quinta-feira, 21 de junho de 2012

O ABANDONO DOS SERINGAIS NA AMAZÔNIA

FLACSO - Brasil Apontamentos sobre a formação hiistóriica da Amazôniia:: uma abordagem contiinentall[1] Kelerson Semerene Costa Introdução Uma síntese da história da Amazônia, considerada em termos continentais, deve levar em conta, pelo menos, três aspectos: a diversidade geográfica e ecológica dessa imensa região, influenciando nos processos e padrões de ocupação humana; a continuidade da presença humana na região, que remonta a mais de 12 mil anos, que se combina com rupturas e descontinuidades dos padrões e processos de ocupação – a maior das quais, sem dúvida, inaugurou-se com a chegada dos europeus, no século XVI; e a diversidade dos processos de colonização iniciados pelos países europeus, no século XVI, e continuados pelos novos estados nacionais independentes surgidos na primeira metade do século XIX. 1. Configuração do território A atual configuração do que denominamos Amazônia, em suas linhas gerais, resulta do processo de ocupação da região pelos colonizadores europeus, entre os séculos XVI e XIX, que envolveu não apenas conflitos entre estes e os diversos povos autóctones, mas também disputas entre Espanha, Portugal, Inglaterra, Holanda e França, no marco das várias guerras coloniais do período. De acordo com o Tratado de Tordesilhas (1494), a América do Sul deveria ser repartida entre Espanha e Portugal. Mas, ao ocuparem grande parte do litoral norte do continente, a partir do final do século XVI, no que hoje corresponde à Guiana, à Guiana Francesa e ao Suriname, ingleses, franceses e holandeses romperam o pretendido domínio ibérico sobre a totalidade do continente. A hegemonia de lusos e 1 Série Estudos e Ensaios / Ciências Sociais / FLACSO-Brasil - junho /2009 FLACSO - Brasil espanhóis foi colocada em jogo em muitas outras regiões do mundo colonial, como as Antilhas, os centros de fornecimento de escravos na costa africana, as diversas colônias na Ásia e o litoral brasileiro – cuja porção nordeste os holandeses ocuparam por mais de trinta anos, na primeira metade do século XVII. As cartografias holandesa e francesa do século XVII projetavam os virtuais domínios de seus países sobre a totalidade do que então se denominava região da Guiana – bem mais ampla da que conhecemos nos dias atuais e, em alguns mapas, também denominada “Reino das Amazonas”, delimitada, ao sul, pelo rio Amazonas; a oeste, pelo rio Orenoco; ao norte, pelo mar do Caribe e, a leste, pelo oceano Atlântico (Costa, 2002). Nas quatro primeiras décadas do século XVII, o Amazonas foi bastante freqüentado por expedições inglesas e holandesas que penetravam no grande rio navegando ao norte da ilha de Marajó e chegavam até a confluência do rio Xingu, travando longas disputas com os portugueses pelo controle do curso inferior do rio Amazonas e de sua desembocadura. Porém, não alcançaram êxito nessas empresas, consolidando apenas o controle da Guiana. Os franceses, estabelecidos em Caiena desde o final do século XVI, realizaram tentativas de ocupação do atual litoral norte do Brasil, onde fundaram a cidade de São Luís, em 1612, e iniciaram um movimento para o oeste, chegando a freqüentar o rio Tocantins, como parte de um amplo projeto colonial denominado “França Equinocial”. Malogrados seus intentos de expansão territorial, fixaram-se na Guiana. Mas, até o ano de 1900, ainda disputavam com o Brasil, em cortes diplomáticas, o território ao sul do rio Oiapoque (Costa, 2002). Holandeses e ingleses concentraram-se, especialmente, nas regiões dos rios Essequibo, Demerara, Berbice e Suriname, alternando entre si o controle dessas áreas entre meados do século XVII e o início do século XIX. As colônias do Essequibo, Demerara e Berbice foram fundadas e controladas pelos holandeses até as últimas décadas do século XVIII. As diversas iniciativas privadas dos primeiros anos foram substituídas, em 1621, pelo monopólio da Companhia das Índias Ocidentais, que durou até a segunda metade do século XVII, quando o controle e a administração das colônias passaram às mãos das câmaras das cidades holandesas de Veere, Middelburg e Vlissengen (Farage, 1991:88-89). No final do século seguinte, em 1796, os ingleses ocuparam esse território pela força das armas e, depois de sucessivos conflitos e alternância do domínio, compraram-no aos holandeses em 1814, unificando as três colônias sob o nome de Guiana Inglesa, alguns anos mais tarde, em 1831. No rio Suriname, foram os ingleses os primeiros europeus a estabelecer ocupações permanentes, instalando plantações de cana-de-açúcar, em 1656. Mas os holandeses assumiram o controle da região quando, em 1667, o Tratado de Breda pôs fim à guerra anglo-holandesa e estabeleceu, entre outros acordos, a troca do Suriname por Nova Amsterdã, na América do Norte. A região abrigou plantadores de açúcar anteriormente instalados no litoral nordeste do Brasil, de onde os holandeses haviam sido expulsos em 1654. 2 FLACSO - Brasil A maior parte do território amazônico, no entanto, tocou aos dois países ibéricos, Espanha e Portugal. Ainda na primeira metade do século XVI, os espanhóis empreenderam uma série de incursões a leste dos Andes, das quais a mais célebre é a expedição Gonzalo Pizarro/ Francisco de Orellana (1541-42), que desceu o rio Napo e realizou a primeira navegação, por europeus, até a foz do Amazonas. Mas, uma série de outras incursões, realizadas entre 1536 e 1560, “permitieron la penetración más sistemática y el reconocimiento de una franja de unos cién kilómetros de ancho, constituida por el declive externo de la cordillera oriental y el sistema subandino (hondonadas y pequeñas cordilleras paralelas al eje general de los Andes y conjuntos de colinas en las bajas estribaciones) y su incorporación provisional a la economía colonial” (Jean Paul Deler, 1987:55). Efetivamente, resultaram no desenvolvimento de atividades como a exploração de ouro e o cultivo de algodão, na formação de diversas povoações edificadas segundo um plano rigoroso de construção e de uma estrutura administrativa relativamente complexa (Deler, 1987). Porém, em fins do século XVI, em virtude da decadência da exploração aurífera, do deslocamento dos interesses para as minas de prata descobertas em Potosí e das grandes insurreições indígenas do período, tais como a insurreição geral da Audiência de Quito e as insurreições dos Jívaro, na Amazônia, a vertente oriental entrou em franca decadência, com o abandono ou a destruição dos estabelecimentos espanhóis (Deler, 1987). Após o fracasso dessas primeiras iniciativas, a colonização espanhola da Amazônia passaria a ser feita, entre fins do século XVI e meados do século XVIII, quase exclusivamente pela ação missionária, pois, como forma de conter os excessos dos Conquistadores, a coroa espanhola, por meio da Real Cédula de 1573, proibiu novas expedições armadas ao Oriente e determinou que toda ação colonizadora naquela região fosse realizada apenas pelas ordens religiosas (Tibesar, 1989: p.16). O movimento português sobre a Amazônia, cujos marcos iniciais são a conquista de São Luís aos franceses, em 1615, e a fundação de Belém, em 1616, teve como eixo orientador a calha do rio Amazonas. Essa longa planície fluvial, em uma extensão de cerca de três mil quilômetros, figurou-se como uma região a ser virtualmente explorada e ocupada pelos colonizadores lusos, sobretudo depois que Pedro Teixeira, em trajeto inverso ao de Orellana, chegou em Quito após remontar o Amazonas, fixando muito além do meridiano de Tordesilhas os limites mais tarde reivindicados por Portugal – provavelmente, na confluência dos rios Napo e Aguarico, hoje em terras equatorianas. Embora não possa ser considerado como elemento determinante, já que diversos fatores devem ser levados em conta na explicação de êxitos ou fracassos das políticas coloniais, é certo que o fator geográfico desempenhou papel relevante em favor dos portugueses, facilitando o deslocamento Amazonas acima em um ambiente relativamente homogêneo em toda a sua extensão, ao compararmos com as dificuldades enfrentadas pelos espanhóis: o grande desnível entre os Andes e as 3 FLACSO - Brasil áreas amazônicas representava não apenas obstáculos ao deslocamento – relevo abrupto, rios não navegáveis – mas, também, uma rigorosa diferença climática que levou à morte milhares de índios deslocados compulsoriamente da cordilheira para o trabalho nas regiões de floresta. Conflitos entre portugueses e espanhóis ocorreram no curso do Amazonas, no trecho em que ele recebe o nome de Solimões, opondo os jesuítas a serviço da Espanha, em particular o tcheco Samuel Fritz, que haviam estendido as missões de Maynas rio abaixo, e os portugueses caçadores de escravos. Além disso, baseados nos feitos de Pedro Teixeira, os portugueses reivindicavam a posse sobre aqueles territórios. Com efeito, nos primeiros anos do século XVIII, os jesuítas de Espanha retiraram-se da região, que passou para a responsabilidade da ordem dos Carmelitas portugueses. Mais tarde, os tratados de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777) sacramentaram a posse portuguesa até a confluência do rio Javari. Ao longo dos séculos XIX e XX, foram solucionadas disputas fronteiriças localizadas, envolvendo todos os países da região. Algumas dessas disputas eram resultantes da antigas indefinições de limites; outras, da expansão territorial ocasionada pelo aumento da exploração de produtos florestais. De todo modo, as principais questões de limites entre domínios espanhóis e portugueses, na Amazônia, haviam sido solucionadas pelos tratados de 1750 e 1777, definindo as linhas gerais do território amazônico. A colonização, porém, não se realizou em espaços vazios. Não se tratava, em absoluto, de um território desabitado a ser disputado e partilhado pelas potências coloniais européias. Ao contrário, no cerne do processo de colonização estava a relação entre os colonizadores e os povos indígenas, ocupantes originais do território. 2. Povos indígenas, ocupantes pré-coloniais da Amazônia Sabe-se que o Homem está presente na Amazônia há, pelo menos, onze mil anos. Porém, apesar de crescente, o conhecimento sobre a ocupação pré-colonial da região ainda é lacunar e motivo de algumas importantes polêmicas, sobretudo quando os temas são a densidade e os padrões dessa ocupação. A esse respeito, podemos identificar duas correntes explicativas da ocupação humana. Uma corrente da arqueologia da Amazônia, desenvolvida a partir dos anos 1950, ao considerar que o padrão de organização dos grupos indígenas amazônicos do presente seria o mesmo dos grupos indígenas anteriores à chegada dos europeus (população pouco numerosa e baixa densidade demográfica, sociedades pouco hierarquizadas etc.), encontra no meio ambiente, especialmente na pobreza dos solos, os fatores determinantes que limitariam as sociedades humanas locais, impedindo o desenvolvimento de culturas complexas no trópico úmido. Um 4 FLACSO - Brasil corolário dessa afirmação é que inovações culturais, como a cerâmica e a agricultura, não poderiam ter conhecido um desenvolvimento local, tendo chegado à Amazônia apenas por diferentes levas de imigrantes pré-coloniais, oriundas das áreas de difusão localizadas nos Andes e no noroeste da América do Sul. Outra corrente, mais recente, sustenta que a floresta tropical não seria apenas receptora de tradições culturais, mas seria, ela própria, um centro produtor de inovações. Por exemplo, a Amazônia tem sido considerada como um centro de domesticação de plantas, entre as quais a mandioca e a pupunha. Mais ainda, há fortes evidências de desenvolvimento autóctone da cerâmica, seja pela difusão, Amazonas acima, de uma tradição polícroma originária da ilha de Marajó, no século IV de nossa era, seja pela localização de peças com datas que, se confirmadas, remontariam a mais de cinco mil anos antes do presente – mais antigas, portanto, do que as cerâmicas do litoral noroeste da América do Sul (Roosevelt, 1991; Neves, 2006) Em que pese esta divergência, não resta dúvida, contudo, de que povos andinos e amazônicos mantiveram, por milênios, intensas relações, que ocorriam em uma área de montaña situada entre 500 e 2000 metros acima do nível do mar e cujos eixos de deslocamento eram, em geral, rios que ligavam a serra às áreas mais baixas de floresta. Por meio dessas relações, os povos andinos procuravam obter produtos de outros pisos ecológicos, situados em área tropical. São vários os registros arqueológicos da presença desses povos nas áreas de montaña, desde períodos pré-incaicos. Mas foi durante o império inca que tais relações se tornaram mais intensas. No entanto, os incas nunca lograram estabelecer domínio sobre povos amazônicos, nos moldes em que estabeleceram na serra. Sua estratégia de incorporação de territórios e povos amazônicos – como ocorreu no Alto Huallaga, nos afluentes do Alto Madre de Dios e no Alto Beni - associou a presença militar e a construção de fortificações estratégicas com o estabelecimento de colônias que cumpriam o duplo papel de centros de produção e de elementos de intercâmbio com os povos da Amazônia (Santos Granero, 1992). Ao contestarem a idéia de que o meio ambiente teria sido um fator limitante, afirmam diversos arqueólogos que, especialmente nas áreas de várzea – áreas de aluvião inundáveis do Amazonas e alguns de seus afluentes - houve condições para o desenvolvimento de grupos humanos numerosos, organizados em sociedades relativamente complexas, que teriam se desenvolvido cerca de dois mil anos antes da chegada dos europeus. As margens do Amazonas teriam sido, portanto, contínua e densamente povoadas entre o ano 1.000 antes de nossa era e o século XVI. Estudos de demografia histórica conduzidos por William Denevan, nos anos 70, afirmam que a população de toda a Amazônia Continental alcançava mais de cinco milhões de habitantes (Ribeiro, 1992: 79). A arqueologia também tem encontrado diversas evidências de que algumas populações amazônicas pré-coloniais teriam promovido relevantes alterações na paisagem, por meio da construção de, por exemplo, canteiros drenados, elevações no terreno para agricultura, habitação, defesa e sepultamentos, em áreas da 5 FLACSO - Brasil Venezuela, da Bolívia, do Brasil e da Guiana (Beckerman, 1991: 145, Roosevelt, 1995: 120), ou da formação, involuntária, das chamadas “terras pretas de índios”, que são terrenos de alta fertilidade resultantes da decomposição de matéria orgânica em antigos assentamentos humanos. Também os métodos de aproveitamento de antigas áreas cultivadas, a seleção e a combinação de plantas em áreas específicas (Posey, 1987), seriam indicadores de relevantes intervenções humanas no ambiente amazônico pré-colonial. Mas a descontinuidade da ocupação humana que se seguiu à chegada dos europeus – em muitas áreas, transcorreram séculos entre o desaparecimento de seus habitantes originários e a efetiva ocupação colonial – permitiu que novo crescimento da floresta sobre áreas antes habitadas ocultasse aquelas marcas da ação humana (Costa, 2002). 3. Trabalhadores indígenas, africanos e asiáticos As crônicas do século XVI, das quais as mais relevantes são as de Gaspar de Carvajal, cronista da expedição de Orellana, e as dos diversos cronistas da expedição de Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre, dão conta de populações muito numerosas vivendo nas margens do Amazonas e nas desembocaduras de seus principais afluentes. Menos de um século mais tarde, a situação havia se modificado: referindo-se à atuação dos jesuítas nas missões de Maynas, que teve início em 1638, Jean Pierre Chaumeil (1988) chama a atenção para o fato de que as sociedades com as quais os missionários entraram em contato já estavam bastante reduzidas e alteradas pela presença direta ou indireta dos europeus. Chaumeil alude ao fato de que, mesmo sem uma presença permanente e contínua em determinadas regiões, em poucas décadas os colonizadores provocaram a desestruturação e a redução populacional de vários povos, seja pela disseminação de doenças, seja pelas guerras para captura de escravos. Esse fenômeno se acentuou nas décadas seguintes, de modo que, em meados do século XVIII, quase todos os povos que habitavam a várzea do Amazonas estavam extintos ou reduzidos, e muitos outros haviam fugido para os altos cursos dos afluentes (Porro, 1996:37). Esses índios foram parcialmente substituídos por aqueles deslocados para os aldeamentos missionários que se espalharam de leste a oeste, ocasionando uma grande mudança na composição étnica e cultural das várzeas amazônicas. Duzentos anos depois das primeiras incursões, os colonizadores europeus haviam provocado o despovoamento de áreas muito remotas nas quais eles ainda não haviam logrado se fixar, e as quais eles conseguiam atingir, direta ou indiretamente, por meio das expedições de coleta de produtos florestais ou das muitas ramificações do comércio de escravos índios. De fato, era principalmente na força de trabalho indígena, explorada sob diferentes modalidades de trabalho compulsório, que se sustentavam as atividades econômicas na maior parte da Amazônia – a pesca, a lavoura e a coleta de produtos 6 FLACSO - Brasil como o cacau, o cravo, a quina, a salsaparrilha, entre outros -, situação que perdurou por todo o período colonial e em grande parte do século XIX, chegando mesmo a conservar importância em algumas áreas nas primeiras décadas do século XX. A captura de prisioneiros em combate, bem como o rapto de mulheres e crianças de grupos inimigos, entre sociedades amazônicas, eram práticas anteriores ao século XVI, e foi explorando as rivalidades entre diferentes povos e utilizando-se de redes de comércio estabelecidas em tempos pré-coloniais – envolvendo alimentos, tecidos, utensílios e seres humanos – que os colonizadores europeus supriram suas demandas por força de trabalho. Os holandeses, por exemplo, desde as primeiras décadas do século XVII, obtinham escravos índios para suas plantações no Essequibo, Demerara e Suriname por meio de uma duradoura aliança com grupos índios, genericamente denominados Caribes, que habitavam a região da atual fronteira entre a Venezuela, a Guiana e o Brasil. Esses povos, por sua vez, estavam integrados em uma rede de comércio que se bifurcava, de um lado, para a região do Orenoco e seus afluentes – alcançando, por exemplo, as cabeceiras do Manapiare e do Ventuari - e, de outro, descia pelo rio Branco, alcançando os rios Negro e Solimões. Por meio dessa rede, produtos fornecidos pelos holandeses – como armas de fogo, vestimentas, machados, facas, anzóis, espelhos – eram trocados por escravos, além de redes, canoas, madeiras e tinturas (Coppens, 1998; Farage, 1991; Porro, 1996). Nas áreas de colonização espanhola, durante as primeiras ondas de ocupação nas franjas subandinas, na segunda metade do século XVI, além da submissão dos povos locais, índios andinos submetidos à encomienda eram deslocados para o trabalho nas áreas de floresta. Porém, no período de ação exclusiva das ordens religiosas, os índios reunidos nas missões estavam livres da encomienda e dos tributos à Coroa. A legislação portuguesa, por sua vez, assegurava a liberdade aos índios considerados aliados - em geral, os convertidos ao cristianismo. Mas mesmo estes poderiam ser feitos escravos, uma vez que, capturados por índios inimigos para rituais antropofágicos, fossem libertados pelos portugueses, por meio das chamadas “tropas de resgate”. Os índios considerados inimigos poderiam ser capturados como escravos nas chamadas “guerras justas” - isto é, as guerras motivadas por agressões aos portugueses. Porém, a definição sobre o que seria, efetivamente, uma “guerra justa” ou uma situação de “resgate” dependia, muitas vezes, dos interesses dos agentes coloniais envolvidos. Não só na Amazônia portuguesa, mas em toda a região, observa-se, com freqüência, uma distância entre a letra da lei e a prática dos processos de colonização, de modo que a prática da escravidão, ou da exploração semi-servil do trabalho indígena, foi muito mais ampla do que previam as disposições legais. As diferentes formas de trabalho compulsório prolongaram-se no período pós-colonial, pelos séculos XIX e XX, mesmo sem qualquer amparo legal, implementadas em cada novo território alcançado pelas frentes de expansão. A incorporação dos índios à sociedade colonial se deu, freqüentemente, por meio de três estratégias que, muitas vezes, andaram juntas: a violência física 7 FLACSO - Brasil (guerras, escravização, punições etc); as alianças para o intercâmbio de bens ou para a guerra, construídas entre colonizadores e diferentes povos indígenas – o que explica, por exemplo, que as expedições portuguesas de conquista ao longo dos rios amazônicos fossem majoritariamente compostas por índios armados; e, ainda, a conversão ao cristianismo, por meio da atuação de diversas ordens religiosas. A ação missionária das ordens religiosas se fez presente na Amazônia, pelo menos nos territórios reivindicados por países católicos, desde as primeiras expedições. Gaspar de Carvajal, por exemplo, cronista da expedição de Francisco de Orellana, era um frade da Ordem de São Domingos de Guzmán. Além dos dominicanos, também os agostinos, os carmelitas, os mercedários, os franciscanos e os jesuítas aturam na região. Entre as missões religiosas a serviço da coroa espanhola, destacam-se as missões de Maynas, conduzidas, inicialmente, pelos franciscanos e, a partir de 1638, pelos jesuítas, que nelas permaneceram até sua expulsão das colônias espanholas, em 1767. Compreendiam o Alto Amazonas e seus formadores como o Morona, o Pastaza, o Napo, o Huallaga, o Ucayali, bem como partes do Caquetá e do Putumayo, tendo como base a localidade de Borja. Os franciscanos estabeleceram missões também no Caquetá e no Putumayo, na região conhecida como Gran Caquetá (Sinchi, 2000), bem como no alto Ucayali, onde formaram as missões do Cerro de la Sal (Tibesar, 1989), e no Orenoco, onde substituíram os jesuítas, depois de 1767. As missões de Moxos, na região do rio Guaporé, no atual território boliviano, foram fundadas e conduzidas pelos jesuítas, no final do século XVII. No extremo oriental da Amazônia, foram os franciscanos franceses os primeiros missionários que atuaram na fundação de São Luís com os homens de La Ravardière. Na porção francesa do planalto da Guiana, os jesuítas tiveram destacada atuação no século XVIII, até sua expulsão, em 1764. Nos domínios amazônicos de Portugal, a primazia coube também a franciscanos e, exceto por um período de 34 anos (1652-1686), durante os quais a Companhia Jesus deteve o controle preferencial sobre as missões, franciscanos, jesuítas, mercedários e carmelitas organizaram aldeamentos de índios no Amazonas e em seus principais afluentes. Em 1759, os jesuítas foram banidos da América portuguesa, dois anos depois que uma nova lei, conhecida como “Diretório dos Índios”, houvesse retirado de todas as ordens religiosas o controle dos aldeamentos amazônicos, substituindo os missionários por diretores leigos. Embora o trabalho indígena tenha predominado amplamente na Amazônia, a escravidão africana teve grande importância em algumas regiões. Na amazônia de colonização portuguesa, os escravos africanos foram mais numerosos na porção oriental (São Luís e suas imediações, Belém, Baixo Tocantins, Baixo Amazonas), empregados principalmente nos cultivos de cana-de-açúcar, arroz e algodão, assim como no vale do Guaporé, próximo à atual fronteira com a Bolívia, a partir da segunda metade do século XVIII. Essas populações negras estão na origem das centenas de quilombos ainda hoje existentes na Amazônia brasileira. 8 FLACSO - Brasil Mas foi na Guiana, no Suriname e na Guiana Francesa que os escravos africanos constituíram o principal elemento da força de trabalho, a partir do século XVII – embora, nos domínios holandeses, o trabalho escravo indígena tenha perdurado até quase o século XIX. Nessas colônias, não predominaram as atividades extrativistas, mas a agricultura, em pequenas unidades, como na Guiana Francesa, ou em unidades produtivas de grande porte, nas colônias holandesas, onde predominou o sistema de plantation, com grandes cultivos de cana-de-açúcar e, no século XVIII, também de cacau, algodão e índigo. O Suriname foi a colônia, na região aqui considerada, que mais recebeu escravos africanos e, entre os séculos XVII e XIX, a população branca residente nunca representou mais do que 7% da população escrava. Os escravos promoviam fugas em massa, instalando-se nas florestas do interior do país. Ao contrário do que ocorreu em outras regiões da América, nas quais os escravos fugidos passaram a constituir pequenas comunidades que, ou foram destruídas pela repressão branca, ou permaneceram isoladas, no Suriname, os escravos lograram sustentar por décadas hostilidades contra o colonizador – ataques às fazendas e libertação de outros escravos -, que só foram encerradas com a assinatura de tratados de paz entre os rebeldes e a administração colonial holandesa, em 1749 e 1769 (Van Lier, 2005). Essas fugas estão na origem de diversos grupos étnicos, tais como Saramacá, Djuka, Paramaka, Matawai, Aluku e Kwinti, cujos direitos sobre partes do território surinamês são, hoje, reconhecidos. Com a abolição da escravidão (na Guiana, em 1837; no Suriname, em 1863), trabalhadores de diversas nacionalidades - principalmente indianos e javanêses, para o Suriname, e indianos e chineses, para a Guiana - foram recrutados em regime semi-servil para substituir a mão-de-obra de origem africana, inciando ondas de imigração que alteraram a composição étnica da população. No final do século XIX, havia 340 mil imigrantes na Guiana, dos quais 250 mil eram indianos. Atualmente, mais da metade da população da Guiana é composta por descendentes de indianos e cerca de 30% são descendentes de africanos; no Suriname, os afrodescendentes correspondem a apenas 10% da população, vivendo, em sua maior parte, nos territórios do interior ocupados pelas comunidades originadas pela fuga de escravos. 4. Fronteiras internas Nas primeiras décadas do século XIX, os jovens estados independentes, originários da colonização ibérica (a Guiana e o Suriname só se tornaram independentes em 1966 e 1975, respectivamente, e a Guiana Francesa continua a ser um território francês), dispunham de amplos territórios ainda não ocupados pelas nascentes sociedades nacionais e, em muitos casos, delas totalmente desconhecidos. Tratados firmados no século XVIII e as áreas de jurisdição das 9 FLACSO - Brasil antigas unidades administrativas do domínio espanhol definiam, ainda que, muitas vezes, de modo precário, os limites entre os novos países. Porém, havia grande distância entre os territórios delimitados e os territórios efetivamente ocupados. Com efeito, a “conquista” e a ocupação do território não são um processo linear, de avanço constante. Antes, trata-se de um processo oscilatório, com avanços e recuos, fixação e abandono, configurando uma fronteira sempre móvel. Fronteira, aqui, é entendida não como os lindeiros entre Estados nacionais ou suas possessões, mas como a frente de expansão de uma sociedade dentro de seu próprio território, sobre terras ocupadas por povos indígenas (Leonardi, 1996; Martins, 1997). No caso das antigas colônias espanholas, a ocupação da região de selva, baseada até então principalmente na ação missionária, sofreu grande retrocesso com a crise do sistema colonial e com o declínio das missões nos territórios das antigas audiências de Lima, Quito, Charcas e Bogotá, bem como no vice-reino de Nova Granada. Esse retrocesso se deveu, também, à grande rebelião indígena liderada por Juan Santos Atahuallpa, entre 1742 e 1752, quando diversos grupos indígenas - como os Conibo, os Piro e os Amuesha, entre outros - retomaram aos espanhóis o controle da selva central do atual Peru. Nesse país, por exemplo, o avanço da fronteira interna rumo ao Oriente foi praticamente nulo na primeira década após a independência (Jordan, 1995). Continuavam a existir núcleos importantes de população em Moyobamba e seus arredores, no rio Marañon, mas, ainda na década de 1840, a região aparecia nos mapas como “tierras desconocidas”. Na Bolívia, não deixou de haver um avanço, mesmo que modesto, de frentes de exploração da quina, no Alto Beni, e de expansão da pecuária, a partir de Santa Cruz de La Sierra. Porém, a maior parte do que então era denominado “Oriente”, conceito que incluía todo o território amazônico boliviano e também o Chaco, permanecia praticamente desconhecida e isolada do resto do país e, durante os primeiros 50 ou 60 anos da República, os esforços dos governantes concentraramse em malogrados projetos de concessões de terras públicas para colonização, em explorações de reconhecimento e na busca de uma saída para o Atlântico pela navegação dos rios amazônicos (Jordán, 2001). Na Colômbia, a ocupação colonial do Território do Caquetá, que então correspondia a toda a floresta amazônica daquele país, havia sofrido grande retrocesso depois da expulsão dos jesuítas (1767) e da falência das missões franciscanas no final do século XVIII. De tal maneira que a expedição do general Agustín Codazzi àquela região, realizada na década de 1850 nos marcos da Comissão Corográfica Nacional, “significó un cambio fundamental en el conocimiento del Oriente de Nueva Granada y su ubicación en la conciencia, tanto de los Gobiernos como de los granadinos em general” (Domínguez Ossa et alli, 1996:45). A situação era semelhante no território do atual Equador. Segundo Jean Paul Deler (1987), na passagem do século XVIII para o XIX, a histórica soberania de Quito sobre as missões de Maynas, decadentes por então, era apenas formal. 10 FLACSO - Brasil Mesmo depois da formação da nova república do Equador, em 1830, a região amazônica não recebeu maior atenção do Estado equatoriano até por volta de 1860 (Cobes, 1995). Na Venezuela, as grandes cataratas do Orenoco, muito além das já decadentes missões religiosas eram, para Alexandre de Humboldt, em 1800, como o limite natural das “regiões selvagens e desconhecidas do interior” (Humboldt, 1986). No caso brasileiro, podemos identificar diferentes situações no que se refere à ocupação da Amazônia nas duas ou três décadas que se seguiram à independência. Em um dos extremos, está Belém, antiga capital da Amazônia colonizada pelos portugueses, o Estado do Grão-Pará e Maranhão, independente do Estado do Brasil, com autoridades coloniais próprias e subordinadas diretamente a Lisboa, que ofereceu grande resistência à ruptura dos laços coloniais e à integração ao Império do Brasil, em 1822. Belém foi, ao mesmo tempo, o principal centro urbano a partir do qual lusos e brasileiros projetaram-se sobre a Amazônia e o porto por meio do qual a região se comunicava com Portugal. Embora não tenha escapado imune às crises e oscilações, a cidade manteve-se como centro de organização da sociedade na região, conhecendo fases de crescimento e relativo desenvolvimento material e reunindo em suas proximidades a maior parte da população amazônica computada nos recenseamentos do período. Porém, ao longo do território amazônico brasileiro, outras situações se registram, de regiões com graus variáveis de conhecimento e consolidação da ocupação, algumas delas abandonadas depois de curto período de fixação, e o que predomina são territórios desconhecidos da sociedade nacional – sobretudo os interflúvios, os altos cursos dos afluentes do Amazonas/ Solimões, especialmente aqueles que correm na porção mais ocidental do território. Além de fronteiras “internas”, essas regiões não ocupadas pelo colonizador, que os diferentes governos nacionais, em diferentes momentos históricos, afirmavam ser “espaços vazios”, apresentavam-se também como espaço de refúgio daqueles que, de diferentes maneiras, colocavam-se à margem das sociedades nacionais, como escravos negros fugidos, que formaram comunidades isoladas em áreas remotas, ou desertores do serviço militar. Além disso, continuavam a ser áreas habitadas por povos indígenas com pouca ou nenhuma relação com a sociedade nacional, e as tentativas de expansão das fronteiras internas produziam novas situações de contato inter-étnico, reeditando, sob diversos aspectos, os processos conhecidos desde o século XVI – agora, porém, não mais sob o comando de espanhóis e portugueses, mas de bolivianos, brasileiros, colombianos, equatorianos, peruanos e venezuelanos. Registra-se uma continuidade nos métodos coloniais de ocupação do território e de exploração da força de trabalho. Em muitas regiões, a violência contra os povos indígenas tornou-se ainda maior do que no período colonial. Por exemplo, em meados do século XIX, no atual estado do Amazonas venezuelano, a exploração da população em geral, especialmente a de origem indígena, pelos comerciantes da região, atingiu níveis inauditos, constituindo objeto de denúncia 11 FLACSO - Brasil ao presidente da República (Coppens, 1998). Na região do rio Caquetá, na Colômbia, em 1880, o tráfico de escravos índios para o Brasil – atividade absolutamente ilegal – havia aumentado desde meados do século XIX (Domínguez Ossa et alli, 1996) e, ao longo do século XX, as populações tribais daquela região continuavam submetidas à exploração semi-escravista (Hildebrand, Bermudez e Peñuela, 1997). No Brasil, a espoliação territorial e a dizimação de populações indígenas sem contato com a sociedade nacional prosseguia, por exemplo, no alto Purus e no alto Juruá, nas últimas décadas do século XIX. 5. Frentes de expansão no século XIX Com efeito, ao longo do século XIX, as diversas sociedades nacionais projetaram-se sobre seus territórios amazônicos, motivadas, sobretudo, por diferentes surtos extrativistas, como os da exploração da quina e da borracha. Contudo, esse movimento não foi homogêneo em todos os países, e obedeceu a diferentes ritmos. No que se refere aos países andinos, o primeiro produto do extrativismo a provocar um movimento em direção às suas áreas amazônicas, no século XIX, foi a quina, explorada nos Andes desde o século XVIII, ganhando ampla aceitação nos mercados europeus em virtude de suas propriedades medicinais. A quina tem uma vasta área de ocorrência e não se restringe às terras amazônicas. Porém, à medida em que se esgotava nas regiões próximas aos centros mais povoados – o método de extração consistia no simples corte das árvores -, sua exploração avançava rumo ao oriente. A extração alcançou o auge entre 1850 e 1884, quando o êxito dos cultivos no sudoeste asiático, especialmente em Java e no Ceilão, derrubou definitivamente os preços da quina silvestre sul-americana. Nesses 34 anos, contudo, seu comércio teve grande significação para as economias nacionais e foi, entre 1881 e 1883, o principal produto de exportação da Colômbia, onde passou a ser explorada, a partir da década de 1870, nas regiões do Alto Caquetá e Alto Putumayo. Na Bolívia, a quina foi explorada em Caupolicán e, mais tarde, em Larecaja e no Alto Beni. Teve grande importância para a economia boliviana, motivando ações do governo central para controlar sua comercialização (Dominguez e Gomez, 1990; Zárate, 2001). Houve um declínio geral da economia e da sociedade nas áreas que se mantinham exclusivamente pela extração e pelo comércio da quina, com a falência de empresas comerciais, despovoamento e abandono de povoações. Porém, especialmente nos casos do Alta Amazônia colombiana e da Amazônia boliviana, sobreviveu uma mínima infra-estrutura de serviços e sistemas viais que foram aproveitados na incorporação dessas áreas à exploração das gomas elásticas. Além disso, alguns dos mais destacados negociantes da quina lograram converter-se à exploração e ao comércio do caucho (Zárate, 2001). 12 FLACSO - Brasil As propriedades e utilidades do látex da seringueira foram transmitidas pelos Omágua, índios do Alto Amazonas, aos portugueses, na primeira metade do século XVIII, bem como a diversos outros grupos indígenas. Sua divulgação no meio científico europeu deu-se através dos escritos de Charles Marie de La Condamine, em 1736 e 1745, o que logo deu início a uma série de tentativas para aperfeiçoar o seu uso industrial. Durante décadas, o látex extraído na Amazônia brasileira teve uso apenas local, restrito à produção de seringas e à impermeabilização de roupas e calçados. Em 1820, calçados produzidos com látex passaram a ser exportados pelo porto de Belém (Santos, 1980). Mas, de fato, foi apenas após o advento da vulcanização – método de tratamento do látex que ampliou as possibilidades de sua utilização industrial -, em 1841, que a demanda mundial pelo produto aumentou ao ponto de ocasionar um boom comercial que durou cerca de 70 anos e alcançou, com diferente intensidade, todos os países amazônicos então independentes. Entre 1850 e 1920, o período do boom, as áreas de exploração da borracha deslocaram-se ao longo do rio Amazonas, desde sua desembocadura, na ilha do Marajó – um dos principais centros produtores em meados do século XIX – em direção ao Ocidente, avançando também sobre os afluentes, sobretudo os da margem direita. Na década de 1880, quando a produção atingiu níveis ainda mais elevados, as áreas produtoras já haviam alcançado os rios Solimões, Purus, Juruá e Negro, entre outros rios da porção ocidental da Amazônia brasileira. Foi também na década de 1880 que a produção do látex conheceu grande incremento na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador, embora explorações do produto fossem registradas desde, pelo menos, a década de 1860. Contudo, na Colômbia, a produção de látex dos anos 60 e 70 era extraída nas florestas da área de influência de Cartagena e no Panamá, então território colombiano. Só na década de 1880 alcançou a Alta Amazônia, substituindo a decadente extração de quina, e também as regiões dos rios Guaviare, Vaupés e Negro. Na década seguinte, atingiu o Médio Caquetá e o Médio Putumayo, com a expulsão de vários grupos indígenas - entre os quais, Witotos e Boras - de suas terras (Dominguez e Gomez, 1990). No Amazonas venezuelano, essa atividade teve impacto local na exploração do território, na afirmação de poderes locais e na disseminação de relações de trabalho semi-servis, mas não teve a mesma importância econômica que nos demais países (Iribertegui, 1987:138). Na Guiana, praticou-se a coleta da balata nas cabeceiras do Essequibo e em algumas áreas das margens do rio Rupununi (Silva, 2005) Na Bolívia, as primeiras explorações de seringais nas regiões mais ao norte, em direção ao Acre, ocorreram na década de 1870, com o estabelecimento de empresas de maior porte na década de 1880. Os primeiros povoados da região resultaram da atuação de casas comerciais, como Riberalta, fundado pela Casa Braillard, em 1892. As rotas de acesso partiam de La Paz, descendo por Yungas ou Sorata até o rio Beni; de Santa Cruz, descendo o rio Grande e o Mamoré e alcançando Trinidad e Riberalta; e, finalmente, de Cochabamba, alcançando o rio Mamoré após descer os rios San Mateo, Chapare e Marmorecillo, caminho pelo 13 FLACSO - Brasil qual deslocou-se grande quantidade de mão-de-obra indígena e mestiça para o trabalho nos seringais (Beltrán, 2001). A expansão das frentes de extração da seringa suscitou – e, em alguns casos, reacendeu – diversas disputas por territórios antes considerados como espaços remotos e “vazios”. Por exemplo, nos seringais dos vales do Purus e do Juruá, chocaram-se as frentes extrativistas de brasileiros, bolivianos e peruanos. Desse choque, resultou a questão do Acre, quando as frentes de seringueiros brasileiros avançaram sobre território boliviano. Também houve disputas entre Peru e Bolívia pelos territórios do Alto Madre de Dios. Limites imprecisos também havia nos afluentes da margem esquerda do Marañon e do Alto Amazonas, como os rios Napo, Tigre, Pastaza, Morona e Santiago, onde o rápido avanço das frentes extrativistas peruanas aguçou o diferendo territorial entre Quito e Lima, solucionado apenas mais de um século depois, em 1999. A região do Putumayo, por sua vez, foi motivo de litígio entre Peru e Colômbia. Muitas vezes, esses conflitos, pelo menos em sua fase inicial, não opunham os governos nacionais, cuja ação era requerida apenas para estabelecer as mediações finais de uma situação imposta pelos interesses dos potentados locais, que se apossavam de vastos territórios na fronteira longínqua e incerta. A relativamente rápida expansão das áreas de exploração da borracha pela maior parte da bacia amazônica, com o deslocamento de homens e mercadorias por milhares de quilômetros, não teria sido possível sem a introdução da navegação a vapor, em 1853. Essa alteração fundamental nos meios de transporte regionais permitiu, além de significativo aumento da capacidade de carga, a drástica redução do tempo de duração das viagens pelos rios amazônicos. Até então, o transporte regional dependia exclusivamente de pequenas embarcações de comerciantes, movidas a vela ou a remo, e uma viagem de Belém a Manaus poderia durar entre 40 e 90 dias, a depender da variação do volume dos rios e da disponibilidade de ventos favoráveis, segundo as estações do ano. Com os barcos a vapor, o mesmo trajeto poderia ser percorrido em oito dias. A introdução dessa inovação técnica nos rios amazônicos não apenas estimulou o avanço sobre áreas ainda não ocupadas pelas sociedades nacionais ou propiciou às áreas amazônicas sub-andinas uma saída alternativa para o Atlântico, mas, principalmente, permitiu a conexão interna de pontos extremos da região aos principais centros articuladores do comércio, ultrapassando as fronteiras nacionais, e sua vinculação, como um conjunto, a um mesmo processo de circulação de mercadorias, sustentado pela extração e comércio do látex. A navegação na bacia amazônica teve início com a empresa brasileira Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. Nos vinte anos seguintes, outras duas companhias entraram em operação e, em 1874, sete anos depois da abertura do Amazonas à navegação internacional, foram todas encampadas pela Amazon Steam Navigation, cuja estrutura revelava a dimensão do empreendimento: capital inglês, sede em Belém, diretoria no Rio Janeiro e diversas agências distribuídas no interior da Amazônia brasileira, peruana e boliviana 14 FLACSO - Brasil (Nogueira, 1999: 77). Além de outras companhias menores, as grandes casas de comércio também possuíam vapores próprios, de modo que, em 1884, mais de uma centena de barcos desse tipo cruzavam os rios amazônicos, transportando milhares de migrantes, abastecendo cidades, vilas e seringais, e recolhendo os produtos da floresta, sobretudo a borracha. Esses barcos ligavam os portos amazônicos a outros portos da América do Sul, como Rio de Janeiro e Buenos Aires, bem como da Europa e dos Estados Unidos – como Liverpool, Gênova e Nova York. Com exceção do Amazonas venezuelano - que tinha como referência o porto de Ciudad Bolívar, no rio Orenoco -, conectavam-se os diferentes pontos da Amazônia, da foz do Amazonas ao Maranõn, ao Huallaga, ao Putumayo, ao Alto Purus e ao Alto Juruá. Por exemplo, a ligação entre o Baixo Amazonas e o Marañon foi estabelecida já com os primeiros vapores, em 1853, quando a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas estabeleceu uma linha entre Belém e Nauta, em colaboração com o governo do Peru que, por sua vez, tinha quatro vapores próprios, dois dos quais faziam a ligação entre Tabatinga e Yurimaguas; os outros dois, menores, eram empregados na exploração dos afluentes do Marañon (Tavares Bastos, 2000: 86; Deler, 1987: 117). Em 1896, mais de 40 barcos a vapor navegavam por todos os rios do departamento de Loreto, além do Napo e do Putumayo (Dominguez e Gonzáles, 1990: 171). Embora os investimentos na navegação a vapor estejam quase sempre associados ao comércio do látex, a sua introdução no rio Putumayo, em 1875, deveu-se ao crescimento das exportações de quina, por iniciativa de um dos maiores comerciantes locais, Rafael Reyes. Sua produção era transportada, por terra ou em pequenas embarcações, desde o Alto Caquetá até o Médio Putumayo, de onde os vapores de Reyes a conduziam aos portos europeus e norte-americanos (Dominguez e Gonzáles, 1990). A expansão da exportação de borracha levou grandes mudanças à região. Sua economia recebeu investimentos de empresas européias e norte-americanas, muitas das quais ali mantinham sede e representantes. O desenvolvimento urbano acelerou-se, não apenas com o surgimento de novas povoações nas frentes de expansão, mas também com o crescimento de antigos núcleos urbanos. No Peru, a pequena aldeia de Iquitos, que contava com apenas algumas centenas de moradores, em 1870, era já uma cidade de dez mil habitantes, em 1896, e em toda a parte, edificações em alvenaria substituíam a palha e a madeira. Manaus também conheceu crescimento vertiginoso: de pequena vila com edificações muito precárias, na década de 1850, passou a grande cidade, na virada do século XIX, contando com um conjunto arquitetônico de estilo eclético, e esteve, com Belém, entre as primeiras cidades brasileiras a receber os serviços de iluminação elétrica e água encanada. Para a expansão da cidade, pequenos rios foram aterrados dando lugar a novas ruas. Os excedentes do comércio da borracha, aliados à circulação de cidadãos dos principais centros europeus, contribuíram para transformações do comportamento e para a diversificação dos hábitos de consumo, inclusive de bens culturais: não apenas o teatro, a ópera e a fotografia, mas também o cinema que, 15 FLACSO - Brasil ainda em seus primeiros anos, havia chegado a algumas cidades do interior da Amazônia. As mudanças também afetaram o mundo do trabalho: índios continuaram a ser empregados largamente, quase sempre nas mesmas condições em que o foram no período colonial, mas a Amazônia incorporou, também, grandes contingentes de trabalhadores oriundos de outras regiões, como as serras andinas e o semi-árido brasileiro, que passaram a predominar numericamente sobre os trabalhadores indígenas, ocasionando uma nova ruptura na composição da população regional. Além disso, a região recebeu imigrantes de diversos países. A título de exemplo, basta lembrar que a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, no Brasil, contou com trabalhadores de, aproximadamente, cinquenta nacionalidades diferentes: além de bolivianos, brasileiros, colombianos, equatorianos, peruanos e venezuelanos, contou também com trabalhadores cubanos, granadinos, irlandeses, suecos, belgas, chineses, japoneses, hindus, turcos e russos, entre tantas outras procedências (Hardman, 1988). Mas, em contraste com o fausto experimentado pelos grandes seringalistas e exportadores, o trabalho nos seringais e em grandes obras revelou-se um sorvedouro de vidas humanas, idéia bem expressa na afirmação de que cada tonelada de borracha exportada era produzida ao custo de uma vida humana e no fato de que, dos quase trinta mil trabalhadores envolvidos na construção da Madeira-Mamoré, entre 1907 e 1912, cerca de seis mil perderam suas vidas por uma ferrovia nunca acabada. Na segunda década do século XX, a queda de preços tornou-se irreversível, pois o látex extraído dos seringais silvestres da Amazônia não poderia concorrer com seu similar oriundo dos seringais cultivados no sudeste asiático, decretando o colapso da economia baseada na borracha (Santos, 1980:237). A débâcle econômica teve fortes impactos em todos os níveis. À fuga dos investimentos externos e à falência generalizada dos comerciantes instalados na região, seguiu-se a drástica diminuição das atividades comerciais em toda a região, a desativação de diversas linhas de navegação, o abandono de seringais, o despovoamento de muitas áreas de produção e até mesmo o desaparecimento de vilas e cidades. Na Amazônia brasileira, por exemplo, a população regional, que havia crescido a taxas elevadas, entre 1850 e 1910, passando de 200 mil para um milhão e 200 mil habitantes, caiu para pouco mais de um milhão, em 1920. Em toda a Amazônia, muitas áreas incorporadas pelas frentes de extração do látex foram abandonadas, voltando à categoria de “espaços vazios”, e antigas conexões motivadas pelo comércio da borracha – seja no âmbito dos territórios nacionais, seja no plano internacional – fragilizaram-se ou mesmo se desfizeram. Desse modo, nas décadas que se seguiram à débâcle, estiveram em curso processos relativamente independentes de adaptação das sociedades locais à nova situação, em geral por meio de atividades já desenvolvidas, mesmo em caráter secundário, durante o auge da borracha. Essa adaptação envolveu a diversificação das atividades extrativistas para comércio em proporções reduzidas (extração madeireira, coleta de resinas, caça para comercialização do couro), ou a abertura de 16 FLACSO - Brasil novas frentes extrativistas, como da castanha-do-brasil, no Alto Tocantins. Na porção oriental do estado do Pará, continuavam a ser desenvolvidas atividades agropastoris que há muito ali se desenvolviam, com fins de abastecimento. O mesmo pode-se dizer do departamento de Loreto, onde as atividades agropastoris tornaram-se o eixo da economia local até a década de 1940 (Barclay, 1995). Não se pode esquecer, tampouco, que as gomas elásticas continuaram a ser comercializadas, em baixa escala, conhecendo novo e breve momento de valorização quando, durante a 2a Guerra Mundial, os consumidores da Europa e dos Estados Unidos não puderam contar com a produção do sudeste asiático. 6. Alterações ambientais entre os séculos XVI e XX Foi apenas a partir de meados do século XX, com a ocupação da Amazônia em ritmo mais intenso e acelerado, que os danos ambientais resultantes da ação humana tornaram-se mais visíveis. Sobretudo, o avanço de atividades econômicas como a agricultura e a extração madeireira aumentaram, em escala inaudita, o desmatamento, a face mais visível da degradação ambiental na região. Porém, ao longo dos quatro séculos anteriores, registram-se sensíveis danos ambientais provocados pela ocupação colonial. Alterações ambientais resultantes da ação humana envolvem uma quantidade muito grande de aspectos, e aqui serão considerados apenas os danos ambientais ocasionados por algumas marcantes atividades extrativistas desenvolvidas na região. Uma característica comum às diversas frentes extrativistas, dediquem-se elas ao látex, à quina ou a outros produtos vegetais, é que não se preocupavam em utilizar métodos que preservassem a vegetação local para novas safras, em anos futuros. Ao contrário, ocupadas em coletar o máximo no menor tempo possível, utilizavam os recursos mais rápidos que, quase sempre, implicavam no simples corte das árvores ou na aplicação de técnicas que as levavam à morte. Os exemplos são vários. No rio Tocantins, cujo curso inferior era freqüentado pelos portugueses desde a segunda década do século XVII, a exploração do pau-cravo (uma lauracea) foi tão intensa que, em 1688, as autoridades portuguesas proibiram sua extração nas margens daquele rio para evitar o seu esgotamento. Também a salsaparrilha (cipós do gênero smilax, usados como depurativo), em meados do século XIX, só poderia ser encontrada em áreas muito remotas, pois se havia esgotado nas proximidades das áreas povoadas. Também foi intensamente explorada a entrecasca da castanheira (Bertoletia excelsa), usada como estopa para o calafeto das embarcações desde o século XVII, antes mesmo que a castanha se tornasse um dos principais produtos de exportação da região. Para extrair a entrecasca, as castanheiras eram abatidas ou tinham a casca cortada em toda a circunferência do tronco, o que provocava a morte das árvores, de modo que se tornaram 17 FLACSO - Brasil progressivamente escassas em algumas áreas de ocupação mais antiga (Costa, 2006: 90-92; Leonardi, 2000: 68-73) Os dois principais produtos do extrativismo na Amazônia no século XIX – a quina e o látex – também estão associados a importantes processos de degradação ambiental. Além de todas as alterações que as frentes de expansão a eles associadas provocaram na forma de ocupação do território, os métodos empregados em sua extração tinham grande capacidade destrutiva. A quina, por exemplo, passou a ser explorada em áreas amazônicas depois de esgotada nas áreas de extração mais antigas, próximas aos centros de povoamento andinos, pois as árvores eram cortadas em grande quantidade para a retirada da casca, cujo aproveitamento era relativamente pequeno, uma vez que se aproveitavam apenas as partes mais finas. No Equador, as reservas de quina da região de Loja, primeiras a serem exploradas, já estavam exauridas antes do final do século XVIII, forçando o deslocamento das frentes de extração para o Oriente, o mesmo que aconteceria, no século seguinte, na Bolívia, Colômbia, Equador e Peru (Domínguez e Gomez, 1990; Zárate, 200) A extração do látex, em suas diferentes variedades, enfrentou problema semelhante. Na Alta Amazônia, onde predominam as árvores do gênero castilla (o caucho negro), de menor produtividade do que as heveas, empregava-se o abate das árvores. A destruição foi grande, as áreas de extração esgotavam-se rapidamente, provocando o deslocamento das frentes de extração para novas áreas, que teriam o mesmo destino. Domínguez e Gomez (1990: 89), registram que, na Colômbia, as árvores produtoras de látex haviam sido destruídas em uma faixa de 200 km de largura, paralela aos Andes, estendendo-se do rio Ariari até o Equador. No caso do gênero hevea, predominante nas terras baixas e na região do Orenoco, a extração se deu tanto pela derrubada das árvores como pelo método do “arrocho”, que consistia em fazer incisões em todo o tronco e amarrá-lo com cipós para forçar o escoamento de todo o látex – o que provocava a morte da seringueira. No Brasil, a partir da década de 1870, desenvolveu-se o método menos daninho de retirar o látex por meio de pequenas incisões feitas no tronco, coletando o produto em dias alternados, o que permitiu maior perenidade aos seringais (Santos, 1980:80). Quanto à fauna, utilizada sobretudo para a alimentação, mas também para a exportação de peles e de penas, deve ser lembrada a grande pressão que sofreram as espécies aquáticas, como o pirarucu e o peixe-boi. Contudo, merece ser destacada a exploração de diversas espécies de quelônios de água doce, em particular a Podocnemis expansa – conhecida como charapa, arrau ou tartaruga do Amazonas. O consumo dessa tartaruga já era praticado em tempos précoloniais, mas foi bastante ampliado nos séculos seguintes, principalmente nas áreas de colonização portuguesa, onde a exploração da tartaruga gerou uma atividade comercial de grande importância regional. O consumo de sua carne expandiu-se a tal ponto, em todos os extratos da população, que, nas últimas décadas do século XIX, o escritor brasileiro José Veríssimo referiu-se a ela como o “boi da Amazônia”. Além disso, a manteiga produzida a partir dos ovos, empregada 18 FLACSO - Brasil como complemento alimentar e como combustível para a iluminação, era um importante componente das trocas comerciais nos rios amazônicos. Sua exploração foi tão intensa que, desde cedo, chamou a atenção de autoridades e naturalistas, muitos dos quais afirmaram que o ritmo com que se executava a matança dos animais e a destruição dos seus ovos (calculados, anualmente, na escala de dezenas de milhões) poderia conduzir a espécie à extinção (Costa, 2002). Em 1800, Humboldt calculou que, nas praias do rio Orenoco situadas entre suas grandes cataratas e a foz do rio Apure, eram destruídos pelo menos 33 milhões de ovos a cada ano para produzir a manteiga que os índios das missões franciscanas trocavam com os comerciante de Angostura, atual Ciudad Bolívar (Humboldt, 1985: iii, 338). Por isso mesmo, durante várias décadas do século XIX, foram publicadas leis de proteção à espécie, porém, com eficácia limitada. Exceto por uma importante exploração desenvolvida no rio Orenoco, desde fins do século XVII, a redução do número de indivíduos de P. Expansa foi anterior nas áreas de colonização portuguesa – que coincidiu desde cedo com as áreas de maior ocorrência da espécie – do que naquelas de colonização espanhola, menos intensa nas regiões mais baixas, de grandes rios navegáveis. Assim é que, ainda nas décadas de 1940 e 1950, caçadores e comerciantes oriundos do Brasil exploravam a tartaruga no Médio Caquetá, na Colômbia, uma vez que os estoques dessa espécie já estavam bastante reduzidos em águas brasileiras (Hildebrand et alli, 1987). Embora não tenham representado ameaça maior à integridade do bioma Amazônia, muitas vezes os danos ambientais relatados acima colocaram em risco a sustentabilidade da ocupação colonial, pois o esgotamento localizado de alguns recursos naturais ocasionou crises de caráter local, tornando inviável a permanência de assentamentos humanos nas áreas afetadas. 7. Novos padrões de ocupação Em meados do século passado, após sucessivos malogros das tentativas de fixação e povoamento no amplo território, grande parte da Amazônia ainda se apresentava para as sociedades nacionais dos diferente países que a integram como uma fronteira interna, sobre a qual efetivamente avançaram – e seguem avançando, em nossos dias - por meio de diversas frentes de expansão, espontâneas ou incentivadas pelo Estado, originadas em diferentes motivações. Mas os padrões de ocupação conheceram importantes modificações em relação àqueles que predominaram nos séculos anteriores: a velocidade de deslocamento dessas frentes e o grau de transformação que são capazes de promover nos espaços que ocupam parecem tornar irreversível o processo de ocupação dessas “ultimas fronteiras do planeta”. 19 FLACSO - Brasil Se, desde os Andes, o sentido em que se movimentam as frentes de expansão é o mesmo, utilizando como base as estruturas de ocupação estabelecidas em períodos anteriores, no Brasil, a situação é outra: ocorre uma alteração das rotas de penetração que, sem substituir o antigo, introduz um novo padrão de ocupação do espaço. Até meados do século XX, a entrada da Amazônia brasileira era a foz do rio Amazonas e sua ocupação foi predominantemente ribeirinha. Nas margens dos grandes rios, encontravam-se, e ainda se encontram, as principais cidades amazônicas. As terras mais altas, na região do Planalto Brasileiro, ao Sul, e do Planalto das Guianas, ao Norte, eram de difícil acesso, pois a navegação dos rios que dão acesso a elas é limitada por grandes cachoeiras que indicam a transição do planalto para a planície fluvial. Desde meados da década de 1950, quando o planejamento regional definiu o que passou a ser conhecido como Amazônia Legal, esse movimento se alterou, e a ocupação se dá a partir do centro do país, por meio da abertura de rodovias que cortam o Planalto e ligam o restante do país às principais cidades amazônicas. Por essas rodovias, movem-se as novas frentes de expansão. Além de preocupações de caráter geopolítico - que, em países como o Brasil e o Peru, motivaram políticas estatais de colonização e povoamento -, o crescimento da população, a concentração da propriedade rural e o desemprego nas regiões de ocupação mais antiga também foram causas de novas migrações para a Amazônia, que serviu como válvula de escape de tensões sociais, dando a origem a ocupações de terras e assentamentos para atividades agropastoris. No Brasil, “uma terra sem homens para homens sem terra” foi o lema com qual os governos dos anos 70 procuraram estimular a ocupação de colônias agrícolas ao longo da rodovia Transamazônica. Na Colômbia, onde se adiciona o problema do deslocamento de populações pela violência das lutas entre facções políticas na década de 1940, é ilustrativo o caso do Caquetá, onde ocorreu um efetivo povoamento das áreas subandinas a partir de Florência, desde o final dos anos 30, com grande incremento entre o final da década de 40 e os anos 60. Em 1951, a população de cerca de 40 mil habitantes era o dobro de treze anos antes e, em 1964, eram mais de 103 mil os habitantes do Caquetá (Sinchi, 2000). Também a região amazônica do Peru conheceu um grande crescimento da população, que se multiplicou por cinco entre 1940 e 1980 (de 380 mil para 1,83 milhão), à custa, principalmente, de movimentos migratórios, mais intensos na década de 1960. Essa população se distribui em duas áreas marcadamente distintas: a “selva alta” - mais povoada, onde predominam as atividades agropastoris e os núcleos urbanos de pequenas dimensões - e a “selva baixa”, onde duas grandes cidades - Iquitos e Pucallpa – concentram a maior parte da população regional e são os centros de articulação das atividades extrativas, predominantes na região. Devido ao aumento populacional e às mudanças no uso do solo, a Amazônia peruana passou a ocupar lugar de destaque na economia nacional, contribuindo com quase a metade da produção agrícola e detendo 39% da superfície cultivada do país (Barclay et alli, 1991). 20 FLACSO - Brasil Grandes levas de imigrantes foram atraídos, também, por novas “febres”, como a do ouro, extraído em lavras clandestinas (os garimpos), ou da exploração madeireira, cujos exemplos se multiplicam em toda a região. Ao mesmo tempo, foram direcionados para a Amazônia investimentos de grande porte, em setores da produção, como a mineração e a pecuária, e em infra-estrutura, como usinas hidrelétricas dotadas de grandes barragens, rodovias, oleodutos e gasodutos – estes dois últimos, especialmente na Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, onde a exploração do gás natural e do petróleo em áreas amazônicas é intensa há várias décadas e tem grande importância para as economias nacionais. No Equador, por exemplo, na década de 1990, as áreas de concessões para mineração e para a extração de petróleo correspondiam a cerca de 50 por cento da região amazônica, e o petróleo produzido contribuía para quase a metade da renda nacional (Espinosa, 1999). Por sua vez, o Suriname conta com grandes empresas de mineração de bauxita, ouro, manganês, ferro e platina desde a segunda década do século XX. Os quase 500 anos de história de formação das sociedades contemporâneas na Amazônia construíram uma paisagem diversificada, sob todos os aspectos, e cada subregião apresenta as marcas, mais ou menos profundas, de acordo com os processos de que serviu como cenário. Nestes primeiros anos do século XXI, é possível encontrar lugares ainda remotos e quase intocados, como aqueles que, cerca de 500 anos atrás, puderam avistar os homens que acompanhavam Alonso Mercadillo, Diaz de Pineda ou Francisco de Orellana, assim como é possível encontrar – nas florestas da Bolívia, do Brasil, da Colômbia, do Equador e do Peru – povos que não mantém contato com as sociedades nacionais (os assim chamados “índios isolados”). Nas frentes pioneiras, em nossos dias muitas vezes equipadas com máquinas modernas, persistem a mentalidade e os métodos arcaicos de séculos passados, expressos na violência com que populações tradicionais são expulsas das terras que ocupam e na submissão de milhares de homens a condições de trabalho análogas à escravidão. Ao mesmo tempo, em grande parte da região predomina, em nossos dias, a paisagem urbana, às vezes com cidades de mais de um milhão de habitantes que trabalham nas mais diversas ocupações e enfrentam os mais contemporâneos problemas da vida urbana, assim como desfrutam as suas vantagens. Algumas dessas cidades também abrigam parques industriais e dezenas de universidades e centros de pesquisa que se dedicam ao estudo da região, em seus diferentes aspectos. Povos indígenas, ocupantes originários da região, representam, hoje, a minoria da população. Estima-se que mais de mil línguas – dos troncos Tupi, Karib, Aruak, Pano, Tukano e Jê, além de línguas isoladas ou não classificadas - eram faladas na Amazônia Continental, no século XVI. Atualmente, são faladas cerca de 240 línguas de 52 famílias lingüísticas (Bessa Freire, 2004). Na Amazônia brasileira, por exemplo, os índios não são mais do que dois por cento dos habitantes e, na Colômbia, embora essa porcentagem seja seis vezes maior, para toda a sua superfície amazônica, as proporções variam de 90 por cento, nas áreas 21 FLACSO - Brasil de ocupação mais recente – como Guanía e Vichada -, até um por cento, nas áreas amazônicas de ocupação mais remota, como o Caquetá (Kremling Gomez, 1999). Essa situação se verifica mesmo quando se considera apenas as áreas não urbanas, como na Amazônia peruana, onde, em 1981, os índios representavam apenas vinte por cento da população rural, na qual predominavam colonos não-índios (Barclay et alli, 1991). De um modo geral, o mapa da distribuição dos territórios indígenas, no presente, reflete o alcance dos processos de colonização e dos conflitos interétnicos do passado: esses territórios são maiores e mais numerosos naquelas áreas que não foram plenamente transformadas pelas frentes colonizadoras. Em contraste, ao longo da calha do rio Amazonas, por exemplo, as terras e populações indígenas são atualmente diminutas, como reflexo daquele processo de despovoamento ocorrido ainda nos século XVII e XVIII. O extermínio de populações indígenas, os processos de miscigenação e a afluência de sucessivas levas de imigrantes alteraram substancialmente a composição da população regional: em muitos lugares, uma ocupação histórica produziu novas identidades culturais, hoje consolidadas – como, por exemplo, as sociedades caboclas da Amazônia brasileira, originadas pelas migrações procedentes do Nordeste do Brasil e pela miscigenação entre índios e não-índios, vivendo do extrativismo, da pesca e da lavoura de subsistência nas margens dos rios amazônicos. Em outros lugares, porém, ondas de imigração mais recentes, e das mais diversas origens, vinculadas principalmente aos processos de colonização agropecuária, configuram populações ainda em constante modificação, espelho de um processo inacabado e em franco movimento. Bibliografia AZEVEDO, João Lúcio de (1999). Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Belém: SECULT, edição fac-sim. de Lisboa, T. Cardoso, 1901. BARCLAY, Frederica (1995). Transformaciones en el espacio rural loretano tras el período cauchero. In: JORDÁN, Pilar G.(Coord.) La construcción de la Amazonía andina (siglos XIX-XX). Quito: Eds. Abya-Yala. p.229-285. BARCLAY, Frederica (et alli) (1991). Amazonia 1940-1990: el extravío de una ilusión. Lima: Terra Nuova/ CISEPA – PUCP. BASTOS, A.C. Tavares (2000). O vale do Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia. BATES, Henry W. (1989). Um naturalista no rio Amazonas.São Paulo: EDUSP, Belo Horizonte: Itatiaia. BECKERMAN, Stephen (1991). 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