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Revista de História
versão impressa ISSN 0034-8309
Rev. hist. n.141 São Paulo dez. 1999
ARTIGOS
A presença do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no campo da educação superior: o projeto da Academia de Altos Estudos - Faculdade de Filosofia e Letras (1916-1921)
Lucia Maria Paschoal Guimarães
Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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RESUMO
O artigo analisa o projeto da Academia de Altos Estudos - Faculdade de Filosofia e Letras (1916-1921), estabelecimento privado de ensino superior, criado no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Apesar da curta existência, suas atividades foram suspensas em 1921, a iniciativa do IHGB constitui-se num ensaio pioneiro, sobretudo no que se refere à formação de professores de ensino médio.
Palavras-chave: Ensino de História; Ensino Superior; Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
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ABSTRACT
In this article the Author studies the creation, by the Historical and Geographical Brazilian Institute, of the 'Academy of High Studies and Faculty of Philosophy and Letters (1916-1921)', a private establishment of college education. Even though this was a very ephemeral iniciative (the Academy was ended by 1921) its activities were very innovative, specially if we consider the formation of high school teachers.
Keywords: History teaching; College education; Historical and Geographical Brazilian Institute
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Não tendo sido possível remover os embaraços que impediam o
desdobramento regular da instituição (...) resolvi oferecer ao Ministério,
de que V. Excia é o digno titular, todo o arquivo, (...), da referida
Faculdade. (...) Servirão os documentos, que constam da relação
inclusa, para evidenciar a nobre tentativa do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro em prol da criação de uma academia que
tantos lucros poderia proporcionar ao ensino superior1.
A polidez protocolar do Conde de Afonso Celso, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), não esconde o seu desapontamento, no ofício datado de 7 de agosto de 1926, dirigido ao então Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. Afonso Pena Júnior, para encaminhar a documentação da extinta Faculdade de Filosofia e Letras. A transferência daqueles arquivos encerrava uma experiência singular no campo do ensino superior no país, realizada pelo Instituto Histórico entre 1916 e 19212.
Aliás, podemos desde já afiançar, pouco se conhece acerca da existência dessa Faculdade, cujo corpo docente reuniu um conjunto de expressivos nomes da intelectualidade da capital da República. Os autores que tratam da história da educação no Brasil ignoramna. Desde os clássicos, a exemplo de Fernando de Azevedo, até os mais recentes, como Luís Antonio Cunha, Jorge Nagle e Otaíza Romanelli, entre outros (AZEVEDO, 1963, CUNHA, 1975, NAGLE, 1976, ROMANELLI, 1983). Afora a breve citação de Américo Jacobina Lacombe, no opúsculo escrito por ocasião da passagem dos cento e cinqüenta anos do Instituto, a única menção encontrada está na conhecida obra de Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, onde se lê: "Sabe-se que justamente em 1915, o Instituto Histórico criou uma Faculdade de Filosofia e Letras (paralela à Escola de Altos Estudos), que funcionou até 1920 e implicitamente denunciava o escândalo que era a inexistência, até então, de uma universidade brasileira" (MARTINS, 1978, p.29). Apesar dos dados incorretos, conforme veremos mais adiante, Martins revelaria um indício significativo da entidade, cuja breve trajetória, o historiador Max Fleüiss, um dos seus mentores, narra em diversas passagens dos três volumes do livro Recordando (FLEÜISS, 1943). Tais pistas, que iremos explorar neste trabalho, constituem um dos desdobramentos do projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo acerca das atividades do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o seu papel no panorama cultural do país, na primeira metade do século XX3.
No período 1910-1920, os meios beletristas brasileiros atravessavam uma fase de efervescente reafirmação dos sentimentos cívicos, que se multiplicou nas mais variadas direções. Sobretudo devido ao ambiente de inquietação gerado durante a Primeira Guerra Mundial, a propósito do torpedeamento de navios brasileiros e da indecisão do Governo em romper relações com a Alemanha. O interesse crescente pelas questões nacionais desaguaria na formulação de duas estratégias básicas de ação: para fazer frente ao perigo externo, defendia-se o serviço militar obrigatório. No combate ao perigo interno, a pregação centralizava-se na formação de uma consciência nacional, privilegiando-se, dentre outros aspectos, o estudo da história pátria e das tradições brasileiras4.
Os ventos do culto à nacionalidade também sopravam forte, pelos lados do Silogeu. Dentre outros empreendimentos, o Instituto realizou o Primeiro Congresso de História Nacional, sintomaticamente aberto no dia 7 de setembro de 19145. A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, daqui por diante denominada apenas de Revista, imprimiu o Dicionário de Brasileirismos de Rodolfo Garcia, com a indicação de "peculiaridades pernambucanas", composto especialmente para suprir deficiências e lacunas do léxico português, de Cândido Figueiredo (REVISTA, 1913). Publicou, logo em seguida, o inédito de Francisco Adolfo de Varnhagen - História da Independência do Brasil, anotado pelo Barão do Rio Branco e Rodolfo Garcia, bem como a festejada conferência de Max Fleiüss, Francisco Manuel e o Hino Nacional (REVISTA, 1916). Qual um maestro, à frente daquele coral de vozes afinadas, o Conde de Afonso Celso, autor do livro Por que me ufano do meu país, já era reconhecido publicamente como o "chefe venerável do nacionalismo brasileiro" (MARTINS, 1978, p.191).
Generalizava-se, dentre os associados do Instituto, a crença de que era preciso revelar o Brasil aos brasileiros pelo caminho das letras. Ao que tudo indica, o caminho fora aberto por Alberto Torres que, ao tomar posse no Instituto como sócio efetivo em 1911, num discurso emblemático, sentenciou: "(...) nossa causa é o homem (...) para quem o dever da cultura e a dignidade do aperfeiçoamento consistem no apuro do amor pelo semelhante e no esforço para elevá-lo ao seu nível" (REVISTA, 1911,p. 704). Logo em seguida, na primeira sessão ordinária a que compareceu, ele procurou oferecer um projeto para pôr em prática suas reflexões: o estabelecimento de uma associação encabeçada pelo IHGB, que congregasse as grandes notabilidades da inteligentzia nacional, denominada de Universidade Brasileira, onde se deveria inserir um Centro de Estudos de Problemas Brasileiros, direcionado especificamente para o exame "(...) dos problemas gerais e permanentes da nação e da sociedade brasileira" (REVISTA, 1911, p. 455). Alberto Torres, inclusive, desenvolveria essa proposição de modo mais pontual, ao formular o seu conhecido projeto de revisão constitucional, trabalho que mais tarde seria apensado ao livro A Organização Nacional, editado em 19336.
Apesar da recepção altamente favorável, a pretendida Universidade Brasileira, nos moldes enunciados pelo ensaísta, nunca saiu do papel. Porém, a idéia do Centro de Estudos de Problemas Brasileiros, permaneceu latente no grêmio. De quando em quando, durante as sessões acadêmicas, ventilava-se a necessidade de se discutir a sua implementação. O sócio Ramiz Galvão, por exemplo, citando Leibnitz, não se cansava de repetir: "Quem é dono da educação é dono do mundo..." (REVISTA, 1915, p. 743). De concreto, mesmo, promoveu-se um ciclo de cursos, abertos à comunidade, que obtiveram repercussão positiva, não apenas nos círculos letrados do Rio de Janeiro, como também junto público em geral.
A programação desses cursos apresentava um caráter pedagógico bem definido: num primeiro momento, procurava-se traçar um panorama geral do país e, em seguida, partia-se para o exame de questões mais pontuais. Assim, o ciclo iniciou-se, em dezembro de 1913, com a problemática Aspectos gerais do Brasil, apresentada em quatro conferências pelo engenheiro e geógrafo Alberto Rangel. O segundo curso, ministrado pelo historiador José Vieira Fazenda, denominou-se Aspectos do período regencial do Brasil. A seguir, sob o título Bandeirismo no Brasil, Basílio de Magalhães realizou um conjunto de palestras direcionadas para o estudo da expansão e da formação do território nacional. Já advogado e jurista Aurelino Leal discorreu sobre a História da Constituição do Brasil, enquanto que Arthur Pinto da Rocha focalizou a História Diplomática do Brasil. Por sua vez, as problemas relativos à economia do país foram objeto das análises de Viveiros de Castro e de Ramalho Ortigão, que trataram, respectivamente, da História Tributária e da História Financeira do Brasil. Encerrando o ciclo, em outubro de 1915, Ernesto da Cunha de Araújo Vianna, privilegiava a cultura nacional, abordando o tema Artes Plásticas no Brasil7.
Dado o primeiro passo, o Instituto Histórico animouse a patrocinar um outro empreendimento, também de cunho pedagógico, bastante pragmático por sinal, idealizado por Manoel de Oliveira Lima e Delgado de Carvalho8. Na ótica dos letrados que freqüentavam o IHGB, conhecer a realidade do país e seus problemas, apenas, não bastava. Era preciso modificá-la. Neste sentido, entendiam que a escolarização, em todos os níveis, se constituía num instrumento poderoso de correção do processo evolutivo e capaz de impulsionar o progresso da sociedade brasileira (NAGLE, 1976).
A iniciativa visava à criação de uma Escola de Ciências Políticas e Administrativas, direcionada à formação de "(...) funcionários para os ministérios do Exterior, da Fazenda e da Agricultura, Indústria e Comércio, bem como para as administrações estaduais". Pretendia-se, deste modo, preencher uma grave lacuna, deixada pelas Faculdades de Direito, onde fora abolido o curso de ciências sociais, em conseqüência das reformas promovidas durante a gestão de Benjamin Constant Botelho de Magalhães no Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, nos primeiros anos do regime republicano (NAGLE, 1976, p.126).
A proposta tomava como modelo entidades congêneres, que existiam nas cidades de Paris e Londres9. Quanto à estrutura e funcionamento, a pretendida Escola trazia marcas altamente inovadoras. Integravam-na três seções, a saber: Seção Diplomática, Seção Financeira e Seção Econômica, que deveriam constituir-se tal qual hoje se organizam os departamentos nas instituições de ensino superior. Os cursos teriam a duração de dois anos e o currículo, bem flexível, diga-se de passagem, estabelecia disciplinas fundamentais, regulares e facultativas. O plano de estudos, embora não fixasse uma carga horária mínima, estipulava a oferta de 20 a 25 preleções por matéria. No que se refere aos critérios de avaliação, afora a exigência de freqüência mínima obrigatória, previase a realização de exames, no encerramento de cada período letivo. Ao final do último ano, os alunos deveriam apresentar suas "... teses (composições escritas, de 50 páginas em média)... obrigatoriamente sobre assuntos nacionais" (REVISTA, 1915, p.791). Além dos discentes regularmente matriculados, poderiam ser admitidos ouvintes, em regime especial.
Arrojado, o plano de trabalho não cogitava de seriações essencialmente escolares, nem da expedição diplomas ou de certificados, porquanto defendia-se a premissa de que: (...) O diploma de cada seção, exigindo conhecimentos efetivos e práticos, constituirá, em conseqüência, numa recomendação para a administração pública (REVISTA, 1915, p. 789; o grifo é nosso). Ou seja, ainda atrelado ao que Gilberto Amado qualificou de irresistível inclinação ao emprego público", Oliveira Lima preocupara-se em oferecer novas opções à juventude da época, mais ágeis do que o formalismo dos cursos de direito, alvo da crítica ácida de intelectuais como Silvio Romero, Júlio Ribeiro e Eduardo Prado (Cf. FILHO, 1982).
Por indicativo do Conde de Afonso Celso, uma Comissão ficou encarregada de estudar o projeto, propor as mudanças que se fizessem necessárias e elaborar o regimento da Escola. Esse grupo de trabalho, ao final de inúmeras reuniões, submeteu à plenária do Instituto Histórico o Regulamento e o Programa dos cursos. O plano original sofreu diversas alterações, a começar pela denominação da nova instituição, que passou a se chamar Academia de Altos Estudos10. Aprovou-se a criação de dois cursos, que começaram a funcionar, em abril de 1916: o primeiro, destinava-se a habilitar os candidatos que aspiravam a carreira diplomática ou consular. O segundo, a preparar aqueles que desejavam seguir a carreira administrativa ou financeira. Apesar de se constituir numa iniciativa privada, o empreendimento parecia receber a chancela dos poderes públicos, porquanto a aula inaugural, ministrada em 20 de abril de 1916 pelo Dr. Amaro Cavalcanti, Diretor da Instrução Pública, contou com a presença do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, a quem estavam afetos os assuntos educacionais no país, e de representante do Presidente da República (FLEIÜSS, 1943).
Dotada de um conjunto de professores de altíssima qualificação, encabeçado por intelectuais do porte de Ramiz Galvão, Afonso Celso, Max Fleiüss, Clóvis Bevilacqua Afrânio Peixoto, Roquete Pinto, Alfredo Gomes, Laudelino Freire e Ramalho Ortigão, além dos cursos regulares, a Academia promoveu a realização de seminários especiais, abordando dentre outros assuntos, Filosofia da Arte, Teoria Matemática das Operações Financeiras e A Questão Social11. Apesar de recém implantada, a experiência parecia bem sucedida. Tanto assim, que no Relatório Anual do Secretário Perpétuo do IHGB, relativo ao exercício de 1918, lê-se: "(...) A Academia de Altos Estudos (...) tem hoje existência completamente autônoma, achando-se unicamente na dependência das salas disponíveis do Instituto". Mais adiante, o Relatório apresentava um voto de louvor ao corpo docente (...) pelo grau de aproveitamento, ordem e métodos adotados (REVISTA, 1918, p. 538).
Naquela mesma ocasião, por sinal, já estavam em andamento as discussões com o objetivo de transformar a Academia numa Faculdade de Filosofia e Letras. Se o projeto de capacitação de recursos humanos para os quadros da burocracia republicana vinha se desenvolvendo a contento, chegara o momento de se atacar um outro ponto vulnerável do sistema de ensino, que se constituía num disparate, de acordo com a percepção do Deputado José Augusto Bezerra de Medeiros, a formação de professores secundários:
(...) No Brasil, como por toda parte, o bom senso e a necessidade obrigaram a criação de escolas normais, destinadas ao preparo de professores idôneos ao ensino primário. Só no Brasil, porém, os professores desses "normalistas", futuros alunos-mestres, não têm onde se preparar, e se improvisam de qualquer médico, bacharel, engenheiro, ou curioso. Chega-se, assim, ao colossal disparate, que, entretanto, não percebemos até agora: para ensinar a uma criança na aula primária é preciso um mestre com tirocínio normal; para ensinar, entretanto esse ensino normal serve e basta qualquer sujeito, com ou sem preparo"12.
Habilitar pessoal para o magistério secundário, eis a nova missão a que propunham os intelectuais do IHGB. A leitura da correspondência entre Afrânio Peixoto e Max Fleiüss deixa evidente essa intenção. Os dois confrades trocavam idéias, a princípio, sobre os possíveis cursos e programas a serem oferecidos e os respectivos professores, sobretudo aqueles que deveriam incumbir-se do ensino das matérias que constituíam as ditas ciências da educação. O conceituado médico pediatra Fernandes Figueira, por exemplo, seria lembrado para regente de uma cadeira, cujo conteúdo privilegiaria (...) o estudo dos hábitos, costumes, tendências, capacidades, possibilidades das crianças; espécie de psico-fisiologia grossa, aplicada à vida. Se a temática e a relevância desta "disciplina" pareciam inquestionáveis, restavam dúvidas quanto à denominação que deveria tomar: Estudo da criança e do adolescente ou Estudo da criança e do adolescente: Pedologia, indagava Afrânio Peixoto? A segunda alternativa, do ponto de vista etimológico, parecia-lhe mais correta, considerando a imperiosa necessidade de (...) educar o brasileiro até pelo programa.(...) assim se define a coisa, para a malícia ignorante dos brasileiros trocistas13.
Outro ponto de controvérsia girava em torno da definição precisa dos campos do conhecimento que a planejada instituição de ensino iria contemplar, o que implicava em discutir a sua própria denominação. Clemente Brandenburger outro sócio do IHGB que também fora consultado a esse respeito, opinava que o projeto poderia ficar restrito apenas ao ensino das humanidades, sugerindo a criação de uma Faculdade de Ciências, Filosofia e Letras. Afrânio Peixoto, no entanto, considerava a proposta de Brandenburger muito ambiciosa. Argumentava que, nas condições disponíveis, a opção mais modesta - uma Faculdade de Filosofia e Letras, parecia-lhe a alternativa viável. Afinal, justificava-se: (...) em Filosofia se incluem todas as ciências (...) será arriscado querendo obter tudo, fechar tudo14.
Finalmente, após longos e exaustivos debates, na sessão de 13 de março de 1919, a Congregação da Academia de Altos Estudos tomou a resolução de reformular os seus Estatutos, aprovando a sua transformação na Faculdade de Filosofia e Letras do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o respectivo Regulamento, que foi registrado no Cartório de Registro de Títulos e Documentos do Dr. Álvaro de Tefé, e publicado no Diário Oficial nos dias 20 de março e 06 de junho de 1919. O recém criado estabelecimento de ensino superior, possuía uma estrutura administrativa ágil. Poucos funcionários, direcionados exclusivamente para as atividades de registro escolar e tarefas afins. Os vínculos com a entidade mantenedora, entretanto, ficavam assegurados, por meio da presença na sua Congregação, tanto do Presidente, quanto do Secretário Perpétuo do IHGB, a quem estavam reservados os cargos de Diretor e de Secretário da Faculdade. A cobrança de taxas e mensalidades, cujos valores estavam fixados no próprio Regulamento, deveriam garantir a sua auto-suficiência financeira15.
Sem negligenciar dos propósitos da antiga Academia, ou seja, de formar pessoal para a administração pública, a Faculdade dedicava um cuidado especial no preparo de quadros para o magistério secundário. Inspirada no modelo da Escola Normal Superior de Paris, publicaria, periodicamente, os seus Anais, onde seriam reproduzidos textos de aulas, pesquisas e trabalhos inéditos dos professores. Tratava-se de um projeto pedagógico bem formulado, que reuniu a grandes personalidades do circuito acadêmico do Rio de Janeiro. Sua finalidade principal era "(...) promover a realização de cursos científicos, artísticos e literários, de aperfeiçoamento ou de especialização para o magistério secundário, segundo necessidades reconhecidas e vantagens presumíveis para a cultura nacional. Na consecução deste propósito, ficavam instituídos os seguintes cursos permanentes: Curso de Ciências Políticas e Sociais; Curso de Filosofia e Letras; Curso Normal Superior, este último subdividido em seis habilitações: Línguas Clássicas (grego e latim); Línguas Modernas (português, inglês, francês, espanhol, alemão e italiano); Ciências Matemáticas; Ciências Históricas e Geográficas; Ciências Físicas e Naturais e Ciências da Educação. O primeiro, herança da Academia de Altos Estudos, teve a sua duração estendida para quatro anos. Os demais, deveriam ser integralizados em três anos. Aos egressos dos Cursos de Ciências Políticas e Sociais e de Filosofia e Letras seriam conferidos o grau e o título de bacharel, e o de professor aos concluintes do Curso Normal Superior16.
Embora constem do Regulamento as grades curriculares de todos os cursos permanentes, neste trabalho iremos nos deter, somente, na análise do rol de matérias pertinentes à formação de professores secundários na habilitação Ciências Históricas e Geográficas, já que nas fontes disponíveis não se encontram os respectivos programas e bibliografias básicas. Como se poderá observar, o currículo estruturava-se sobre as mais modernas teses, que orientavam o conhecimento histórico naquela época.
O elenco de disciplinas propostas (quadro próx. página) indica algumas tendências, que merecem um breve comentário. Em primeiro lugar, fica clara a problemática das relações da história com a geografia, segundo os enfoques deterministas de Ratzel. A ordenação e a distribuição das matérias seguem os princípios enunciados pelo geógrafo alemão, calcados no fatalismo das ciências naturais, que se resumem na fórmula O meio faz o homem (HIGOUNET, 1973). Conceito, aliás, partilhado por diversos associados do IHGB, a exemplo do Dr. Gentil de Moura Assis, que afirmava: (...)o geógrafo de hoje é irmão estremado do historiador, assessores ambos do estadista (...)Inútil estudar a formação das nacionalidades, de suas riquezas ..., sem atender às condições físicas do solo (REVISTA, 1920, p. 420).
A presença da cadeira de Introdução aos estudos históricos, formando um só bloco de conhecimentos, juntamente com a arqueologia, a numismática, a paleografia e a diplomática - as chamadas ciências auxiliares, demonstra o cuidado de se incorporar ao currículo os preceitos da escola metódica, ou seja, daquele conjunto de regras aplicáveis aos estudos históricos, definidas por Langlois & Seignobos em 1898, num compêndio que serviu de Bíblia durante muito tempo para os especialistas17.
Outro aspecto que vale a pena destacar, diz respeito à preocupação com a problemática da história da América. Este direcionamento para as questões do continente, iniciado no Instituto Histórico por orientação do Barão do Rio Branco, teve continuidade na gestão do Conde de Afonso Celso, culminando com a realização do Primeiro Congresso Internacional de História da América, em 1922 (GUIMARÃES, 1997).
Os estudos de História da Língua Portuguesa, Dialetologia e Estilística e de Psicologia e sua aplicação à Pedagogia, por seu turno, constituíam uma espécie de núcleo comum do Curso Normal Superior. O mesmo se pode dizer quanto à disciplina Metodologia do ensino, guardadas as peculiaridades da habilitação pretendida.
A 10 de junho de 1920, com a presença do Presidente. Epitácio Pessoa e outras autoridades do Governo, realizou-se a colação de grau da primeira turma de bacharéis em ciências políticas e sociais. Titularam-se Alfredo Augusto Ribeiro Júnior, Álvaro Simonette, Artur Cesar da Rocha, Cesar de Mesquita Serva, Ernani de Figueiredo Cardoso, José Inácio da Rocha Werneck Júnior, Manuel Felício dos Santos, Milton de Oliveira Sucupira, Rodolfo Rollim Pinheiro, Ruy Pinheiro Guimarães e Salvador Antonio Russomano18.
Entretanto, nem o brilho daquela solenidade, nem o prestígio que a instituição desfrutava, nem os bons resultados alcançados foram capazes de impedir que a Faculdade de Filosofia e Letras cerrasse suas portas, no ano seguinte. Os obstáculos ao seu funcionamento, de acordo com nossas pistas, intensificaram-se, quando o Deputado Federal José Augusto Bezerra de Medeiros apresentou um projeto de lei com objetivo de considerála de utilidade pública. Pelo mesmo dispositivo, o parlamentar pretendia o reconhecimento dos seus diplomas, equiparando-os aos dos bacharéis do Colégio Pedro II. Além disso, pleiteava que se concedesse preferência nos concursos públicos, aos professores egressos do Curso Normal Superior. Segundo o testemunho de Max Fleiüss, "resultou daí uma campanha tenaz contra esse empreendimento, considerado como um temível concorrente. E nesse particular, com muitíssima razão" (FLEIÜSS, 1943). Tudo leva a crer que no bojo dessa campanha inseria-se uma questão de fundo, ou seja, a fragilidade da recém criada Universidade do Brasil e a problemática do ensino superior gratuito.
As fontes disponíveis não indicam a existência de formaturas no âmbito das habilitações do Curso Normal Superior. Mencionam apenas a colação de grau de dois bacharéis em Filosofia e Letras, os alunos Heitor Pereira e Manuel Azevedo da Silveira Netto. Há indícios, no entanto, de que até meados de 1921, pelo menos, aqueles cursos teriam funcionado regularmente, uma vez que os programas dos exames finais, bem como as respectivas atas continuavam sendo publicadas no Diário Oficial19.
Curiosamente, hoje em dia, em cumprimento ao disposto na recém aprovada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, discute-se a viabilidade da criação dos Institutos Superiores de Educação20, onde se pretende implantar o curso normal superior. O título certamente se inspira na École Normale Supérieure, o tradicional estabelecimento francês da rue d' Ulm, que também servira de modelo ao IHGB, na sua frustrado ensaio de habilitar pessoal para o magistério. As coincidências entre o projeto e o do Instituto Histórico são tantas, que se não soubéssemos que a documentação da Faculdade fora consumida pelo fogo, ficaríamos tentados a imaginar que os legisladores de 1996 por certo conheciam a experiência pioneira de 1910 ...
Bibliografia
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1 Ofício do Conde de Affonso Celso, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. Affonso Penna Júnior, datado do Rio de Janeiro, 7 de agosto de 1926. IHGB (Arquivo, lata 644, pasta 35).
2 De acordo com Américo Jacobina Lacombe, essa documentação arquivada no Departamento Nacional de Ensino teria sido consumida pelo fogo, num incêndio que houve no Rio de Janeiro, conhecido como "incêndio do Edifício Regina". (LACOMBE, 1989, p. 97-98).
3 Projeto de Pesquisa "Sob os auspícios das autoridades republicanas: a trajetória do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na primeira metade do século XX", que conta com apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade 1998-2002); ver, também, Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938) (GUIMARÃES, 2000).
4 A respeito da campanha para a promoção do serviço militar obrigatório, veja-se a polêmica entre Alberto Torres e Olavo Bilac (Cf. SOBRINHO, 1968, p.287-403).
5 Veja-se "Anais do Primeiro Congresso de História Nacional", Revista do IHGB, Rio de Janeiro, número especial, 1914-17, 5 volumes. [ Links ]
6 Ver o Art. 103 do Projeto de Revisão Constitucional elaborado por Alberto Torres. Na estrutura desse órgão, denominado de Instituto de Estudo dos Problemas Nacionais, Torres previa a criação de uma Faculdade de Altos Estudos Sociais Políticos para a formação das classes dirigentes e governantes (TORRES, 1933, p. 513-4).
7 As conferências do engenheiro e geógrafo Alberto Rangel foram pronunciadas no período de 02 de dezembro de 1913 a 08 de janeiro de 1914; o curso de Basílio de Magalhães, foi dado entre 18 de maio e 03 de junho de 1914; as preleções de Aureliano Leal estenderam-se de 15 de outubro a 11 de novembro do mesmo ano; as de Arthur Pinto da Rocha de 21 de dezembro de 1914 a 04 de março de 1915. O curso ministrado por Viveiros de Castro, bem como as preleções dos dois autores anteriores foram publicadas pela REVISTA, em 1914 e 1915, nos números, 129, 130 e 131.
8 Coube a Max Fleiüss, grande entusiasta das idéias de Oliveira Lima, apresentar o projeto, em sessão ordinária do IHGB (REVISTA, 1915, p. 789-0).
9 Oliveira Lima referia-se, especialmente, aos seguintes estabelecimentos: École des Sciences Politiques e École des Hautes Études Commerciales, de Paris, e London School of Economic and Political Science.
10 O grupo de trabalho era integrado pelos associados Ramiz Galvão, Epitácio Pessoa, Augusto Tavares de Lyra, Arthur Pinto da Rocha, Max Fleiüss, Gomes Ribeiro, Homero Batista, Miguel Calmon e Manoel Cícero IHGB (Arquivo, Lata 644, Pasta 35). Ver, ainda, Max Fleiüss, Recordando ....
11 O seminário "Filosofia da Arte" foi ministrado por José Júlio Rodrigues (agosto - setembro, 1917). O de "Teoria matemática das operações financeiras", por Joaquim Inácio de Almeida Lisboa (setembro de 1917-janeiro de 1918). O tema "Questão social", foi discutido pelo Ministro Augusto Olímpio Viveiros de Castro (1919).
12 Cf. "Projeto de lei apresentado pelo Deputado José Augusto Bezerra de Medeiros em 10 de maio de 1921" IHGB (Arquivo, Lata 475, pasta 23).
13 Carta de Afrânio Peixoto a Max Fleiüss, IHGB (Arquivo, Lata 473, Pasta 55, n. 10).
14 Clemente Gaspar Maria Brandenburger era alemão, naturalizado brasileiro. Doutor em Filosofia, pela Universidade de Heidelberg, foi eleito sócio do IHGB em 1919; e, ainda, a carta de A. Peixoto a M. Fleiüss, op. cit.
15 Cf. "Regulamento da Faculdade de Filosofia e Letras (Antiga Academia de Altos Estudos)", IHGB (Arquivo, Lata 475, Pasta 23); ver especialmente o Artigo 34 do Regulamento. A taxa de exame de admissão estava fixada em 15$, enquanto que a matrícula em 10$. As mensalidades variavam entre 20$ e 25$ para os alunos regularmente matriculados. Alunos ouvintes pagavam entre 10$ e 15$ de mensalidade por cada curso.
16 Dentre outras personalidades da intelectualidade do Rio de Janeiro, citam-se: Alfredo Bernardes da Silva, Delgado de Carvalho, Arthur Pinto da Rocha, Aurelino de Araújo Leal, João Martins de Carvalho Mourão, Amaro Cavalcanti, Ramalho Ortigão, Gastão Ruch Sturzenecher, Agenor de Roure, Basílio de Magalhães, Nuno Pinheiro, Manuel Álvaro de Sousa Sá Viana, Alfredo Gomes, Ernesto da Cunha de Araújo Viana, Alfredo Gomes, Afrânio Peixoto, Solidonio Leite, Jonathas Serrano, Manuel Amoroso Costa, Adrien Delpech, José Maria Moreira Guimarães, Antonio Olynto dos Santos Pires; e, quanto aos cursos, ver Regulamento da Faculdade de Filosofia e Letras, op. cit.
17 Ver BOURDÉ e MARTIN (1990). O manual de Langlois e Seignobos, que iria sofrer um ataque sem trégua do grupo de Annales, foi recentemente reabilitado pela historiografia francesa graças a Madeleine Rebérioux (REBÉRIOUX, 1992, p. 55).
18 Cf. "Ofício do Conde de Afonso Celso ao Ministro da Justiça, datado de 07 de agosto de 1926" IHGB (Arquivo, Lata 644, Pasta 35).
19 Ver, dentre outros, Diário Oficial de 02 de julho de 1921; IHGB, "Recortes de jornais sobre a Faculdade de Filosofia e Letras" (Arquivo do IHGB, Lata 644, pasta 33).
20 "Lei n. 9394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996 (especialmente o Título VI, artigo 63); comparar com a "Minuta de Anteprojeto de Resolução – Institutos Superiores de Educação. Dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação, considerados os Artigos 62 e 63 da Lei n° 9394/96 e Art. 9°, Parágrafo 2°, letra 'h', da Lei n° 9131/95". Agradeço esta fonte aos Professores Isac João de Vasconcellos e Maria Luísa Pontes, respectivamente Diretor e Vice-Diretora da Faculdade de Educação da UERJ.
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