sábado, 6 de outubro de 2012

história da literatura portuguesa

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A história da literatura portuguesa:

paradigmas, impasses e retornos

Carlos Manuel Ferreira da Cunha 1

Resumo: A história da literatura portuguesa vive num impasse que data de meados do

século XX, em função da ruptura do seu paradigma dominante (romântico-positivista). A partir dos

anos 50 e 60, começou a impor-se no campo dos estudos literários um paradigma dominado pela

Teoria da Literatura, que concedia a primazia à dimensão estética das obras literárias e à leitura

imanente dos textos.

Palavras-chave: história literária, literatura portuguesa, paradigmas, impasses.

A história da literatura portuguesa fundou-se no último quartel do século XIX,

fruto de uma aliança entre um paradigma romântico-positivista, modelado por Teófilo

Braga (com base na história política, na pesquisa de factos e na biografia), e a filologia, cuja

figura dominante foi Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que se dedicou de modo particular

à edição crítica de textos medievais e renascentistas.

Este modelo resultou de um conjunto de crenças e pressupostos românticos, hoje

desacreditados, inspirados em Vico e Herder. Em primeiro lugar, destaca-se a crença na

capacidade criadora dos povos autóctones, de acordo com os seus caracteres étnicos, a

localização geográfica, o clima, a religião e um dado momento histórico. A fonte da

literatura era o “espírito nacional” ou a “alma dos povos”, de onde brotava a poesia natural,

colectiva e original, que emergia de modo particular nas épocas heróicas/primitivas.

Para esta imbricação da literatura (e da língua) na nação (e na sua história) foi

também decisivo o contributo da emergente filologia histórica. Friedrich A. Wolf, um dos

seus principais fundadores, levantou a “questão homérica”, ao afirmar em 1795 que a Ilíada

e a Odisseia eram o resultado da transcrição, com alterações (aquando da invenção da

escrita), dos cantos dos aedos ou rapsodos que circulavam na tradição oral, e não o

produto de um escritor individual (Homero). Por analogia, a Idade Média passou a ser

perspectivada como a época heróica/primitiva das modernas literaturas (nacionais) e o

escritor (sobretudo na épica) transformou-se numa espécie de rapsodo, um “Homero” dos

1 Professor Associado de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade

do Minho. E-mail: carmel@ilch.uminho.pt

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tempos modernos. Esta concepção da "poesia popular" como poesia nacional e

original/orgânica foi um dos elementos travejadores do discurso da história literária,

conduzindo à releitura do legado clássico e à sua “romantização”, como sucedeu com a

epopeia camoniana e com Camões.

A filologia permitiu a revisão desta perspectiva etnológica em Portugal, com a

descoberta e o estudo dos Cancioneiros, desde o último quartel do século XIX,

concluindo-se que a tradição nacional se tinha constituído com base na literatura culta e

europeia 2. A literatura passou assim a ser entendida como uma forma de expressão da

sociedade e o génio artístico como o representante e o tradutor da consciência colectiva.

Nesta lógica, a história literária era encarada como um reflexo da historiografia geral, da

marcha da civilização3. Nas palavras de Teófilo Braga, a literatura processava a síntese afectiva

dos povos pela mediação do escritor individual, a sede onde se operava a expressão da

emoção comum, da tradição nacional, "reflectindo a marcha da corrente histórica. Os

maiores génios são os que mais profundamente representam uma civilização."4

Deste modo, a literatura e os escritores são enquadrados num dado espaço

nacional, ao longo da sua história. Este facto foi marcante para a estruturação da história

literária, que se apoiou na periodologia da história nacional, destacando-se em cada época

os autores que melhor a “representavam” e que no seu conjunto passaram a constituir o

“cânone nacional”. O critério nacional tornou-se assim dominante e sobrepôs-se à

dimensão literária (o conceito de literatura, na sua acepção mais restrita, não estava muito

distante do actual).

Segundo Friedrich Schlegel, na sua História da literatura antiga e moderna, o critério

nacional fornecia um ponto de vista simples para ajuizar com facilidade e segurança: "C' est

le point de vue moral qui rapporte tout à la question de savoir si une littérature est

entièrement nationale, parfaitement adaptée à la prospérité nationale et à l' esprit

nationale."5

2 Cf. Braga, Teófilo, História da Literatura Portuguesa - Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa

da Moeda, 1984 [1909], p. 62.

3 Costa-Lima, Luiz, "Auerbach e a história literária", Colóquio/Letras, n.ºs 129-30, pp. 24-5, 1993.

4 Braga, Teófilo, op. cit., p. 126.

5 Schlegel, Friedrich, Histoire de la Littérature Ancienne et Moderne, trad. de William Duckett, Paris, Th.

Ballimore; Genève, Cherbuliez, 1829 [1815], vl. II, p. 108.

3

É nesta lógica que o próprio critério literário é com frequência considerado

insuficiente para a avaliação dos escritores, como observam Antero de Quental e Teófilo

Braga a propósito de Camões (embora com interpretações diferentes):

"N' este ponto de vista, historico e psychologico, não do ponto de vista meramente litterario d'

uma esteril poetica de convenção, é que os Lusiadas devem ser estudados e comprehendidos"6.

"O estudo de Camões não póde ser feito exclusivamente pelo lado litterario; visto assim

era grande, mas incompleto. Ha n' elle uma feição organica, que explica os problemas da litteratura e

da raça."7.

A prevalência deste critério nacional conduziu assim a um desfasamento entre a

dimensão histórico-nacional e o critério literário (com fronteiras que não coincidem com as

dos Estados-nação), responsável em grande parte pelos impasses actuais da história

literária, que se tornaram visíveis quando se procurou orientar a história da literatura de

acordo com princípios exclusivamente literários.

II

Em Portugal, esta “viragem” realizou-se em grande parte através da obra de

Fidelino de Figueiredo, que rejeitou de modo liminar o modelo positivista de Teófilo Braga

e foi o iniciador de uma moderna história da literatura portuguesa, centrada numa

perspectiva estético-literária8. Ao mesmo tempo, relegou a filologia para um segundo plano,

afirmando que era um domínio específico dos medievalistas9.

No entanto, acabou por dedicar-se sobretudo à análise estética das obras literárias

enquanto criação individual (na perspectiva de Croce), numa abordagem ensaística.

6 Quental, Antero de, Considerações sobre a Philosophia da Historia Litteraria Portugueza (a proposito d' alguns

livros recentes), Porto/Braga, Livraria Internacional de Ernesto Chardron e Eugenio Chardron, 1872,

p. 28 (destaque nosso).

7 Braga, Teófilo, História de Camões, Porto, Imprensa Portuguesa, 1873, p. 2 (destaques nossos).

8 Figueiredo, Fidelino de, História Literária de Portugal (Seculos XII a XX), Coimbra, Nobel, 1944, p. 8.

9 Figueiredo, Fidelino de, Historia da Critica Litteraria em Portugal. Da Renascença á Actualidade, 2ª ed.,

revista, Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1917 [1916], p. 147.

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Acercou-se ainda do modelo da crítica literária do grupo da Renascença Portuguesa e da

Presença, que defendia a crítica baseada na empatia do leitor. Esta viragem enquadra-se

assim nas tendências anti-históricas do primeiro quartel do século XX, presentes na

estilística romântica e no new criticism anglo-americano, entre outros.

A linha de ruptura com a história literária acentuar-se-ia em meados do século, com

Jacinto do Prado Coelho, pela mediação da estilística. Em 1952, num ensaio sobre a

“Problemática da história literária”, põe em questão a oposição binária entre "literatura

como arte" e "literatura como documento", entre crítica (estilística) e história (da cultura),

que se propõe superar, defendendo que se devia historiar o lado estético10. Deste modo,

problematiza, como o título do seu ensaio indica, a condição da história literária, em geral, e

da história da literatura portuguesa, em particular, sublinhando o seu carácter híbrido:

"O que entre nós, como lá fora, se chama História Literária não passa, habitualmente, de

História da Cultura que dá relevo mais ou menos acentuado à realidade literária: biografias dos

autores e análise interna e externa das obras. Este género híbrido é uma fonte permanente de

equívocos; a matéria não elaborada esteticamente, as ideias de moralistas e pedagogos e a boa

informação dos historiadores aparecem no mesmo plano que as autênticas obras literárias,

entendida a Literatura como Arte. Um Damião de Góis, um Verney, um Fortunato de Almeida

figuram a par dum Gil Vicente, dum Garrett, dum Camilo Pessanha. Os escritores são

ambiguamente valorizados ora como personalidades práticas, pelas suas ideias e acções, ora como

personalidades estéticas.”11

Põe assim em relevo o impasse a que nos temos vindo a referir, apontando ao mesmo

tempo para o rumo que uma história da “literatura” deveria seguir:

“História literária digna desse nome seria aquela que nada encerrasse que não contribuísse

para a mais completa compreensão e o mais exacto julgamento das obras literárias enquanto obras

estéticas. Seria, efectivamente, uma história da literariedade, instituída por Jakobson como objecto

específico da 'ciência da literatura'."12

A duplicidade de critérios da história literária torna-se especialmente embaraçosa no

estabelecimento da periodologia da literatura portuguesa, que se apoia sobretudo numa

cronologia político-cultural (ora segundo critérios nacionalistas, ora com base em

comparações constantes com as literaturas neolatinas), que não é capaz de dar conta da

10 Coelho, Jacinto do Prado, Problemática da História Literária, 2ª ed. revista e aumentada, Lisboa,

Ática, s/d, p. 10.

11 Idem, ibidem, pp. 36-7 (destaque nosso).

12 Idem, ibidem, p. 38.

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especificidade temporal da literatura, na medida em que se rege por critérios extrínsecos ao

campo literário (étnicos, geográficos, etc.).

Com efeito, os primeiros historiadores da literatura portuguesa estabeleceram os

períodos literários de acordo com a existência de épocas originais ou nacionais e de épocas

imitativas ou de influência estrangeira. Aliás, em termos europeus, as histórias da literatura

estruturavam-se em função da existência de épocas/escolas nacionais e de épocas/escolas

de imitação de literaturas estrangeiras. O percurso histórico e o valor de cada literatura

eram deste modo aferidos em função da fidelidade a esse "espírito nacional". No caso da

história da literatura portuguesa, da conjugação do critério romântico da originalidade (e da

correlativa análise das influências externas) com o histórico-periodológico resultaram, como

observa Jacinto do Prado Coelho, “designações de compêndio timidamente brifontes,

como Escola dos Trovadores ou Provençal, Escola Quinhentista ou Italiana, Escola

Arcádica ou Francesa”13.

Esta dualidade está também presente no cânone literário português, modelado a

partir do século XIX com base nos autores considerados representativos do "espírito

nacional"14. Aliás, no prefácio à sua "Antologia Geral da Literatura Portuguesa: 1189-1900",

intitulado "Critério para a organização duma anthologia litteraria", Fidelino de Figueiredo

expõe lucidamente o dilema que tal duplicidade coloca: "o coordenador terá de nortear-se

ao mesmo tempo por dois criterios, nem sempre francamente conciliaveis, o historico e o

esthetico."15 Curiosamente, considera esta conciliação particularmente difícil na literatura

portuguesa porque "no geral não é de uma grande perfeição formal, de escrupuloso

13 Idem, ibidem, p. 46. Isto comprovava que na história literária ainda não se tinha conseguido “a

emancipação da Literatura como realidade estética”; “Recorreu-se primeiro à História Política, do

modo, às vezes mais disparatado; buscou-se depois apoio na História da Cultura; e ainda hoje, no

que diz respeito à Literatura Portuguesa, os limites entre certas épocas continuam extremamente

vagos.”; idem, ibidem, pp. 39-40.

14 As palavras de Teófilo Braga são bem elucidativas do predomínio do nacional/étnico sobre o

estético:

"O facto de reconhecer a existencia da Litteratura portugueza não depende sómente dos

catalogos bibliographicos, mas do grau de alimento e vigor moral que o povo recebe por essas

obras. Podem contar-se milhões de volumes, e apenas quatro ou cinco exercerem uma acção

reconhecida. Bastava termos os Lusiadas, a Historia Tragico-maritima, os Romanceiros populares, para

sentir-se sob esses documentos agitar-se uma raça, uma nacionalidade; as outras obras podem

representar os meios que violaram a evolução do espirito nacional, abafando-o pela auctoridade ou

pelo prestigio." (Teoria da historia da litteratura portugueza, Porto, Imprensa Portugueza, 1872, p. 9).

15 Figueiredo, Fidelino de, Estudos de Literatura (2ª série, 1917), Lisboa, Livraria Clássica Editora de

A. M. Teixeira, 1918, p. 144.

6

acabamento e requintada execução"16. O paradoxo que daqui resulta consiste no facto de as

características da literatura portuguesa, deduzidas de uma análise de conjunto, não poderem

ser exemplificadas através de autores e de obras individuais, porque apenas existem

“antologicamente”17.

III

O momento de ruptura com a história literária romântico-positivista torna-se quase

definitivo a partir dos anos 50 e 60 do século XX, quando se começou a impor no campo

dos estudos literários a Teoria da Literatura (introduzida nas Faculdades de Letras

portuguesas com a Reforma Leite Pinto, de 1957), que concedia a primazia à dimensão

estética das obras literárias e à sua leitura imanente. Esta orientação de um paradigma

formalista-estruturalista revelou-se pouco compatível com a história literária tradicional,

desafiando-a abertamente. A polémica de Roland Barthes e da da nouvelle critique em torno

da “morte do autor” foi uma das faces mais visíveis deste combate contra a história literária

positivista de Gustave Lanson, que reinava na Sorbonne através de Raymond Picard.18

Nesta transição, assiste-se ao fechamento académico e institucional da história

literária tradicional, ao passo que a teoria da literatura e a crítica literária se abriram às novas

correntes literárias (modernismo, vanguardas, etc.), à análise textual e aos valores estéticos

(emerge então a noção de literariedade), passando a valorizar-se o leitor e a recepção das

obras literárias. Por outro lado, quando a história literária se começou a abrir às novas

tendências teórico-críticas, não foi capaz de se libertar do seu modelo discursivo, voltado

para a narrativa de dados externos aos textos literários. Permaneceu, assim, uma formação

16 Idem, ibidem, p. 150.

17 Por consequência, "Só em obras completas, bem representativas dum gosto, duma epocha e das

personalidades litterarias dos seus autores, se podem aprehender as caracteristicas essenciaes duma

litteratura, as quaes são predominantes qualidades de conjuncto, raramente qualidades de

pormenor."; idem, ibidem, p. 145.

18 Tratou-se, de certo modo, “du conflit entre les anciens (l’ histoire littéraire) et les modernes (la

nouvelle critique) dans les années soixante.” (Compagnon, Antoine, Le demon de la théorie: littérature et

sens commun, Paris, Éditions du Seuil, 1998, p. 152).

7

discursiva híbrida, encaixando no seu esquema tradicional/nacional (períodos, autores e

géneros) algumas (tímidas) análises textuais de natureza estilística.

A valorização da dimensão literária, presente na análise textual e na crítica literária,

coexistiu em Portugal (e noutros países) com a história literária, que dava uma certa

continuidade ao seu modelo fundacional19. Por um lado, verifica-se a articulação da história

da literatura com a história cultural, sobretudo na Universidade de Coimbra, com base na

erudição filológica de Carolina Michaëlis e no positivismo de Mendes dos Remédios,

influências que marcaram a obra de Costa Pimpão. Por outro lado, Óscar Lopes e António

José Saraiva (numa primeira fase), na sua marcante História da Literatura Portuguesa,

interligaram a história literária com a história social e política, de pendor marxista.

Se é certo que a história literária foi condenada por não apreender a dimensão literária

e textual da “literatura”, não é menos verdade que a desejável história da literatura enquanto

literatura ainda não foi escrita. De facto, nunca se chegou a articular com rigor a perspectiva

histórica com a orientação estético-literária. Como sublinha José A. Cardoso Bernardes, a

história da literatura portuguesa apresenta-se como um projecto inacabado, dividido entre a

continuidade do seu projecto matricial (a investigação monográfica centrada nos autores,

períodos e géneros literários), e a necessidade de acompanhar a tendência de

aprofundamento hermenêutico e intercultural, numa abertura a metodologias comparatistas

e transdisciplinares20.

Em última instância, estamos perante a questão da possibilidade (ou não) de se

aplicar o modelo histórico à literatura e às obras literárias, de se articular a literatura com o

discurso da história.

Por um lado, são patentes as limitações da história literária relativamente aos textos

literários, na medida em que estes não são “determinados” pela sua época e pelo seu

contexto, havendo não raras vezes conflito e oposição entre os textos e os seus contextos.

19 E, no entanto, a longa persistência e dominação escolar da história literária é surpreendente

quando comparada com o seu ocaso, que Wellek proclamou há cerca de três décadas -(Wellek, René,

"El ocaso de la historia literaria", Historia literária. Problemas y conceptos, selecção de Sergio Beser,

Barcelona, Laia, 1983 [1982], pp. 245-60) - e com o seu esgotamento do ponto de vista científico:

"A forma da história literária que herdámos sobrevive apenas, na vida intelectual do nosso tempo,

através de uma existência de miséria."; Jauss, Hans Robert, A Literatura como Provocação (História da

Literatura como provocação literária), Lisboa, Edições Vega, 1993 [1973], p. 19.

20 Bernardes, José Augusto, “História literária”, Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua

Portuguesa. Lisboa/São Paulo, Verbo, 1997, p. 1038.

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As obras literárias, dado o seu carácter paradoxal21, “resistem” duplamente à história, quer à

historicidade do seu tempo (funcionando como “história crítica”), quer à própria passagem

do tempo. A literatura mostra-nos a sua capacidade intemporal ao transcender e ultrapassar

as suas circunstâncias, transformando o seu carácter documental em relação a um

determinado contexto numa dimensão monumental.

Por outro lado, a história literária tem uma manifesta dificuldade em dar conta da

dupla face de Janus da literatura, do texto como representação da história e como expressão

artística individual. Com efeito, a emergência e o esplendor da história literária deram-se

quando predominou um conceito de literatura como expressão da sociedade (quer com os

românticos, quer com os positivistas). Ao invés, a história literária foi desvalorizada pelas

concepções individualistas da arte (neo-idealismo italiano, simbolismo, etc.), que punham a

tónica na autonomia estética da literatura e consideravam que a história literária não podia

explicar o “génio” e as obras literárias do ponto de vista individual22. Assim, se a

valorização da história literária passa pela atenção privilegiada à forma e à substância do

conteúdo, que permite uma articulação com o contexto, a sua desvalorização resulta da

concentração na forma e na substância da expressão, no texto literário propriamente dito23.

Desde os anos 70 do século XX, com a Estética da Recepção24 (sobretudo da parte

de H. R. Jauss), os Postcolonal Studies, os Cultural Studies (apesar da sua heterogeneidade), o

New Historicism e algumas orientações da Literatura Comparada, assiste-se a um certo

retorno da história literária. Para esta renovação da história literária contribuíram também a

hermenêutica gadameriana, a fenomenologia (Husserl, Ingarden), a semiótica e em

particular a teoria literária, numa encruzilhada em que se coordenam e reorganizam

diversos saberes (antropologia, sociologia, história-Annales), que vieram permitir um

21 Como observa Roland Barthes, “les formes résistent, ou, ce qui est pire, elles ne changent pas au

même rythme”; “Histoire ou littérature ?”, Sur Racine, Paris, Éditions du Seuil, 1979 [1960], p. 138.

22 Cf. Barrento, João (ed.), História Literária - Problemas e perspectivas, 2ª ed., Lisboa, apáginastantas,

1986, p. 14.

23 Hans R. Jauss critica o marxismo e o formalismo como exemplos do extremar de ambas as

posições, porque aumentam o abismo entre a literatura e a história; Jauss, Hans R., op. cit., cap. III.

24 Ao contrário do historicismo oitocentista, centrado na intentio auctoris típica da hermenêutica

filológica, a Estética da Recepção coloca a ênfase no plano da recepção, à semelhança do que se

passa nos projectos de história literária comparativa recentes. É preciso, por isso, sublinhar o

deslocamento da dimensão produtiva (o autor) para o plano da recepção (o leitor).

9

enquadramento novo da problemática da história literária: "Thus literary history is again at

the turbulent center of literary studies."25

Um exemplo notável de renovação da história literária é proporcionado pelo

modelo adoptado por Mário Valdés em Literary Cultures of Latin America: A Comparative

History26. Esta “história” consiste numa narrativa aberta, não linear/nacional, com

referências cruzadas, como um hipertexto (começando de múltiplos pontos e forjando

novas linhas narrativas), dando conta das descontinuidades e complexidade do passado,

sobretudo no plano da recepção, recorrendo a múltiplas sinopses e atribuindo ao leitor a

responsabilidade da sua interpretação. Esta reescrita da história da “literatura” (das

“culturas literárias”) tem vindo a ser colocada em torno de três eixos centrais: a recusa da

narrativa teleológica da história literária oitocentista, a defesa de uma perspectiva

transnacional (“the transnational turn”)27 e a prevalência de um modelo espacial (“the

spatial turn”), de pendor geográfico/topográfico, tanto em termos discursivos (a

enciclopédia e o hipertexto como formatos) como nas formas de representação (a busca de

uma “geografia literária”), quer em termos comparatistas28, quer numa lógica

mundial/global29.

Um outro retorno actual é o da filologia, um dos temas marcantes dos estudos

literários no início do novo milénio, e que implica, de modo mais ou menos acentuado,

uma revalorização do texto, do contexto e da história. Referimo-nos à recente tendência,

25 Perkins, David, Is Literary History Possible?, Baltimore/London, The Johns Hopkins University

Press, 1992, p. 11.

26 Valdés, Mario e Kadir, Djelal (ed.s), Literary Cultures of Latin America: A Comparative History, 3 vol.s,

New York, Oxford University Press, 2004.

27 Jay, Paul, Global Matters: The Transnational Turn in Literary Studies, Ithaca, Cornell University Press,

2010.

28 Cf. Valdés, Mario e Kadir, Djelal, op. cit.; Cornis-Pope, Marcel e Neubauer, John (ed.s), History of

the Literary Cultures of East-Central Europe: Junctures and disjunctures in the 19th and 20th centuries.

Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins, 4 vl.s: 2004, 2006, 2007, 2010; Cabo Aseguinolaza,

Fernando, Abuín González, Anxo e Domínguez Prieto, César (ed.s), A Comparative History of

Literatures in the Iberian Peninsula, Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins, vl. I, 2010.

29 V.g. Moretti, Franco, Atlas of the European Novel: 1800-1900, London/New York, Verso, 1999

[1998]; idem, Graphes, Cartes et Arbres. Modèles abstraits pour une autre histoire de la literature, Paris, Prairies

Ordinaires, 2008; Lindberg-Wada, Gunilla; Pettersson, Anders; Pettersson, Margareta e Helgesson,

Stefan (ed.s), Literary History: Towards a Global Perspective, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 4 vl.s,

2006.

10

em universidades americanas, para a defesa de uma “nova filologia”30, sobretudo em

Stanford31 e na Califórnia. Nesta revalorização destacam-se também os surpreendentes

“retornos” de alguns dos últimos grandes teóricos norte-americanos, como sucede com o

“último” Paul de Man32 e com o late style de Edward Said33.

Como sublinha Geoffrey Harpham, em Paul de Man e Edward Said este apelo tem

um alcance bem diferente de um mero “regresso”, representando sobretudo a busca de

uma base científica para o campo dos estudos literários – varrido desde meados do século

XX por inúmeras vagas teóricas –, cerca de um século depois da sua ruptura com a

filologia34. Assim, mais do que um desejo nostálgico, este retorno parece assumir-se como

um imperativo ético.

30 Harpham, Geoffrey, “Returning to philology. The past and future of literary study”, in

Hilberdink, Koen (ed.), New prospects in literary research, Amsterdam, Royal Netherlands Academy of

Arts and Sciences, 2005, pp. 9-26 [http://www.knaw.nl/publicaties/pdf/20051060.pdf].

31 Cf. Lerer, Seth, Literary History and the challenge of philology: the legacy of Erich Auerbach, Stanford,

Stanford University Press, 1996; Gumbrecht, Hans Ulrich, The Powers of Philology. Dynamics of Textual

Scholarship, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 2003.

32 de Man, Paul, “O regresso à filologia”, A Resistência à Teoria, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 43-8.

33 Cf. Said, Edward, Humanism and democratic criticism, New York, Columbia University Press, 2004.

No caso de Edward Said, este “retorno” parece-nos menos radical do que aparenta. Se na primeira

fase do seu percurso privilegiava a resistência, nos seus últimos textos Said privilegia a necessidade

de compreensão mútua, da recepção da palavra do outro, que considera indispensável para um

compromisso entre os diversos povos e as suas culturas.

34 “the perennial appeal to literary scholars of the idea of a unified, empirical discipline, a scholarly practice

that is as clear and definite as science. Critics have felt this yearning, richly informed by a sense of inadequacy,

vulnerability, and exposure, since criticism split off from philology over a century ago.”; Harpham, Geoffrey,

op. cit., p. 13.

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