domingo, 23 de setembro de 2012

Concepção e imortalidade da alma em Platão


Conception and immortality of the soul in Plato

Evandro PEGORARO1

Juliano de SOUZA2

Resumo: Platão é um dos pensadores mais importantes para a Filosofia, com

teorias que transcorreram séculos e influenciaram inúmeras correntes de

pensamento. A sua concepção dualista da realidade e do homem foi fonte para

diversas pesquisas e ainda gera discussões nos debates filosóficos da atualidade.

O presente artigo tem a intenção de apresentar os argumentos da obra Fédon a

respeito da imortalidade da alma. Para tanto, haverá uma exposição dos

principais pontos que Platão apresenta na sua concepção cosmológica e de

psyche, bem como os mitos sobre a origem e destino das almas após a morte, a

fim de poder embasar a compreensão dos argumentos a favor da imortalidade.

Abstract: Plato is one of the most important thinkers for the Philosophy, with

theories that elapsed centuries and they influenced countless thought currents.

Her conception dualist of the reality and of the man it went source to several

researches and it still generates discussions in the philosophical debates of the

present time. The present article has the intention of presenting the arguments

of the book Phaedo regarding the immortality of the soul. For so much, there

will be an exhibition of the main points that Plato presents in your

cosmological conception and of psyche, as well as the myths on the origin and

destiny of the souls after the death, in order to base the understanding of the

arguments in favor of the immortality.

Palavras-chave: Platão – Imortalidade da alma – Fédon – Dualismo - Psyche.

Keywords: Plato – Immortality of the soul – Phaedo – Dualism – Psyche.

***

Na história do pensamento filosófico existem conceitos importantes que se

constroem no processo histórico e têm seu sentido refinado e reafirmado com

o desenvolvimento do pensar, como o conceito de alma.3 A partir de Homero

existiu uma concepção diferenciada de alma em relação ao corpo e, passando

pelas religiões gregas até a filosofia iniciada por Tales de Mileto, esse tema foi

1 Professor do Instituto Sapientia de Filosofia – ISF. E-mail: evan.pegoraro@hotmail.com.

2 Graduando em Filosofia pelo Instituto Sapientia de Filosofia – ISF. E-mail:

julianode1987@gmail.com.

3 No presente artigo, ao tratarmos da alma, referimo-nos à alma humana. Quando citarmos

outro tipo de alma, como a alma do mundo, por exemplo, especificaremos.

COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 11

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fundamental para as primeiras teorias do pensar humano, como em Tales,

Anaxímenes, Heráclito, Pitágoras e Empédocles. Contudo, um ponto áureo de

desenvolvimento conceitual da alma foi trazido por Sócrates e desenvolvido

sistematicamente no platonismo.

Platão4 nasceu na cidade grega de Atenas, no ano 427 a.C, filho de Aríston,

um nobre grego, o que possibilitou que pudesse receber uma educação de alta

qualidade para os padrões da época. Foi discípulo de Crátilo, Heráclito (que o

iniciou na Filosofia) e depois Sócrates. Após a condenação e morte de

Sócrates, em 399 a. C., Platão fez muitas viagens, conheceu pensadores e

elaborou obras que tratam de vários âmbitos da vida do ser humano e se

voltou ao estudo do homem, visto que este é a sua alma. Faleceu por volta de

347 a. C.

Sócrates delineou seu pensar em torno do hábito de reconhecer sua ignorância

e, nesse ponto, de busca da possibilidade do conhecimento, Platão formula a

tese central de sua teoria, de que o conhecer é, para a alma, uma reminiscência

das Idéias já conhecidas antes de encarnar no corpo. Para tanto, o Ateniense

usa de alguns mitos que visam explicitar que as almas conhecem fora do

corpo, ao contemplar os modelos perfeitos, as Idéias5. Segundo o modo de

contemplação, existe a possibilidade de as almas encarnarem, de forma que se

esquece o que foi contemplado no mundo ideal, o que torna o conhecimento

humano uma busca interior pelo saber, uma tentativa da alma de lembrar o

que já fora contemplado.

Além de aderir e aprimorar a teoria da metempsicose6, Platão formula a

necessidade de o homem exercer o cuidado da alma. Para ele, o corpo é uma

4 “Seu verdadeiro nome era Aristocles. O apelido ‘Platão’, sob o qual o filósofo adentrou a

imortalidade, ele recebeu em razão de sua avantajada condição física [...] De sua índole,

Aristóteles nos conta que ele teria sido melancólico”. In: KELSEN, Hans. A ilusão da justiça.

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 69. No presente trabalho tratarmos de Platão, além do

nome próprio, como Filósofo ou também como Ateniense, devido a cidade em que nasceu.

5 “De modo algum as idéias para o autor dos Diálogos representam noções abstratas

meramente intencionais. Até ali a questão se encontra hoje fora de dúvida; efetivamente, as

idéias de Platão foram entendidas por ele como reais. Assim como Deus é entendido como

uma espécie de idéia real, Platão concebeu a todas as idéias como reais, com a diferença

que elas são muitas, ainda que tendo uma certa hierarquia”. In: PAULI, Evaldo. O Divino

Platão. Florianópolis: Fundação Cultural Simpozio, 1997, p. 59.

6 “Existe stricto sensu uma diferença sensível entre reencarnação e metempsicose. A primeira

diz-se em grego (enzomátosis), ‘enzomatse’, é a reassunção pela alma de um novo corpo

humano; a segunda (metempsykhosis), ‘metempsicose’, é a transmigração da alma para um

outro corpo, humano, animal ou até mesmo vegetal”. In: BRANDÃO, Junito de Souza.

Mitologia Grega: Vol II. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 160.

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tumba para a alma, que prende aquela que não foi capaz de continuar na

contemplação das Idéias. O apego às coisas corpóreas faz com que o homem

distancie-se da verdade (que é a realidade ideal) e sofra, tanto na vida carnal,

quanto na espiritual, os castigos de optar pela ignorância.

Contudo, como seria possível à alma contemplar o mundo das Idéias,

reencarnar e levar o homem ao mundo das coisas em si se, após a morte, ela

se dissipasse, como afirmavam os atomistas, por exemplo? Platão herda e

aprimora a teoria de alguns pensadores ao reafirmar a imortalidade da alma.

Essa sustentação é necessária como forma de justificar ao homem o anseio

pela busca da virtude terrena (mesmo que sombra da ideal) com o intuito de

chegar à virtude perfeita e, conseqüentemente, à felicidade.

A Filosofia é marcada pela reflexão expansiva dos problemas, de forma que,

não raro, um pensamento seja, antes de conclusivo, caminho para

aprofundamento do estudo de problemas. Diante da apresentação das

diversas correntes éticas na contemporaneidade, é válido retornar aos

conceitos teleológicos gregos e repensar os problemas atuais com uma visão

que não renegue a força da metafísica. Pensar o ser humano desprovido de

alma parece um reducionismo exagerado ao material, de forma que a

evidência de fatos extra-materiais torna possível perceber que a constituição

humana transcende a realidade física.

Creio que seja importante, pois, o estudo da alma como forma de garantia da

ética, mesmo que não se retornem às antigas tradições, mas façam delas meios

para repensar o homem e sua identidade. Dessa forma, ao desenvolver um

estudo com base em Platão, mesmo que não seja possível elaborar neste artigo

um paralelo com a atualidade, é um corolário necessário, uma luz que possa

fazer repensar o agir humano hoje.

Visto que toda a ética de Platão está ligada a diferenciação entre mundo ideal e

mundo sensível, a sua Filosofia como um todo necessita de provas para os

aspectos ligados a alma. Ao saber que, para a doutrina platônica, o objetivo do

ser humano é purificar sua alma a fim de que retorne ao mundo ideal, todo o

agir humano no mundo sensível, sua existência e escolha do mal está

relacionado com o modo com que o homem vive a fim de que possa atingir

uma vida plena após a morte. Para isso, faz-se essencial a comprovação de que

a alma seja imortal, pois, caso ela não seja, toda Filosofia do Ateniense pode

ser facilmente destruída, visto que a vivência humana terrena, para o Filósofo,

está centrada no anseio por retornar ao mundo ideal.

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Além do fundamental papel da prova da imortalidade da alma para qualquer

estudo da doutrina platônica, a enumeração e exposição de argumentos a

favor dela, podem trazer novos horizontes de pesquisa com relação aos

estudos metafísicos de toda Filosofia e embasar os estudos posteriores

contemporâneos.

O objetivo do presente artigo é analisar os pressupostos fundamentais da

existência e imortalidade da alma para Platão, nos quais busco trazer as

influências que o Filósofo recebeu, bem como sua concepção de existência da

alma humana e, dentro da obra Fédon, de imortalidade da mesma.

Em linhas gerais, apresentamos os principais pontos da compreensão

platônica de alma em um primeiro ponto. Este será separado em cinco temas

principais, com as seguintes subdivisões: primeiro, faremos uma explanação

da modificação aplicada por Sócrates na compreensão de alma, ao atribuir

centralidade à investigação deste conceito e a idéia de cuidado da alma;

segundo, apresento a teoria dualista de Platão a respeito da existência de um

mundo sensível e outro inteligível, bem como as principais características de

cada realidade, como base a toda sua filosofia; terceiro, descrevo a concepção

platônica de alma, com o intuito de apresentar todos os principais traços desta

proposição, além da relação da alma com o corpo; quarto, a doutrina da

metempsicose, de forma que serão descritos os principais conceitos acerca

dessa doutrina e as implicações no que tange a alma em relação à vida

corpórea; por fim, visto que Platão formulou argumentos em favor da

imortalidade da alma não só no Fédon, apresentaremos, de forma breve, teses

platônicas em favor da imortalidade em outras obras, a saber: Fedro, Leis e

República.

Após apresentarmos os principais traços da concepção platônica de alma,

mostraremos as principais teses a favor da imortalidade contidas no Fédon.

Nesse intuito, nossa escrita seguirá a seqüência cronológica da narração, de

forma que serão quatro argumentos expostos com suas respectivas objeções.

O argumento natural, que trata da geração das coisas pelos seus contrários; o

psicológico, que pressupõe a existência da alma antes do corpo; o argumento

ontológico que se baseia na semelhança da alma com as Idéias; algumas

objeções dos interlocutores e as respectivas réplicas; e o argumento final, que

se funda em argumentação mais sólida e refinada, como encerramento da série

de argumentações do diálogo.

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I. Sócrates, Platão e a centralidade da alma

Sócrates nasceu em 469 a. C. e foi executado em 399 a. C. Muito se sabe sobre

a vida e alguns traços da teoria desse pensador, mas nada próprio do autor,

visto que ele mesmo nada escreveu. Tudo que se conhece é por relatos de

pensadores posteriores a ele, geralmente discípulos, que relatavam seus feitos

e seus discursos: “seu órgão era a palavra. Por si mesmo, nunca plasmou por

escrito esta palavra oral”. 7

O problema geral da investigação socrática está na questão do saber, relatado,

por Platão, na inscrição presente no oráculo de Delfos e que orientava sua

filosofia: “Até agora não fui capaz de conhecer-me a mim mesmo, conforme

aquilo do oráculo de Delfos”; “É a alma, portanto, que nos recomenda

conhecer quem nos apresenta o preceito: Conhece-te a ti mesmo”.8

É possível perceber, pois, que a busca pelo conhecimento regia a reflexão

socrática. A partir desse ponto, Sócrates, como relata Platão na Apologia,

começa a buscar o saber junto aos políticos, poetas e artesãos, e descobre que

o verdadeiro saber está em admitir a própria ignorância: “quem sabe é apenas

o deus [...] se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser

considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus

provando que não há sábio nenhum”.9

Contudo, a busca de Sócrates pelo conhecimento não se encerrava no

reconhecimento de sua ignorância, isso o fazia, sim, executar uma prática

intitulada maiêutica, analogia ao trabalho da mãe, em que buscava partejar nos

outros o conhecimento:

7 Jaeger apresenta uma discussão acerca dos textos escritos sobre Sócrates. Para ele,

Xenofonte foi mais historiador que Platão ao escrever, mas mostra também que, para

alguns, “o maior erro da concepção dominante consiste em acreditar que Platão não

pretendeu pintar Sócrates tal como ele era realmente, mas quis antes apresentá-lo como o

criador das suas próprias idéias, alheias ao Sócrates histórico” In: JAEGER, Werner.

Paidéia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 500; 510. Segundo

essa concepção, a doutrina escrita de Platão nada mais é do que o aprofundamento das

proposições apresentadas por Sócrates. Outra corrente, porém, a exemplo de Reale, afirma

que a Apologia de Sócrates é histórica e o Fédon, que relata as últimas horas de Sócrates,

apresenta já a doutrina exclusiva de Platão. Huisman ainda coloca os diálogos Cármides e

Alcibíades como “reveladores de uma especificidade socrática”. In: HUISMAN, Denis.

Sócrates. São Paulo: Loyola, 2006, p. 92.

8 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:

EDUFPA, 2007, p. 48; 279.

9 PLATÃO. Fédon. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 73.

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A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença

de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar almas, não os

corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade da minha arte

consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na

iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e

verdadeiro.

Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria,

tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só

interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum

assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E a razão é a seguinte: a

divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de conceber. Por

isso mesmo, não sou sábio, não havendo um só pensamento que eu possa

apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz.10

Além da reconhecida ignorância própria descrita, esse trecho revela, paralelo

ao método maiêutico, a importância da dialética11 para Sócrates, como a forma

usada e tida por ele como necessária para alcançar o conhecimento. O método

socrático de discussão pelos diálogos atribui a Sócrates não uma invenção de

uma lógica no sentido teórico, mas lança os germes para futuras e importantes

descobertas nesse sentido. Já no que diz respeito ao problema da alma,

Sócrates fez grandes inovações no conceito apresentado por seus

predecessores.

Com Sócrates, o conceito de alma é entendido como eu e como consciência.

A partir de então, a alma deixa de simbolizar o espectro ou um traço exterior

do mundo para estar relacionada a interioridade do homem, um espírito que

pensa e que rege o ser humano nas decisões morais. A partir de Sócrates, a

alma torna-se ponto central da investigação filosófica, sobretudo no que tange

o contexto pós-morte.

A alma torna-se essencial na busca pelo conhecimento do homem, pois ela é o

reflexo da interioridade humana. Mas, talvez, a maior inovação socrática esteja

na idéia de cuidado da alma que está ligado a purificação espiritual. Há, nesse

10 Ibidem, p. 47.

11 “A dialética realiza-se, em Platão, de modo específico em cada diálogo, onde são

adotados procedimentos em vista a solução de um problema filosófico. É ao mesmo

tempo técnica e ciência, isto é, filosofia. No Fedro, a dialética é o método que permite

pronunciar discursos de modo correto. O processo dialético em geral individualiza a

estrutura da idéia que funda a realidade, examinando com o máximo de atenção os termos,

os graus de conhecimento, os gêneros supremos. O processo em geral compreende os

momentos sinótico e diairético. No primeiro, repõe-se a multiplicidade das coisas num

única idéia. No segundo, procede-se à divisão da idéia para determinar o quanto ainda é

necessário até alcançar a idéia em si”. In: PAVIANI, Jayme. Filosofia e método em Platão. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 253.

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ponto, uma revolução na tábua de valores, pois, os bens e males ganham

sentido quando colocados sob o governo da razão, ou seja, da alma:

Não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não

deveis vos preocupar com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer

outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e

muito virtuosa.12

A concepção trazida por Sócrates, no que tange a compreensão de alma é, de

certa forma, sutil e inovadora. Autores precedentes trouxeram concepções que

se aproximam daquelas por ele apresentada, mas ao apresentar dentro da

mesma linha de pensamento a dialética, o conhecimento de si, a alma como

razão e interioridade e o cuidado da alma, Sócrates redireciona o sentido ético

da filosofia e faz da vida do homem uma busca pela purificação da alma.

II. Platão e os dois mundos

Para tratar da alma em Platão, faz-se necessário apresentar, de forma breve,

sua teoria acerca da existência de dois mundos, pois a doutrina da alma está

estritamente ligada a esta diferenciação.

Platão resolve o problema histórico da divergência entre o devir de Heráclito e

a imutabilidade do ser de Parmênides, ao postular a existência de um mundo

inteligível, de coisas imutáveis, e do mundo sensível, submetido à mudança. O

mundo inteligível, chamado Hiperurânio13, é descrito por Platão na seguinte

passagem:

A região supraceleste nunca foi cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem

nunca poderá ser bastantemente enaltecida. O que há é o seguinte, pois é

preciso coragem para dizer a verdade. A essência que realmente existe é sem

corpo e sem forma, impalpável e só pode ser percebida pelo guia da alma, o

intelecto, sobre ser o objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui sua sede.

Ora, o pensamento de Deus, nutrido exclusivamente de inteligência e de

conhecimento puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se preocupa com

receber o conhecimento que lhe convém, alegra-se quando chega o tempo de

voltar a perceber a realidade, e se nutre com delícias da contemplação da

12 PLATÃO. Fédon. op. cit., p. 82.

13 “‘Hiperurânio’ significa ‘lugar acima do céu’, uma imagem que, entendida corretamente

naquilo que quer exprimir, indica um lugar que não é absolutamente um lugar no sentido

físico e sim um lugar meta-físico, isto é, a dimensão do supra-sensível. O ‘céu’ é o ‘visível’

(logo, o sensível); o ‘supercéu’ é o ‘supervisível’ (ou seja, o super-sensível ou, exatamente, o

metafísico)”. In: REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga volume II: Platão e Aristóteles.

São Paulo: Loyola, 1994, p. 79.

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verdade, até que o movimento circular a traga de novo ao ponto de partida. No

decurso dessa revolução contempla a justiça em si mesma, contempla a

temperança, o conhecimento, não o conhecimento passível de crescimento e

que difere de acordo com o objeto com que se relaciona e a que em nossa

curta existência damos a denominação de seres, mas o conhecimento do que

verdadeiramente existe.14

Nota-se que o mundo inteligível contém as verdades que realmente existem,

de forma que a alma as contempla. Platão apresenta, ao distinguir um mundo

sensível de outro inteligível, um dualismo, no sentido de que o supra-sensível

é causa de sensível, visto que seria contraditório este ser causa de si mesmo. O

Ateniense escreve, no Timeu, a caracterização do Hiperurânio:

[há de se convir] quanto a uma primeira realidade, a que tem forma imutável,

que não nasce e não perece, que não admite em si nenhum elemento

extrínseco, que não é perceptível nem pela vista, nem por outro sentido, aquilo

que só se é dado ao intelecto contemplar.15

O mundo inteligível, pois, não é de ordem concreta, mas tem o caráter ideal, é

um mundo das Idéias. Essas Idéias, contidas no mundo inteligível, tem o

caráter de imutabilidade, ou seja, são em si e por si, como apresenta o Filósofo

na República:

– [Dissemos] Que há muitas coisas belas, e muitas coisas boas e outras da

mesma espécie, que dizemos que existem e que distinguimos pela linguagem.

– Dissemos, sim.

– E que existe o belo em si, e o bom em sim, e, do mesmo modo,

relativamente a todas as coisas que então postulamos como múltiplas, e,

inversamente, postulamos que a cada uma corresponde uma ideia, que é única,

e chamamos-lhe a sua essência.

– É isso.

– E diremos ainda que aquelas são visíveis, mas não inteligíveis, ao passo que

as ideias são inteligíveis, mas não visíveis.

– Absolutamente.16

As Idéias são únicas e tem a propriedade de ser a essência das coisas múltiplas.

O fato de essas Idéias transcenderem o mundo sensível caracteriza que elas

são a razão de ser deste e que a imutabilidade e o em-si e por-si das Idéias

implicam a sua natureza absoluta. Assim, pois, as Idéias do mundo inteligível

têm o caráter imutável e, por serem em si, são causa do mundo sensível.

14 PLATÃO. op. cit., p. 72-73.

15 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. Tradução de Norberto de Paula Lima. Curitiba:

Hemus, 2002, p. 117.

16 PLATÃO. República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1996, p. 318.

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Existem seis características de cunho platônico e que explicam a existência das

Idéias: princípio da comunidade; princípio da separação; princípio da

autopredicação; princípio da pureza; princípio da exclusividade; e o princípio

da sublimidade.17

O princípio da comunidade é exposto na República: “[todas as Ideias] cada

uma, de per si, é uma, mas devido ao facto de aparecerem com combinação

com acções, corpos, e umas com as outras, cada uma delas se manifesta em

toda a parte e aparenta ser múltipla”.18 Esse princípio faz referência ao fato de

que a multiplicidade das Idéias se dá pela reprodução de uma Idéia particular,

o que explica o fato das Idéias múltiplas terem algo em comum.

O princípio da separação pode ser constatado no Banquete: “Começando pela

beleza daqui de baixo, ascender sempre mais alto em vista daquela suprema,

quase se valendo com que de degrau em degrau [...] e assim, chegando ao

término, o que é, em si, o belo”.19 Esse princípio representa a noção de

hierarquia entre as Idéias.

O princípio da autopredicação está representado no Hípias Maior: “Sei com

toda segurança, Sócrates, que o que eu disse é belo para todo mundo e que

sempre será assim mesmo [...] o belo sempre terá de ser belo”.20 As Idéias são,

pois, o ser que é verdadeiramente, o que permite a Platão explicar como as

elas explicam os entes, visto que, somente o que é em si pode explicar como

algo mais também o é.

O princípio da pureza está presente no Banquete:

Portanto, devemos acreditar que aconteça, dizia, se alguém visse o próprio belo

em si, simples, puro, imune [...] conseguiria ver a beleza em si, divina e

uniforme? [...] Não pensas, ao invés, que somente contemplando a beleza

como meio com que essa é visível poderá acontecer-lhe de gerar, não as

aparências das virtudes, enquanto não atinge uma aparência, mas a virtude

verdadeira, enquanto atinge a verdade?21

17 In: KENNY, Anthony. Uma nova história da Filosofia Ocidental Volume I: Filosofia antiga. São

Paulo: Loyola, 2008.

18 Ibidem, p. 256.

19 “cominciando dalle bellezze di quaggiù, ascendere via via sempre più alto in vista di

quella suprema, quasi valendosene come di gradini [...] e così, pervenendo al termine, si

conosca cio che è, in sé, il bello” (tradução livre). In: PLATONE. Simposio. Bari: Laterza:

1998, p. 91.

20 PLATÃO. Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:

EDUFPA, 2007, p. 384.

21 “Che dunque dovremo credere che accada, diceva, se ad uno avenisse di vedere próprio il

bello in sé, schietto, puor, immune [...] se proprio gli riuscisse di scorgere la bellezza in sé,

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Nesse princípio se explica o fato de que a Idéia não possui outra propriedade

além de ser Idéia, já que é superior a todos os entes e não há nada de superior

a ela. Na República constata-se o princípio da exclusividade: “Descobrimos,

portanto, ao que parece, que as múltiplas noções da multidão acerca da beleza

e das restantes coisas como que andam a rolar entre o Não-ser e o Ser

absoluto”.22 Com esse princípio, Platão quer dizer que casos particulares,

como a beleza, por exemplo, estão entre ser e não-ser a Idéia em si, ou seja,

somente a Idéia em si é de fato.23

Existe ainda o princípio da sublimidade, exposto no Fédon, quando Sócrates

recebe a resposta de que é necessário “que se mantenham sempre iguais, sem

nunca mudar”, à seguinte questão: “A igualdade, a bondade, a beleza e toda a

existência essencial, sofrem alguma mudança, por diminuta que seja, ou cada

uma delas, por ser pura e simples, mantém-se igual, sem apresentar a mínima

alteração nem mudança?”.24 Sobre esse princípio, Kenny escreve que “as

Idéias são eternas, não possuem partes, não sofrem mudança e não são

perceptíveis aos sentidos”.25

A respeito do mundo sensível, diz Platão no Timeu: “Uma segunda realidade

leva o mesmo nome: semelhante à primeira, mas submete-se aos sentidos,

nasce, está sempre em movimento, nasce num lugar determinado, para em

seguida desaparecer, é acessível à opinião unida à sensação”.26 O mundo

sensível é aquele que está sujeito à mudança, como o devir de Heráclito, não

tem o caráter de imutabilidade das Idéias.

A relação que se dá entre o mundo sensível e inteligível é de modelo e cópia:

“[obterás] no mundo visível, segundo sua claridade ou obscuridade relativa,

uma secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras”.27

Como as Idéias são causa e origem do mundo sensível, as imagens presentes

nele são como que sombras das Idéias em si e o mundo sensível participa do

inteligível por imitação, daí a relação modelo e cópia.

divina e uniforme? [...] Non pensi, invece, che solo in tal modo, contemplando la bellezza

col mezzo con cui essa è visible, potrà accadergli di generare, non apparenze di virtù, in

quanto non attinge un’apparenza, ma virtù vera, in quanto attinge la verità?” (tradução

livre). In: PLATONE. Simposio. op. cit., p. 91 - 93.

22 PLATÃO. op. cit., p. 264.

23 In: KENNY, Anthony. Op. cit.

24 PLATÃO. Fédon. op. cit., p. 143.

25 KENNY, Anthony. op. cit., p. 78.

26 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 117.

27 PLATÃO. República. op. cit., p. 313.

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A existência do mundo sensível passa pelo mundo inteligível, a criação parte

do mundo das Idéias, a partir de Deus. Contrariando as concepções de

Homero acerca dos deuses, na República, Platão apresenta traços da concepção

de Deus: “Deus, uma vez que é bom, não poderia ser a causa de tudo, [...]

Deus não é a causa de tudo, mas só de bens. [...] Deus é absolutamente

simples e verdadeiro em palavras e actos, e nem ele se altera nem ilude os

outros”.28 Deus é, na mesma obra, relacionado a Idéia de Bem, que é

aproximado, por Platão, ao Sol do mundo sensível:

Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que o bem

gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível, em relação à

inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à

vista e a o visível.[...] eles [o Sol e a Idéia do Bem] são dois e que reinam, um na

espécie e no mundo inteligível, o outro no visível.29

Posto que Deus, ou a Idéia do Bem, está no mundo das Idéias como o Sol

está para o mundo sensível, é possível entender a criação do Universo: “Ele

[Deus] era bom, e naquele que é bom nunca lhe nasce a inveja. Isento de

inveja, desejou que tudo nascesse o mais possível semelhante a ele”.30 Assim,

constata-se que o Universo, mundo sensível, foi criado devido a bondade de

Deus.

A criação não surge do nada, o que Deus faz é trazer a ordem à um caos já

instituído: “[Deus] excluiu, pelo seu poder, toda imperfeição, e assim, tomou

essa massa visível, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem

ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois estimou que a ordem vale

infinitamente mais que a desordem”.31 É importante salientar que, para

concepção platônica, já existia antes uma matéria caótica que foi ordenada.

Essa ação ordenadora é de Deus, mas ocorre pela ação do Demiurgo32. Como

o Deus dotou o cosmos de alma, devido ao fato de mover-se por si mesmo, o

28 Ibidem, p. 91; 98.

29 Ibidem, p. 310; 313.

30 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 80.

31 Ibidem, p. 80.

32 “Demiourgós – Demos, povo, e órgon, ação, obra, trabalho. [...] Demiurgo é todo aquele que

realiza um trabalho ou uma obra para os outros, exercendo um ofício manual. Por

extensão, todo aquele que produz ou cria alguma coisa (orador, médico, carpinteiro,

escultor, dançarino, músico etc.). É o artífice ou artesão. Como a primeira obra numa

cidade, é a produção das leis, o primeiro magistrado era chamado de demiurgo. Usa-se

também para referir-se à divindade criadora ou artífice do mundo”. In: CHAUÌ, Marilena.

Introdução à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras,

2002, p. 497.

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Demiurgo pode ser confundido como essa alma do mundo33, apesar de Platão

o colocar como arquiteto, o que talvez se dê pelo modo literário ou artístico

da escrita do Ateniense: “Todas as vezes então que o demiurgo, com o olhar

incessantemente fixado sobre o que é idêntico, serve-se de um tal modelo [...]

Ora, se o Cosmos é belo e se o demiurgo é bom, é claro que ele mira o

modelo eterno”.34

Note-se, pois, que o mundo sensível é ordenado a partir do mundo inteligível,

de forma que “este Cosmos é o mais belo do que já nasceu, e o demiurgo, a

mais perfeita das causas”.35 Conclui-se, pois, que o Bem cria o Demiurgo para

criar o mundo sensível e difundir o Bem, copiando as formas eternas na

matéria bruta, dando ordem e vida ao Cosmos, de forma que o mundo

sensível é um misto de seres imutáveis e matéria.

III. A alma humana

Após a análise da concepção dualista de Platão, podemos adentrar diretamente

em sua psicologia36, visto que a alma, para o Filósofo, está naturalmente ligada

ao mundo inteligível, mas relaciona-se com o mundo sensível ao cair em um

corpo. Este ponto tem o intuito de apresentar quais as especificações que o

Ateniense apresenta sobre a concepção de alma e traz uma sintética análise de

algumas obras do pensador e as expansões conceituais acerca das mesmas.

Como visto, no Timeu, Platão apresenta um conceito de alma do mundo, ou

seja, o cosmos tem vida, é dotado de alma, o que se dá pelo fato de a alma ser

princípio do movimento. Mesmo diferente da alma do mundo, a alma humana

tem essa mesma característica de ser princípio de movimento, como é possível

constatar no diálogo entre Clínias e o Ateniense nas Leis:

O ateniense: Qual é a definição daquele objeto que tem por nome alma? Será que

podemos dar-lhe outra definição além dessa indicada há pouco: o movimento

capaz de mover a si mesmo?

33 “A idéia de alma em Platão é central e tem estreita relação com o método dialético e os

demais pontos centrais da filosofia platônica. [...] Platão, ao falar da alma usa metáforas e

mitos. Um dos problemas da alma humana é o da sua imortalidade. A alma do mundo é

criada pelo demiurgo, e conforme se pode ler no Timeu não é a alma que está no corpo do

mundo, mas ao contrário, o corpo do mundo está na alma”. In: PAVIANI, Jayme. op. cit., p.

252.

34 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 78-79.

35 Ibidem, p. 79.

36 Esse termo, usado por Robinson (2007), faz referência ao estudo da alma.

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Clínias: O que desejas afirmar é que o auto-movimento é a definição daquela

mesmíssima substância que possui alma como o nome que universalmente lhe

aplicamos?

O ateniense: É o que afirmo. E se assim realmente for, ainda reclamaremos de

que não foi ainda suficientemente provado que a alma é idêntica à fonte e

movimento primários do que é, foi e será e de tudo que se opõe a esses,

constatando que foi claramente demonstrado ser ela a causa de toda mudança e

movimento de todas as coisas?

Clínias: Não faremos tal reclamação; pelo contrário, foi provado com máxima

suficiência que a alma, é de todas as coisas, a mais antiga, já que é o princípio

primeiro do movimento.37

Essa é uma das mais importantes funções da alma, pois, como princípio de

movimento, a alma dá a vida às plantas, animais e aos homens, “força que

mantém (échei) a natureza (physis)”.38 Com isso, Platão rebate a busca por um

princípio material do movimento dos físicos pré-socráticos, delegando à alma

a fonte do mover-se. “Concluindo, pois, o princípio do movimento é o que a

si mesmo se move. Não pode desaparecer, nem formar-se; do contrário o

universo e todas as gerações parariam, e nunca mais poderiam ser movidos”.39

A passagem acima, retirada do Fedro, denota ainda outro aspecto da alma

apresentado na obra de Platão: a alma como causa de todas as coisas. No

Epínomis, o Filósofo afirma: “a alma é causa universal e que todas as coisas

boas têm causas que são boas, enquanto coisas más têm causas distintas, que

são más, não será de surpreender-se que a alma seja a causa de toda órbita e

movimento”.40 O próprio Platão, nas Leis, escreve que essa constatação dá o

direito de afirmar a existência de várias almas, ao menos duas, “a alma

benevolente e aquela que é capaz de produzir efeitos do tipo oposto”.41

Contudo, mesmo que seja princípio de movimento e causa de todas as coisas,

a alma humana foi criada por Deus, com uma natureza análoga, mas menos

perfeita que a alma do todo. No Timeu, Platão apresenta o mito que descreve a

criação das almas. Após a criação de diversos seres, Deus via que o universo

estava inacabado e precisava criar uma parte dos seres que fizesse parte do

Todo, relacionada ao divino, que estaria presente na parte mortal, a qual foi

37 PLATÃO. As leis e epínomis. Trad. de Edson Bini. Bauru – SP: EDIPRO, 1999, p. 413.

38 PLATÃO. Teeteto - Crátilo. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001, p.

169.

39 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 70.

40 PLATÃO. As leis e epínomis. op. cit., p. 534.

41 Ibidem, p. 414.

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delegada por Deus aos deuses criados formar, a fim de que o universo se

tornasse absolutamente perfeito. Segue o relato da construção das almas:

Disse essas palavras e, retornando à cratera na qual inicialmente havia

misturado e fundido a Alma do Todo, aí verteu os resíduos das primeiras

substâncias e as misturou aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não

havia mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente a segunda e a

terceira.

Depois, tendo a tudo combinado, dividiu num número de almas igual aos dos

astros. Distribuiu essas almas a cada um dos astros, aí postou-as como num

carro e ensinou-lhes a natureza do Todo. Notificou-as das leis dos fados; que o

primeiro nascimento seria estabelecido idêntico para todos os seres a fim de

que nenhum fosse por ele menos bem tratado; que as almas, semeadas pelos

instrumentos de Kronos, cada uma no que lhe convinha, deveriam dar

nascimento ao vivente, de todos o mais capaz de honrar a Deus.42

Deus criou as almas para tornar a criação perfeita e para que ela honrasse a

Deus, de forma que não diferenciou as almas umas das outras. O fato de o

primeiro nascimento ser idêntico para todas as almas, denota que todos os

seres são bons, característica da perfeição na justiça divina. As diferenciações

no que diz respeito às almas, portanto, não ocorre na criação das mesmas, mas

é nas respectivas encarnações nos corpos que as almas se individualizam.43

Uma função importante da alma é a relação dela com o conhecimento, visto

que ela tem a capacidade de apreender a essência, como aparece no Teeteto e na

Carta sétima: “A meu parecer, é a alma sozinha e por si mesma que apreende o

que em todas as coisas é comum”44; “Como há dois princípios, a essência e a

qualidade, o que a alma procura conhecer não é a qualidade, mas a essência”.45

O próprio ato de pensar é, para Platão, um discurso da alma consigo mesma:

Um discurso que a alma mantém consigo mesma, acerca do que ela quer

examinar. Como ignorante é que te dou essa explicação; mas é assim que

imagino a alma no ato de pensar: formula uma espécie de diálogo para si

mesma com perguntas e respostas, ora para afirmar ora para negar. Quando

emite algum julgamento, seja avançado devagar seja um pouco mais depressa, e

nele se fixa sem vacilações: eis o que denominamos opinião. Digo, pois, que

formar opinião é discursar um discurso enunciado, não evidentemente, de viva

voz para outrem, porém em silêncio para si mesmo.46

42 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 101-102.

43 In: PAULO, Margarida Nichele. Indagação sobre a imortalidade da alma em Platão. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 1996.

44 PLATÃO. Teeteto - Crátilo. op. cit., p. 101.

45 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 183.

46 PLATÃO. Teeteto - Crátilo. op. cit., p. 108.

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Pela sua proximidade com o mundo inteligível, a alma tem a capacidade de

conhecer a essência das coisas, o que é comum a tudo, de forma que as

sensações são impressas como cera. Contudo, uma das mais importantes

características da alma que Platão apresenta é sua tripartição, a saber: irascível,

concupiscível e racional.

No Timeu, Platão escreve que a alma irascível é a “parte da alma que participa

da coragem e ardor guerreiro, aquela que deseja a vitória, alojaram mais perto

da cabeça, entre o diafragma e o pescoço”.47 No que segue a descrição, o

autor apresenta essa parte da alma como uma intermediária entre a razão e os

desejos e é tida pelo Filósofo com aquela parte da alma pela qual se irrita, além

de ser mortal.

T

ambém mortal, a parte da alma chamada concupiscível, ou apetitiva, tem sua

criação assim descrita no Timeu: “A parte da alma que tem o apetite do comer

e do beber, e de tudo que o corpo tem necessidade natural, os deuses alojaram

na região que se estende depois do diafragma, e que é limitada pelo umbigo”.48

Na República, essa parte da alma é amiga do dinheiro e tem esse nome devido

“à violência dos desejos relativos à comida, à bebida, ao amor e a tudo quanto

o acompanha”.49 Essa parte da alma é responsável pela virtude da temperança,

que se limita a imitar os outros e corresponde à classe de camponeses,

artesãos e comerciantes.

A terceira parte da alma e mais importante é aquela que tem relação com o

divino, a alma racional, também chamada de espiritual ou intelectiva, assim

descrita na República: “chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento

racional da alma”.50 Situada na cabeça, essa parte da alma tem como virtude a

sabedoria, ou seja, a contemplação do Bem Ideal para praticá-lo, de forma que

é relacionada com a classe dos filósofos e regentes, que dirigem e administram

o estado.

Mas qual é a relação entre alma, ligada ao divino, e o corpo, ligado a matéria?

No Timeu, é possível ler a passagem em que Platão afirma como a alma foi

ligada ao corpo, na qual, pela ação dos deuses criados, que, “imitando seu

autor, e tendo recebido dele o princípio imortal da alma, envolveram esse

princípio com o corpo mortal que o acompanha; deram-lhe por veículo todo

47 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 150.

48 Ibidem, p. 151.

49 PLATÃO. República. op. cit., p. 428.

50 Ibidem, p. 198.

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o corpo. Depois, conformaram nele outra espécie de alma, a espécie mortal”.51

No Crátilo, Platão apresenta especificamente a relação que há entre alma e

corpo:

Uns afirmam que o corpo (sôma) é a sepultura (sema) da alma, por estar a alma

em vida sepultada no corpo, ou então, por ser por intermédio do corpo que a

alma dá expressão ao que quer manifestar (semainei), é muito apropriado esse

mesmo nome (sema) com o significado de sinal, que lhe foi dado. Porém que

me parece mais provável é que foram os órficos que assim denominaram, por

acreditarem que a alma sofre castigo pelas faltas cometidas, sendo o corpo uma

espécie de receptáculo ou prisão, onde ela se conserva (sôzetai) até cumprir a

pena cominada; nessa hipótese não será preciso alterar uma só letra.52

O corpo é, pois, uma espécie de prisão para a alma, o veículo pelo qual age a

alma no mundo sensível. Ainda nas Leis, Platão reconhece como verdadeira

“essa prioridade de origem que reconhecemos à alma relativamente ao corpo,

e essa situação segunda e posterior do corpo, já que pela natureza o comando

é da alma e cabe ao corpo se submeter”.53 Como veículo, a alma que tem

prioridade sobre o corpo, que se submete, outro traço do dualismo platônico.

Assim, a alma tem por dever modelar o corpo à seu modo, pois ela é o

princípio do movimento, causa da vida expressa nas sensações, nos

sentimentos, vontade e reflexão.

Mas Platão não se limita a apresentar a criação e relação entre alma e corpo,

uma parte importante de sua investigação é escrever a respeito da saúde de

ambos. A respeito do corpo, a doença é assim apresentada no Timeu: “quando

a própria substância da medula está doente, pelo efeito de alguma privação ou

excesso, ela produz as doenças mais graves, e que são as principais causas da

morte. Pois então, toda a substância do corpo se dissipa necessariamente”.54 A

saúde, pois, do corpo, se dá pela educação do mesmo, como se pode constatar

também no Timeu:

Por conseguinte, de todos os meios de purificação e dispor o corpo, o melhor

é aquele que se obtém pelos exercícios ginásticos. O segundo depois desse

consiste no balanço ritmado que nos é impresso por um braço, ou quando nos

fazemos carregar de um modo qualquer, sem fadiga. A terceira forma, que

pode ser por vezes muito útil quando se é constrangido a empregá-la, mas da

qual jamais um homem de bom senso deve fazer uso sem necessidade, é a

51 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 149.

52 PLATÃO. Teeteto - Crátilo. op. cit., p. 169-170.

53 PLATÃO. As leis e epínomis. op. cit., p. 414.

54 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 172.

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mediação pelas drogas depurativas. Pois não se deve irritar as doenças com

remédios quando elas não oferecem grandes perigos.55

A saúde do corpo se dá antes pela prevenção através da ginástica, depois pelo

que Platão chama, na República, de dança e, por último, pelo uso de

medicamentos. Contudo, “o corpo não se trata por meio do corpo, pois não

seria possível que eles fossem ou se tornassem doentes – mas o corpo por

meio da alma”56 – portanto a saúde do corpo não tem sentido se a alma

estiver doente. A respeito das doenças da alma, escreve Platão:

Deve-se admitir que a doença própria da alma é a demência: uma é a loucura,

outra é a ignorância. Por conseguinte, toda afecção que comporta um ou outro

destes distúrbios, deve ser chamada doença, e deve-se admitir que os prazeres e

as doenças excessivas são, para a alma, as mais graves das doenças. Pois, feliz

em extremo, ou, sofrendo pelo efeito da dor, a paixão contrária, o homem,

quando se apressa inoportunadamente a atingir um objeto ou fugir de outro, é

incapaz de ver bem ou de escutar bem seja lá o que for: torna-se desesperado e

impróprio para o menor raciocínio. [...] a sensualidade imoderada é, em grande

parte, uma doença da alma, provocada pelas propriedades de certa substância

que se escoa pelo corpo e o umecta através da porosidade dos ossos.57

A respeito desse trecho do Timeu, há dois grupos de enfermidades: o primeiro

procede do excesso de dores ou prazeres; o segundo provém também do

excesso, mas de esperma, responsável por prazeres, dores e paixões ilimitadas.

Por fim, é “pelo efeito de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma

educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que é”.58 Platão

assinala que a alma pode ter misérias por causa do corpo e deve-se, portanto,

fugir da maldade em busca da virtude, através da aquisição da saúde da alma,

assim exposta:

Deve-se então velar para que elas [as almas] tenham todos os movimentos

proporcionados uns aos outros. A respeito dessa espécie de alma que é a

principal em nós, deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos fez

presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual dissemos que habita a

parte mais elevada de nosso corpo.

Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma nos eleva acima da

terra, em razão de sua afinidade com o céu, pois nós somos uma planta não

terrestre, mas celeste. [...] quando um homem cultivou em si mesmo o amor da

ciência e dos pensamentos verazes, quando, de todas as suas faculdades,

exerceu principalmente a capacidade de pensar nas cousas imortais e divinas,

tal homem, se vier a tocar a verdade, é sem dúvida absolutamente necessário

55 Ibidem, p. 179-180.

56 PLATÃO. República. op. cit., p. 146.

57 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 175-176.

58 Ibidem, p. 176.

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que, na medida em que a natureza humana pode participar da imortalidade,

possa dela fruir inteiramente. [...] Ora, o cuidado que ele deve guardar é

idêntico para todos: dar a cada parte os alimentos e os movimentos que lhe são

próprios.59

Platão trata da parte imortal da alma responsável pela saúde da mesma. Esse

cultivo do amor da ciência e dos pensamentos verazes que o autor fala, diz

respeito ao exercício da Filosofia: “quando toda a alma obedece à parte

filosófica e não se revolta contra nenhuma parte, é-lhe possível cumprir em

tudo as suas funções e ser justa”.60 Logo, para se haver a saúde específica da

alma, é preciso o exercício do pensar as Idéias, característica da parte racional

da alma.

A saúde, tanto da alma quanto do corpo, se dá pela harmonia entre ambos: o

remédio é “não mover nunca a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma, a

fim de que, defendendo-se uma contra a outra, essas duas partes guardem seu

equilíbrio e sua saúde”.61 A essa harmonia, a justa medida, é aquela que deve ser

instaurada entre corpo e alma, de forma que uma medida diversa implica em

várias enfermidades.

Ao conceber o homem, Platão, no Primeiro Alcibíades, é categórico em afirmar

que, “uma vez que o homem não é nem corpo, nem o conjunto dos dois

[corpo e alma], só resta, quero crer, ou aceitar que o homem é nada, ou, no

caso de ser alguma coisa, terá de ser forçosamente a alma”62, o que faz com

que a alma seja o componente essencial da antropologia platônica. Contudo, a

existência da alma não se resume à vivência sob a prisão do corpo, mas tem

uma existência anterior e posterior a esta no mundo sensível. Cabe, pois,

apresentar a teoria de Platão acerca da alma na sua vivência extra-corpo.

V. A metempsicose

Ao apresentar traços da doutrina órfico-pitagórica63, Platão escreve que, após

Deus ter criado as almas, elas têm sua existência no mundo das Idéias, mas,

59 Ibidem, p. 181-182.

60 PLATÃO. República. op. cit., p. 440 – 441.

61 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 178.

62 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 278.

63 “Pitágoras parece ter sido o primeiro filósofo a sustentar a doutrina da metempsicose, quer

dizer, a doutrina segunda a qual a alma, devido a uma culpa originária, é obrigada a

reencarnar-se em sucessivas existências corpóreas (e não apenas em forma humana, mas

também em formas animais) para expiar aquela culpa. Os testemunhos antigos registram,

entre outras coisas, que ele dizia recordar-se de suas vidas anteriores. Como sabemos, a

doutrina provém dos órficos. Mas os pitagóricos modificaram o orfismo pelo menos em

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por razões ligadas a ocorrências no Hiperurânio, caem e são ligadas a um

corpo sensível. Após a morte desse corpo, elas são julgadas e tem a

possibilidade de retornar ao mundo Ideal ou de uma nova encarnação, o que

depende da forma de vivência no mundo sensível. Nesse ponto, tratar-se-ão

os traços específicos da teoria da metempsicose platônica, através,

especialmente, dos mitos64 do Carro Alado e de Er.

A apresentação e aceitação da separação entre alma e corpo defendida por

Platão, tornou mais tranqüila a argumentação da doutrina sobre a

preexistência da alma e a metempsicose. A respeito da preexistência da alma,

Platão, no Fedro, adentra no que ele chama de assunto divino e apresenta o

mito do Carro Alado, que versa a respeito da natureza da alma, nos seguintes

termos:

[Alma] assemelha-se a uma força natural de uma parelha de cavalos alados e de

seu cocheiro. Os cavalos dos deuses e os respectivos aurigas são bons e de

elementos nobres, porém os dos outros seres são compostos. Inicialmente, no

nosso caso o cocheiro dirige uma parelha desigual; depois, um dos cavalos da

parelha é belo e nobre e oriundo de raça também nobre, enquanto o outro é o

contrário disso, tanto em si mesmo como por sua origem. Essa a razão de ser

entre nós tarefa dificílima a direção das rédeas. De onde bem a ser denominado

mortal e imortal o que tem vida, é o que procurarei explicar. Sempre é a alma

toda que dirige o que não tem alma, e, percorrendo a totalidade do universo,

assume formas diferentes, de acordo com os lugares.

Quando é perfeita e alada, caminha nas alturas e governa o mundo em

universal. Vindo a perder as asas, é arrastada até bater nalguma coisa sólida,

onde fixa a moradia e se apossa de um corpo de terra, que pareça mover-se por

si mesmo, em virtude da força própria da alma. Essa composição tem o nome

de animal, a alma e o corpo ajustados entre si, e é designada como mortal. A

imortal não pode ser compreendida racionalmente.65

O auriga pode significar a razão, a parte intelectiva da alma e os dois cavalos

as funções irascível e concupiscente dela e ainda assinala que, além da

referência à tripartição da alma, o mito também mostra a contingência do ser

humano, concluindo que a alma racional eleva o ser humano e o aproxima do

divino, mas é-lhe subtraído esse poder com a perda das asas.

um ponto essencial. O fim da vida é libertar a alma do corpo. E, para alcançar esse fim, é

preciso purificar-se”. In: REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga volume I: das origens a

Sócrates. São Paulo: Loyola, 1993, p. 87.

64 “Platão tem um grande respeito pelos mitos primitivos e certa suspeita pelas lendas

mitológicas de seu tempo. O mito primitivo guarda seu saber original. Os diálogos

platônicos intercalam em suas reflexões os processos dialéticos com mitos famosos,

alegorias e outras estórias”. In: PAVIANI, Jayme. op. cit., p. 255.

65 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 71.

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A virtude natural da asa consiste em levar o que é pesado para as alturas onde

habita a geração dos deuses, sendo ela, de tudo que se relaciona com o corpo,

o que em mais alto grau participa do divino. [...] Zeus, o guia supremo, abre a

marcha no céu com o seu carro alado, ordenando tudo e de tudo cuidando,

seguido por um exército de deuses e demônios, repartidos em onze grupos. [...]

Sempre que vão banquetear-se nos festins, galgam a escarpa da abóbada

celeste; nessas ocasiões as parelhas dos deuses, por serem equilibradas e de fácil

direção, sobem depressa, enquanto as outras só o fazem com dificuldade, pois

o corcel de raça ordinária, quando não foi devidamente educado pelo auriga,

em vista de seu peso puxa o carro para a terra. É a mais árdua provação com

que a alma se defronta. As almas denominadas imortais, uma vez alcançando o

vértice, passam para o outro lado e se postam, assim, no dorso da abóbada

celeste, e, uma vez ali chegadas, a revolução do céu as arrasta no seu curso,

contemplando elas as realidades que se encontram para além do céu.66

Zeus conduz as almas no caminho da verdade e a perda das asas simboliza

que estas, com a força natural de elevar o pesado, são, entre todos os

elementos do corpo, o que de mais alto grau participa do divino. Nota-se

ainda que os deuses não sofrem limitação, já as outras almas dependem da

educação que recebem do auriga (parte racional), ou seja, a parte inteligível da

alma tem a função de bem educar a parte concupiscente e a irascível. Por fim,

Platão, após uma breve descrição pormenorizada da vida dos deuses, faz

outras constatações acerca da preexistência das almas humanas:

Das outras almas, a dos homens, a que melhor se esforça por acompanhar os

deuses e com eles parecer-se eleva a cabeça do cocheiro para o outro lado do

céu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porém, perturbada pelos

cavalos, mal pode contemplar as essências. A segunda melhor ora se ergue ora

se abaixa, mas, sempre atarefada com os cavalos, percebe umas tantas essências

e deixa passar outras.

As demais almas também desejam ardentemente alcançar a parte superior e se

afanam nesse sentido; porém, não sendo suficientemente fortes, caem para a

parte inferior da abóbada, amontoam-se, machucam-se, procurando cada uma

passar à frente da vizinha. A confusão é enorme; há luta e o suor escorre em

bagas e, por falta de perícia dos cocheiros, muitas almas ficam estropiadas e

chegam a perder parte das asas. [...] A lei da Adrasteia é a seguinte: toda alma

que, no séquito de algum deus, consegue contemplar algo das verdadeiras

realidades fica livre de padecimentos até à revolução seguinte, e se sempre

conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa nenhuma.67

66 Ibidem, p. 71-72.

67 Ibidem, p. 73-74.

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Essas verdades de que o texto se refere são as Idéias e o grau de perfeição da

vida humana em que a alma se encarnar, depende da quantidade que ela

contemplou no Hiperurânio. Na seqüência da descrição, o Ateniense

apresenta ainda as classes graduadas de encarnação dentro de um estado, a

saber: filósofos ou cultor das Musas68 para a primeira classe; a segunda dará

um rei legítimo, potentado ou guerreiro; a terceira um político, ecônomo ou

comerciante; a quarta um ginasta ou médico; a quinta de um adivinho ou

iniciado em mistérios; a sexta um poeta ou ator; a sétima um artista ou

lavrador; a oitava um sofista ou demagogo; a nona e mais inferior, um tirano.

No Timeu, Platão apresenta de forma sucinta a primeira encarnação das almas,

onde se tem o primeiro nascimento igual para todas as almas, sem

favorecimento, ao sair das mãos do Demiurgo. No relato, o Filósofo

diferencia a encarnação de homens e mulheres: “a natureza humana seria

dupla e que, dos dois sexos, o mais vigoroso seria o que receberia mais tarde o

nome de sexo masculino”.69 Segue o relato que, por obra da necessidade70, as

almas são implantadas nos corpos e, caso o domine, viverá na justiça e, o

contrário, levará à injustiça.

Livre para agir virtuosamente ou não, a alma encarnada é responsável pelo seu

destino pós-morte. Nesse sentido, Platão começa a fazer referência a castigos

para aquelas almas que se deixaram levar pela parte irracional: “a cada

castigado, quando lhe impõem a pena acertada, o que compete é ou tirar

proveito e tornar-se melhor, ou servir de escarmento a outros [...] chega-lhes o

proveito através de sofrimentos e dores, aqui e no Hades”.71 Platão resolve o

68 “A palavra grega, Musa, tem relação etimológica com música, sendo estas as deusas que

inspiram o canto. [...] São elas, Calíope (voz harmoniosa) que preside à poesia épica, Clio

(célebre), à história; Polímnia (muitos cantos), à retórica; Euterpe (alegre), à música; Terpsícore

(alegria da dança), à dança; Érato (amável), à lírica coral; Melpômene (canto), à tragédia; Talia

(abundância), à comédia; Urânia (celeste), à astronomia”. In: NUNES, Carlos Alberto.

HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.

423-424.

69 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 102.

70 “A necessidade deve entender-se, aqui, nos dois sentidos que esta palavra pode ter em

Platão. Ela exprime primeiramente as leis essenciais do Devir, tais como são inscritas nas

Formas. Mas, desde que as almas saem das mãos do Demiurgo, desde que se tratar de

implantá-las em corpos, a Necessidade inteligível vai encontrar a causa errante, a

Necessidade mecânica e cega: é esta que estabelece as ‘leis’ das reencarnações, é dela que

depende a adjunção, feita à alma imortal, de uma alma e de um corpo mortais, é ela que

mergulha a alma ao contato do mundo corporal, numa perturbação profunda”. In:

GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963,

p. 90-91.

71 PLATÃO. Górgias. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Difel, 1970, p. 189-190.

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problema de justificar o sofrimento dos bons e a prosperidade dos injustos,

visto que “uma vida futura é vista como ápice da justiça divina inexorável.

Os mitos platônicos sobre o destino das almas apresentam, de forma geral,

que o justo merece no além um prêmio, o injusto um castigo. No Fedro, Platão

já apresenta traços de uma explicação escatológica a respeito das almas e

coloca uma divisão temporal para a reencarnação ou retorno à contemplação

do mundo ideal, como segue:

Cada alma não retorna ao ponto de partida senão depois de decorridos dez mil

anos, nem recupera as asas antes desse prazo, com exceção de quem se

dedicou a filosofia e dos que votaram aos jovens afeição verdadeiramente

filosófica. Nesses casos, no terceiro período de mil anos, se três vezes a fio elas

escolherem o mesmo gênero de vida, voltam a adquirir asas e dali se afastam

no fim de três mil anos. As demais, escoado o termo da primeira existência, são

submetidas a julgamento, depois do qual umas tantas descem para prisões

correcionais embaixo da terra, a fim de cumprirem a pena cominada, enquanto

outras, aligeiradas pela sentença, são conduzidas para determinado lugar do

céu, onde levam uma vida digna do que a anteriormente vivida sob forma

humana.72

Vês-se que as reencarnações têm períodos delimitados de acontecerem, isto é,

a cada mil anos, além da possibilidade de um retorno ao mundo ideal após dez

mil anos ou após três reencarnações dedicadas à filosofia. O lugar no qual as

almas vivem com os Deuses (e para onde voltam depois de dez mil anos) é

totalmente diferente do lugar no qual gozam do prêmio milenário

correspondente a cada vida que viveram.

Como o destino de uma alma justa é de prêmios celestes, o corpo um castigo

para a alma e a Filosofia o meio capaz de oportunizar à alma um retorno à

contemplação do mundo ideal após três reencarnações, a Filosofia é, pois, a

preparação para a morte: “daqui nasce para nós o dever de procurar fugir

quanto antes daqui para o alto [...] tornar-se o mais possível semelhante a

Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com

sabedoria”.73 Logo, o filósofo não adianta a morte, mas anseia por ela, pois, a

verdadeira filosofia é o exercício de morrer.

72 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 74-75.

73 PLATÃO. Teeteto - Crátilo. op. cit., p. 86.

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Na República, há um relato minucioso a respeito do destino escatológico das

almas. O relato apresenta os acontecimentos após um ciclo de mil anos,

narrado por Er74, onde as almas se reúnem para determinar o seu futuro:

Contava ele que, depois que saíra do corpo, a sua alma fizera caminho com

muitas, e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas

aberturas contíguas uma à outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas.

No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a

sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita e, que

subia para o céu, depois de lhes terem atado à frente a nota do seu julgamento;

ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e para baixo,

levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito.75

Er foi nomeado mensageiro junto aos homens. Ele acompanhava algumas

almas vindas puras do céu, outras sujas da terra, as últimas chorando ao

lembrar os sofrimentos e as primeiras alegrando-se pelo que contemplaram.

Segue a descrição sobre o destino de Ardieu, famoso tirano, precipitado no

tártaro76 e como estava posta a Necessidade com suas Parcas Láquesis, Cloto e

Átropos77, arranjadas ordenadamente em seus lugares. Após essa descrição,

Platão continua a narração de Er e descreve o que aconteceu depois das almas

terem ido junto à Láquesis:

Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, vai

começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um génio

que vos escolherá, mas vós que escolhereis o génio. O primeiro a quem a sorte

couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela

necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor

grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe.

O deus é isento de culpa.78

74 “Er o Arménio, Panfílio de nascimento. Tendo ele morrido em combate, andavam a

recolher, ao fim de dez dias, os mortos já putrefactos, quando o retiraram em bom estado

de saúde. Levaram-no para casa para lhe dar sepultura, e, quando ao décimo segundo dia,

estava jazente sobre a pira, tornou à vida e narrou o que vira no além”. In: PLATÃO.

República. op. cit., p. 488.

75 PLATÃO. República, op. cit., p. 488.

76 “Abismo de tormentos para os maus e para aqueles que ofendiam seriamente a Zeus ou

mesmo atentavam contra sua soberania”. In: BINI, Edson. PLATÃO. As leis e epínomis.

Trad. de Edson Bini. Bauru – SP: EDIPRO, 1999, p. 427.

77 “Moira: Também chamadas de Destino ou Parcas, personificam o destino individual. Na

época de Homero é considerada com uma única Moira que nem os deuses podem

desobedecer, mas vão gradualmente se transformando em três mulheres que tecem o fio do

destino. São chamadas de Átropo (inflexível), Cloto (Fiandeira) e Láquesis (Sorteadora) e

regulavam o tamanho da vida do homem”. In: NUNES, Carlos Alberto. op. cit., p. 423.

78 PLATÃO. República, op. cit., p. 493.

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Nota-se que não são os deuses que determinam o destino de cada alma, mas é

cada um que escolhe o seu. Platão revoluciona e tira dos deuses e da

Necessidade a responsabilidade sobre o destino das almas, tanto que os

“paradigmas da vida” não são determinados, mas recomendados às almas. Eis

a passagem que descreve a proposição e escolha dos destinos:

Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vidas, em número

muito mais elevado do que o dos presentes. Havia-os de todas as espécies:

vidas de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. [...] Ora,

então, anunciou o mensageiro do além, o profeta falou deste modo: Mesmo

para quem vier em último lugar, se escolher com inteligência e viver

honestamente, espera-o uma vida apetecível e não desgraçada. Nem o primeiro

deixe de escolher com prudência, nem o último com coragem.79

O sentido desse relato está no fato de atribuir à alma a escolha do seu destino,

de forma que as pressuposições de cada indivíduo também podem interferir

na opção. Em seguida, o Ateniense apresenta alguns modelos de vida e, após a

mensagem do profeta, a escolha das almas e seus destinos, de forma que até

almas vindas do céu deixavam-se levar por aparências de vidas boas, além de

relatar as escolhas de ilustres personagens. Na seqüência é narrado o fim do

relato:

Assim que todas as almas escolheram as suas vidas, avançaram, pela ordem da

sorte que lhes coubera, para junto de Láquesis. Esta mandava a cada uma o

gênio que preferira para guardar a sua vida e fazer cumprir o que escolhera. [...]

Quando já entardecia, acamparam junto do Rio Ameles, cuja água nenhum

vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber uma certa quantidade dessa

água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda bebem mais do que a

medida. Enquanto se bebe, esquece-se de tudo.80

Por fim, Platão relata que Er foi impedido de beber a água do rio do

esquecimento e escreve que se deve buscar o alto a fim de alcançar a felicidade

após a viagem de mil anos. A escolha depende do conhecimento das almas, ou

seja, da filosofia, de forma que esta ciência salva em qualquer dos dois

mundos, o que dá sentido a vida no mundo sensível é o destino escatológico

da alma, de forma que a vivência corpórea tem sentido somente em relação à

ideal.

Mas como se daria a reencarnação e a existência da alma no mundo inteligível

se a psyche fosse mortal? Aqui entra a centralidade do problema acerca da

imortalidade da alma, que Platão apresentou especificamente no Fédon, mas

79 Ibidem, p. 494-495.

80 Ibidem, p. 499.

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também argumentou a esse respeito em outras três obras. Para tanto,

traçaremos uma breve descrição dos argumentos acerca da imortalidade da

alma na República, no Fedro e nas Leis.

V. A imortalidade da alma

A doutrina de Platão está fundamentada na existência do mundo das Idéias,

na existência desse mundo inteligível. A alma é um pressuposto, pois ela

contempla as Idéias em si, de forma que, se a alma for mortal, mortal também

será o Hiperurânio, logo, a existência do mundo ideal está condicionado à

imortalidade da alma. Os argumentos platônicos não são provas racionais

rigorosas, porém hipóteses, convicções, crenças, o que não tira o valor das

obras platônicas.

No Fedro, é oferecida uma prova da imortalidade da alma baseada

especificamente no fato de ela ser princípio do movimento. O movimento é

sinônimo de vida para Platão, visto que é conseqüência do fato de a alma ser

princípio da vida, de forma que ele não pode acabar. O argumento é assim

exposto pelo Ateniense:

A alma toda é imortal, pois o que move a si mesmo é imortal; porém o que

movimenta outra coisa ou é movido por outra coisa, deixa de viver quando

cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo fato de

nunca abandonar-se, é que não pára de mover-se, como é fonte e princípio de

movimento para tudo o que recebe movimento do de fora. Só o princípio de

movimento não é gerado; muito ao revés disso: dele, necessariamente, é que se

origina tudo o que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, porque

se se originasse de alguma coisa, não seria princípio.

Surge daí, ser princípio de movimento o que se movimenta a si mesmo; donde

se colhe que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob pena de

cair e parar todo o céu e toda a geração, que nunca mais encontrariam outra

fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que se

movimenta por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que

nisso consiste a essência e a própria idéia da alma. Todo corpo que recebe de

fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si

mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza

da alma. Ora, se as coisas se passam realmente, desse modo, se a alma é o que a

si mesmo se movimenta, necessariamente a alma não pode ser gerada e é

imortal.81

O argumento da alma automovente está associado à experiência de Platão,

enraizado na tradição pré-socrática. Há algumas dificuldades com relação a

81 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 70.

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afirmação “alma toda”, pois não especifica se essa prova diz respeito à todas

as almas ou à totalidade da alma individual, ou talvez faz referência à alma em

qualquer forma. Enfim, ele resume essa prova em três estágios: o eternamente

movente é automovente; o automovente é imortal; a alma é automovente e,

portanto, imortal.

Nas Leis, Platão desenvolve todo um argumento que visa apresentar que a

alma move-se a si mesmo, que o corpo se submete à alma e de que ela é causa

de todas as coisas. Para tanto, ele baseia-se na preexistência da alma e na

separação entre alma e corpo, de forma que, se a alma é o que dá origem à

todas as coisas e principia o movimento, ela não pode ser atacada por aquilo

que está mais distante do divino, ou seja, o corpo, o que faz com que a alma

não seja sujeita à destruição. Nesse caso, como anseia por agradar os deuses, o

ser humano deve “compreender as duas verdades que agora formulamos, a

saber, que a alma é a mais anterior de todas as coisas que participam da

geração, e que é imortal e comanda todos os corpos”.82

Na República, é desenvolvido um argumento baseado na relação entre alma e

corpo e a implicância do mal. Platão apresenta que o corpo não perece pela

má qualidade dos alimentos, por exemplo, mas por um mal dele próprio, no

caso, a doença que foi provocada pelo alimento. Da mesma forma, a alma não

é destruída por causa externa, mas teria que lhe haver um mal que lhe é

próprio, como a injustiça ou impiedade. Ainda, que um mal da alma não leva

ninguém à morte, pois, se assim fosse, a injustiça seria mortal, de forma que

os injustos morreriam antes que os justos. No diálogo com Gláucon, Sócrates

ratifica o argumento:

– [...] Desde que a perversidade própria e o mal próprio não são capazes de

matar e destruir a alma, dificilmente o mal predisposto para a destruição de

outra coisa perderá a alma ou qualquer outra coisa, excepto aquela a que está

afecta.

– Dificilmente, ao que parece.

– Logo, quando uma coisa não perece devida a um mal, quer lhe seja próprio,

quer estranho, é evidente que é forçoso que exista sempre. E, se existe sempre,

é imortal.83

O mal de algo produz a sua destruição, como acontece com os males do

corpo, diferente da alma, visto que, mesmo uma pessoa maléfica, que tem a

alma repleta de vícios, continua a existir e sua alma não morre, o que significa

que ela é imortal. Nota-se que o que ataca o corpo externamente não o

prejudica, senão devido a um mal interno, analogamente acontece com a alma,

82 PLATÃO. As leis e epínomis. op. cit., p. 509.

83 PLATÃO. República, op. cit., p. 481.

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mesmo afetada pelos males do corpo, não padece, por causa disto, por males

próprios.

Ainda na Carta Sétima, Platão trata da imortalidade: precisamos “aceitar as

antigas e sagradas tradições que nos falam da imortalidade da alma”84 além do

Timeu, quando faz referência ao ser humano que se dedica às coisas imortais e

divinas, ou seja a filosofia, “na medida em que a natureza humana pode

participar da imortalidade, possa dela fruir inteiramente”85, como em outras

obras. Contudo, o desenvolvimento pormenorizado e específico do tema se

dá na obra Fédon, onde a exposição dos argumentos acontece de forma

concisa, desenvolvida e direta, tida como a principal referência quando se trata

de imortalidade da alma em Platão. Para tanto, analisaremos especificamente

esta obra no ponto seguinte.

VI. A imortalidade da alma no Fédon

Após a apresentação dos principais pontos da Filosofia de Platão e dos

conceitos fundamentais da psicologia platônica, bem como alguns escritos

acerca da imortalidade da psyche, torna-se possível caracterizar o ponto

almejado pela presente pesquisa, que são os quatro86 argumentos a favor da

imortalidade da alma contidos no Fédon.

O diálogo é narrado quando Fédon, de Fliunda, se dirige, após a condenação e

morte de Sócrates, à sua terra natal e encontra-se com Equécrates, que lhe

pede o relato dos acontecimentos acerca dos últimos momentos de Sócrates.

Em meio à narração aparecem os seguintes personagens: Sócrates, Símias,

Cebes, Críton, Apolodoro, o próprio Fédon, Critóbulo, Hermógenes,

Epígenes, Esquines, Antístenes, Ctesipo de Peara, Menexeno, Faedonde,

Euclides, Terpsion e Xantipa, esposa de Sócrates, que estava presente com, ao

menos, um dos filhos. Platão, adoentado, estava ausente.

O relato de Fédon começa com a explicação de Sócrates dos motivos pelos

quais está tranqüilo, visto que é o dia da sua execução. O assunto gira em

torno da esperança de que, devido à vida que levou, será mais bem tratado que

os maus após a morte e de como o filósofo não deve temer a morte, já que a

filosofia é a preparação para mesma e o corpo é uma prisão à alma. A

84 PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. op. cit., p. 173.

85 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. op. cit., p. 181-182.

86 Alguns autores, como Reale (2002), optam por afirmar que são três as provas

apresentadas, unindo em um único o argumento natural e o psicológico, contudo, deu-se

preferência à autores como Santos (1999), Zikas (1990) e Kenny (2008) na escolha por

afirmar que são quatro os argumentos.

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discussão a respeito da imortalidade da alma surge quando Cebes apresenta

concordância com os motivos apresentados por Sócrates, todavia, “que a alma

vive após a morte do homem, que age e pensa, é o que necessita de explicação

e provas concretas”.87 O relato e o diálogo terminam com a morte de Sócrates

na prisão, junto aos seus discípulos.

É importante compreender, para uma boa interpretação do Fédon, que ele não

é uma reprodução aumentada da doutrina órfica, de forma que esta tinha suas

bases na crença, é, pois, um pensamento de qualidade diferente do orfismo. A

argumentação de Platão é uma teorização do problema, parte essencial para

fundamentação de sua teoria das Idéias e toda a ética relacionada ao exercício

de purificação da alma.

VII. O argumento natural

O primeiro argumento diz respeito à geração das coisas a partir de seus

opostos. Fundada na doutrina órfica da metempsicose, essa prova pressupõe a

tradição grega e faz uma generalização por meio de processo indutivo, de

forma que trata de um caso particular da lei natural da dupla geração das

coisas.

Platão relembra uma antiga crença: as almas dos que morreram vão para o

Hades e depois retornam a viver, o que implica que elas ficam no além-túmulo

durante o tempo intermediário entre a morte e a vida. Contudo, o Ateniense

analisa outras formas de vida e constata que cada coisa nasce do seu contrário,

já que, por exemplo, o crescer pressupõe que a coisa tenha sido menor, da

debilidade provém a força, o pior do melhor, o justo do injusto... Para tanto, é

necessário que haja uma ligação entre os dois contrários, como o crescer ou

diminuir no caso do maior e do menor, que é o “princípio geral da geração,

segundo o qual das coisas contrárias nascem aquelas que lhe são opostas”.88

Da mesma maneira acontece com várias outras coisas, de forma que a vida

também tem seu contrário, que é a morte, de forma que, havendo a dupla

geração, como nos outros casos, é preciso que haja também nexo entre a vida

e a morte, da mesma forma que a sonolência e o despertar são intermediários

entre sono e vigília. Logo, por essa relação, tudo que é morto se origina do

que é vivo e vice-versa e, como não há duvida sobre a existência do morrer, é

preciso que haja o contrário do morrer, que é renascer, o retorno da morte

para vida.

87 PLATÃO. Fédon. op. cit., p. 132.

88 Ibidem, p. 133.

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Se não houvesse essa órbita cíclica das coisas, com tudo nascendo do seu

contrário, tornar-se-ia necessário que toda a geração parasse, visto que tudo

teria o mesmo aspecto, não haveria produção de contrários as coisas

tenderiam para o fim. O Filósofo explica o argumento a Cebes, seu

interlocutor:

Se existisse o adormecer, mas não o despertar produzido por ele, todas as

coisas nos representariam a fábula de Endimion. Se tudo estivesse mesclado,

sem que essa mescla produzisse separação, rapidamente veríamos o que

ensinava Anaxágoras: ‘Todas as coisas estariam juntas’. Da mesma maneira,

meu estimado Cebes, se tudo que recebeu vida necessita morrer, e estando

morto continua no mesmo estado sem renascer, não acabariam todas as coisas,

não existindo e nada vivesse? Pois, se das coisas mortas não se originam as

vivas e as vivas acabam na morte, não é inevitável que todas as coisas seja

absorvidas pela morte?89

Além da tradição, esse argumento tem fundação no princípio do devir de

Heráclito, de forma que a imortalidade da alma se dá nessa pressuposição,

pois, ao justificar a tradição, adere-se a crença mitológica de que a alma não se

destrói. É importante constata que os contrários não se excluem, eles

continuam presentes, coexistindo em outro grau de aversão, o que justifica o

fato de a alma ser o que permanece da relação com o corpo, mas, o que de

fato é importante desse argumento, é o reviver como intermediário entre vida

e morte.

VIII. O argumento psicológico

Exposto o primeiro argumento, Cebes indica que ele é conseqüência da teoria

platônica que diz que todo conhecimento é reminiscência, segundo ele, já

descrita. Essa indicação faz referência à prova descrita no Menão, que foi

apresentada a partir da necessidade de se provar como conhecer o que não se

conhece, o que, segundo Platão, acontece segundo um conhecimento

adquirido anteriormente. No diálogo, o Filósofo expõe o argumento da

seguinte forma:

Ora, em razão de ser a alma imortal e ter renascido muitas vezes, já viu tudo

o que há, tanto aqui como no Hades, não havendo o que ela não tivesse

aprendido. Assim, não é nada de admirar que tanto sobre a virtude, como

sobre tudo o que mais ela possa recordar-se do que conhecera antes. E como

89 Ibidem, p. 135. Endimion: “Pastor coríntio de beleza extraordinária que, após ser admitido

no Olimpo, foi expulso de lá e condenado a um sono eterno sobre o Latmo por ter

pretendido o amor de Hera”. In: BURATI, Heloisa da Graça. In: PLATÃO. Fédon. Trad. de

Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005, p. 38.

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toda a natureza é aparentada e a alma aprendeu tudo, nada impede que, vindo

a recordar-se de um único fato – o que os homens denominam aprender – ela

chegue a encontrar por si mesma todos os outros, uma vez que seja corajosa

e não desista de procurar. Pois procurar e aprender não passa de recordar.90

Na perspectiva do conhecimento, o aprender é reminiscência, a lembrança de

um conhecimento pré-adquirido. Visto por um ângulo diferente, sob o

metafísico, é este argumento que Platão utiliza-se no Fédon, apresentando

algumas provas mais contundentes que levam a crer que o conhecimento

como recordação atesta a favor da imortalidade da alma.

Para recordar-se, é necessário que se tenha conhecido antes e que, de certa

forma, o conhecimento pode vir de uma recordação como, por exemplo, ao

ver um objeto se lembre de quem o possui. Contudo, continua, um objeto

pode trazer à lembrança coisas diferentes dele, de forma que “a recordação se

estabelece tanto por coisas semelhantes quanto por coisas dissímeis”.91

Por conseguinte, Símias concorda que a igualdade em si mesma, por exemplo,

existe e é diferente do igual, mesmo que tenha partido da visualização de

coisas iguais e diferentes entre si. Entretanto, mesmo essa igualdade em si,

semelhante ou diferente aos objetos de que surgiu, quando comparada com

objetos ditos iguais, ainda não são iguais aquela, de forma que é preciso essa

igualdade tenha sido conhecida anteriormente e assemelha-se, mesmo que em

graus de perfeição diferente, a uma coisa que apareça igual a outra, ao passo

que Símias responde positivamente à seguinte questão:

Logo, é absolutamente necessário que tenhamos visto essas igualdades

anteriormente, ou que, ao vir pela primeira vez duas coisas iguais, tenhamos

pensado que tendem todas a ser iguais como a própria igualdade e que não

podem chegar a sê-lo?92

Mesmo que se suponha que essa idéia seja conseguida apenas através dos

sentidos, todas as coisas iguais apreendidas pelos sentidos ser-lhe-ão com

referência àquela igualdade em si, de forma que é necessária uma consciência

anterior dessa igualdade como meio de exemplo para realidade sensível.

Aceito que os sentidos são usados logo após o nascimento, é necessário que a

consciência dessa realidade seja anterior ao nascimento, pois, não se possui o

conhecimento das coisas no presente, não se perde ao mesmo tempo em que

se adquire e não há momento que se constate que os perca após nascer.

90 PLATÃO. Critão, Menão, Hípias Maior e outros. op. cit., p. 253.

91 PLATÃO. Fédon. op. cit., p. 137.

92 Ibidem, p. 138.

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Assim, se há uma existência das coisas em si, é necessário “que nossa alma

também tenha existido antes de havermos nascido, e se todas essas coisas não

existem, todos os discursos são inúteis”.93 A prova corrobora a preexistência

da alma, o que levaria a uma complicação quanto à existência pós-morte, mas,

como defende Platão, o argumento anterior (natural) complementa a

justificativa. “Pois, se é certo que nossa alma existe antes de nascermos, e se é

preciso que ao surgir para a vida ela saia, por assim dizer, do seio da morte,

como poderá existir após a morte, já que deve regressar à vida?”.94

A teoria da reminiscência rompe com os argumentos da época acerca da

natureza da alma, que tornavam os objetos sensíveis fonte para o

conhecimento e àquelas que julgavam a alma uma duplicação do corpo ou

mistura de elementos sensíveis, separando a alma (forma) do corpóreo

(matéria), de forma que a existência e a possibilidade do conhecimento das

formas implicam na imortalidade da alma.

IX. O argumento ontológico

Com a investigação aberta, Platão apresenta um novo argumento que

pressupõe necessariamente a diferenciação do mundo sensível do inteligível.

Fundada na semelhança da natureza da alma com as Idéias, a tese faz

mediação entre as coisas sensíveis e inteligíveis, ao seguir a análise de

propriedade de ambos, de forma que, revestido de um caráter existencial,

funda-se na proposição de que o conhecimento pode acontecer através dos

semelhantes.

Platão indaga que existem coisas compostas que se desfazem e coisas que não

são e permanecem, de forma que estas coisas continuam a ser sempre as

mesmas e aquelas têm comportamentos diferentes em relação em si ou às

demais. As realidades imutáveis (igualdade, bondade, beleza e todas as

essências) não sofrem nenhuma alteração e as mutáveis se alteram, além do

que “essas são coisas que consegues ver, tocar e perceber por qualquer

sentido, enquanto as primeiras são sempre as mesmas e não podem ser

percebidas por nada exceto pela inteligência, porque são imateriais e não

podem ser vistas”.95

Ao admitir, pois, a existência de duas realidades, a mutável e imutável, e, no

homem, a existência do corpo e da alma, o corpo tem relação com a primeira

realidade e a alma com a segunda. Como a alma é invisível e o corpo visível, a

93 Ibidem, p. 141.

94 Ibidem, p. 142.

95 Ibidem, p. 144.

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alma “encaminha-se para o que é puro, eterno, imortal, imutável e, por ser da

mesma natureza, mantém-se unida a ele tanto quanto lhe é possível”.96

Contudo, continua o Ateniense, quando a alma está unida ao corpo, é

necessário que um seja servo do outro, um comande e outro seja responsável

pelo controle de uma das partes. Ora, o divino é responsável por governar e o

mortal de obedecer e, como a alma tem relação com o divino e o corpo com o

que é humano, “não é natural que o corpo se desfaça e a alma continue

sempre indissolúvel ou num estado semelhante?”.97 Pois, na morte, o corpo

visivelmente se dissolve e a alma, por conseqüência, irá para um lugar

condizente com sua natureza, devido à sua imortalidade.

Esse argumento pressupõe a anterioridade e superioridade das Idéias

inteligíveis, para a compreensão do sensível. Há uma diferença ontológica,

afirma o comentador, entre os dois tipos de seres, mutáveis e imutáveis, que

acentuam uma diferença epistemológica e traz corolários éticos, pois implica

diretamente que alma, pela sua relação com o imutável, não seja corrompida

pela mutabilidade.

X. Objeções

Após a apresentação de três argumentos, Platão descreve um pouco o destino

escatológico das almas, daquelas que, exercido a filosofia e se preparado para

morte, vão para um lugar de felicidade, livres do corpo. Cita também o

destino das almas que se misturam demasiado com o corpóreo tornando-se

serva deste, de forma que tenha se acostumado ao corpo e, envolto de

corporeidade, teme o Hades e vaga por cemitérios até se unirem novamente à

matéria. Depois de reafirmar a vocação do filósofo de controlar as paixões e

não temer a morte, o Ateniense se propõe a apresentar e responder às dúvidas

de Símias e Cebes, os principais interlocutores de Sócrates.

Símias objeta que o raciocínio apresentado até então é insuficiente quando

usado o mesmo método para fazer a mesma analogia da relação alma e corpo

com a relação lira e harmonia. A harmonia, afirma, pela invisibilidade, tem as

mesmas características atribuídas à alma, ou seja, relaciona-se com o divino e a

lira segue os atributos aplicados aos corpos, com natureza mortal. O problema

está na evidência de que, se a lira for destruída, a harmonia também morrerá.

A tese de Símias á apresentada da seguinte forma:

96 Ibidem, p. 145.

97 Ibidem, p. 146.

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Nosso corpo composto é mantido unido pelo calor, pelo frio, pela sequidão e

pela umidade, e nossa alma é a harmonia resultante da mistura proporcional

dessas qualidades. Se nossa alma é somente uma espécie de harmonia, é

evidente que, quando nosso corpo está por demais relaxado pelas doenças ou

por outros males, nossa alma, que é divina, deverá morrer como as outras

harmonias que consistem nos sons, ou que são conseqüência dos instrumentos,

ao passo que os restos dos corpos duram ainda muito tempo até que sejam

destruídos pelo fogo ou pela putrefação.98

O argumento de Símias está embasado na teoria pitagórica que relaciona

harmonia musical e alma humana. Platão, afirma, sabe das dificuldades dos

argumentos anteriores e traz à luz, de forma pormenorizada, o método

dialético, que constitui o processo do conhecimento implica que a reflexão se

desenvolva mediante a aceitação das dificuldades. Contudo, antes de

responder a Símias, Platão apresenta primeiramente o argumento de Cebes.

Cebes, diferente de Símias, admite que a alma exista antes do corpo, por ser

superior à matéria, todavia, mesmo que seja anterior ao corpóreo, em uma das

encarnações a alma deve perecer, qual tecelão que forja para si várias roupas,

mas com alguma delas irá morrer. O que Cebes argumenta é que a alma se

desgasta ao usar vários corpos e morre junto com algum destes, fato que

deveria fazer o homem temer a morte, pois não sabe se a alma também não

morrerá. Platão assim resume o argumento: “a alma é mais duradoura que o

corpo, mas que não há como assegurar-se, depois de ter habitado muitos

corpos, se morrerá ou não ao deixar o último e se isto não será uma

verdadeira morte da alma, sendo que o corpo não deixa um único momento

de morrer”.99

Platão, antes de responder, critica aqueles que são contrários à razão e se

propõe a fazer uma investigação sincera da teoria. Em forma de resposta a

Sócrates, Símias aceita a teoria de que aprender é recordar, mas, como afirma

o Filósofo, devido ao fato de a harmonia ser posterior à constituição da lira, a

comparação torna-se irreconciliável: “ou que a ciência é uma reminiscência ou

que a alma é uma harmonia”.100 Crente de que a alma exista antes de entrar no

corpo, Símias opta pela teoria da reminiscência.

Não obstante, Platão apresenta mais dois argumentos que argúem a

comparação entre alma e harmonia: primeiro que a harmonia, por ser

posterior a lira, depende dela, enquanto a alma rege o corpo e chega até a lutar

contra vontades deste; segundo, que as almas são iguais entre si, enquanto a

98 Ibidem, p. 153.

99 Ibidem, p. 158.

100 Ibidem, p. 159.

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harmonia pode existir em graus diferentes. Até a suposição de que almas boas

e más fossem graus é falha, por que, idênticas entre si, as almas teriam que ser

constituídas, umas em virtude, outras em maldade, o que seria irreconciliável:

“uma alma não poderá ter mais harmonia ou dissonância que outra”.101

Alguns especialistas não consideram satisfatórios os argumentos platônicos,

visto que a contradição de Símias se dá pelo fato de aceitar a preexistência da

alma. Alguns críticos dizem que deveria ser esclarecida a definição de alma

para então tratar de seus detalhes. Entretanto, Platão não encerra sua

argumentação, a resposta à Símias é um passo, em seguida ele apresenta um

novo argumento ao buscar a resposta para a objeção de Cebes e descreve a

teoria das Idéias, última proposição do Fédon em favor da imortalidade da

alma.

XI. O argumento final

Antes de buscar uma refutação da teoria de Cebes, Platão apresenta um

interlúdio, no qual relembra a objeção e apresenta o problema da investigação

da natureza. O que Cebes quer que seja provado é que a alma é imortal, visto

que sua preexistência não comprova que ela não seja destrutível, sugere, pois,

que possa acontecer tudo, no que tange a alma, da seguinte forma: “o

primeiro momento de sua entrada no corpo foi talvez o início de sua perda e

como uma doença que se prolonga nas agonias desta vida, e acaba com o que

denominamos morte”.102

Para embasar a temática, Platão escreve que, em sua juventude, sentia um

forte desejo em conhecer o que chamavam filosofia da natureza, encantado pela

possibilidade de conhecer a causa das coisas, chega a conclusão de que nada

conhecia sobre tal assunto. Ao, porém, ler um fragmento de Anaxágoras que

colocava o espírito como causa e regra de todos os seres, sentiu-se impelido a

investigar mais a fundo, pois parecia formidável que a inteligência regesse as

coisas da melhor forma possível. Contudo, ficou decepcionado ao descobrir

que Anaxágoras colocava o ar, o éter, a água e outras coisas absurdas no lugar

da inteligência, de forma que fez uma nova reflexão e decidiu colocar na razão

o meio para se chegar à verdade das coisas. A investigação do Ateniense, a

partir de então, foi pela busca de um princípio absoluto para as coisas, e

encontrou na Idéia como valor com conteúdo absoluto.

101 Ibidem, p. 161.

102 Ibidem, p. 163.

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Ao adentrar o argumento propriamente dito, Platão faz uma comparação

entre Símias (entremeio), Sócrates (mais baixo) e Fédon (mais alto), e constata

que, na relação de altura, Símias é denominado alto e baixo ao mesmo tempo,

variando conforme com quem for comparado. Contudo, os opostos alto e

baixo não podem ser juntos, não pode tornar-se diferente do que são:

“nenhum dos dois contrários, apesar de serem o que são, podem se converter

em seu oposto, mas ou se afastam ou se destroem quando o outro chega”.103

Porém, um dos presentes lembra que um dos argumentos dizia que as coisas

originam-se dos seus contrários, o que parece contradizer o último dito, ao

passo que Sócrates responde:

Afirmamos anteriormente que uma coisa nasce sempre de sua contrária e

dizemos agora que um contrário não se transforma, jamais, em seu contrário

em si mesmo, e em nós, nem a Natureza. Falávamos, então, de coisas que

possuem seus contrários, as que podemos nomear cada uma por seu nome e

agora falamos das essências que, por sua presença, dão o nome às coisas em

que se encontram. E estas últimas, é destas que falamos, jamais podem se

originar umas das outras.104

Como Cebes concorda com o que foi dito, Platão apresenta algumas

proposições: existe o frio e o calor, que são diferentes da neve e do fogo e que

a neve deixa de ser neve pela ação do calor, da mesma forma que acontece

com o calor com o frio. “Então, existem coisas cuja idéia conserva sempre o

mesmo nome, que se transmite de uma coisa para outras que não são que ela é

em si mesma, mas que conservam a forma quando existem”.105

Ao continuar o desenvolvimento do argumento, Platão apresenta outro

exemplo. Afirma que ímpar e três não são a mesma coisa, mas o três deve ser

chamado de ímpar, de forma que, além dos contrários não admitirem seus

opostos, “todas as outras coisas que, não sendo contrárias entre si, possuem

sempre seus contrários, não parece que possam receber a essência contrária à

que possuem, mas quando esta essência aparece, elas desaparecem e

morrem”.106 Este raciocínio implica que não se pode aproximar a essência

contrária de uma Idéia sem destruí-la, como explica o autor:

Existem certas coisas que, não sendo contrárias a outras, mesmo assim as

excluem como se o fossem, como o três que, embora não seja contrário ao

número par, não o admite, como o dois, que sempre traz consigo algo

contrário ao número ímpar, como o calor ao frio, e muitas outras coisas. Por

103 Ibidem, p. 171.

104 Ibidem, p. 171.

105 Ibidem, p. 172.

106 Ibidem, p. 173.

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conseguinte, não só o contrário não admite a seu contrário, como tampouco a

tudo o que o relaciona a seu contrário.107

O que produz calor não é o calor, mas o fogo, da mesma forma que o que traz

a doença é a febre, a imparidade a unidade. Aceita-se que a alma é o que torna

o corpo vivo, o que implica que a alma traz a vida, e que o contrário da vida é

a morte, o próprio Filósofo conclui, no diálogo com Cebes, o argumento:

– Não é verdade que a alma nunca aceitará o contrário do que sempre traz

consigo?

– É verdade.

– E como chamávamos o que não aceitava a idéia do par?

– Ímpar.

– E ao que não aceita o justo e ao que não admite o harmônico?

– Injusto e inarmônico – Respondeu Cebes.

– E ao que não admite a morte, como chamaremos?

– Imortal.

– A alma não admite a morte, não é?

– Sim.

– Então é imortal?

– Sim, é imortal.

– E, portanto, afirmaremos ou não que isso está demonstrado?

– Totalmente demonstrado, meu caro Sócrates!108

Além de imortal, a alma também é indestrutível, de forma que aqueles que

afirmam analogamente que o ímpar, mediante aproximação do par, se

destruiria, dir-se-ia que o ímpar não acaba, mas apenas se afasta. Em seguida,

como complemento, Platão propõe que se investigue mais profundamente os

argumentos, resgata a importância do zelo pela alma imortal e apresenta o

mito que esclarece mais sobre o destino das almas no Hades, que, em suma,

diz que o destino do homem sobre a terra deve ser conscientizado e praticado

como uma elevada solicitação, viver na prática sempre da virtude e enfrentar,

quando chegar a hora crítica, a morte com alegria e otimismo. Por fim, com

calma, Sócrates, após as últimas recomendações, toma cicuta e falece e é

considerado, por Fédon, “o melhor homem entre todos que conhecemos, o

mais sábio e mais íntegro”.109

Esse argumento final é formalmente correto e coerente em sua conclusão.

Devemos entender Platão sob o ponto de vista do Ateniense, não baseados

em reflexões posteriores, mesmo porque o Filósofo utiliza de mitos e não

resolve a questão, mas apresenta uma proposição de explicação racional, de

107 Ibidem, p. 174.

108 Ibidem, p. 175.

109 Ibidem, p. 190.

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forma que, no Fédon, a concepção de uma alma imortal e indestrutível é

legitimamente esboçada, ainda que a razão não tenha certeza desta realidade

meta-empírica.

As implicações da imortalidade, na teoria de Platão, são bastante extensas,

especialmente àquelas ligadas ao campo da ética. A vida do ser humano,

dentro dessa concepção, fica sujeita às implicações da teoria platônica, pois,

no dizer do Ateniense, “se a alma é de fato imortal, se faz necessário que

zelemos por ela, não só durante o tempo presente, que denominamos viver,

mas ao longo de todo o tempo, pois seria grave perigo não se preocupar com

ela”.110

Dessa maneira, fica também justificada a relatada coragem com que Sócrates

enfrenta a morte, pois crê que, como filósofo, cuidou da alma, de forma que,

como todo o homem que teve o zelo pela psyche “com o que é especificamente

seu e mais lhe convém, como o comedimento, a justiça, a coragem, a

liberdade, a verdade, espera com confiança e coragem pelo momento de

iniciar sua caminhada para o Hades, quando seu destino o chamar”.111

É válido salientar que, no Fédon, a forma de apresentação dos argumentos,

sobretudo a utilização dos mitos, não é uma forma retórica de ludibriação,

mas é utilização de um argumento de possibilidade, que não implica uma

necessidade de veracidade. O procedimento apela para o risco de acreditar na

proposição, de forma que o uso de mitos não vem a esconder problemas, mas

colocar explicações válidas no que tange a lógica da argumentação e possíveis

respostas.

Pois então, meu estimado Símias, são estas as verdades cuja exposição

realizamos por alto e que nos devem levar a nos esforçarmos para participar da

virtude e da sabedoria nesta vida. Bela é a recompensa e grande a esperança!

Mas pretender que tais coisas sejam de fato da forma que eu as descrevi, não

será coisa de um homem de bom senso! No entanto, crer que algo parecido

venha a ocorrer com as almas e seu destino, sendo que a alma é imortal, eis a

opinião que se me afigura boa e digna de crédito. Belo será ter essa coragem!112

É também possível perceber a importante função do filósofo que, “mantendo

todas as suas paixões em perfeito equilíbrio, tendo sempre a razão por guia,

observa sem parar o que é verdadeiro, divino, imutável e se encontra acima

das crenças vulgares”.113 Esse caminho racional é o utilizado por Platão no

110 Ibidem, p. 177.

111 Ibidem, p. 186.

112 Ibidem, p. 185.

113 Ibidem, p. 150.

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Fédon, tornando possível compreender os pressupostos e presumir o alcance

do raciocínio.

Enfim, pode-se perceber a destreza e habilidade com que esse pensador trata

temas complexos e de difícil exposição, que são aqueles ligados à alma.

Igualmente acontece com a extensa obra de Platão, com assuntos abordados

de forma clara e concisa, tornando o Ateniense fundador da Academia e um

dos pensadores mais estudados da História da Filosofia, “com razão

considerado um clássico onde quer que se reconheçam e professe a filosofia e

a ciência como forças formadoras de homens”.114

114 JAEGER, Werner. op. cit., p. 591.

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XII. Conclusão

O advento de Sócrates na história da Filosofia trouxe uma grande mudança na

concepção antiga de alma, pois ele conceituou o caráter individual da psyche,

tornando-a essência da pesquisa antropológica. No aprofundamento da

pesquisa de seu mestre, Platão traz uma filosofia de caráter mais expansivo,

apresentando novos conceitos e problemas filosóficos, ampliando a pesquisa

e, buscando as implicações do conhecimento, postula uma concepção dualista

de mundo e de homem, resgatando tradições de metempsicose e vida pósmorte

para alma. Contudo, traz a investigação do campo da mera crença para

o filosófico, de forma que a alma se torna a essência do homem e a

responsável pela vida terrena e ideal. Com a concepção dual da realidade,

Platão resolve problemas antigos e eleva a antropologia a um caráter

essencialmente metafísico, tornando fundamental, para a ética e toda sua

filosofia, a imortalidade da alma.

Com as bases da filosofia platônica fundadas, acreditamos ser possível fazer a

apresentação do objetivo central da pesquisa: a exposição dos argumentos do

Fédon a favor da imortalidade da alma. Com base em argumentos racionais, o

Ateniense apresenta a impossibilidade de morte para a psyche, visto que as

atribuições dela implicam da sua indestrutibilidade. A argumentação de Platão

passa pela dupla geração das coisas, teoria da reminiscência, na semelhança

com o divino e desemboca na teoria das Idéias, que, por analogias às coisas

corpóreas, postula a imperativa imortalidade.

O argumento natural pressupunha que se cresse na existência do Hades e que

lá as almas estivessem enquanto seus corpos não vivessem, para daí

retornarem à vida. Após Platão expor a teoria de que as coisas nascem de seus

respectivos contrários, o postulado se dá que há também a existência de um

contrário ao morrer, que seria o reviver, de forma que, se as almas retornam

para a vida, elas são imortais. Essa prova é complemento para o argumento

psicológico, que, relembrando a teoria de Platão do conhecimento como

reminiscência, faz os interlocutores perceberem que tenha havido uma

realidade antes para a alma ter conhecido as Idéias. Dessa forma, fica posto

que as almas existiram antes de encarnar e, como provado no argumento

natural, elas tem existência póstuma, é necessária sua imortalidade.

O argumento ontológico trata analogias. Como o corpo é e tem semelhança

com o que é perecível e a psyche com o que é divino e, como o divino é

imortal, é apropriado que a alma também o seja. Contudo, este e os outros

argumentos são postos em dúvida pelos interlocutores, de forma que Platão

apresenta a teoria das Idéias. Nesta, ele argumenta que, como nenhum

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contrário se converte no seu oposto, a alma, como portadora da vida, não

pode receber em si a morte, logo, segue o raciocínio, é imortal.

No tocante a forma de exposição platônica, pode-se tentar buscar qual a

religião do Filósofo, se existe a postulação de uma crença religiosa por parte

do Ateniense. Contudo, Platão apenas reproduziu a forma religiosa vigente,

talvez elevando a reflexão sobre questões referentes a Deus, mas nada em

nível filosófico. O Filósofo propõe uma reflexão racional sem abandonar o

traço religioso, de forma que em vários diálogos contém seguidas referências

aos deuses, como guias ou auxiliares da discussão.

Mas há um elemento racional forte que também permeia a filosofia platônica,

que torna possível a forma de abordagem dos problemas: o método da

dialética. Platão não apresenta uma explicação detalhada e embasada do

método, o que ele faz é utilizar-se desse procedimento para busca da verdade,

o que acontece de forma genérica, sem plena justificação, o que não tira a

validade da forma de raciocinar.115

Contudo, por sua concepção dualista que sugere um mundo metafísico real,

Platão pode ser considerado um autor idealista, embora sua filosofia tenha um

forte caráter ético. O fato de a alma constituir a essência do homem torna a

vida terrena um exercício da virtude em vista da felicidade presente e futura.

Assim, pois, imortalidade da psyche é, também, horizonte da ética, pois, a

existência de castigos e recompensas pós-morte corpórea, implicam na

necessidade para o homem de almejar o bem futuro e fazer com que sua alma,

imortal, possa gozar de prêmios póstumos.

Platão não propõe uma teoria subjetivista que reduza o indivíduo à sua

vivência pessoal. O exercício das virtudes, que se dá no Estado, é tema

corrente na filosofia do Ateniense, pois, como sua reflexão foi impulsionada

por uma falha governamental, o julgamento e condenação de Sócrates, ele

amplia o caráter ético para a vivência na Polis.116 O pensamento filosófico não

115 “Quando se aceita um raciocínio como verdadeiro, sem conhecer a arte de raciocinar,

acontece que, depois, parece falso, seja falso ou não, e totalmente diferente”. In: PLATÃO.

Fédon. op. cit., p. 157.

116 “Em primeiro lugar, para os gregos, o homem só podia realizar-se como tal através do

conhecimento de si mesmo e de seu mundo, portanto mediante a busca da verdade em

todos os domínios que lhe dissessem respeito. Em segundo lugar, o homem só podia

realizar-se como tal na vida em comunidade, na polis. A República de Platão é a expressão

máxima da estreita ligação que os gregos estabeleciam entre a formação dos indivíduos e a

vida da comunidade; e a afirmação de Aristóteles de que o homem é por natureza um

animal político tem o mesmo significado”. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de

Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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se reduzia ao campo teórico, mas o exercício das virtudes individuais implica

numa virtude para a cidade.117 A formação do homem, pois, que se dá num

Estado ideal, tem sua plenificação no mundo Ideal, de forma que a Filosofia é

fundamental para o bem do Estado e do homem, capaz de elevá-lo à

contemplação das Idéias.

Muitos são os temas tratados por Platão e a imortalidade da alma, expressa em

Fédon, é uma discussão essencial de sua reflexão, que fundamenta o caráter

ético da filosofia do Ateniense e eleva o problema ao seu ponto central. O

cristianismo, o neoplatonismo e o espiritismo foram algumas das linhas de

pensamento que o Filósofo influenciou diretamente na crença da imortalidade

da psyche. Platão, portanto, teve grande influxo na formação da cultura

ocidental e foi o precursor de várias correntes de pensamento filosófico na

história da humanidade e o Fédon é uma de suas obras clássicas.

***

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