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A CIDADE E AS PRAIAS
Ramalho Ortigão, um escritor saudável e actual
Henrique Garcia Pereira
O NASCIMENTO DE UMA PAIXÃO
«A Holanda», de Ramalho Ortigão, foi o objecto da minha primeira ‘recensão crítica’, num
‘trabalho para casa’ da disciplina de Português. Desde o (antigo) quarto ano do Liceu, fiquei
assim a admirar a admiração que o escritor revelava pelo ‘espírito industrioso e tenaz’ dos
habitantes dos Países Baixos (e pela democracia que ‘reinava’ nas Sete Províncias de Orange).
Talvez possa dizer agora que a minha ‘vocação’ de engenheiro, centrada no ‘gosto de
fazer coisas’, foi despertada por essa longínqua escrileitura ‘crítica’ de «A Holanda», em que
‘vi’, pela pena de Ramalho, a aplicação da ciência do século XIX – que, de resto, se
aproximava muito daquela que me ensinavam na adolescência – à edificação de um país
‘roubado ao mar’, à construção dos seus diques e polders, ao desenvolvimento de uma pujante
indústria naval. De resto, é revelador de uma clara aposta nessa ‘ciência moderna’ (que ia
despontando no seu tempo) o modo como Ramalho graceja à volta da perseguição (ridícula e
ineficaz) do “Sr. D. João VI ao grande naturalista Humboldt, proibindo-o de entrar no Brasil”1.
E à medida que o meu ‘carácter’ literário se formava pelo uso desmedido de leituras
desencontradas, a minha afinidade com o Ramalho ia crescendo, ao mesmo tempo que a
rejeição in limine do Eça ia tomando corpo. Na esteira de Montaigne2, e em contra-corrente
com todo o establishment, não tinha pejo nenhum em abandonar a meio a intriga de um Eça
qualquer3, em favor da minha paixão pelas longas e desconexas descrições de Ramalho Ortigão,
onde surgia, avant la lettre, um ‘estilo’ a que viria a chamar ‘texto extensão’4.
1 cf. Ramalho Ortigão, 1943, p. 188.
2 Que dizia com simplicidade : ”Se um livro me aborrece, pego noutro” .
3 E nesta atitude radical, sinto-me em boa companhia com Pessoa, que ridicularizou a preocupação “em
ser civilizado” que Eça demonstrava, considerando o nosso pretenso cosmopolita como o “exemplo mais
flagrante do provincianismo português”. E sobre a sua tão propalada ironia, o nosso poeta marginal
2
Quando, mais tarde, me pus a pergunta sacramental “porque é que uns de nós são
sensíveis a Marx e outros a Bakunin?”5 - levantando a questão que também inquietava Musil -,
lembrei-me da antinomia Ramalho/Eça que nascera para mim com aquelas primeiras leituras da
geração de 70. De uma análise superficial da questão de Musil, concluí rapidamente que cada
indivíduo só ‘pega’ verdadeiramente em pouco mais do que uma ‘meia dúzia’ de temas, que o
perseguem a vida toda e que “tocam numa zona central da existência em que se decide a razão
de ser das coisas, e que é ocupada por aquilo que é verdadeiramente importante para cada um
de nós”6. E, de novo com Montaigne7, apurei adicionalmente que ‘cada um de nós’ gosta de
ver, nos seus ‘autores de estimação’, o eco desses temas, que de resto não podem ser
‘explicados’ nem pela economia, nem pela educação, nem pela cultura, mas pela estranha
‘motivação’ de que fala Musil no «Homem sem qualidades». E assim gostei de verificar que
a questão de Musil era também aflorada em Ramalho, firmemente apoiado em Spinosa (outro
dos meus ‘autores de estimação’), quando escreve: “Os meus últimos meses de solidão em
Lisboa acabam de demonstrar-me que é Spinosa afinal que tem razão. Há um determinismo
mental de que ninguém se liberta. Ninguém tem pensamentos exclusivamente próprios.
Ninguém pensa o que quere8.”
UMA APROXIMAÇÃO AO MIND/BODY PROBLEM ATRAVÉS DO
CONCEITO DE CIDADE-PRAIA
Sentindo-me fortemente atraído pelas fervilhantes tertúlias dos Cafés de Lisboa - que
alimentavam o meu espírito -, mas também pelo mar, sol e praia – que faziam exultar o meu
corpo -, sempre me incomodou uma espécie de aguda dualidade cartesiana que reinava entre os
meus companheiros de geração: ou A ou B, quem é pela cidade é contra as actividades ao ar
livre, quem gosta da cultura não gosta de nadar, quem lê não se bronzeia, quem pensa detesta a
produziu este demolidor juízo: “As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão
também pela inconsciência dela.” (Pessoa, 1980, p. 161).
4 cf. Pereira, 2002, p. 77.
5 cf. Pereira, 2004, p. 111.
6 cf. Coelho, 1995, p. 201.
7 Que escreveu que nunca lemos um certo autor para formar uma opinião, mas para encontrar no livro
alheio a nossa própria opinião, formada há muito.
8 cf. Ramalho Ortigão, 1946b, p. 198.
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praia. Havia assim duas sub-espécies totalmente disjuntas de babyboomers: os enfezados
‘intelectuais de esquerda’9, dados à leitura na escuridão10 e à metafísica colectiva, e os
incipientes pré-surfistas desse tempo, que prezavam exclusivamente a energia individualista das
sensações elementares trazidas ao corpo pelo contacto luminoso com a areia aquecida pelo Sol
e pelo mergulho vivificante na bravia água do mar (e se a primeira das sub-espécies ignorava
olimpicamente a segunda, esta hostilizava abertamente o campo dos babyboomers partidários
das leituras 11).
Acreditando com a maior das convicções que ‘uma coisa não exclui a outra’ e que o ‘jogo
não é de soma nula’, constituiu para mim uma agradável surpresa a leitura de «As praias de
Portugal», onde o Ramalho conseguiu a acrobacia de produzir uma obra onde - por entre uma
pletora dos ‘assuntos’ mais diversos - se consuma, para mim, a ‘unidade dos contrários’ que já
os latinos desejavam (“Nihil in intelellectum quod non erat in sensu”). De facto, sem
menosprezar o apport cultural e espiritual da cidade (e encontrando mesmo em Lisboa algumas
‘realizações tecnológicas’ entusiasmantes, como “o Aterro, com as suas altas e esguias
chaminés empenachadas de fumo, o gasómetro, a oficina de serração a vapor”12), Ramalho
Ortigão, “com a sua saúde física e alegria muscular”13, percorre incansavelmente as praias da
9 Nunca esquecerei a figura débil do meu amigo surrealista António José Forte, arrastado à contre-coeur
para uma praia do Algarve: a cambalear como um velho legionário no deserto, esgueirava-se pelas parcas
sombras do meio-dia, tentando debalde proteger com a mão em pala os seus cansados olhos de coruja
(Cf. Pereira, 2000, p. 47).
10 Já os ‘gregos’ preferiam Perséfone, a terrível deusa das profundezas da terra, ao insignificante Helios
(com uma honrosa e significativa excepção: Aristónico e a sua utopia da cidade solar, prometida aos
escravos da Ásia Menor, cf. Finley, 1977, p. 281). E, a partir desses gregos que se entregavam à
melancholia, abate-se sobre o ‘pensamento ocidental’ o poder sedutor da obscuridade, organizando-o
sob o signo de Saturno.
11 Ainda hoje, quem gosta como eu de ler à l’extérieur - nas esplanadas, na praia, na piscina – não pode
deixar de sentir uma fortíssima atitude agressiva por parte daqueles que estão nesses locais ‘para se
divertirem’. De facto, a putativa disrupção causada na paisagem por um leitor atento (que não se limita a
folhear distraidamente uma revista) é tomada como grave violação das ‘normas standard’ vigentes em tais
locais, e o poder simbólico associado à leitura é objecto de uma violenta oposição (com alguns contornos
de uma estranha ambivalência). Assim, “para ludibriar a vigilância dos defensores do lúdico consentido
que pululam nas paragens do mar, Sol e praia – as quais quero continuar a associar aos prazeres da
escrileitura -, passei a dissimular os instrumentos do meu mister (livro, ‘caderninho’, canetas) num
anódino saco de plástico que faz as vezes do necessaire em fins de semana de outros prazeres” (cf.
Pereira, 2002, p.34).
12 cf. Ramalho Ortigão, 2002, p. 95. E se Eça afirma que a ciência era para Ramalho “a sua preocupação,
o seu fim, o seu vício, a sua força”, Maria Filomena Mónica considera “uma última maldade” este elogio
a Ramalho (Mónica, 2001, p. 87).
13 cf. «Ramalho Ortigão, o seu exemplo e sua obra» por Augusto de Castro, in Ramalho Ortigão, 1944 a,
p. XVI. Esta ‘característica’ de Ramalho - que eu aprecio sem qualquer parti pris (não percebo por que é
que um intelectual não possa ser ‘saudável’) – é satanicamente demonizada em Valente, 1990, p. 65, onde
4
nossa costa (do extremo Norte ao quase Sul), exaltando com veemência as virtudes do banho de
mar, tanto para “as crianças fraquinhas, para as mulheres débeis, fatigadas”, como para “as
grossas constituições linfáticas14”.
Em «As Farpas»15, por entre os episódios urbanos mais pitorescos, surgem referências
elegíacas ao mar como “um grande médico, um grande conselheiro, um grande amigo” e à praia
como “um culto onde se pratica uma religião, onde todas as mães se deveriam devotar
fervorosamente durante alguns meses do ano ao futuro, que não é mais do que a compleição, o
temperamento, a energia e o vigor dos seus filhos”16. E, num tom irónico que contrasta
vivamente com o registo anterior, levanta a possibilidade da utilização prática, em benefício da
cidade, do “denodo dos nadadores de Pedrouços para dar reboque às chocolateiras de rodas que
o Sr. Frederico Burnay traz em fervura entre Belém e o Cais do Sodré”17.
Surge assim esboçado no contexto literário do nosso século XIX um conceito que me é
caro hoje: o novo conceito de cidade-praia, de que Lisboa18 é um exemplo (com Málaga,
Cagliari, Palermo, Atenas....). Estas cidades desenvolvem-se em oposição ao ‘campo’, ao longo
do litoral, contendo em si (ou nos seus preciosos subúrbios costeiros) a própria praia, o que
adiciona uma dimensão nova ao urbano19. Reconcilia-se assim a polis com o mar, conseguindo-
no texto «Desventuras de um autodidacta» surge o seguinte lead: “O homem tinha aberta e
agressivamente o culto da higiene, da saúde e da força”. Também Maria Filomena Mónica, conjecturando
sobre a trama de ‘invejas’ recíprocas que crê encontrar nas relações Eça vs. Ramalho, não deixa de referir
com uma mordacidade inconsequente esta ‘faceta’ do segundo, pela boca do primeiro: “possui duas
qualidades eminentes (...): não é bacharel e tem saúde” (Mónica, 2001, p. 85). O que é facto é que
Ramalho acompanhou Eça na sua última viagem de Paris à Suiça, em demanda dessa saúde que faltava ao
amigo e que ele não lhe podia emprestar (nem aos “Vencidos, que estavam todos mais ou menos
combalidos das entranhas”, como anuncia numa carta a Eduardo Prado de 1890, cf. Berrini, 2003, p. 288).
14 cf. Ramalho Ortigão, 1992, p. 56.
15 Lidas hoje na Edição da Clássica Editora, depois de ter verificado cuidadosamente que aí não havia a
mão do Eça, cotejando-a, a contrario e para o período de co-autoria, com a ‘versão’ de Maria Filomena
Mónica, que contem um capítulo intitulado: “Excertos escritos por Eça de Queiroz em As Farpas de
1871-1872 (autoria segura)”. Na introdução a essa ‘versão’, a nossa zelosa queirosiana envolve-se de tal
modo com Queiroz que é capaz de explicitar as suas mais recônditas arrières pensées: “O que ele não
queria era ver os seus textos colados aos de Ramalho” (a propósito da recusa de Eça em co-assinar a
edição Corazzi de 1886). E considera “mentira” a sua afirmação de que Ramalho é “um escritor
superior” (Eça de Queiroz & Ramalho Ortigão, 2004, p. 2), afirmando que “Eça considerava que o
melhor de Ramalho era obra sua” (Mónica, 2001, p. 85).
1
6 cf. Ramalho Ortigão, 1944c, p. 234.
17 cf. Ramalho Ortigão, 1946a, p. 15.
18 Um amigo regressado de um frio e nebuloso exílio chamou-me a atenção para a prosaica dádiva da
Natureza que se podia desfrutar em Lisboa: “Ir dar um mergulho à Caparica quando nos apetecer, e voltar
antes da hora do jantar”.
19 Esta dimensão foi aflorada em Pereira, 2004, p. 254.
5
se uma saborosa sinergia entre o sombrio/dissoluto Café da cidade e a luminosa/salutar
Esplanada da praia. E, inesperadamente, encontrei em Ramalho uma forma singular desta
sinergia quando ele escreve: ”Paço de Arcos tem um hotel habitável – o do Bugio -, e um clube
em cujo salão há soirées aos sábados (...). Senhoras espanholas a banhos nesses subúrbios são
convocadas em cada semana a levarem aos sábados de Paço de Arcos o doce tributo da sua
presença, da sua toilette e da sua expansiva vivacidade. Assim como de manhã se pergunta para
o banho - «há maré?» - assim à noite se pergunta para o baile - «há espanholas?20».
UMA EXTENSIVIDADE CAMBIANTE E ACTUAL
“A falta de uma verdadeira estrutura ideológica” de que Ramalho é acusado21 permite-lhe
escrever livremente sobre qualquer assunto, saltar inopinadamente de um registo para outro, e
alongar desmesuradamente o texto com os mais inesperados enxertos, prolongamentos e
‘considerações prévias’ (que, até numa short story como «Ele e ela»22, pontuam a sua escrita).
Este estilo, dito “folhetinesco”, “jornalístico” ou “prolixo” pelos seus adversários, agrada-me
sobremaneira pelo seu carácter ‘extensivo’23 , de uma estranha actualidade.
Ao ler Ramalho, não posso deixar de evocar as assemblages de Georges Perec, esse
exegeta da multiplicidade contemporânea, com o seu gosto desabrido pela ‘enumeração’, por
vezes de coisas tão prosaicas como colecções de fiches-cuisine, mas também de ‘sistemáticas’
de vertebrados à maneira de Lineu, de ‘listas’ à la Rabelais ou Júlio Verne, ....24. De um modo
similar, nas 185 páginas de «As praias de Portugal» irrompem, lado a lado com o vif du sujet,
as mais inoportunas observações irónicas, os mais diversos faits divers, as estatísticas mais
variadas sobre tudo o que vem à cabeça do autor. Concretamente, proliferam no texto, logo que
surge uma ‘entrada’ qualquer (ou mesmo sem precisar de ‘entrada’), longas listas de peixes,
fragmentos da história de Portugal, análises químicas, registo de milagres, conselhos de saúde
e normas de socorro aos afogados. Estes blocos de texto, abertos a um constante updanting pelo
seu carácter aditivo, são os constituintes básicos da extensividade hibridizante de Ramalho,
onde não cabe qualquer dicotomia. De facto, os layers que se vão sobrepondo nos textos do
nosso autor - ligados pelos sucessivos and, and, and, com que Doris Lessing25 entendia o nosso
20 cf. Ramalho Ortigão, 1992, p. 102-103.
6
tempo - são apresentados “seguindo a ordem das nossas percepções, em vez de começar a
explicar as suas causas”26.
Numa época em que a ‘esperança de vida’ era de quarenta anos, Ramalho viveu quase o
dobro. E, ao longo da sua longa existência, foi assistindo a (e participando em) radicais
mudanças no Zeitgeist, o que lhe valeu uma persistente acusação de incoerência, por parte dos
seus (numerosos) detractores coevos e posteriores (com os seus coevos, podia Ramalho bem27,
com os posteriores posso eu28).
Na sua invejável longevidade cambiante sem sombra de qualquer essencialismo29 reside
mais uma faceta da actualidade de Ramalho. De facto, nos tempos de hoje (em que a nossa
21 cf. Saraiva & Lopes, s.d., p. 786
22 cf. Ramalho Ortigão, 2003. Neste conto curtíssimo que Luísa Costa Gomes desencantou, surge no seio
do plot toda uma série de piruetas textuais, feitas de mudanças de tom, de apartes e parágrafos-parênteses,
de ironias que roçam a autodérision, de súbitas (mas anunciadas) intercalações que hibridizam o sublime
com o prosaico. Em paralelo com a diversidade dos conteúdos, encontro na escrita de Ramalho uma
persistente auto-similititude fractal que é independente da ‘escala’ do texto.
23 “Os parágrafos, e mesmo os pontos finais, não sincronizam com a minha disritmia, estão fora do meu
mapa mental. Prefiro definitivamente as vírgulas que abrem outra cláusula, os parênteses que oferecem
uma analogia (ou um oximoro), os travessões que explicam melhor uma ideia – ou fazem um ‘contraste’-,
as notas de rodapé que interrompem o fluir do texto para acrescentar qualquer coisa ou dar uma
referência, e sobretudo, as orações subordinadas que permitem todos os ‘encaixes’ (Pereira, 2002, p. 81).
2
4 Em Perec, 1985, encontra-se uma abundante ilustração desta ‘originalidade’ do membro do grupo de
vanguarda OULIPO (l’Ouvroir de Littérature Potentielle), fundado nos anos 60 do século XX por
‘literatos’ e ‘cientistas’, e cujo objectivo é “la recherche de formes, de structures nouvelles qui pourront
être utilisées par les écrivains de la façon qui leur plaira” (Burgelin, 1988) .
25 A velha militante desencantada escreve: ”Our experience, it seems to me, when you are living is: and,
and, and. It´s never either/or” (Lessing, 1994, p. 43)
26 cf. Ginzburg, 2000, p. 34
27 Por exemplo, numa farpa de 1871, escreve: “A crítica levantada em redor das Farpas acusa-as de
prodigalizarem cortesias a El-Rei. Há por outro lado quem as suspeite de fazerem secretamente votos pela
república. Ora as Farpas tomam a liberdade de declarar que não desejam ardentemente para si e para o
seu país senão uma coisa, - que é juízo” (Ramalho Ortigão, 1945, p. 65).
2
8 Por exemplo, quando Vasco Pulido Valente diz que Ramalho “tomava de página para página posições
teóricas incongruentes ou contraditórias”, arrasando o “autodidacta” e enaltecendo “a necessidade
prosaica de uma educação formal”, não posso deixar de me rir do elitismo ácido do ex-secretário de
estado da direita, que se refugia numa máscara de scholar ‘especializado’ para disfarçar a sua
inoperância cultural na execução prática da tarefa de “instruir os seus compatriotas”, o objectivo de que
Ramalho é ‘acusado’, e que o acusador obviamente executou mal, ao ignorar, enquanto governante, as
condições de vida dos seus governados (é tristemente famosa aquela grotesca entrevista à televisão em
que sobreestimou grosseiramente o salário mínimo dos portugueses). Assim já se percebe porque é que o
nosso inefável ‘cronista’ escarnece da porfia do “mestre-escola” em continuar com «As Farpas» depois
de Eça partir para Cuba, conferindo-lhes “um pendor didáctico” (cf. Valente, 1990, p. 65-67).
2
9 Como o que se encontra por exemplo na “evolução espiritual de Ramalho Ortigão”, vista por Amadeu
Carvalho Homem. Para contrariar o “mito de um Ramalho relapso e vergonhosamente desertor da
7
‘esperança de vida’ atinge quase a idade com que Ramalho morreu, de charuto na boca30), a
‘deriva das identidades’31 como metáfora do Homem-que-muda-de-opinião32 está comumente
generalizada, depois de se ter dificilmente integrado na cultura humanística o paradigma da
mecânica quântica que permite que uma coisa possa ser A e também B (e depois de termos
visto coisas impensáveis há duas décadas).
E para mudar de opinião, é preciso curiosidade, um traço de personalidade que um
viajante empenhado33 como Ramalho não podia deixar de considerar como a maior das virtudes
(mas que é denunciado vigorosamente por São Bernardo, porque leva a “que passemos de uma
coisa para outra, em vez de meditar na lei divina”34, e também por Vasco Pulido Valente,
porque leva “o autodidacta a ler tudo: química e filosofia, mecânica e teoria da educação,
história e biologia, física e literatura” 35).
Pondo em prática até ao fim da vida essa curiosidade ‘por tudo’ (as «Últimas Farpas» são
de 1914), Ramalho escreve sobre a revolução republicana de 1910 citando Victor Hugo: “Meus
senhores, tenho setenta-e-quatro anos e recomeço a minha carreira”36. E assim foi cumprindo a
promessa que fizera em 1872: “Enquanto em nosso espírito houver uma verdade que dizer e em
nosso braço a força precisa para escrever essa verdade, As Farpas continuarão contigo, leitor
honrado.”37 .
finalidade a valores democráticos primitivos, objecto de interpretações póstumas pouco abonatórias”, o
autor constrói em Ramalho uma ‘carapaça’ conservadora, mantida inalterável durante todo o seu percurso
intelectual, onde predomina “o permanente, o essencial, o imutável na estabilidade de modelos afectivos,
de paradigmas comportamentais…” (Homem, 2000, p. 214).
30 Augusto de Castro conta que em 17 de Setembro de 1915, quando Ramalho estava moribundo, o seu
genro Eduardo Burnay lhe estendeu um charuto aceso. À exclamação do velho – “Eduardo, é a morte! -, o
genro ripostou: “Qual morte, Ramalho! Não se morre a fumar!” (Ramalho Ortigão, 1944a, p. XXXVII).
31 cf. Pereira, 2000, p. 82.
32 Escutemos Walt Whitman, lido por Gérard Castello Lopes («Pública», 12.12.1999): ”Contradigo-me?
Muito bem, então contradigo-me (sou imenso, contenho multidões)”.
33 Por exemplo, numa carta a Joaquim Nabuco de 1887, Ramalho, anunciando “uma viagem de estudo ao
Rio de Janeiro por 2 ou 3 meses”, pede ao amigo que lhe dê a conhecer “o elemento negro ou os
elementos de qualquer cor da sociedade brasileira” (cf. Berrini, 2003, p. 281).
34 cf. Ginzburg, 2000, p. 91
35 Num verdadeiro acto (ou será auto?) de fé interpretativo (ou será destrutivo?), põe-se assim em causa a
“benevolência” de Eça, que “elogia o gosto de Ramalho pelas suas leituras enciclopédicas”, cf., Valente,
1990, p. 66. De resto, a sanha contra o excesso destas leituras surge também em Homem, 2000, p. 214,
responsabilizando-as pela “transição do seu tradicionalismo originário para o seu republicanismo
episódico”.
36 cf. Ramalho Ortigão, 1946b, p. 8
8
CODA
E já que comecei com recordações da adolescência e juventude, não quero terminar sem prestar
mais uma homenagem a Ramalho, agora por me ter feito vir à mente um esquecido eco da
minha infância38. A minha Avó - que se ocupava da minha ‘educação’ durante a ausência dos
meus Pais - obrigava-me a ficar em casa a ‘tomar propósito’, misteriosa actividade que eu não
conseguia entender (e que ela não me conseguia explicar, apesar das minhas insistentes
perguntas: - Avó, mas o que é propósito?). Esta dúvida que esteve tantos anos adormecida no
meu inconsciente só hoje foi elucidada pelo Ramalho, quando li este esclarecimento “de pendor
didáctico”: “Tomar propósito é uma locução essencialmente local e intraduzível, que quere
dizer: aprender a não saber andar, a não saber rir, a estar quieto e a estar calado, a corromper os
mais nobres instintos da natureza humana, finalmente a dissimular e a mentir”39.
Ainda bem que nunca ‘tomei propósito’40!
REFERÊNCIAS
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Burgelin, C. (1988) Georges Perec, Seuil, Paris
Coelho, E.P. (1995) O Ensaio em Geral, Colóquio Educação e Sociedade, nº 8/9, F. C. Gulbenkian, Lisboa
37 cf. Ramalho Ortigão, 1945, p. 240
38 Posso assim agradecer a Ramalho o facto de nunca ter perdido a ‘memória episódica’ (autobiográfica),
como aconteceu a Yambo, na obra mais aberta de Umberto Eco «La misteriosa fiamma della regina
Loana» (Eco, 2004), em que o herói é incapaz de se lembrar de qualquer pormenor da sua vida passada,
embora mantenha ardentemente ágil essa capacidade a que os neurologistas chamam ‘memória
semântica’ (o que lhe permite recordar todas as façanhas de Júlio César e recitar de cor todas as poesias
que aprendeu).
39 cf. Ramalho Ortigão, 1944b, p. 248-248.
40 E que também não tomou qualquer forma reverberante, na farpa anteriormente referida, a crítica
reticente de Eça “quanto ao pendor didáctico que o amigo desejava conferir à publicação” (segundo
Maria Filomena Mónica, in Eça de Queiroz & Ramalho Ortigão, 2004, p. 3).
9
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Ramalho Ortigão, J.D. (1944a) As Farpas, volume I, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (1944b) As Farpas, volume IX, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (1944c) As Farpas, volume XI, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (1945) As Farpas, volume XII, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (1946a) Farpas Esquecidas, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (1946b) Últimas Farpas, Livraria Clássica Editora, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (2002) As praias de Portugal, Frenesi, Lisboa
Ramalho Ortigão, J.D. (2003) Ele e ela, in Ficções – Revista de Contos nº 8, www.ficcoes.net
Saraiva, A. J., Lopes, O. (s.d.) História da Literatura Portuguesa, 3ª Edição, Porto Editora
Valente, V. P. (1990) Às avessas, Assírio & Alvim, Lisboa
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