segunda-feira, 15 de outubro de 2012

BERNARDIM RIBEIRO














Ciência da Informação Livros Poetas de A - Z Poesia Brasil Sempre Poesia dos Brasis Poetas de Brasília Poesía Ibero-americana Poesia Visual Ordem alfabética Obras Publicadas Sobre o Autor Currículo Lattes Da Nirham Eros Ensaios, etc Terra Brasilis Poemas do Barão































































on-line - visitor map



Click



































































BERNARDIM RIBEIRO

(Torrão, 1482? — 1552?)











Fonte: Éclogas. Seleção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. ed. acrescentada. Lisboa: Gráfica Lisbonense, 1942.







Pesquisa feita por Catarina Helena Knychala, cedida para nosso Portal de Poesia Ibero-americana.



PREFÁCIO







A VIDA– E reconstituição da biografia de Bernardim Ribeiro tem sido das tarefas mais duras e acidentadas da literatura portuguesa. Não se pode considerar obra segura, por razões que adiante exporemos. Contudo, damos, com toda a reserva, o que tem sido mais universalmente aceite sobre o curso da sua existência.



Bernardim Ribeiro nasceu na vila alentejana do Torrão, por 1482. Seus pais eram Damião Ribeiro, empregado na casa do duque de Viseu, D. Diogo e D Joana Dias Zagalo, duma família conceituada de Estremoz. A sua infância foi logo de começo assinalada por uma grande tragédia política. D. João II tomara a peito liquidar de vez a soberba dos grandes. 1483 fizera degolar em Évora o poderosíssimo duque de Bragança, D. Fernando, No ano seguinte, em 23 de Agosto, ele próprio matou a estocadas o duque de Viseu. É de calcular o doloroso alvoroço que estes dois factos suscitaram na casa de Damião Ribeiro. A sanha do rei não se limitava aos poderosos senhores abatidos; golpeava sem piedade os seus próprios amigos e familiares. Foi o que sucedeu ao pai de Bernardim: fugido para Castela, lá o foi procurar e assassinar a ira poderosa do monarca – assim contam as histórias. Antes porém de se refugiar em Castela, [p.V] Damião Ribeiro teve o bom senso de confiar a mulher e o filho a uns primos, o desembargador António Zagalo e a irmã deste, Inês Dias Zagalo, que viviam perto do Sabugo, na quinta chamada “dos Lobos”.



Foi neste sítio agreste, metido entre serra, que se passou a meninice do futuro poeta das tristezas. Escondido do mundo, vivendo numa atmosfera de receios, aí se desenvolveria aquela sensibilidade melindrosa, que seria mais tarde a sua desgraça. Entretanto, as lições do austero desembargador iam-lhe formando o espírito, orientando-o porventura para a carreira do direito, como mais propícia, pela sua secura, para lhe sofrear os ímpetos da imaginação.



A certa altura, sua prima Inês Dias Zagalo ajustou casamento com Sancho Tavares, de Estremoz. Para lá foi viver com o marido. Algum tempo depois falecia o desembargador, seu mestre e protector. Caiu a casa dos Lobos em poder de um seu parente de Allcácer do Sal, Álvaro Pires Zagalo; este trouxe consigo do Alentejo dois filhos, que passaram a ser os companheiros de Bernardim. A amizade com um desses primos, Sebastião Dias Zagalo, parece ter sido mais íntima, porque o introduziu mais tarde, com o nome de Tasbião, no romance da Menina e moça. Datam dessa época uns amores de mocidade, que teem também o seu reflexo na novela: Sebastião cortejava Ambrósia Gonçalves, filha dum proprietário de Sintra, com quem depois veio a se casar: Bernardim tomou-se de amores por uma irmã dela, Lucrécia Gonçalves – a Cruélcia do romance, – que sentiu pelo namorado uma paixão muito viva, segundo diza novela. Coisas de rapazes. O grande amor, que o havia de abrasar e enlouquecer, estava ainda por vir.



A morte de D. João II, em 1495, devia ter sido um alívio para a família de Bernardim. O novo rei ia desfazer o que fizera o outro, perdoar e recompensar as vítimas de D. João II. É possível que o moço desse então algumas escapadas ao Alentejo, a casa dos seus parentes. [p.VI] Já podia aparecer em público. Em 1503 estaria no Torrão. Nessa altura foi Inês Tavares Zagalo, Sua prima e protectora, nomeada para ama da infanta D. Beatriz, filha de D. Manuel. Aproveitando-se dessa ciscunstância, Inês Tavares chamou Bernardim para o Paço e conseguiu do rei uma doação para o rapaz seguir os estudos na Universidade de Lisboa: em 1505 recebeu em mercê as terras e azenha de Ferrreiros.



Devia ter sido uma revelação para ele aquela nova vida de fausto e convivência. Foi aí que conheceu a sua prima Joana Tavares Zagalo, filha de Inês Tavares, a quem amou apaixonadamente. Nos estudos da Universidade e nos serões do Paço encontrava-se amiúde com Sá de Miranda. Os dois moços, quase da mesma idade, ambos prendados, entraram a simpatizar um com o outro. Nesses encontros afinaram as respectivas liras, ao modo antigo, é claro, compondo esparsas, vilancetes e cantigas. A poesia de Bernardim era já uma poesia chorosa, como se usava então. Salvam-se dela alguns bonitos versos, entre os quais estes quatro, que parecem dedicados ao seu grande amor:



Fui e sam grande amador, / a vai-me bem mal d’amores / e muitos vi de grão dor... / mas este – suma das dores.



Como era então freqüente, mais ainda do que hoje, Bernardim Ribeiro cortejava uma rapariga, que os pais, mais positivos e tendo em menos conta as razões do coração, destinavam a outro. Pero Gato, filho de Nuno Gato, o opulento contador de Safim, era um bom partido. Arranjaram-se as coisas, e, por volta de 1517, Joana Tavares Zagalo era arrancada à adoração do primo, casando com Pero Gato. O romance de amor teve o desfecho de tantos outros.



Bernardim Ribeiro não se conformou com a brutalidade [p.VII] da solução, que espezinhava seus sentimentos, e desafogou na poesia os seus queixumes. A convivência de Joana Zagalo com Pero Gato foi de pouca dura. O marido faleceu, passado pouco mais de um ano; mas Bernardim nunca mais se pôde unir à bem amada, com amor regular. Joana fora abrigar-se para casa do seu tio, Álvaro Zagalo, que morava agora em Alcácer do Sal. Surgiu qualquer crise temerosa, um facto grave entre ambos. Das relações entre os dois amantes parece ter resultado um filho. O certo é que a viúva recolheu por 1519 ou 1520 ao mosteiro de Santa Clara de Estremoz. Só restava um recurso da Bernardim Ribeiro: ausentar-se para longe, aturdir-se com o espetáculo de outros costumes e outra gente. Nesse seu drama deveria ter intervindo o fiel amigo Sá de Miranda. Como o seu propósito era viajar pela Itália, é possível que partissem ambos para aquele país, em 1521, no próprio ano em que a infanta D. Beatriz, filha de D. Manuel, partia do reino, a esposar-se com o duque de Sabóia. Ia no séquito da princesa a sua dedicada ama, Inês Tavares Zagalo, e uma filha desta, Francisca Tavares, que havia de casar com um homem da corte saboiana.



Andou o nosso poeta por terras de Itália cerca de dois anos. Sá de Miranda demorou-se mais longamente; e assim se justifica que a influência italiana fosse nele mais profunda. Bernardim Ribeiro regressaria a Portugal por volta de 1524. D. João III, que sempre se mostrou seu amigo, nomeou-o em 23 de Setembro desse ano seu escrivão da câmara, lugar acertado para o antigo estudante em leis. Então instalado na vida e com emprego certo, o poeta dedicar-se-ia a compor e retocar as suas éclogas e a escrever o seu romance da Menina e Môça em que, sob a forma de ficção e com o mistério que o caso requeria, contava a triste história dos seus amores.



Esta ocupação literária tinha como efeito reabrir e tornar em carnes viva chagas de antes mal curadas. O excessivo dispêndio de sensibilidade provocaria graves [p.VIII] crises nervosas. É provável que, nessas alturas, Bernardim Ribeiro se refugiasse em terras de Basto, junto do seu amigo Sá de Miranda, e a visão das coisas da natureza lhe retemperasse um pouco os nervos estafados. Tudo foi debalde. A luz da razão apagou-se-lhe, e por 1552 viria a falecer, enlouquecido, numa cela do Hospital de Todos os Santos.



É esta a linha geral da sua biografia, reconstituída pelos historiadores da literatura, tendo em vista as particularidades da obra. Deve porém dizer-se que esse esquema é mais uma obra de imaginação, que não assenta em bases sólidas. Os únicos documentos fidedignos, por serem peças existentes de chancelaria são: a doação das terras de Fereiros (1505), a matrícula na Universidade (1507-1512), a nomeação de escrivão da câmara (1524) e AA doação duma tença de 12$000 réis (1552). Mais nada se sabe de positivo; a data e a circunstância da sua morte são-nos fornecidas por um documento judicial de 11642, em que um desembargador da Casa de Bragança defende a fazenda dos seus amos das pretensões dum hipotético herdeiro e bisneto do escritor, o tenente de infantaria Francisco Ribeiro. Esse documento foi ultimamente tachado de falso, com boas razões. Note-se que até dos documentos de chancelaria não podemos tirar elementos de absoluta segurança, porque aquele nome de Bernardim Ribeiro tanto pode dizer respeito ao escritor como a outro: os Ribeiros pulularam na primeira metade do século XVI. Os mais dados sobre a biografia do poeta são tirados de relações genealógicas sempre duvidosas. Em conclusão: os elementos biográficos que hoje possuímos deverão ser severamente confrontados com instrumentos autênticos, pesquisados em arquivos públicos e familiares. Enquanto isso se não fizer, podemos e devemos considerar a biografia de Bernardim Ribeiro como uma construção provisória, que cumpre conhecer... à falta de melhor.



Esta incerteza nas notícias que nos restam do artista tem dado origem às hipóteses mais desencontradas, mais [p.IX] poéticas e absurdas. Uma delas, a mais antiga, tem certa importância literária, porque produziu mais tarde uma das obras-primas do nosso teatro romântico – Um auto de Gil Vicente, de Garret. Corria no século XVII que a amada de Bernardim era nem mais nem menos que a infanta D. Beatriz, e que o pobre amador tinha ido no seu séquito para Sabóia. A formosa lenda não tem consistência, entre outros motivos pela diferença de idade entre ambos: a princesinha tinha dezassete anos, Bernardim andava pelos quarenta. Podia ser pai dela... A lenda, em todo o caso, surgiria da coincidênciaa da partida dos dois e da presença na comitiva de alguém que desempenhou papel importante na vida do infeliz namorado: Inês Tavares Zagalo e talvez sua filha Lourença Tavares.



A última hipótese e sem dúvida a mais extravagante, formulada em nossos dias pelo falecido professor portuense Teixeira Rêgo, considera Bernardim Ribeiro um nome suposto, sob o qual se escondia o famoso Leão Hebreu, ou Judá Abravanel, filófoso neo platônico, que exerceu profundíssima influência no Renascimento com o seu celebrado livro - Diálogo sobre o Amor. O pastor do Torrão, o sentimental e melindroso amador de Aónia foi arvorado às culminâncias dum gênio filosófico da Renascença. como se vê, tudo é possível, ao tratar-se da vida de Bernardim Ribeiro.







A obra – Em 1554, dois anos após o falecimento de Bernardim Ribeiro, publicavam-se em Ferrara as suas obras: a História da Menina e Moça, as cinco éclogas e algumas poesias pequenas, em que não vinham incluídas as que circulavam já no Cancioneiro de Rèsende. (...)







1







Écloga de Pérsio e Fauno







Nas selvas, junto do mar,



Pérsio pastor costumava



seu gado apascentar;



de nada se arreceava,



nem tinha que arrecear



(na mesma selva nasceu



quem lhe depois dava dor);



tanto que veo do Céu



fazer-lhe guerra o Amor:



era mais forte, e venceu.







Sendo livre, mui isento,



viu dos olhos a Maria,



e cegou o entendimento;



e Maria merecia



de lhe dar pena e tormento.



Logo então começou o seu gado emmagrecer;



nunca mais dêle curou,



foi-se-lhe todo o perder



com o cuidado que cobrou.







Dias e noites velava,



nenhum espaço dormia.



Maria bem o oulhava;



com que cuidado que valia



não valia o que cuidava:



confiou no merecer,



cuidou que a tinha de seu,



veo aí outro pastor ter,



com o que lhe prometeu ou deu,



se deixou dele vencer.







Levada pera outra terra,



vendo-se Pérsio sem ela,



vencido de nova guerra,



mandou a alma trás ela,



e o corpo ficou na serra.



Veo Fauno, outro pastor,



que vinha ali a buscá-lo,



seu criado e servidor;



começou a consolá-lo,



o consôlo lh’ era pior.







FAUNO



? Como descansas’ assi,



Pérsio, longe do teu gado?



Vejo-te fazer aqui,



sem cuidado do cuidado,



menos cuidado de ti:



pelos matos, sem pastor,



vam os cordeiros bramando



sem pascer, porque o temor



de ver os lobos em bando



lhes tira da erva o sabor.







Perdidas, entresilhadas,



as tuas ovelhas vejo;



delas morrem de cansadas,



e tu tens morto o dessejo



d’acudires às coitadas.



Andam fracos, desmaiados,



os mastins que as guardavam;



desfeitos e mal tratados,



não ladram como ladravam,



nem podem, de mal curados.







? Qu’ é do teu rabil prezado,



teu cajado e teu çurrão?



Tudo te vejo mudado;



tinhas um cuidado então,



tens agora outro cuidado.



Mal não temias, creo



que te vejo; isto temo,



tomou-te sem ter receo,



então pôs-te em tal estrêmo,



que te fez de ti alheo.







À sombra dos arvoredos



o teu gado apascentavas;



e se os ventos eram quedos



mil vilancetes cantavas



conformes os teus segredos.



Então teu gado engordava,



tinhas pasto todo o ano.



Todo pastor confessava



sêres tu o mais ufano



que então nas serras andava.







Acorda, acorda, coitado,



dá-me conta de teu dano,



porque a um desconsolado



um consôlo, ou um engano



tira às vezes de cuidado.



Poderás julgar então,



se quiseres razão ter,



o teu cuidado por vão;



mas no grande bem querer



poucas vezes há razão.







PÉRSIO



Os males que são sem cura,



mal os pode outrem curar;



nem na gram desaventura



não há mais que aventurar



que deixar tudo à ventura.



Não me digas que há hi bem,



que é maior mal para mi,



nem que ouviste a ninguém,



que me vai lembrar daí



que perdi o que outrem tem.







Vi-me já preso; contente,



a meu mal queria bem;



agora fujo da gente,



não vejo, triste, ninguém



que viva mais descontente.



Té no pasto dos meus gados



Tinha a condição ufana;



mas aos mal-aventurados



crê que tudo lhes dana



com a mudança dos cuidados.







Sentava-me em um penedo



que no meo d’água estava;



então dali, só e quêdo,



a minha frauta tocava,



bem fora de nenhum mêdo:



muito livre de cautelas,



com os olhos nas mesmas águas,



c’o cuidado longe delas,



chorava ali muitas mágoas,



folgando muito com elas.







Um pastor, que eu não temia,



de muito mais gado que eu,



que longe dali pascia,



creo que, pelo mal meu,



veo ter ali um dia.



Vendo ela um pastor tal,



sem razão, ou com razão,



fê-lo logo maioral:



senti em meu mal então,



mas despois senti mor mal.







FAUNO



Quem pena por cousa leve,



deve sempre ser penado;



quem com a vida não se atreve,



deve ser dela privado,



se a morte faz o que deve.



Mulher que a outrem se entrega,



querer –lhe bem em estrêmo



vem de andar a rezão cega,



ou do espírito ser pequeno;



de ũa destas não se nega.







PÉRSIO



A gram dor, quem na tiver,



se com dor há-de passá-la,



em quanto lhe ela doer,



pode mal dissimulá-la,



pior a pode esconder.



Se não lanço esta de mi,



(não posso tanto comigo)



leixar-me-ei morrer assi,



que a morte é menos perigo,



que outros perigos a mi.







FAUNO



Os fracos de coração



obedecem à vontade;



e muito mais sem razão



se perde a liberdade



por algum cuidado vão.



Se desejas descansar



dêste, que te traz cansado,



lança-se, Pérsio, a cuidar



que às vezes o dessejado,



alcançado, dá pesar.







PÉRSIO



Conselho quero de ti,



mas não já para ter vida;



se o pode haver aí



para a poder ter perdida,



êsse me dá tu a mi:



que está mais certo o perigo



onde a vida é triste, e tal.



Deixa-me acabar, te digo,



que pode ser que êste mal



se acabe também comigo.







FAUNO



Nas cousas que dão pesar,



tristeza, pena e tormento,



nestas hás tu d’amostrar



temperança e sofrimento,



que no al não és de louvar.



Se agora padeces dor,



ela se te irá minguando,



cada vez será menor;



ir-se-á o tempo gastando,



levá-la-á por onde fôr.







PÉRSIO



Bem vejo que peno em vão;



mas quem será arrazoado



em males tão sem razão?



pois não há modo temperado



no amor e na afeição.



Se dizes que é vaïdade



Ter lembrança do perdido,



vou sentindo que é verdade;



mas quem viste tu esquecido



daquilo que dá soidade?







FAUNO



Nos estremos sinalados



se conhece tôda a gente;



no perigo, os esforçados:



que em bonança ser valente



não é de ânimos ousados.



Por isto, quero de ti



que te não deixes morrer.



Crê-me tu, Pérsio, a mi,



que não há maior vencer



que vencer-se homem a si.







PÉRSIO



Mal pode ser esquecida



a cousa mui dessejada;



lembrança n’alma empremida



não pode ser apartada,



se se não aparta a vida.



Em quanto me vires vivo,



não me verás descansar.



Pergunto-te, Fauno amigo:



? como pode repousar



Quem traz a morte consigo?











FAUNO



Passa teus males com tento,



se lhes queres achar cura;



põe em al o sofrimento,



que o que parece sem cura



às vezes o cura o tempo.



Resistir graves paixões,



vem de esfôrço e valentia,



porque aos fracos corações



falta-lhes a ousadia



nas maiores aflições.







PÉRSIO



Falas, Fauno, como quem



vive livre e descansado;



crê-me, amigo, que ninguém



pode mudar o cuidado,



se não quer pequeno bem.



Nunca lho eu mereci:



desamar-me, e eu amá-la!



Ela me leixou assi,



e eu não posso deixá-la,



que o amor pega de mi.







FAUNO



Parece que o seu amor



era muito mais pequeno:



Pérsio, não há maior dor



Que querer bem em estrêmo,



A quem to a ti quer menor:



que os que em tal estrêmo vêm



sua vida aventurada,



tu, Pérsio, sentes mui bem



quam cansada ou descansada



a terá quem na assi tem.







PÉRSIO



Não me aconselhes, te digo,



nem julgues a mim por ti:



chora meus males comigo,



que isto me convém a mi;



fa-lo-ás, se és meu amigo;



nisto só está meu bem,



em outro me não confio.



Ó Fauno, que fará quem



tem a alma posta no fio,



e não sabe em que se tem?







FAUNO



Bem vejo que teu tormento



é grande: por isso ouso



falar-te claro e isento,



que no ânimo sem repouso



não há claro entendimento.



Entregaste-te ao amor,



cegaste a vida e razão,



queres bem à tua dor;



buscas-lhe a salvação



onde o remédio é pior.







PÉRSIO



No tempo que eu mais penava,



dormia a noite ao serêno;



sustinha-me o que esperava;



sôbre uma cama de feno



muitas vezes repousava;



agora, em nenhum lugar



acho descanso, nem vida,



para poder descansar.



Tenho a esperança perdida,



não me fica que esperar.







FAUNO



Não tenhas o perigo em nada,



e passá-lo-ás melhor;



que a vertude esforçada,



no grande mêdo e temor,



se estima, e é estimada.



Não te espante esta mudança



que o tempo traz consigo;



trás o mal está a bonança,



folga de viver, te digo,



que quem vive tudo alcança.







PÉRSIO



No campo sempre dormia,



fugia do povoado;



se algũa pressa sentia,



praticava com meu gado,



e a ninguém a dezia.



Dês que me êste mal chegou,



tamanho me pareceu,



que o campo me enfastiou,



e o gado me aborreceu;



aqui verás qual estou.







FAUNO



Nenhum trabalho tam forte



nesta vida é de sofrer,



que um coração não suporte;



nem há mais certo morrer



que temer homem a morte.



Isto, por que tu padeces,



bem vejo que é vaïdade;



julga-o tu, se te conheces,



pois sabes que à vontade



e não a outrem obedeces.







PÉERSIO



Buscava sempre ribeiros



de água mui crara e fresca;



ali, entre os meus cordeiros



soía dormir a sesta,



à sombra dos amieiros.



Se algũa hora ali vou ter,



que cuidas que me parece?



Lugar onde houve prazer



não no posso logo ver,



que por isto me aborrece.







FAUNO



Não sintas tristeza tanta



por tão pequeno cuidado.



Folga, pratica e canta,



que o coração esforçado



de poucas cousas se espanta.



Que se agora te alembrar



tanto, que te faço dano,



deixa o tempo andar,



que com a mudança do ano,



tu verás tudo mudar.







PÉRSIO



Se por palavras pudera



aqueste meu mal contar,



tão triste não estivera,



que o poder desabafar



algum descanso me dera.



Mas crê que não pode ser,



Que é tam grande meu dano



que dessejo de dizer



de meu mal o desengano,



e não no posso fazer.







FAUNO



Lança de ti, se te vem,



aquesta lembrança tal,



Pérsio, não há ninguém,



que possa sofrer um mal



sem se alembrar dalgum bem.



Vamo-nos! Em êste cuidado,



De que é tam combatido,



Se fores atrebulado,



sê esforçado e sofrido,



serás bem aventurado.







2







Écloga de Jano e Franco







Dizem que havia um pastor



antre Tejo e Odiana,



que era perdido de amor



per ũa moça Joana.



Joana patas guardava



pela ribeira do Tejo,



seu pai acerca morava,



e o pastor, de Alentejo



era, e Jano se chamava.







Quando as fomes grandes foram,



que Alentejo foi perdido,



da aldeia que chamam o Terrão



foi êste pastor fugido.



Levava um pouco de gado,



que lhe ficou doutro muito



que lhe morreu de cansado;



que Alentejo era enxuito



d’água e mui seco de prado.







Toda terra foi perdida;



no campo do Tejo só



achava o gado guarida:



ver Alentejo era um dó!



E Jano para salvar



o gado que lhe ficou,



foi esta terra buscar;



e um cuidado levou,



outro foi ele lá achar.







O dia que ali chegou



com seu gado e com seu fato,



com tudo se agasalhou



em ũa bicada de um mato.



E levando-o a pascer,



o outro dia, à ribeira,



Joana acertou de ir ver,



que se andava pela beira



do Tejo a flores colher.







Vestido branco trazia,



um pouco afrontada andava;



fermosa bem parecia



aos olhos de quem na olhava.



Jano, em vendo-a, foi pasmado;



mas, por ver que ela fazia,



escondeu-se antre um prado:



Joana flores colhia,



Jano colhia cuidado.







Despois que ela teve as flores



já colhidas, e escolhidas



as desvairadas coôres,



com rosas entremetidas,



fez delas ũa capela,



e soltou os seus cabelos,



que eram tam longos como ela:



e de cada um a Jano em vê-los



lhe nascia ũa querela.







E em quanto aquisto fazia



Joana, o seu gado andava



por dentro da água fria,



todo após quem o guiava.



Um pato grande era a guia;



e todo junto em carreira,



ora rio acima ia,



ora, em a mesma maneira,



o rio abaixo descia.







Joana, como assentou



a capela, foi com a mão



à cabeça, e atentou



se estava em boa feição.



Não ficando satisfeita



o que da mão presumia,



partiu-se dali direita



para onde o rio fazia



d’água ũa mansa colheita.







Chegando à beira do rio,



as patas logo vierom



tôdas ũa e ũa, em fio,



que tôda a água moverom.



De quanto ela já folgou



com aquestes gasalhados,



tanto entonces lhe pesou,



e com pedras e com brados



dali longe as enxotou.







Despois que elas foram idas



e que a água assossegou,



Joana, as abas erguidas,



entrar pel’água ordenou;



e assentando-se, então,



as sapatas descalçou,



e, pondo-as sôbre o chão,



por dentro dágua entrou



e a Jano pelo coração.







Em quanto, com passos quedos,



Joana pela água ia,



antre uns dessejos e mêdos



Jano, onde estava, ardia:



não sabia se falasse,



se saísse, se estivesse;



que o amor mandava que ousasse,



e, por que a não perdesse,



fazia que arreceasse.







Dizem que naquesto meo



se esteve Joana oulhando;



e, descobrindo o seu seo,



oulhou-se, e dixe, um ai dando:



“Eu guardo patas, coitada,



não sei onde isto há d’ir ter,



mais era eu pera guardada.



¡Que concerto foi êste: ser



fermosa e mal empregada!”







Em aquisto Jano ouvindo,



não de pôde em si sofrer,



que d’antre as ervas saindo



se não lançasse a correr.



Joana, quando sentiu



os estrompidos de Jano,



e que se virou e o viu,



temor do presente dano



lhe deu peis com que fugiu.







Mui perto estava o casal



onde vivia o pai dela,



que fêz ir mais longe o mal,



que Jano teve de vê-la;



mas o mêdo que causou



Joana partir-se assí,



tanto as mãos lhe embaraçou,



que a sapata esquerda, ali,



com a pressa lhe ficou.







Jano, quando viu, e oulhou



que nenhum remédio havia,



pera o lugar se tornou



aonde ela n’água se via;



e vendo a sapata estar



no areal, à beira d’água,



foi-a correndo abraçar.



Tomando-a, cresceu-lhe a mágoa



e começou de chorar.







Toda a sapata e os peitos



em lágrimas se banharom;



muitos foram os respeitos



que tanto chôro causarom.



Encostado ao seu cajado,



a sapata na outra mão,



despois de um longo cuidado,



de dentro do coração



começou falar, cansado:







“Despojo da mais fermosa



cousa, que viram meus olhos,



pera êles sois ũa rosa,



e pera o coração abrolhos.



Sapata, deixada aqui,



pera mal de outro mor mal,



quem te leixou, leva a mi:



que troca tam desigual!



Mais, pois assi é, seja assi.







Agora hei vinte e um anos,



e nunca inda té agora



me acorda de sentir danos,



os dêste meu gado em fora;



e hoje, per caso estranho,



(não sei em que hora aqui vim)



cobrei cuidado tamanho,



que aos outros todos pôs fim;



eu mesmo a mim mesmo estranho.







Antes que êste mal viesse,



que me tantos vai mostrando,



que alguns cuidados tivesse,



não me matavam cuidando.



Agora, por meus pecados,



e segundo em mim vou vendo,



não podem ser outros fados;



meus cuidados não entendo,



e moiro-me assi de cuidados.







Dentro do meu pensamento



há tanta contrariedade,



que sento contra o que sento



vontade e contra vontade;



estou em tanto desvairo,



que não me entendo comigo.



Donde esperarei repairo?



– que vejo grande o perigo



e muito mor o contrairo.







¿Quem me trouxe a esta terra



alhea, onde guardada



me estava tamanha guerra



e a esperança levada?



Comigo me estou espantando



como em tam pouco me dei;



mas cuidando nisto estando,



os olhos com que outrem olhei



de mim se estavam vingando.







E por meu mal ser mor, inda



de mim tenho o agravo moor:



que da minha mágoa infinda



eu fui parte e causador;



que, se me não alevantara



d’antre as ervas onde estava,



mais dos meus olhos gozara...



E já que assi se ordenava,



isto ao menos me ficara.







Desastres, cuidava eu já,



quando eu ontem aqui cheguei,



que a vós e à ventura má



ambos acabava – e errei!



¡ Triste, que me parecia



que, o meu gado remediado,



comigo bem m’haveria!



E estava-me ordenado



êstoutro mal que ainda havia!







Ó mal! não vos sabe a vós



quem me vos a mim causou!



Tristes dos meus olhos sós,



que trouverom, aonde estou,



olhos, a certo lugar –



ribeira mor das ribeiras



que levam as águas ao mar –



vós me sereis verdadeiras



testemunhas do pesar”.







AUTOR



– E em dizendo isto, parece,



transportou-se no seu mal;



e como a quem o ar falece



caíu naquele areal.



Grande espaço se passou



que esteve ali sem sentido;



e neste meo chegou



um pastor seu conhecido,



e que dormia cuidou.







Franco de Sandovir era



o seu nome, e buscava



ũa frauta que perder,



que ele mais que a si amava.



Este era aquele pastor



a quem Célia muito amou,



ninfa do maior primor,



que em Mondego se banhou,



e que cantava milhor.







E a frauta sua era aquela



que lhe Célia dera, quando



o desterrarom por ela,



chorando êle, ela chorando.



Viera ele ali morar,



porque achou aquelas terras



mais conformes ao cuidar:



d’ambas partes cercam serras,



no meo campos para olhar.







Doutro tempo conhecidos,



estes dous pastores eram



d’estranhas terras nascidos,



não no bem que se quiseram.



E por aquesta razão



tornou Franco a lhe notar



como jazia no chão,



e deu-lhe que suspeitar



o lugar e a feição.







Muito esteve duvidando



o que aqui Franco faria:



indo-se a Jano deixando,



o coração lhe doía;



também, para o acordar,



não sabia se acertava,



que Jano era no lugar



novo, e arreceava



em cabo de o anojar.







Naquesta dúvida estando,



Jano estava emborcado,



dixe, um suspiro dando:



– “!Ai cuidado e mais cuidado!” –



Ouvindo-lhe isto dizer,



Franco ficou pasmado,



e tornando-o melhor ver,



de sob seu esquerdo lado



viu-lh’a a sapata teer.







Suspeitou logo o que era,



(que era também namorado)



e no que Jano dixera



se houve por ceertificado.



Naquisto, Jano acordou;



quando viu Franco estar,



sem fala um pouco ficou;



Franco, após o saüdar,



Falar-lhe assi começou:







“Cuidava eu agora, Jano,



que estavas em outra parte,



e polo teu, aqueste ano



me pesava ir por esta arte;



dessejava ver-te aqui,



quando me contava alguém



a seca grande que há i



em Alentejo; e porém



não quisera eu ver-te assi.







Conta-me que mal foi êste,



que tam demudado estás



ou que houveste ou perdeste.



Se há remédio, havê-lo-ás”.



Faz Jano então por se erguer;



não podendo, de cansado,



foi-lhe a mão Franco estender;



e a um freixo encostado



lhe começou responder:







JANO



- Vim a estes campos, que vejo,



por dar vida a êste meu gado;



vi acabado um desejo,



outro maior começado:



às minhas vacas dei vida,



e a mim a fui tirar!



A profecia é comprida,



que me Piério foi dar,



vendo-me a barba pongida.







FRANCO



– De Piério vai gram fama –



dixe Franco – entre os pastores;



todos por amigos chama,



e dizem que é dado a amores.



Rogo-te, Jano, me digas,



pois te êle avisou primeiro,



como cobraste fadigas;



que ouço que é mui verdadeiro



pera amigos e amigas.







JANO



– Tam cansado – respondeu –



de um cuidado, Franco, me acho,



que m’agora aqui nasceu,



que até na voz tenho empacho.



Aos casos que ham de aquècer



não pode homem resistir,



que o que há-de ser, há-de ser,



não se lhe pode fugir,



defender, nem esconder.







Mas porque, Franco, contigo



desabafo eu em falar,



porque sei que és meu amigo,



tudo te quero contar.



Nem remédio, nem conforto



não te hei-de, Franco, pedir,



que do mal em que estou pôsto



não me espero de remir,



senão despois que for morto.







Dia era de um gram vodo



que a um santo se fazia,



onde ia o povo todo



por ver, e por romaria.



Lembra-me que andava então



vistido todo de novo,



ao ombro um chapeirão



que pasmava todo o povo,



com um cajado na mão.







Tomando-me pelo braço,



Piério então me levou



dali um grande pedaço,



onde milhor sombra achou.



E, mandando-me assentar,



êle também se assentou;



e, antes de começar,



pêra mim um pouco oulhou



e a voltas de chorar,







PIÉRIO



“Vejo-te – me dixe – Jano,



dos bens do mundo abastado;



mas contando ano e ano



fico de todo cortado:



vejo-te lá pela idade



de ũa nuve negra cercado,



vejo-te sem liberdade,



de tua terra desterrado



e mais de tua vontade.







Em terra que ainda não viste,



pelo que nela hás-de ver,



vejo-te o coração triste



pera em dias de viver.



Hás-de morrer de ũa dor,



De que agora andas bem fora;



por isso vive em temor,



que não sabe homem aquela hora



em que lhe há-de vir o amor.







Não pode já longe vir,



Jano, aquisto que te digo;



vejo-te a barba pungir,



Olha como andas contigo.



A terra estranha irás,



Por teu gado não perderes,



Longos males passaras,



por uns mui breves prazeres,



que verás, ou não verás.







(E dando um pouco a cabeça



à maneira d’anojado):



por teu bem, porém, te creça



a barba – dixe – de honrado.



Treslada-o no coração



isto que te aqui direi,



que ainda alguns tempos virão,



Jano, que te alembrarei –



mande Deus que seja em vão.







Por cobrares a fazenda



a ti mesmo perderás;



perda que não tem emenda



despois; quando, o saberás.



Nos campos de ũa ribeira



onde vales há a lugares,



te está guardada a primeira



causa dêstes teus pesares,



noutra parte a derradeira.







Jeitos em cousas pequenas,



louros cabelos ondados,



porão para sempre em penas



a ti e a teus cuidados.



Falas cheas de desdém,



de presunção cheas delas,



cousas que outras causas tem



te causarão as querelas



de que morrer de convém”.







JANO



– De todo o que te hei contado,



todo cási aconteceu,



que o que ainda não é passado



pelo passado se creu:



agora dantes pouco há



viram meus olhos, que foram,



quem m’os leva após si; lá



a alma e vida se me foram,



desprezarom-se de mim já.







AUTOR



– Um cam que Franco trazia,



de grande faro, entramentes,



deu com a frauta onde jazia,



e trouxe-a então entre os dentes.



Vendo-a, Franco alvoroçou-se



e foi correndo ao cam,



que nos pés alevantou-se,



e deu-lhe a frauta na mão,



e após aquilo espojou-se.







Escontra Jano tornou



então Franco, assi dizendo:



FRANCO



– Quem vê o que dessejou,



não se alembra d’al em o vendo.



Fui-te a palavra cortar,



mas daquisto dá tu a culpa



a quem a eu não posso dar;



ou Jano, por ti me desculpa,



pois sabes que é dessejar.







JANO



– De cousa que muito queiras



deve essa frauta de ser –



dixe Jano. – São primeiras,



– lhe tornou Franco a dizer.



– Quem de tal dom outorgou –



lhe disse Jano após isto –



a muito a ti te obrigou;



a-la-fé, gram mestre nisto



deves ser, se o cam não errou.







Canta, Franco, algũa cousa:



ama a música a triteza;



veremos se me repousa



onde a mágoa tem firmeza.



FRANCO



Dixe Franco: – Certamente



cantarei, pola vontade



te fazer, Jano, que, a verdade,



a minha é chorar sòmente.







Quero-te cantar aquela



que ontem, despois que perdi



a frauta, cantei sem ela,



à noite. Quando me vi



cansado de não me achar,



mas muito que de buscá-la,



me fui ontem lançar;



mas, Jano, faço-te fala



que não pude ôlho cerrar.







Lá, despois da noute mea,



quando tudo se calava,



comecei em fala chea,



um moucho m’acompanhava;



de longe me parecia,



não sei se me enganava eu,



que êle a mim me respondia



com um ai grande como o meu;



mas o canto assi dezia:







CANTIGA



Perdido e desterrado,



que farei? onde me irei?



Depois de desesperado,



outra mor mágoa achei.







Desconsolado de mim,



em terra alheia alongado,



onde por remédio vim



e repairo do meu gado;



mas, ó mal-aventurado



de mim, sem consolação,



temo que há-de ser forçado,



pois que fui tam mal fadado,



matar-me com minha mão.







¿ Que conta darei eu agora



a quem não ma há-de pidir?



¿ Que desculpa porei ora



a quem não me há-de ouvir?



Frauta, dom da mais querida



que cobre esta noute escura,



frauta minha, sois perdida!



Façam-me ũa sepultura,



que muito há que estou sem vida.







E ponham na supultura



letras que digam desta arte:



“A da alma está em outra parte”.



Se aprouver aos longos anos



e aos tempos que hão-de vir



que destes graves meus danos



venha Célia parte ouvir,



lá onde triste estiver,



se ela, consigo apartada,







Lágrimas ter não puder,



será minha alma pagada,



ou que então de mim houver.



Inda que não queira nada,



tudo é menos de passar



que lá os olhos soem levar.



Fugirom, contando, os dias,



Fizerom-se as noutes sós



pera os tristes como nós.







Jano, esta é a cantiga,



ca a derradeira cri que era;



e, por sair de fadiga,



confesso-te que o quisera.



Mas se a alma e entendimento



Não morrem com o corpo, a mágoa



me ficará. Vamo-nos, que sento



que é tempo do gado ir à água;



também tem tempo o tromento.







3



Écloga chamada Jano







Um pastor, Jano chamado,



d’amor da fremosa Dina



andava tam tresportado,



que, por dita nem mofina,



nunca era outro seu cuidado.



Segundo o bem que queria,



tam pouco do mal se guardou



que, vendo a Dina, um dia,



logo da vista cegou,



que dantes d’alma não via.







Des i ela desterrou-o



para longe terra estranha;



seu mal só o acompanhou,



sobre ũa mágoa tamanha



tamanha mágoa ajuntou.



Vendo-se assi desterrado,



muitas vezes se saía



para um despovoado,



onde ir ninguém podia



senão desencaminhado.







Ali triste se assentava;



pascendo ao redor,



seu pobre gado o cercava,



e o coitado do pastor



nunca ũa hora repousava;



encostado a ũa mão,



os olhos postos na terra



e a Dina no coração,



assi entre aquela serra



se estava queixando em vão:







“Dina minha, ou, se me engano,



ao menos muito querida



e com tanto desengano,



já me vós fostes a vida,



agora me sois o dano.



Danos meus, tão encobertos,



aqui podereis sem medo



ser agora descobertos,



se ficou algum segredo



al-de-menos nos desertos.







A outro nenhum lugar,



por minha desaventura,



vos não posso já levar:



levou-me tudo a ventura,



leixou-me só o pesar;



pesar nunca me leixou,



depois que por meu pecado



tudo me desemparou;



e eu mais desemparado



fico com o que me ficou.







Andem polos povoados



os pastores, que não tem



cuidados sobre cuidados,



logrem seu mal e seu bem,



cansados ou descansados:



que para mim nam nascerom



senão dores e pesares;



para os que dita tiverom



se fizerom os lugares,



que tanto mal me fizerom.







Eu pelo pé destas serras,



de ũa em outra vaïdade,



sofro, andando, as longas guerras



que me fazem saüdade



dela e de tam longas terras:



com cuidados m’anoutece



um dia, e outro dia



com cuidados me amanhece;



trás um vem a fantesia,



que tam longe me parece.







Quem me meteu neste enleo



– pois nunca mais saí dêle –



tem-me cercado o receo:



mal me creo por êle,



mal também se o não creo.



Certa está já minha fim,



minha vida está em perigo;



de mim eu me desavim,



e pois eu me sam imigo,



quem me vingará de mim?







Cuitado, não sei que diga:



A nenhũa parte vou



que lá não ache fadiga,



que aquesta só me ficou



de minha amiga, ou imiga.



O deserto e povoado



tudo é cheo de meus males,



vim a esta serra cansado,



não há lugar nestes vales



onde não tenha chorado.







¿ Donde vos começarei,



Mágoas minhas, a contar?



¿ Por que palavras direi



Do mal que soube buscar?



Queixar-me agora não sei:



a língua e o sentido



tudo anda tam ocupado,



tam cansado e destruído,



que seria mal contado,



como foi mal merecido.







Pola ribeira do Tejo



guardando andava meu gado;



nunca inda vira dessejo,



quando me de um vi levado,



onde me agora não vejo.



E foi tamanha a mudança,



Que, quando já m’acordei,



Achei ida a esperança,



E essa pouca que achei,



em outra maior balança.







Dêste mal outros vierom;



era, parece-me, ordenado;



pouco e pouco se puserom



onde êles tinham lançado



o bem... que nunca me derom:



fizeram-se assi tam senhores



de mim – ou não sei de qu’é,



que foram os causadores



d’eu tornar a pôr a fé



em outros enganos maiores.







Não ficou cousa nenhũa



desta vez para ficar;



se antes tinha pena algũa,



agora, por me matar,



mil se me faz cada ũa;



minha alma é desesperada



com o mal que eu sempre sento;



que, triste, em hora mingoada,



um em tanto crecimento



vi, que depois não vi nada.







Êste Outubro fez um ano,



Quando eu na vila era,



Vi criar-se este meu dano,



Que agora, e então já era;



Tirar-mo podia engano;



E cuidando que o lugar



fosse a causa principal,



houve-o emfim de deixar;



e o meu, para meu mal,



estava outro lugar.











Mudei terra, mudei vida,



mudei paixão em paixão,



vi a alma de mim partida,



nunca de meu coração



vi minha dor despedida.



Antre tamanhas mudanças,



de um cabo minha suspeita,



e de outro desconfianças,



leixam-me em grande estreita



e levam-me as esperanças.







Nesta triste companhia



ando eu, que tão triste ando;



já não sam quem ser soia,



os dias vivo chorando,



as noutes mal as dormia:



temo descanso tornado



mal, que por meu mal o vi;



e eu, mal-aventurado,



mouro-me, andando assi



antre cuidado e cuidado.







Por me nada não ficar



que não me fosse tentado,



provei dar-me a trabalhar;



mas nunca me achei cansado



para poder descansar:



quando mais cansado estava,



ali o meu mal então



a meu mal se apresentava;



e o corpo e o coração,



ambos cansados levava.







Não sabendo onde me iria,



que m’a mim lá não levasse,



roguei a Deus, não só um dia,



que da vida me tirasse,



pois me dá-la não queria;



mas com cuidados maiores,



crê que Deus se não cura



cá dos pobres [dos] pastores,



como que êles por ventura



não sentem lá suas dores.







Oh! Quam bem-aventurado



fôra já, se me matara



minha dor ou meu cuidado!



Eu morrera, e acabara,



e meu mal fôra acabado;



não vira tal perdição



de mim e de tanta cousa,



perdido tudo em vão:



porque ũa paixão não repousa



em outra maior paixão.







A-la-fé, de culpa sou,



Que bem mo disse Africano,



quando a Felipa falou



E lhe deu o desengano



com que lh’a vida tirou;



quantas vezes na ribeira,



tendo à sesta nossas cabras,



me disse desta maneira



(Eu ouvi bem as palavras,



fi-lo mal à derradeira):







“Sob a sombra deste freixo,



lembre-te isto que te digo,



e pois vês que assi me aqueixo,



saberás, Jano amigo,



que o milhor de mim te leixo;



o pior eu o levei:



por isso, olha que sigas



sòmente o que te direi,



leixa-m’a a mim as fadigas,



pois m’eu para elas leixei.







Faze por viver isento,



qu’esta é tôda a verdade;



se te creres polo vento,



perderás a liberdade



e mais o contentamento:



que tam má hora nasceu



quem neste mundo ruim



por vaïdades se creu,



que nunca deram o fim



que ao comêço prometeu.







Guar-te do falso do amor,



que viverás sempre em mêdo;



não te engane seu favor,



podê-lo-ás fazer com cedo,



porque tarde tudo é dor.



Aos seus contentamentos



não creas, se tu me creres,



que não são senão tormentos,



e não queiras seus prazeres



por seus descontentamentos.







¡ Quem me viu hoje há dous anos!



Ó Felipa, que fizeste!



Leixaras-me meus enganos;



e oulha que não quiseste,



por me dar a mim mais danos.



¡ Quem havia de cuidar



de ver tamanhas mudanças!



Mas, em fim, tudo é pesar:



trás as grandes esperanças



está o desesperar.







Olha, Jano, bem por ti,



e não te arrependas tarde,



crê-me a mim, que sei e vi



cousas de que Deus te guarde,



que a elas e a mim perdi.



Comerás sem dor seu pão,



dormirás teu sono cheio,



se fores sem afeição,



que faz homem de si alheo,



com rezão e sem rezão.







Em tudo espera o pior,



que, quando te o mal vier,



não te faça o mal maior;



tudo é leve de perder



onde esperança não fôr”.



Aqui, triste, se calava,



qu’a dor grande que sentia



já os seus olhos cegava;



desta sorte me dezia,



depois que um pouco assi estava:







“Outros muitos te dirão



que procures por riquezas:



mas ¿ que te aproveitarão,



Jano meu, se as tristezas



te tiverem o coração?



Se a ti mesmo tiveres,



pouco ou nada hás mister,



para contente viveres;



por isso faze por te ter,



para tanta dor não teres”.







Amores não guardam lei,



quantas vezes o ouvi.



fazê-lo assi lhe fiquei;



bem então lhe prometi,



e mal depois o guardei.



Se eu em minha mocidade



por seus conselhos regera,



com tamanha crueldade



tam longe me não pusera



de mim a minha vontade.







Isto ¿ onde o mereci eu,



ou a quem o mereci?



Ó Dina, cuidado meu,



¿ quem me vos levou assi,



que tantos nojos me deu?



Ó meus olhos, e comêço



desta minha triste fim,



oh! quantos males padeço!



¡ Como me tendes de mim



longe e não vo-lo mereço!







Longe, em terras estranhas,



e de esperança alongado,



pelos campos, pelas serras,



antre mim e o meu cuidado



Sam apregoadas guerras.



Oh! desaventura minha,



começada de tam longe,



¡ quanto me a mim mais convinha,



convinha deitar-me a longe



eu com quantas cousas tinha!







¿ Onde me possa já ir,



quem me será bom amigo?



Mal em estar, mal em fugir,



dentro cá trago comigo



quem me a mim há d’estruir.



Remédio a tanto dano



mal se poderá tomar;



Não foi tomado o engano,



Quando, para o deixar,



Aborreci o desengano?







Olho e nenhum cabo vejo,



onde me possa salvar,



contra mim mesmo pelejo;



já de parte do pesar



é lançado o meu dessejo,



a fim não pode tardar.



Coitado, gado, de ti,



que sem dono hás de ficar,



ainda que milhor é assi



morrer eu, que te matar;







Que esta dor longa, que sigo,



traz-me assi tam tresportado,



que a mim mesmo mal digo:



¡ Que bem fará a seu gado



quem tam mal o faz consigo!



Quanto me a mim milhor ia,



que não sei se foi milhor,



gordo e farto te trazia;



agora é triste o pastor,



e triste o gado, que o guia.







Já aquele tempo é passado,



quando, à beira do meu trigo,



Jano em te ver foi pasmado;



tu te ficas sem abrigo,



e o pastor desabrigado.



¡ Misquinho pastor perdido,



quanto milhor já te fôra



não ser no mundo nascido,



pois antre hora e hora



jaz tanto mal escondido!







¡ Como se o bem passou,



e veo o mal tam asinha;



Cousa e cousa se mudou,



A vã esperança minha



em que têrmos me deixou!



Foi-se assim tudo a perder,



perdeu-se o gado e pastor,



cansado sam de viver;



trouxe ũa dor outra dor,



prazer nunca outro prazer.







Ó meu amigo Africano,



agora vejo a verdade:



que me tem levado o engano



toda a minha liberdade;



leva o dia, leva o ano;



mas pois que Deus assi quer,



ou a minha triste sorte,



vá tudo como quiser,



que não há mais que ũa morte:



tarde ou cedo hei-de morrer”.







4



Sextina







Ontem pôs-se o sol, e a noute



cobriu de sombra esta terra.



Agora é já outro dia,



tudo torna, torna o sol;



só foi a minha vontade,



para não tornar c’o tempo!







Tôdalas cousas, per tempo,



passam, como dia e noute;



ũa só, minha vontade,



não, que a dor comigo a aterra;



nela cuido em quanto há sol,



nela enquanto não há dia.







Mal quero per um só dia



a todo outro dia e tempo,



que a mim pôs-se-me o sol



onde eu só temia a noute;



tenho a mim sôbre a terra,



debaxo minha vontade.







Dentro na minha vontade



não há momento do dia



que não seja tudo terra;



ora ponho a culpa ao tempo,



ora a torno a pôr à noute:



no milhor pon-se-me o sol!







Primeiro não haverá sol



que eu descanse na vontade.



Pon-se-me ũa escura noute



sôbre a lembrança de um dia...



Inda mal porque houve tempo



e porque tudo foi terra.







Haver de ser tudo terra



quanto há debaixo do sol



me descansa, porque o tempo



me vingará da vontade;



se não que antes dêste dia



há-de passar tanta noute!



Publicado em setembro de 2008

























Home Poetas de A a Z Indique este site Sobre A. Miranda Contato



Envie mensagem a webmaster@antoniomiranda.com.br sobre este site da Web.

Copyright © 2004 Antonio Miranda




COPYRIGHT @ 2004  ANTONIO MIRAnda






Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas