologia: e é isto que importa. Por exemplo, o documento da doação de Constantino era falso, mas criou a ideologia do "papa-se-nhor-de-territórios"; aliás, fundamentou esta ideologia mesmo depois que L. Valla, em 1410, mostrou que era falsa.
O segundo pilar que sustenta a ideologia do poder papal é a tradição. Chamamos de tradição uma transmissão oral de lendas, fatos, doutrinas, costumes, etc, durante um longo espaço de tempo.
Tratando-se do poder eclesiástico do bispo de Roma, deveríamos encontrar esta doutrina nos escritos, que ainda restam, de outros bispos da época, de forma ininterrupta no tempo e no espaço.
Na realidade, encontramos nos primeiros três séculos apenas três bispos que em seus escritos fazem algumas referências à primazia da sé episcopal romana.
São eles: Irineu que morreu em Lyon, na França, em 208; Cipriano, que morreu em Car¬tago (África) em 258; e Eusébio que morreu em Cesaréia (Capadócia) em 340.
É um número extremamente exíguo para que se possa falar de uma tradição dos primeiros séculos! Tratam-se de três opiniões pessoais com breves acenos à sé episcopal de Roma cuja influência era nula, ou quase nos primeiros três séculos.
Todavia, é importante notar que esses três autores não falam de "Primado" e sim de "preeminência" da Igreja romana; "Igreja", não "bispo" de Roma.
Talvez a tradição possa ser encontrada em outros elementos. Mas antes de ver esses elementos, vejamos o que dizem estes três bispos.
Na realidade nos primeiros dois séculos temos bem pouca coisa; aliás, não temos nada para que se fale de uma tradição capaz de formar e fundamentar a ideologia do primado.
Certamente esta tradição deve fundamentar-se num outro elemento bem mais importante, isto é, Roma capital do império que atraía, pelos seus encantos visitantes, comerciantes, chefes políticos, charlatães, mágicos, enfim: pessoas de todas as raças, de todas as religiões e de todas as filosofias...
Até São Paulo suspirava por Roma... e Pedro, que desde muito tempo seguia os passos de Paulo, também quis ir a Roma: fiscalizar Paulo?
Como já Tiago e até o mesmo Pedro haviam feito várias vezes lá na Ásia menor, Pulo considerava-se chefe dos pagãos convertidos (conforme sua interpretação do pacto de Antioquia) e Pedro era o chefe dos judeus-cristãos.
Em Roma, terra de pagãos, de pagãos convertidos havia muitos judeus e judeus-cristãos, o que explicaria a ida a Roma de Paulo e de Pedro: este, como visitante? Ou como bispo? Isto ainda não foi desvendado... Tudo não passa de suposição...
Certamente Roma merecia uma sé episcopal que fosse o centro das igrejas do império; é aqui que começa a lenda de Pedro como primeiro papa.
Lenda? Verdade? Isto não interessa. O que interessa é que a partir destas suposições os bispos de Roma constroem, ponto por ponto, a ideologia do poder eclesiástico.
E o primeiro será o bispo Clemente romano sugerindo que o cristianismo deve tornar-se uma força organizada como o exército romano, com um chefe supremo e demais subalternos.
Continua na próxima postagem desta seção...
Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.
Observação: Mantida a formatação original em todos os artigos, apenas os destaques visuais são por conta deste site.
Nota do IASD Em Foco
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