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A DOENÇA MENTAL E A CURA:
UM OLHAR ANTROPOLÓGICO
Amadeu Matos Gonçalves*
RESUMO
A saúde, a doença e os processos de cura são construções sociais, resultantes
de um processo complexo que integra factores biológicos, socio-económicos, culturais,
psicossociais e religiosos, que permeiam o contexto da história de vida das pessoas e
exercem marcada influência nas suas atitudes face à doença e aos processos de cura.
Apesar da Antropologia médica ser uma área bastante incipiente em Portugal,
os conhecimentos actuais neste domínio sugerem que, apesar dos reconhecidos
progressos da medicina oficial, a atribuição conferida pelos utentes aos seus “males”
continua embebida em velhos sistemas de crenças populares.
Nas páginas que se seguem, faz-se referência a alguns aspectos socioantropológicos
que valorizaram a contribuição das ciências sociais e humanas para a
compreensão da saúde, da doença, dos processos de procura de saúde, das terapêuticas e
dos terapeutas.
1 - INTRODUÇÃO
A doença Mental foi percepcionada e interpretada de formas muito diversas ao
longo da História; durante muito tempo explicada através de paradigmas pré-científicos,
metafísicos e mágico-religiosos. As doenças mentais foram muitas vezes atribuídas ao
castigo dos deuses, a possessões demoníacas, os remédios e soluções para os males do
espírito procuravam-se junto dos que, baseados em conhecimentos e práticas ancestrais,
muito enraizadas na cultura das populações, iam aliviando o sofrimento e satisfazendo
as suas mais prementes necessidades de saúde.
* Licenciado em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica e Mestre em Ciências Sociais.
Assistente na Escola Superior de Enfermagem de Viseu.
Palavras Chave: Doença mental, Cura, Medicina oficial; Medicina popular;
Itinerários terapêuticos; Antropologia médica.
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Ainda hoje, em sociedades ditas civilizadas/desenvolvidas, globalizadas
continua a coexistir essa mistura de interpretações em torno da doença mental – almas
penadas, espíritos, possessão demoníaca, mau olhado, pragas, coisas ruins, feitiçarias,
etc. As concepções de saúde-doença e as práticas de cura não se inserem apenas no
discurso da medicina oficial, dos profissionais de saúde, configurando uma expressão
cultural própria, na procura de alternativas mediante mecanismos complexos, quantas
vezes contraditórios, que se traduzem em respostas que contêm ao mesmo tempo,
aceitação, incorporação ou resistência.
Confrontado com algumas destas questões, enquanto Enfermeiro especialista
na área de Saúde Mental e Psiquiátrica, e o desejo de compreender com mais clareza a
realidade em que vivemos e para a qual contribuímos, enquanto pessoas e profissionais
de saúde e da educação, entendi que seria pertinente “um olhar antropológico” em torno
da doença mental e dos itinerários seguidos pelos doentes na procura de saúde.
2 - PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DA DOENÇA MENTAL
As questões ligadas à saúde, à doença e processos de cura, enquanto
fenómenos biológicos, psicológicos, sociais e culturais, têm os seus esquemas internos
de explicação, construídos diferentemente pelo Paradigma das Ciências Biomédicas e
pelo Paradigma das Ciências Sociais
A constatação do “desencontro” entre estes dois paradigmas, na prática clínica
e na prestação de cuidados, bem como a percepção de que o paradigma biomédico não é
suficiente para abordar toda a problemática da doença mental, e muito menos para a
solucionar, tem levado muitos profissionais de saúde a interessarem-se pelas dimensões
sociais, culturais e até mesmo espirituais implicadas na saúde, na doença e nos próprios
processos de cura.
Assim se têm aproximado da Sociologia e da Antropologia, visando integrar
nas ciências médicas os seus saberes e conhecimentos; esperando que dessa integração
possam resultar vantagens, que por certo irão contribuir para a uma maior humanização
dos cuidados de saúde prestados às populações.
Como nota Berta Nunes “Postula-se o respeito pelo doente e pelas suas
escolhas e exige-se dos médicos a superação do paradigma estritamente biomédico,
que inspirou a sua formação por um alargamento da visão da saúde e da doença,
fundado no conhecimento das práticas e dos padrões culturais que dominam a
comunidade onde trabalha” (1987, p.233).
Podemos assim dizer que os profissionais de saúde, por motivos relacionados
com a sua formação académica e profissional, adoptam de forma privilegiada o
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paradigma “biomédico”, no qual é importante acreditar que aquilo que se estuda é
fundamental para explicar a doença e promover a cura.
É assim natural que, como refere Cristiana Bastos: “Os profissionais de saúde
não se interessam pelas abordagens de conteúdo mais Socio-antropológicos da saúde e
da doença e desprezam manifestamente as práticas que outros sectores promovem, sob
a categoria de «Medicinas populares», ou seja as práticas e saberes tradicionais
ligados à doença e à cura “ (1987, p.221).
A Antropologia è entendida por muitos como a ciência que estuda a cultura, o
Homem como ser cultural e fazedor de cultura. A Antropologia ligada à área da saúde,
ou da medicina, è uma subdisciplina da Antropologia social e cultural que se consolidou
na década de setenta, com investigadores anglo-saxónicos interessados na aplicação de
técnicas e métodos da investigação antropológica, no sentido de encontrarem respostas
para a universalidade das doenças e muito particularmente dos transtornos mentais.
Como vimos, o paradigma biomédico, centrado numa visão individualista da
doença e do sofrimento, ignora muitas vezes as determinantes sociais e culturais
envolvidas. Esta atitude redutora confunde-se frequentemente com a actividade
científica do médico e de outros profissionais de saúde, quando orientados por uma
visão objectiva do sofrimento humano. É a perspectiva de quem vê a doença, o órgão e
desvaloriza a tradução subjectiva da doença, com as suas ramificações pessoais,
familiares e sociais, que colocam a própria doença, como que do lado de fora do
organismo.
A noção de que a doença é uma entidade natural, cujas causas devem ser
identificadas e combatidas em diferentes ângulos, tem sido discutida e problematizada
pela antropologia médica (também designada por antropologia da saúde), surgindo no
campo da psiquiatria e da antropologia social trabalhos de autores como (Devereux,
1981; Laplantine, 1991; Kleinman, 1988, 1992; Good, 1986, 1994; Helman, 1994;
Eisenberg, 1988; Quartilho, 1995, 2001). Estes autores ao estudarem a forma como os
aspectos socio-culturais influenciam a saúde, a doença e os processos de cura, ressaltam
que, em todas as sociedades humanas, as crenças, atitudes e práticas relacionadas com
problemas de saúde são características fundamentais de uma cultura, do complexo
cultural dos indivíduos e das populações.
Como diz Silva Pereira (1993), “ As noções de corpo, doença, saúde são
construídas social e culturalmente, devendo o antropólogo buscar o seu sentido junto
das pessoas que as utilizam, como único meio de poder entender quais as estratégias
sociais nos processos de manutenção e recuperação da saúde” (p 159).
A saúde, doença e cura são portanto constructos sociais que não podem ser
estudados de forma isolada, isto é, não podemos compreender as reacções à doença,
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morte ou outros infortúnios sem compreender o tipo de cultura que determinados povos
foram assimilando ao longo de gerações.
Como refere Quartilho (2001), “ a perspectiva do doente tem muito a ver com a
sua experiência subjectiva, com as suas interpretações particulares sobre a origem e o
significado dos sintomas, no contexto da sua vida social” (p. 17). Este autor, ao referirse
ao conceito e importância do “comportamento de doença”, acrescenta que esse
conceito pode associar uma confluência de variáveis biológicas, psicológicas, sociais,
culturais e até mesmo espirituais. Ainda neste contexto, e no âmbito das consultas de
psiquiatria, os profissionais de saúde pretendem muitas vezes localizar a origem dos
problemas pessoais, que trazem o utente/doente à consulta, mas não criam espaço e
disponibilidade para que estes possam verbalizar os seus problemas, dúvidas, os seus
medos e receios, em suma a sua história de vida.
Sabe-se hoje que a conduta individual è determinada pela biologia individual,
pela interacção do indivíduo com o meio e pelas experiências vividas. A cultura è então
o “caldo” onde operam essas forças (biológica, sociológica e psicológica) e tudo isto
leva a formas diferentes de percepcionar a doença mental, sua etiologia e tratamento.
Mas o que è a cultura? Não é fácil defini-la. Cada investigador trabalha com o
seu conceito. Em sentido geral, poderíamos entendê-la como tudo o que o homem
acrescenta à natureza, mas uma concepção tão abrangente torna-se inoperante.
Para Marsella e Kameoka (1989), as culturas são: “ condutas aprendidas e
compartidas, transmitidas de geração em geração com o fim de conseguir a adaptação,
o crescimento e o ajustamento do indivíduo. Possui tantos referentes externos como
internos. Os externos incluem os objectos, papéis e instituições. Os internos incluem
atitudes, valores, crença, expectativas, epistemologias e consciência” (p.233).
Para Kaplan & Sadock (1989), a antropologia médica é uma disciplina que:
“ trata sobre el estudio transcultural de los sistemas médicos y sobre la influência de los
factores bioecológicos y socioculturales sobre la salud y enfermedad. Algumas áreas
de interés común a psiquiatras y antropologos médicos son la dinâmica de la conducta
de búsqueda de salud, los modelos de enfermedad mental, los sistemas de curación, los
sindromes definidos culturalmente, los estados mentales especiales, como los estados
de transe y possesión por espíritos” (p. 253)
Para Devereux (1981), a etnopsiquiatria è uma ciência pluridisciplinar que
pretende abordar a relação de complementaridade entre o indivíduo, a sociedade e a
cultura.
No dizer de Laplantine (1978), “ Etnopsiquiatria é uma pesquisa decididamente
pluridisciplinar. Esforça-se por compreender um conjunto de conceitos fundamentais
que são os da psiquiatria (o normal e o patológico) e os da etnologia (as categorias
universais da cultura)” (p.16)
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Kleinman (1988), aprofundando o discurso dentro da antropologia médica,
atenta para o facto de que dentro de uma mesma sociedade coexistem também
diferentes sistemas de saúde, o que inclui uma multiplicidade de concepções sobre a
doença, incluindo etiologia, fisiopatologia, definição de severidades, tratamento e
diagnostico. Este autor diferencia três sistemas básicos de atenção à saúde:
· sector profissional – que corresponde ao sistema médico instituído e aceite como
formal nas sociedades ocidentais – o modelo biomédico.
· sector popular – composto por conhecimento leigo, gerado pelas percepções
individuais e colectivas.
· sector alternativo – que inclui a medicina tradicional, que não pertence à medicina
oficial composta pelos centros de tratamento religiosos e as chamadas medicinas
alternativas.
Kleinman (1992), defendeu uma distinção entre as dimensões biológica e
cultural da doença - sickness, agrupando-as em duas categorias:
- Patologia - disease
- Enfermidade - illness.
Patologia refere-se a alterações ou disfunções de processos biológicos, de
acordo com o modelo biomédico. Nesta dimensão, o funcionamento patológico dos
órgãos ou sistemas fisiológicos ocorre independentemente do reconhecimento ou
percepção pelo indivíduo ou ambiente social.
A categoria enfermidade incorpora a experiência e a percepção individual
relativamente aos problemas decorrentes da patologia, bem como a reacção social à
enfermidade. Essa percepção individual diz respeito aos processos de significação da
doença que, para além dos significados culturais, há também os significados pessoais,
que incluem não só os significados simbólicos particulares formadores da própria
doença, mas também os significados criados pelo doente para poder lidar com a doença
e controlá-la.
O mesmo autor refere, “No paradigma biomédico ocidental, patologia
significa mau funcionamento ou má adaptação de processos biológicos e psicológicos
no indivíduo; enquanto enfermidade (estar doente), representa reacções pessoais
interpessoais e culturais perante a doença e o desconforto, imbuídos em complexos
nexos familiares, sociais e culturais. Dado que a doença e a experiência de doença
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fazem parte do sistema social de significações e regras de conduta, elas são fortemente
influenciadas pela cultura e por isso socialmente construídas.” (1992, p. 252).
De acordo com o autor, a saúde, a doença e o tratamento são partes de um
sistema cultural e, como tal, devem ser entendidas nas suas relações mútuas. Examinálas
isoladamente é distorcer a compreensão da natureza dos mesmos e de como
funcionam num dado contexto. Em relação ao tratamento e cuidados de saúde,
Kleinman (1992), considerou que uma das razões pelas quais diferentes processos de
cura persistem numa mesma sociedade é o facto de eles agirem nas diferentes
dimensões da doença. Alerta para a necessidade de novos métodos interdisciplinares de
atenção na doença, trabalhando simultaneamente com dados etnográficos, clínicos,
epidemiológicos, históricos, sociais, psicológicos, políticos, económicos e tecnológicos.
Só assim se conseguirá descrever os sistemas individuais, fazer comparações entre
sistemas de diferentes culturas e analisar os impactos da cultura na doença e na cura.
Também os estudos de Good (1986, 1994), deram continuidade à ideia de
Kleinman sobre a relatividade conceptual e cultural da doença. Estes autores, partindo
do pressuposto de que a cultura afecta a experiência e a expressão dos sintomas, tecem
uma série de críticas à racionalidade médica ocidental e propõem um modelo cultural
para a prática clínica.
Este autor, ao fundamentar a crítica ao modelo biomédico, parte do
pressuposto de que a actividade clinica é fundamentalmente interpretativa, baseando-se
no conhecimento de cadeias causais que operam ao nível biológico, seguindo um roteiro
de descodificação das queixas dos doentes, a fim de identificarem o processo
patológico, somático ou psicológico subjacente e posteriormente estabelecer o
diagnóstico e propôr uma terapêutica.
As pessoas não vivem isoladas, vivem como elementos activos nas suas
comunidades (aldeias, vilas, cidades), nas suas famílias. A experiência das pessoas,
nestes contextos tão heterogéneos, caracterizados por diferenças no estatuto social,
género, etnicidade ou convicções religiosas, as quais influenciam a forma de encararem
a doença e a cura. Desta forma, os técnicos de saúde não devem ignorar ou subestimar o
papel dos factores psicossociais na génese, persistência e resolução dos sintomas
apresentados pelos doentes.
Para Quartilho (2001) as questões da doença ligadas à cultura, o contexto de
vida ou os percursos biográficos individuais adquirem um estatuto marginal, quase
exótico, no discurso da medicina instituída e os profissionais de saúde; centrando-se na
visão individualista da biomedicina, afastam-se das intenções do modelo
biopsicossocial, não conseguindo desta forma ajudar o doente e família a lidar com as
suas preocupações relativamente à doença.
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Algumas doenças só podem ser devidamente explicadas e compreendidas se os
técnicos de saúde abandonarem o quadro teórico do paradigma biomédico e partirem
para a análise dos componentes étnicos e culturais do problema. Será essa a premissa
básica da antropologia médica, da psiquiatria transcultural como especialidade que tem
como objectivo compreender a dimensão cultural das doenças mentais e a dimensão
psiquiátrica das culturas.
Helman (1994) inclui a psiquiatria transcultural como uma das principais áreas
da antropologia médica, e refere-se a esta área do saber da seguinte forma “... ramo da
antropologia social e cultural, colocada entre as ciências naturais e sociais, nas
margens da medicina e da antropologia, interessada no modo como as pessoas, em
diferentes culturas e grupos sociais, explicam as causas do seu estado de saúde, de
doença, os tipos de tratamento em que acreditam e aqueles a quem pedem ajuda,
quando ficam doentes (...) a psiquiatria transcultural consiste no estudo e na
comparação da doença mental nas diferentes culturas” (p.216).
A etnopsiquiatria è desenvolvida por psiquiatras e antropólogos sociais com a
preocupação comum de estudarem os fenómenos ligados ao diagnóstico e ao tratamento
das doenças mentais, quando o doente e psiquiatra possuem suportes sócio-culturais
diferentes. Dão também importância ao estudo das consequências da emigração,
urbanização e mudanças sociais na saúde mental dos indivíduos.
A investigação antropológica pode aprofundar o estudo do sofrimento humano
ao reformular a experiência subjectiva de doença, chamando a atenção para processos,
interpessoais e locais, que nos permitem compreender os “modus vivendi” das
populações, as suas formas de encarar os cuidados de saúde, a doença e a cura,
contrastantes muitas vezes com o modelo biomédico. Os seus interesses privilegiaram
sobretudo, ao longo dos tempos, as pequenas sociedades rurais, comunitárias, prestando
de alguma forma atenção às suas crenças e práticas no campo da saúde, da doença e
mesmo dos processos de cura.
Para Good (1994), a maioria dos trabalhos de antropologia médica, realizados
ao longo dos anos 40, estabeleceram uma distinção clara entre o primitivo e o moderno,
entre a crença e o conhecimento, desenhando assim uma perspectiva empirista que
catalogou as representações de doença, segundo uma hierarquia de racionalidade
crescente.
Em Portugal, os aspectos culturais relacionados com a psiquiatria e saúde
mental têm sido tratados ao nível da relação médico-doente e no relacionamento
estabelecido entre o doente mental e o sobrenatural, protagonizado pelas bruxas e
“mulheres de virtude”.
Almeida (1994), chama a atenção para a importância do contexto cultural do
doente. Neste âmbito, valoriza a consulta médica, o conhecimento e o respeito pelos
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valores do uente/doente, a sintomatologia que é muitas vezes condicionada pelo seu
quadro de valores e referências.
O mesmo autor chama a atenção para a necessidade e importância de olhar o
doente numa perspectiva global, da utilidade de registar os “pedaços culturais” que o
doente trás com ele, os profissionais de saúde só assim poderão reconstruir mais
facilmente a lógica do seu pensamento que corresponde às suas crenças e representações
da saúde, da doença e da cura; o papel da doença no relacionamento com os outros e
consigo próprio. Alerta ainda para o facto de a comunicação se poder tornar numa das
principais causas do desencontro entre o técnico de saúde e o doente.
A correlação do doente mental com o sobrenatural tem sido essencialmente
tratada por investigadores ligados à área da medicina (médicos, psicólogos e outros
técnicos) e às áreas das ciências sociais e humanas (sociólogos e antropólogos).
Os primeiros questionam: “como é que as técnicas utilizadas pelas bruxas ou
«mulheres de virtude» podem em certos casos produzir efectivamente resultados
positivos e curar algumas doenças?”. Outros tentam conhecer as razões da ida à bruxa
em detrimento dos serviços de saúde instituídos.
Nogueira (1978), publica na revista Hospitalidade um conjunto de artigos onde
aborda a relação dos povos africanos que conheceu, com a doença em geral e com a
doença mental em particular. Nesses artigos dá particular importância aos terapeutas
locais e à origem das doenças. Relembra este autor que a medicina popular foi, e
nalgumas situações continua a ser, um dos poucos recursos disponíveis destas
comunidades para a saúde. Alertando, por isso, para a necessidade e importância dos
técnicos de saúde conhecerem os padrões culturais das comunidades onde trabalham,
nunca hostilizando aquela que foi a sua única arma contra a doença, durante milénios.
Mário Lima e Carlos Saraiva (1982) trabalham a área da superstição como
causa da doença mental. Na prática clínica encontram material para dividir essas causas
em maldição, bendição, possessão, mau-olhado, encantamento e presságio.
Num trabalho, realizado na aldeia de Vales Concelho de Alfândega da Fé, em
Trás-os-Montes, a médica Berta Nunes (1987) regista relatos de indivíduos que
melhoram e outros que mantiveram o seu estado de saúde após terem consultado a
«Bruxa» e perante estes factos tem uma atitude bem digna de registo, “ ao contrário da
atitude arrogante de muitos profissionais de saúde, eu penso que o doente tem o direito
a optar, desde que devidamente informado, pela solução que entender para resolver os
seus problemas de saúde. A tolerância deve ser uma das qualidades principais do
médico. Só respeitando o doente e as suas escolhas poderemos ter o respeito deste e a
sua confiança” (p.241).
Berta Nunes, no seu livro O saber médico do povo, descreve a cultura e as
práticas do cuidado do corpo e da saúde numa população rural de Trás-os-Montes e ao
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referir-se exactamente aos itinerários terapêuticos seguidos pelas pessoas dessa
comunidade refere o seguinte: “ As pessoas utilizam vários recursos terapêuticos
sucessiva ou simultaneamente quando tal se lhes afigura necessário. As escolhas são
pragmáticas: tentando-se tudo porque o que importa é resolver o problema (...) pode-se
ir ao hospital para um tratamento sintomático e voltar à aldeia para um tratamento
etiológico” (1997, p. 183).
È de notar ainda que a decisão de empreender um determinado itinerário
terapêutico envolve o doente, a família, os vizinhos e por vezes amigos e simples
conhecidos que gostam de dar um parecer, mesmo que tal não lhe tenha sido solicitado.
Falam das suas experiências pessoais, referenciam e aconselham determinados agentes
populares de cura.
Poderíamos mencionar ainda trabalhos como os de Carvalho (1994), Rodrigues
(2000), onde o doente e a doença mental quase não têm lugar, mas está patente a
correlação cultura/saúde/doença, pela referência feita a alguns dos itinerários
terapêuticos seguidos pelos doentes na procura de cura (bruxas, médiuns, curandeiros).
Também as populações do Minho, segundo a investigadora Elvira da
Conceição Fernandes Lobo (1993), dividem as doenças em “doenças de médico” e
“doenças que não são de médico”. Cada um destes grupos corresponde,
respectivamente, ao modelo científico da medicina (paradigma biomédico) e ao modelo
da medicina popular (sobrenatural religioso).
O primeiro modelo explica a doença como uma disfunção física e/ou psíquica,
sendo o médico (psiquiatra) e o psicólogo os terapeutas. No segundo modelo, a doença é
atribuída “ a uma entidade desconhecida que se apoderou do indivíduo” e é nestes casos
solucionada (tratada) pela intervenção de curandeiros, médiuns, espíritas, padres. No
seu trabalho, a autora privilegia as doenças conotadas com o sagrado e as respectivas
curas. Aborda a eficácia e as funções simbólica, religiosa e terapêutica do ritual (transe
e possessão) e a actualidade dos mesmos, independentemente das autorizações ou
perseguições.
Manuela Cachadinha (1993), no seu trabalho “A medicina Popular no
Noroeste de Portugal”, estuda na área das doenças que “não são de médico”, cujos
terapeutas são endireitas, ervanários, especialistas de queimaduras, bruxas, espíritas e
médiuns, exorcistas e parapsicólogos; concluindo que a medicina e a saúde não
constituem domínios exclusivos dos médicos ou dos que prestam serviços de saúde.
Refere que tais domínios “ são inseparáveis das representações colectivas, das crenças,
dos sistemas de valores, dos rituais e das dinâmicas das estruturas sociais” (p.371).
Outro trabalho com alguma divulgação na área da antropologia médica é a obra
do Padre António Fontes e de João Sanches (1995) Medicina Popular Barrosã – Ensaio
de Antropologia Médica. Um estudo que é parcialmente fruto dos congressos de
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medicina popular de Vilar de Perdizes. Nesta obra, destacam-se os capítulos IV, V e VI
- Os Males psicológicos e a sua cura; O Social e O Sobrenatural, respectivamente.
Onde os autores fazem referência a algumas substâncias autóctones utilizadas em chás e
outras infusões; às doenças em que se procura, prioritariamente, um curandeiro (ossos
partidos, reumatismo e males do ventre); às doenças do padre ou da vidente (possessões
de espíritos, relações familiares ou de vizinhança difíceis, mal de inveja, mau-olhado);
as doenças em que dão prioridade à intervenção médica (doenças infecciosas, epidemias
e acidentes graves) e por fim as doenças de Deus, quando a pessoa já mais nada pode
fazer (cancro, sida, «variação da cabeça», acidentes muito graves).
Também Gonçalves (2003), estuda o Recurso aos Operadores Rituais
Alternativos entre os utentes das consultas de Psiquiatria no concelho de Viseu. Os
resultados da sua investigação foram reveladores de que paralelamente ou em
simultâneo com o recurso à medicina oficial/instituída, um número significativo de
utentes dessa consulta continuam a procurar e utilizar práticas médicas alternativas para
a resolução dos seus problemas de saúde.
Os agentes da medicina popular a tudo resistem, até mesmo à chamada era da
globalização, onde se discutem os problemas do popular, do tradicional do local e do
global. Muitos agentes da medicina popular/tradicional nascem das necessidades dos
que os procuram; justificando-se a existência de uns pela necessidade de outros numa
complementaridade intrínseca, o que nos leva a pensar que eles apenas deixarão de
existir quando deixarem de ser procurados
3 - CONCLUSÃO
Num momento em que as exigências de saúde aumentam, é uma preocupação
dominante para os técnicos de saúde exigir que o conhecimento da sua prática seja
validado cientificamente. Para o Enfermeiro, é precisamente o ser humano, em toda a
sua dimensão e vulnerabilidade, o objecto da sua prática profissional. Por isso, mais do
que o seu saber e saber-fazer (conhecimentos técnicos e científicos), o enfermeiro deve
também desenvolver o seu saber-ser e saber- estar tanto com ele mesmo, como na
relação com o utente/doente.
Algumas doenças só poderão ser devidamente explicadas e compreendidas se
os técnicos de saúde entenderem a sua dimensão social e cultural. Estudos de
Antropologia Médica mostram que os «curadores tradicionais» se preocupam
essencialmente em tratar a experiência humana da doença, explicando-a e respondendo
às expectativas pessoais, familiares e comunitárias. Inversamente, os médicos e outros
técnicos de saúde estão distantes e não oferecem aos doentes que os procuram, uma
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verdadeira e efectiva relação de ajuda, a qual deverá passar obrigatoriamente pelo apoio
às suas necessidades emocionais.
O conhecimento da história de vida do doente, relativamente à doença, pode
fazer a mediação entre a sua cultura, suas crenças, desejos e esperanças. Pode
encaminhar os profissionais de saúde para uma visão holística do doente e a criação de
uma relação empática técnico de saúde/utente, ao estabelecer de uma relação de
confiança e por conseguinte a uma verdadeira e eficaz relação terapêutica.
Esta abordagem antropológica ao processo de cuidar, poderá permitir aos
profissionais de saúde captar a complexidade e riqueza das relações interpessoais e,
sobretudo, confrontá-los com o poder dos significados incorporados pelo utente, ou
seja, com as interpretações particulares dos processos de doença e respectiva
valorização em termos pessoais e afectivos, podendo ainda revelar o significado que a
situação/problema tem para o indivíduo.
O conhecimento da dimensão social e cultural da doença pode ajudar os
profissionais de saúde a perceber como a cultura, crenças e valores podem interferir na
percepção e interpretação dos sintomas/doença, bem como os comportamentos de
procura de ajuda tendentes à sua resolução ou seja, compreender os processos de autoreconhecimento
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