Carlos Magno Imperador
Foi numa noite de Natal que nasceu o sagrado romano império do Ocidente
Com a morte de Adriano em 795, foi eleito bispo de Roma Leão III, que morava no palácio do Latrão desde a sua infância e, portanto, havia absorvido todas as lições que a Santa Sé podia oferecer-lhe e, em primeiro lugar, a ideologia do poder.
Com efeito, muito inteligentemente do ponto de vista político, tão logo foi coroado pontífice, mandou para Carlos Magno as chaves de São Pedro, o estandarte de Roma e muitos presentes sem esquecer de pedir que viessem a Roma os embaixadores franceses para receberem o juramento de fidelidade dos romanos.
Carlos Magno só esperava isso. Então mandou Angilberto, com muitos presentes, para conferenciar com Leão III sobre a situação política romana, e para que e pedissem uma reforma séria dos costumes do clero italiano.
Leão III recebeu felicitações oficiais e ricos presentes, também, de Kenulfo, rei da Mércia (Inglaterra) è da Alemanha.
Mas chegaram dias tristes para Leão III. Dois padres revoltados contra o bispo de Roma juraram matar Leão III. Num dia em que Leão III voltava de cavalo ao palácio do Latrão os dois padres, com outros bandidos, atacaram a escolta, que fugiu, e arrancaram Leão do cavalo, jogaram-no no chão e apedrejaram-no. Julgando-o morto, fugiram.
Outros bandidos que passavam levaram Leão III para o convento de São Silvestre e lá tentaram arrancar-lhe os olhos e cortaram-lhe um pedaço da língua; então lançaram-no na prisão do mosteiro, onde ficou dois dias e meio sem socorro.
Então, convictos de que já estava morto, o abade Erasmo com outros monges foram buscar o cadáver para sepultá-lo. Porém, descobrindo que estava ainda respirando, transportaram-no para a prisão de outro convento a fim de despistar as tropas pontifícias.
Mas o camarista de Leão III, que por acaso lá se encontrava, foi até a prisão com alguns religiosos e tirou Leão de lá e o transportou ao palácio do Latrão, onde conseguiu se recuperar e conservar a vista, embora com os olhos arranhados. O duque de Spoleto tão logo soube do fato enviou suas tropas para levar Leão III até a França.
Delonguei-me nesta relação para o leitor ter uma idéia dos tempos... Que serão ainda piores até o dia em que o bispo de Roma será não só de nome, mas também de fato um soberano político independente.
Os revoltosos, quando souberam que Leão III estava na corte de Carlos Magno, queimaram as campinas de propriedade da Igreja de Roma. Mas quando souberam que Leão III estava voltando para Roma com as tropas dos francos , fugiram. Leão III entrou triunfalmente em Roma acompanhado de bispos, padres e diáconos, além das tropas reais.
Mas temendo novos revoltosos, Leão III escreveu a Carlos Magno para que viesse a Roma com todo o seu exército. Era o mês de dezembro do ano 800. Uma vez em Roma, Carlos reuniu padres, bispos e fiéis num grande concílio onde todos aqueles que quisessem poderiam denunciar publicamente Leão III.
Ninguém teve coragem de fazer sequer uma acusação. Então Carlos Magno convidou Leão III para que se justificasse sob juramento. Leão III colocou os santos evangelhos acima da cabeça, subiu num estrado e gritou: "Juro pelo verbo de Deus que não cometi nenhum dos crimes de que os revoltosos me acusam!".
E houve paz, sob o olhar frio dos soldados de Carlos Magno. Então todos prepararam-se para as festas de Natal. No dia do Natal do ano 800, Carlos Magno, com roupas e sandálias de patrício romano, foi ajoelhar-se diante do altar de São Pedro.
A igreja estava cheia de bispos, padres, diáconos, diaconisas, nobres, magistrados e fiéis. Na hora do evangelho, Leão III tomou uma coroa previamente preparada e a colocou na cabeça de Carlos Magno, dizendo alto para que todos ouvissem: "A Carlos Augusto, coroado pela mão de Deus imperador dos romanos, vida e vitória!"
Em seguida Leão III ungiu-lhe com o santo óleo a cabeça, em sinal de perpétua consagração.
As aclamações dentro da igreja pareciam nunca acabar. Então Leão III prostrou-se-lhe aos pés em ato de homenagem, como todos os bispos faziam com os imperadores romanos depois de Constantino.
Era a homenagem que depois do ano de 476 era reservada ao imperador do Oriente, já que não havia mais imperador no Ocidente. O gesto de Leão III (coroação com prostração aos pés do consagrado) era a separação política entre Ocidente e Oriente e a restauração do império romano, que agora se tornava "sagrado" porque unido à Sé pontifícia indissoluvelmente.
O rei de França era agora imperador do Ocidente por escolha do bispo de Roma. Por isso ele será, doravante, o padrinho da Santa Sé e o defensor dos interesses eclesiásticos, fossem onde fossem, e o centro material de todos os cristãos do Ocidente.
A ideologia do poder cultivada cuidadosamente pelos bispos romanos fazia séculos dava naquela noite de Natal seu primeiro fruto visível: a confirmação de todas as terras, domínios, possessões e cidades que, fazia séculos, Roma estava habilmente colecionando.
Em 812 o imperador do Oriente reconhecia Carlos Magno com a condição que Venezia e a Itália do Sul ficassem fora dos domínios pontifícios. Mesmo assim para a Santa Sé foi bom demais!!!
Carlos Magno permitiu que os eclesiásticos tivessem suas próprias cortes de Justiça; decretou que uma décima parte (dízimo) de todos os produtos da terra deviam ser dados à Igreja; permitiu que o clero controlasse os casamentos e os testamentos em ponto de morte; e muitos outros privilégios que ainda perduraram nas regiões mais católicas da Europa.
Voltando para a França, Carlos convocou logo em Aix-la-Cha-pelle um concílio nacional que se ocupou de disciplina eclesiástica. Depois de alguns meses Leão III foi à França para conferenciar com Carlos.
Ficaram juntos oito dias tratando de política e da reforma dos costumes do clero. Era uma época difícil porque reinava a maior confusão entre direitos e deveres, privilégios e encargos.
A única coisa que se via em toda parte era a existência de oprimidos e opressores, sem contar que as imunidades do clero travavam a cada passo o caminho do Direito Civil, que por sua vez freqüentemente invadia a área eclesiástica.
Freqüentemente os exércitos eram comandados por bispos ou simples eclesiásticos enquanto que os mosteiros eram dirigidos por leigos e não só os mosteiros, mas também as dioceses... (Foi esta confusão generalizada que ajudou o futuro Gregório VII a instaurar um poder eclesiástico ditatorial).
Leão III passou os últimos anos de sua vida suspeitando de conspirações a todo momento. O historiador cardeal Barônio afirma que Leão III introduziu o uso de beijar os pés do papa movido pela desconfiança de que algum conspirador, ficando de pé, pudesse matá-lo.
Finalmente Leão III faleceu; era o ano de 816; dois anos após a morte de Carlos Magno.
Autor: Carlo Bússola, professor aposentado de Filosofia da UFES
Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.
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