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S&A
fazer, fazer enquanto apetecer
Domingo, Novembro 19, 2006
2. Linguagem ordinária e científica
Nota prévia: Estimulado pelo forte interesse que o post anterior, verificável pela quantidade de comentários renovo que isto é um documento de reflexão pessoal. Se quiserem comentar todo o cuidado é pouco, coloquem ou não, a camisinha, ou o diafragma, tá?
Murray Davis, no livro Smut5, evidenciou que, para nomear os órgãos e as actividades sexuais, existem duas linguagens completamente diferentes. Por um lado, a linguagem popular, ordinária, obscena; por outro lado, a linguagem oficial, culta, séria. Entre as duas, há um abismo. Ou falas uma ou falas outra, não podes misturá-las. De vez em quando, algumas palavras da linguagem ordinária penetram na linguagem séria e há palavras que cumprem o percurso inverso. Porém, uma vez realizada a passagem, pode usar-se só uma linguagem ou outra, sem misturá-las. Com efeito, se ao usar o primeiro registo inserirmos uma frase do segundo, ou vice-versa, obtemos um efeito grotesco ou cómico.
Davis observa que, na Idade Média, a Igreja condenava de maneira extremamente forte o sexo, mas chamava os órgãos e os actos sexuais com o nome corrente. Só depois, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, as expressões populares são consideradas obscenas, tornam-se impronunciáveis, desaparecendo dos dicionários. Dois processos opostos produzem este resultado.
O primeiro é levado a cabo por aqueles que querem abrir um espaço ao erotismo, fazer literatura erótica, como os libertinos, que o conseguem eliminando as palavras ordinárias para eludir a censura. Em seu lugar introduzem imagens, metáforas que evocam a experiência erótica de uma maneira nova. Mais tarde, na época vitoriana procura-se eliminar qualquer possível referência ao sexo seja qual for a forma sob a qual este se apresente. Tudo o que diz respeito ao sexo é omitido ou substituído por alusões e metáforas cada vez mais afastadas do objecto. Até a gravidez se torna «estado interessante».
O segundo processo produz-se no século XIX com a medicalização do sexo. A anatomia dá um nome exacto aos órgãos sexuais e às suas partes, enquanto o nome ordinário os indica de maneira global. Distingue-se o monte de Vénus, a vulva com os grandes e pequenos lábios, o clítoris, a secreção das glândulas de Bartolini, a vagina, o colo do útero, etc. Por outro lado, o escroto, as gónadas, a próstata, as vesículas seminais, o pénis, a glande, o prepúcio, o esperma. Surge, entretanto, a sexologia como disciplina científica separada e são descritas e omeadas com cuidado as várias actividades sexuais e as «perversões». Datam dessa época expressões como coito, cunilingua, felação, escoptofilia, coprofilia, onanismo, sadismo, masoquismo, feticmsmo, urofilia, mpoxifilia, etc. Outros contributos são oferecidos pela antropologia, que põe em evidência as diferenças entre costumes e a moralidade sexual nas populações a nível etnológico.
Surgiu assim uma linguagem científica internacional as séptica, que tem permitido nomear, descrever e analisar os comportamentos sexuais sem estimular a emoção provocada pela linguagem ordinária, emoção esta que pode ser de excitação, desgosto ou recusa, mas que é sempre intensa.
Porque é que esta dicotomia radical existe? Porque será que a linguagem popular, ordinária, soa obscena, mas, ao mesmo tempo, produz excitação sexual aproximando-se da pornografia, enquanto a linguagem médica é exacta, permite indicar qualquer coisa sem provocar nenhuma emoção erótica?
No seu conhecido livro Sex in Human Loving, Eric Berne explica a linguagem ordinária conforme o modelo psicanalítico clássico: esta deriva da infância, das experiências desgostosas experimentadas pessoalmente ou inculcadas pelos pais durante a infância. «Uma palavra torna-se obscena quando a imagem que a acompanha é primária [da primeira infância] e repugnante.»6 Dado que cada geração vive na infância específicas experiências repugnantes, «mesmo se os adultos cancelassem toda a linguagem obscena do seu vocabulário, esta voltaria a aparecer com a geração seguinte».
Respondemos a esta observação psicanalítica de Berne lembrando que as crianças aprendem a linguagem obscena graças aos miúdos mais velhos e aos próprios adultos. Aprendem-na porque designa as partes do corpo e os actos sexuais dos quais, porém, os adultos logo proíbem falar. Portanto eles percebem que se trata de palavras e coisas proibidas e é para violar o tabu dos adultos, para transgredirem a ordem deles, que utilizam essas palavras, primeiro às escondidas, depois de maneira manifesta. A revolução sexual dos anos 60-70 adoptou explicitamente esta linguagem com o intuito de uma revolta ofensiva. E utilizou da mesma forma e com a mesma função a blasfémia, a imprecação ou a obscenidade dirigida à divindade. Lembro-me de qué durante os dois anos em que fui reitor da Universidade de Trento, um centro do movimento estudantil italiano, muitos estudantes (não os lideres, que usavam uma linguagem marxista) não conseguiam dizer três palavras sem interpor uma obscenidade ou uma blasfémia. Neste caso, a linguagem sexual obscena não tinha nenhuma função de evocação erótica, mas de mera transgressão, de ofensa à ordem constituída, à religião, ao Estado.
Diversamente de Berne, Bataille afirma que a obscenidade é parte integrante do erotismo porque este é, na sua essência, transgressão, excesso, fragmentação da ordem social e do trabalho. Despedaça o indivíduo socializado, dissolvendo a sua consciência, e liberta a carne e a sua convulsão cega. Quem é tomado pelo frenesi erótico já não é humano, tornando-se, à maneira das bestas, desenfreadamente cego. Por isso, mesmo os amantes pudicos - observa - respeitosos dos tabus, para excitar-se, para viver até ao fundo uma experiência erótica desenfreada, utilizam palavras ordinárias, obscenas, violando o próprio moralismo. O erotismo é portanto sempre laceração, despedaçamento, profanação do tabu, dos costumes, da linguagem. A sua palavra, a palavra da excitação erótica, por consequência, é sempre obscena, ordinária.
Com base no relatório Kinsey7, ele observa que o mínimo da actividade sexual é levado a cabo por quem exerce uma profissão regular, enquanto o máximo é atingido pelas pessoas do mundo do crime, que controlam os night clubs, os jogos de azar, a prostituição. Isto é, por quem estámais longe do trabalho quotidiano, monótono, disciplinado e mais perto da violência, do arbítrio. É do mundo do crime e da prostituição que provém a linguagem obscena, porque é a linguagem do ódio e da profanação.
Não há a mínima dúvida de que a linguagem obscena possa incorporar em si a violência da transgressão juvenil da ordem dos adultos, a do mundo do crime, a revolucionária dos movimentos e das revoluções. Após a batalha de Carberry Hill, Maria Stuart ficou prisioneira dos lordes escoceses e o povo que se levantou contra ela seguiu-a até Edimburgo com um coro de insultos obscenos, dos quais o mais leve foi «puta católica»8. Durante a Revolução Francesa, o processo, a condenação e a viagem final para a guilhotina eram sempre acompanhados de coros terríveis de obscenidades. Porém, há também a violência do mndo do crime, o qual, além de rapinar, torturar, matar, ao mesmo tempo controla o sexo clandestino, a prostituição, a pornografia e portanto cria e dirige os espaços de desenfreamento sexual de que beneficiam os seus membros e que são vendidos às pessoas sérias que desejam «baldar-se ao trabalho e à família». E, ao fazê-lo, o mundo do crime tem uma relação mais violenta com a própria sexualidade, por exemplo, maltrata brutalmente as mulheres que usa como instrumentos e despreza o cliente de que se aproveita.
Publicada por Erecteu em Domingo, Novembro 19, 2006 4 comentários:
Maria disse...
Linguagem ordinária... Depende do sentido da palavra ordinária:
ordinária = porca
ou
ordinária = vulgar, comum
Não sou cientista por isso uso a linguagem do comum dos mortais.
--Apesar de corar muito ^-^ --
*Gostei do texto. O Vilhena sabe "coisas"...
11/20/2006 10:09 a.m.
Erecteu disse...
Tens direito ao prémio de primeira comentadora do S&A -
"Oito Dias na Ilha dos Amores"
É só passar, acompanhada de X, pela Residencial Olimpo onde Erecteu os receberá, para responderem a um formulário.
11/20/2006 12:48 p.m.
Maria disse...
Olha m'esta! A tua bolachinha precisa de preencher papelada? Não é só chegar lá com o X e "prontos"?
:P
beijitos
11/20/2006 2:45 p.m.
Erecteu disse...
Maria,
Muita sorte terás se o Erecteu não te impingir um To em compropriedade num empreendimento lá prá Quarteira.
Cuidado com esse maltez.
11/20/2006 3:26 p.m.
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