A GENEALOGIA DO DISCURSO POÉTICO: O EU E O OUTRO NA ELOQÜÊNCIA MORAL DOS SENTIDOS
Adriano Neri (UFRJ – CNPq/PIBIC)
Este trabalho visa elucidar algumas questões relativas à noção de inspiração poética, bem como conceitos de arte e técnica na moralizada pólis grega. O foco se dá no embate entre a linguagem retórica e poética no diálogo “Íon” de Platão.
Neste diálogo, Sócrates, como personagem platônica, ao interpelar um declamador, o rapsodo Íon, sobre o que seria a arte da rapsódia e, por conseguinte, a origem da loquacidade dos poetas, se atém à autoridade do rapsodo enquanto hermeneuta. Suas indagações são sobre que pressupostos o rapsodo se diz conhecedor de Homero, que conhecimentos específicos e técnicos ele teria. Longe de simples argumentações, vemos, neste diálogo, a primeira tentativa de conceituação do furor poético e a genealogia do seu entusiasmo. Antes que se teça digressões a respeito do diálogo, algumas considerações históricas devem ser alçadas.
Quando no século VI a.C, o estadista Sólon instituiu que, em Atenas, o ensino dos poemas homéricos constituísse parte da educação dos jovens atenienses [1], não imaginou a influência, a importância e os percalços que a noção de arte e técnica enfrentaria por parte dos filósofos. Isto porque o texto homérico controlava a cultura na qual vivia, podendo ser considerado como uma verdadeira enciclopédia para assuntos culturais da época. [2]
O processo de aprendizagem, àquela época, consistia numa atividade constante de memorização, repetição e recordação. [3] Ao final do século V a.C, Platão defendia que a memória seria o caminho para o estabelecimento de um Estado ideal e que os mitos deveriam ser usados apenas como ferramenta educacional na pólis . [4]
Depois de Sólon, Peisistratos introduziu a recitação dos poemas homéricos nas Panatenéias [5], o maior festival em honra da deusa Atena. Mais do que propriamente comunicativo, o objetivo do ensino destas narrativas era, sobretudo, mnemônico. O estabelecimento da aprendizagem e recitação de Homero nos festivais compunha o ideal grego de sociedade, que deveria valorizar seus alicerces para que não caíssem em meio a devaneios. Nestes festivais, durante incontáveis séculos, a poesia épica, bem como uma vasta gama de hinos religiosos, eram declamados por rapsodos, recitadores tidos como profissionais .
A recitação elaborada pelos rapsodos era direcionada a uma grande audiência e intensificava a influência dos poemas declamados. Por seguirem o ritmo métrico regido no poema, juntamente com outros fatores estéticos tais como entonação, aprumo e ornamentação corporal, os rapsodos eram concursados, analisados e premiados para tanto. Os concursos de rapsódia eram o passaporte [6] para maior projeção social.
O público do rapsodo submetia-se ao seu hipnotismo. Se o rapsodo ficava atento às reações dos ouvintes e modificava sua entonação com o único intuito de ganhar a competição. Então não há nada de divino nessa ação de caráter meramente pecuniário estabelecendo uma estreita relação comercial com as emoções do público.
Do ponto de vista psicológico, a situação mimética de uma performance épica reflete em como a repetição rítmica, da melodia e da dança, produz não-racional “memorização” no “artista” e no público.
Em Platão, mais especificamente no diálogo “Íon”, uma das personagens da enunciação é um rapsodo, Íon, renomado pela sua elegância em sua profissão. Íon é quem transmite a visão homérica, e ao mesmo tempo, representa a tradição. O rapsodo configura, apenas, uma personagem-síntese presente em épocas diversas. No “Íon”, Platão expõe sempre a ameaça do efeito rapsódico no público por considerar isto como uma histeria inspirada , a condição para ser entusiasmado.
A razão dos concursos é, portanto, um plano pelo encargo social para a constante manutenção da épica no coletivo popular e premiar e enaltecer os que conseguiam realizar com diligência tal atividade. Esses concursos foram responsáveis por impulsionar tanto o desenvolvimento das artes , como a pedagogia necessária para formar novas gerações de músicos cada vez mais virtuosos, o que abriu espaço para a reflexão no campo da teoria poética, principalmente pela filosofia.
Concomitante a este momento, tem-se a primeira tentativa de questionamento do tradicional proposto pelos filósofos, com certa prudência uma vez que não se podia, até este momento, denegar os valores míticos ferventes ainda na pólis grega.
Em Platão, os poetas sempre serão vistos com desconfiança, pois é o contraponto daquele outro homem que é considerado o mais capacitado para alcançar as verdades imutáveis: o filósofo. O rapsodo, ao logo do diálogo, é duramente criticado e, por várias vezes, atacado por Sócrates pelos motivos de sua declamação. O questionamento e elucidação principais que Platão lança neste embate entre filósofo versus rapsodo, diz respeito quanto aos modos e meios de sua rapsódia desenrolando, para tanto, toda a genealogia do discurso poético, estabelecendo a relação desde o seu ponto de origem até uma sugestão da psicologia da recepção, propondo, assim, que o momento catártico entre os versos e a audiência já era analisado antes mesmo da “Poética” ser escrita por Aristóteles.
Neste contexto histórico, como nem todas as pessoas eram dotadas de capacidade mnemônica, conceitos abstratos como memória e inspiração poética eram considerados dons de origem divina, atribuídos pelos deuses a alguns poucos mortais. Isso está bem ilustrado nas epopéias heróicas, quando o poeta invocava as Musas. As Musas, por sua vez, constituíam o centro de convergência de todo o conhecimento poético. Temos representadas nelas, então, o uno , o todo ( ???? ) já que estão na base da cadeia de reações da exaltação poética.
O poeta é o meio de contado entre as Musas e, portanto, o método pelo qual todo o conteúdo poético toma forma a partir do furor poético de possessão divina. Para Platão, o momento poético se dá quando o poeta sai de um estado de consciência para dar lugar à divindade e toda sua arte para instituir , revelar a poesia. O poeta é, então, alguém entusiasmo ( e????s?asµ?? ): possuído pela divindade, com o deus dentro de si. A música vem de ambos poeta e divindade. O poeta é alguém inspirado pelos deuses, um possesso sem controle das próprias faculdades, movido por uma ação exterior, onde não utiliza a razão para sua expressão. Encarna em si mesmo o princípio de originalidade da profusão poética. Sem a presença dele o escritos não existiram, segundo essa teoria de Platão.
Enquanto o poeta é aquele ser inspirado pelos deuses, o rapsodo é aquele que retoma a obra dos poetas e as imita. É clara a crítica ao rapsodo – para Sócrates este seria o imitador da imitação.
As ácidas críticas dirigidas por Sócrates ao rapsodo estão estreitamente correlacionadas com o puro mimetismo deste que, por técnica mnemônica apenas decoram e reproduzem versos. Na recitação, é na moral que estes “oradores” (os rapsodos) vão buscar a sedução de sua fala. A fala dos recitadores continha o propósito da aparente certeza, “verdade” não meramente ilustrativa, mas como método de subordinar toda uma sociedade ao cânone cultural estabelecido.
A quebra da astúcia do rapsodo recai quando Sócrates ao instigá-lo a dizer sobre o quê em Homero o rapsodo consegue ter domínio. A resposta do rapsodo é de que possui domínio pleno sobre a obra do poeta. Essa plenitude é incompreensível para Sócrates uma vez que não acreditava na capacidade de conhecimento absoluto. Para o filósofo, era imprescindível uma conscientização de que a criação poética não carecia de conhecimentos meramente técnicos, tampouco de uma ciência.
A habilidade do rapsodo sobre Homero é mera ilusão, ou uma “inspiração divina” das Musas, mas sempre sem fundamentação “científica”, porque não provém de uma atividade intelectual. Ao longo do diálogo, o Sócrates platônico tenta e consegue destituir o rapsodo de qualquer caráter puramente artístico original. O declamador fica, portanto, despido de qualquer competência que antes acreditava ser dotado.
Certo é que o rapsodo detém uma técnica que recai somente no nível mnemônico. Íon é apenas fruto de uma época em que era privilegiado o valor da memória e da memorização. O único interesse da essência transeunte do rapsodo é a sua projeção social alavancada pelos concursos. Os rapsodos não apresentam nenhum caráter original por apenas reproduzirem o que o poeta e as Musas uma vez disseram.
Determinado ponto da genealogia poética se dá, evidentemente, por ácida ironia. A teoria de inspiração proposta por Sócrates institui uma crise na objetividade. Considerando que os diálogos de Platão possuíam Sócrates, seu mestre, como principal interlocutor para fazer com que suas idéias fossem registradas, temos que Platão deveria tomar certo cuidado ao expor Sócrates apenas como mero crítico em todas as instâncias. Caso Sócrates afirmasse diretamente que o rapsodo era puramente mimético , estaria reafirmando um das premissas de seu julgamento: o de corromper os alicerces daquela sociedade. Atacando diretamente todo o rapsodo e, por conseguinte, a base social que favorecia a permanência destes personagens na história da Grécia, Platão apenas reforçaria a imagem negativa de seu mestre. Mas faz o contrário: atribui uma irônica conotação divina à prepotência do rapsodo.
Em decorrência disto, o filósofo estabelece que o declamador é um entusiasmado , inspirado por deuses, à semelhança do poeta. A teoria da inspiração pode ser analisada como verdadeira quanto ao poeta, como um método de exaltar as qualidades da sua produção textual, mas a mesma teoria para justificar a mimetização do rapsodo serve unicamente como ironia para sustentar a impossibilidade de uma técnica da poesia e sua incapacidade de configurar algum saber sobre o todo poético.
Isto porque a concepção oposta da inspiração poética nasceu na Grécia de fins do século V, quando as exigências de memorização oral deixaram de ser dominantes e quando os objetivos funcionais da poesia como educação tribal estavam sendo transferidos para a construção de um novo tipo de discurso que podemos, grosso modo , caracterizar como conceitual em vez de poético. A experiência poética passou a ser relegada a uma categoria não-conceitual e, portanto, não racional e não reflexiva. [7] Os filósofos são o movimento de oposição à autoridade da tradição. [8]
Ainda que duramente criticado, Íon não consegue identificar o momento de pura ironia quanto à sua recitação e ainda se enaltece, acreditando que o dizer de Sócrates é, na realidade, um elogio. Sendo a rapsódia algo inerente na sociedade daquela época e até mesmo culturalmente enaltecida através das premiações, percebe-se que o que filósofo faz é uma crítica direta a homens puramente miméticos que fazem nada além de reproduzir, sem qualquer conhecimento crítico, valendo-se da fama dos antigos poetas.
“Os gregos davam a este reino do incalculável e da sublime burrice eterna o nome de Moira ( µ???a )” [9], afirmaria Nietzsche, onde o destino associa-se ao reino dos acasos e do inquestionável, donde pode-se associar a prepotência da rapsódia por compreender que eternamente fora seu destino contribuir com meras imitações, privadas de qualquer sabedoria que, para o filósofo, não se caracteriza como ciência ou técnica.
Enquanto vemos Sócrates como um transeunte que preconiza o diálogo com outros indivíduos para que dêem luz a novos pensamentos, vemos outro transeunte, o rapsodo que, embora não tenha nenhum ideal discursivo de elucubração e de dar à luz novas idéias, tem maior sucesso e respaldo naquele contexto. O que o filósofo almeja é a desapossar o rapsodo de um pedestal do qual ele não pertence e não detém qualquer qualidade para ali permanecer. Como Platão indica na “República”, essa diversidade de experiências dará origem à desordem quanto ao papel do homem na pólis . Mimesis como uma patologia de submissão é, por extensão, o nome do platônico medo do caos .
O Sócrates platônico lança idéias consideráveis modernas para o pensamento da época, ao criticar bruscamente a função da rapsódia, mas, ao mesmo tempo, dá explicações irônicas, arraigadas nos preceitos míticos-religiosos.
É do caráter do eufemismo amenizar as reações. Assim, para não ver prejudicada a figura de Sócrates por ir contra os preceitos morais da época, à fala de Sócrates são adicionadas explicações calcadas no processo mítico. A explicação da total incapacidade da rapsódia e, por conseguinte do rapsodo, por meio de explicações galgadas nos pressupostos míticos da sociedade, de certa forma, entusiasmam o indivíduo que está aqui sendo duramente criticado.
Íon , enquanto diálogo, questiona a função da declamação, indo contra a idéia do uso da arte poética com uma finalidade que, na Grécia Antiga, era utilizada como pretexto educacional para manter toda uma sociedade em constante vínculo com os antigos costumes. O objetivo seria, talvez, evidenciar, tanto poetas quanto seus intérpretes, que a poesia não pode ser ensinada cunhada em racionalismo e formalismo.
E então teríamos no diálogo de Platão um verdadeiro combate contra finalidade na arte, já que esse movimento de oposição é, necessariamente, um movimento contra sua tendência moralizante, contra sua subordinação à moral.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1.CARABATEA, Marilena. ???????? µ???????a . Athens: Adam Editions, 1997. Translated from Greek by David Hardy. p. 13.
2.HAVELOCK, Eric Alfred. “A psicologia da declamação poética”. In: Prefácio de Platão . Campinas: Papirus, 1996. Tradução de Enid Abreu Dobránzsky. p. 163
3.Idem . p. 174.
4. PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1997. Tradução de Enrico Convisieri. p. 126.
5. CARABATEA. Op. cit. p. 22.
6. BLOOM, Allan. “An interpretation of Plato's Ion ”. In: Giants and Dwarfs: Essays 1960-1990 . California: Touchstone Books, 1991. p. 139
7.HAVELOCK. Op. cit . p. 174
8.Idem . p. 389.
9. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. p 389
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