quinta-feira, 5 de abril de 2012

REMESSAS DE LIVROS AO BRASIL

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POLIFONIA CUIABÁ EdUFMT V. 14 p. 161-174 2007 ISSN 0104-687X
CIRCULAÇÃO DE LIVROS ENTRE EUROPA E AMÉRICA
Márcia Abreu*
RESUMO: O artigo discute a suposta carência cultural das
Américas no período colonial, apresentando dados relativos à
circulação de livros entre a Europa e América.
PALAVRAS-CHAVE: história dos livros, circulação de livros,
leitura.
THE CIRCULATION OF BOOKS BETWEEN
EUROPE AND AMERICA
ABSTRACT: The text discusses the alleged America’s cultural
penury at the colonial period, presenting information about book
circulation between Europe and America.
KEYWORDS: book history, book circulation, reading.
Os estudos sobre a história do livro e da leitura
realizados no Brasil, muitas vezes, ressaltam a carência
intelectual do país, sobretudo no período colonial. Para ancorar
suas interpretações, os pesquisadores buscavam documentação
variada, na qual tinham destaque os relatos de viajantes
estrangeiros sobre suas viagens ao Brasil. Destes textos extraíam
copiosas citações em que, sem meias palavras, os viajantes
* Professora do Departamento de Teoria Literária, do Instituto de Estudos da
Linguagem, da Unicamp. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Projeto
Temático “Caminhos do Romance no Brasil: séculos XVIII e XIX”.
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denunciavam a absoluta e geral ignorância em que viviam
habitantes da colônia. Trata-se de relatos como o elaborado pelo
contrabandista Thomas Lindley que viveu no Brasil entre 1802 e
1803 e publicou em Londres, em 1805, um livro relatando sua
experiência, no qual dizia:
O Brasil, considerado o número de anos em que vem sendo
colonizado, o espaço que ocupa e os habitantes que tem,
exibe, talvez a maior deficiência de talento e curiosidade do
globo; ou, pelo menos, não se vêem esforços no sentido de
despertar esses atributos. [...] Numa palavra: o povo, aqui,
simplesmente vegeta, numa apatia inconsciente e indolência
enervante, a que é somado igual desprezo pelo espírito.
(LINDLEY, 1969, p. 69)1
Já no final do período colonial, um outro viajante, o
comerciante inglês John Luccock, que viveu no Brasil entre 1808
e 1818 e publicou sua obra em 1820, também fazia um juízo
pouco favorável acerca das condições culturais brasileiras:
A maioria não é nem mais culta nem menos avessa a dar
provas públicas de sua ignorância. Se isso se dá com as
camadas superiores da sociedade brasileira, que esperar do
vulgo? Cada um que decida disso como quiser e dificilmente
o fará de maneira demasiadamente desfavorável. É difícil
conceber que um país, que por tanto tempo participou da
civilização, possa cair mais baixo do que na realidade se
encontra a Colônia a esse respeito. (LUCCOCK, 1975, p. 87)2
1 Thomas Lindley nasceu na Inglaterra em 1771 (não se conhece a data de sua
morte). Foi um contrabandista e ficou aprisionado no Brasil entre 1802 e 1803. A
primeira edição de seu livro foi feita em Londres, em 1805.
2 John Luccock era comerciante e permaneceu no Brasil entre 1808 e 1818, com
pequenas interrupções. A primeira edição de seu livro foi publicada na Inglaterra
em 1820.
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Essas avaliações sumariam o tom predominante nos
relatos: apatia, ignorância e desinteresse caracterizam o estado da
cultura local.
Em outras partes da América, a situação não parece ter
sido muito diferente. Bernardo Subercasseaux, em seu livro
História del Libro em Chile, reproduz avaliações da mesma
natureza. Ele cita os testemunhos negativos de estrangeiros que
visitaram o Chile, como o do tipógrafo norte-americano Samuel B.
Johnston que dizia “el estado de las letras en este país es muy
mísero, estando casi todo el saber relegado a los eclesiásticos”
(JOHNSTON, 1967. Apud. SUBERCASEAUX, 2000, p. 16.). Da
mesma forma, o inglês John Miers, que viveu no Chile por vários
anos a partir de 1818, assim se manifestou em 1826:
Son muy pocos los que tienen nociones, aunque sean
generales, de geografía, la mayoría incluso desconoce los
rasgos geográficos y la topografía de su propio país.
Desconocen también la situación de los otros países de la
América Hispana y peor aún la del resto do mundo. Varios
de los ciudadanos supuestamente mejor informados de Chile
me han preguntado si Inglaterra está en Londres, o si
Londres está en Inglaterra, o si ambas están en la India.
(MIERS, 1826. Apud SUBERCASEAUX, 2000, p. 16) 3
Parece haver uma forte semelhança entre a situação
brasileira e chilena quanto ao descaso em relação ao cultivo das
letras. Entretanto, uma observação mais atenta, pode levar a
perceber que a maior semelhança talvez esteja no observador, ou
seja, no olhar dos viajantes. O mesmo Thomas Lindley, que fizera
tão mau juízo sobre a cultura brasileira, diz ter encontrado
“mercadores respeitabilíssimos na sua profissão que muito nos
espantaram perguntando-nos em que parte de Londres ficava a
3 E acrescenta: “los chilenos son ignorantes, y proclaman com cierto orgullo que
no requieren del conocimiento de los libros. Tienen además muy pocos y los pocos
que tienen no los leen. Recuerdo que el Presidente del Senado, que era visto por
sus concidadanos como uma gran autoridad, se vangloriaba de que no había leído
un sólo libro durante los últimos 30 años.”
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Inglaterra, qual o maior, a Madeira ou a Grã Bretanha, ou qual a
mais distante do Rio”. (LINDLEY, 1969, p. 71) Dificilmente “vários
mercadores” brasileiros e “varios de los ciudadanos” chilenos
teriam proferido as mesmas e exatas tolices. Possivelmente,
tratava-se de tópicos acerca da ignorância que surgiam na mente
dos viajantes quando se deslocavam para locais por eles tidos
como atrasados, incultos e selvagens. A existência de trechos
praticamente idênticos coloca em dúvida a confiabilidade dos
testemunhos. Afinal, os textos dos viajantes trazem informações
ou lugares-comuns sobre a América?
A desconfiança acerca das opiniões dos viajantes sobre o
desinteresse pela leitura e pela cultura letrada em geral ganha
maior intensidade quando se observam os registros históricos
sobre a remessa de livros para a América Portuguesa e para a
América Espanhola.
No caso da América Portuguesa, os arquivos lisboetas
guardam, sob o nome de “Catálogo para Exame dos Livros para
Saírem do Reino com Destino ao Brasil”, milhares de solicitações
de autorização para envio de material impresso para o Brasil,
elaboradas entre 1769 e 1826. Esses registros foram produzidos
devido à ação da censura, que exigia que se obtivesse uma licença
para embarcar todo e qualquer livro, folha ou papel impresso com
destino a uma de suas colônias.
Processo semelhante ocorria na Espanha, como mostrou
a tese de Pedro Rueda Ramírez sobre “El comercio de libros com
América en el siglo XVII: el registro de ida de navios en los años
1601-1649”, na qual foram analisados os “Registros de Ida de
Navios” conservados na seção Casa de la Contratación del Archivo
General de Índias. (RAMÍREZ, 2005). Ele analisou as folhas de
registro, submetidas ao escrutínio da “Casa de Contratación”, que
os carregadores deviam apresentar no momento de enviar suas
mercadorias, assim como as memórias com as listas de livros que
se pretendia embarcar, examinadas pela Inquisição. Foram
analisadas 701 folhas de registro e 576 memórias, as quais
continham mais de 100 mil exemplares declarados, todos
destinados à América.
Os números também são eloqüentes quando se trata do
Brasil. Na impossibilidade de trabalhar com toda a época colonial,
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restringi minha pesquisa ao período que vai do início da atuação
da Real Mesa Censória, em 1769, até o reconhecimento da
independência do Brasil por Portugal, que ocorreu apenas em
1826. 4 Nesse período, registram-se em torno de 700 pedidos de
autorização para envio de livros para o Rio de Janeiro, outros 700
para a Bahia, 700 para Pernambuco, 350 para o Maranhão, e
mais 200 para o Pará. Em cinqüenta e poucos anos, por mais de
2.600 vezes, pessoas manifestaram interesse em remeter livros
para o Brasil. No total, 18.903 obras são mencionadas nos
pedidos de licença, referindo-se, sobretudo, a obras religiosas e de
cunho profissional, comportamento que se observa também na
América Espanhola, onde sobressaem os enviados de livros
religiosos. O número acima não corresponde ao total de
exemplares enviados, pois a censura não controlava o comércio e
sim a circulação de idéias, razão pela qual não era necessário
especificar a quantidade de exemplares de cada título para o qual
se solicitava autorização. Portanto, a quantidade de exemplares
remetidos era certamente muito superior ao número de títulos
referidos nos pedidos de licença.
Assim, mesmo tendo restringido o período observado a 57
anos, a quantidade de informação era demasiada. Seria
impossível trabalhar com tal diversidade de títulos –
principalmente porque minha especialidade não é a religião (tema
pelo qual havia maior interesse à época) e sim a literatura (que
aparecia em 3º lugar no conjunto dos livros em circulação, logo
atrás dos livros de cunho profissional). Por isso, minha
investigação ateve-se às obras de Belas Letras. Restringi também
pesquisa apenas à cidade do Rio de Janeiro, localidade referida,
na maior quantidade de pedidos, como o destino para o qual se
remetiam obras impressas. É verdade que o volume de referências
à Bahia era semelhante, mas o fato de a corte portuguesa ter se
transferido para o Rio de Janeiro em 1808, em função das
invasões napoleônicas, tornava o exame desse local mais
interessante, pois, a partir da chegada da Família Real, a vida
4 Parte dos resultados dessa pesquisa está nos seguintes livros de minha autoria:
Histórias de Cordéis e Folhetos, Campinas: Mercado de Letras/ALB, 1999; Os
Caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003.
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cultural da cidade cresceu e diversificou-se com a instalação de
livreiros e negociantes estrangeiros, de bibliotecas, teatros e,
sobretudo, pelo início do funcionamento da primeira casa
impressora no Brasil: a Impressão Régia do Rio de Janeiro, em
operação a partir de 1808.
A transferência da sede do Reino para o Brasil teve
conseqüências também sobre o funcionamento da censura, pois
só então se instalou, no Rio de Janeiro, a Mesa do Desembargo do
Paço, encarregada de controlar a entrada de livros e impressos no
Brasil, entre outras atividades. 5
Diferentemente da coroa lusitana, que manteve a censura
centralizada na metrópole, os reis de Espanha instalaram
tribunais da Inquisição em suas colônias desde o século XVI,
empregando como censores pessoas originárias do lugar. Já em
1569, o rei Felipe II estabeleceu a Inquisição no Vice Reino do
Peru, que à época se estendia do Panamá a Buenos Aires. Devido
às dificuldades de controlar tão imenso território, no início do
século XVII foi criado um novo Tribunal inquisitorial, com sede na
cidade de Cartagena de Índias. Entre outras atividades, esses
tribunais deveriam inspecionar os navios em busca de livros
proibidos, exercer vigilância sobre a venda de livros, assim como
examinar livrarias, bibliotecas e casas impressoras. (PÉREZ,
2000, p. 11 e 14.)
A inexistência de organismos de controle instalados na
América portuguesa fazia com o que o processo para obtenção de
um livro fosse longo e dispendioso. Ele começava com a
apresentação de um pedido, no qual o requerente se apresentava
e dizia para onde gostaria de remeter os livros – os mais
minuciosos especificavam a motivação e a finalidade do envio,
declarando, por exemplo, que os livros compunham sua biblioteca
particular e que teriam necessidade deles durante a estadia no
Brasil, mas isso não era obrigatório. Aqueles que não viviam em
Lisboa tinham necessidade de um intermediário, um
5 As liberações obtidas em Lisboa destinadas à cidade do Rio de Janeiro até 1807,
somam 1328 referências, equivalentes a 519 títulos de Belas Letras distintos. Após
1808 são 3003 referências, equivalentes a 851 títulos diferentes. Pela Mesa do
Desembargo do Paço do Rio de Janeiro passaram pedidos para autorizar a entrada
de 1956 obras de Belas Letras, equivalentes a 1190 títulos diferentes.
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“procurador”, que preparava a papelada e acompanhava sua
tramitação. Em ambos os casos, além do texto de apresentação,
era preciso elaborar uma relação dos títulos que seriam
embarcados.
Essa lista era examinada por um ou vários censores
(dependendo do modo de organização da censura a cada
momento) que deveriam autorizar ou não o envio dos livros. Tudo
corria bem, quando a lista era elaborada de modo que os censores
pudessem reconhecer as obras. Entretanto, nem sempre isso
ocorria, já que muitas vezes os títulos eram anotados de maneira
truncada, sem referência ao nome do autor ou do tradutor e sem
local de edição. Nesses casos, os censores solicitavam que a
relação fosse re-elaborada ou, simplesmente, pediam que o livro
em questão fosse enviado para o Tribunal, o que tornava o
processo muito mais lento. Finalmente, quando a licença era
concedida, o requerente pagava pequena taxa e recebia uma
autorização para embarcar os livros. Ao chegar a seu destino,
tudo era novamente conferido para verificar se não haviam sido
introduzidas obras não autorizadas no meio das que haviam
recebido licença.
Na América Espanhola parece ter havido sistema
semelhante de verificação dos impressos quando de sua chegada,
o que criava grandes complicações de armazenamento. Segundo o
pesquisador Guillermo Lohman Villena, o Vice-rei Croix, em
despacho de 28 de fevereiro de 1787, informava que devido à
inexistência de local adequado para guardar as numerosas
remessas de livros até seu exame, conforme previsto na legislação,
os interessados poderiam retirar as obras dos armazéns onde
aguardavam as inspeções, decisão que facilitou grandemente a
burla do controle. (VILLENA, 2000, p. 5)
Se a vida dos leitores deve ter se complicado muito com
esse sistema de vigilância, para o pesquisador da leitura o
controle minucioso da circulação de livros fornece indicações
preciosas sobre aquilo que se lia no período, ao menos no campo
da legalidade. Assim, considerando-se as licenças obtidas em
Lisboa entre 1769 e 1807, vê-se que os livros de Belas Letras
preferidos eram: Les Aventures de Télémaque, François de
Salignac de la Mothe-Fénelon; Night Thoughts on Life Death and
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Immortality, Edward Young; Selecta Latini Sermonis exemplaria e
scriptoribus probatissimis, Pierre Chompré; Histoire de Gil Blas de
Santillane, Alain René Lesage; Le Voyageur François ou la
connoissance de l’ancien et du nouveau monde, Joseph de Laporte;
Meditations and Contemplations, James Hervey; The Paradise Lost,
John Milton; Caroline de Lichtfield, J.I.P. de Bottens Baronesa
Isabelle de Montolieu; El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la
Mancha, Miguel de Cervantes; História do Imperador Carlos Magno
e dos doze pares de França, anônimo; Lances da Ventura acasos
da desgraça e heroísmos da virtude, D. Felix Moreno de Monroy y
Ros; Rimas, Manuel Maria Barbosa du Bocage; Viagens de Altina
nas cidades mais cultas da Europa e nas principais povoações dos
Balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, Luís Caetano de
Campos; Delli viaggi di Enrico Wanton, Zaccaria Seriman; O Feliz
independente do mundo e da fortuna, ou arte de viver contente em
quaisquer trabalhos da vida, Pe. Theodoro de Almeida; Fábulas,
Esopo; Obras, Luís de Camões; Rimas, João Xavier de Mattos. 6
Após a transferência da Família Real para o Brasil, o
comércio livreiro ganhou forte impulso. Mesmo assim, a lista
mantém inalterados alguns títulos dentre os preferidos do período
anterior: Les Aventures de Télémaque, François de Salignac de la
Mothe-Fénelon; Les Mille et Une Nuits, por Antoine Galland;
Selecta Latini Sermonis exemplaria e scriptoribus probatissimis,
Pierre Chompré; Histoire de Gil Blas de Santillane, Alain René
Lesage; Magazin d’enfants, Pauline de Montmorin, Mme Leprince
de Beaumont; História do Imperador Carlos Magno e dos doze
pares de França, anônimo; Obras, Manuel Maria Barbosa du
Bocage; O Feliz independente do mundo e da fortuna, ou arte de
viver contente em quaisquer trabalhos da vida, Pe. Theodoro de
Almeida; Lances da Ventura, acasos da desgraça e heroísmos da
6 Para este cálculo foi elaborado um ranking das obras mais pedidas e
consideradas as 10 primeiras colocações. Os títulos foram citados conforme a
língua original de publicação, o que não necessariamente corresponde à língua das
obras efetivamente enviadas que, em sua maior parte, são traduções. A análise dos
documentos censórios, bem como dos títulos mais remetidos, é feita em meu livro
Os Caminhos dos livros, op. cit. Boa parte das obras ficcionais remetidas ao Rio de
Janeiro está disponível em versão fac-similar na Biblioteca Virtual do site
www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br .
169
virtude, D. Felix Moreno de Monroy y Ros; Thesouro de meninos, P.
Blanchard / Matheus José da Costa; Horacio ad usum; Marilia de
Dirceu, Thomas Antonio Gonzaga; O Piolho Viajante, António
Manuel Policarpo da Silva.
Há uma evidente permanência na preferência dos
leitores: 44% das obras do primeiro período continuam a ser
importadas com freqüência, com destaque para a manutenção das
Aventures de Télémaque (1699) no primeiro lugar. Fénelon
realizou o sonho impossível do escritor contemporâneo: manter-se
no topo da lista dos best-sellers por mais de 100 anos, não só em
seu próprio país, mas até mesmo em terras, à época longínquas,
como o Brasil. O caso das Aventuras de Telêmaco não é único –
acompanham-no livros como História do Imperador Carlos Magno
(1490), História de Gil Blas (1715) ou Obras (1720) de Luis de
Camões – revelando uma estabilidade no gosto desconhecida nos
dias atuais. Os demais livros presente na lista dos preferidos
desde o século XVIII, como O Feliz independente (1779) e Lances
da Ventura (1793), embora não tão longevos como os anteriores,
tampouco são propriamente uma novidade.
Se o interesse por estas obras permaneceu desde seu
lançamento, outras parecem ter sido “descobertas” tardiamente. É
o caso d’As Mil e uma noites (cuja primeira edição data de 1704),
que não havia chamado a atenção até 1815, quando começou a
ser remetida diversas vezes ao ano. Talvez ajude a explicar o
relativo esquecimento em que ficou nos anos setecentos, o fato de
o livro só ter sido traduzido para o português em 1801. Embora os
pedidos de autorização nem sempre especifiquem a língua do
texto a ser remetido, é possível supor que se lessem
fundamentalmente traduções, pois para todas as obras presentes
nas listas dos proferidos, exceto As Mil e uma noites, havia
traduções desde o século XVIII.
A esses títulos devem se juntar aqueles para os quais se
solicitou licença na cidade do Rio de Janeiro, junto à Mesa do
Desembargo do Paço, ali instalada desde 1808. O interesse
daqueles que solicitaram autorização no Rio de Janeiro era um
tanto distinto daquele dos que se reportaram à censura lusitana,
mas mantêm-se extraordinárias continuidades: Les Aventures de
Télémaque, François de Salignac de la Mothe-Fénelon; Fables de
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La Fontaine, Jean de La Fontaine; Voyage de La Pérouse au tour
du Monde, L.A.Milet Mureau; Histoire de Gil Blas de Santillane,
Alain René Lesage; Jerusalem liberata, Torquato Tasso; Oeuvres,
Racine; Oeuvres, Molière; Voyage du Jeune Anacharsis en Grèce,
Jean-Jacques Barthélemy; Oeuvres, Corneille; El Ingenioso
Hidalgo Don Quijote de la Mancha, Miguel de Cervantes; The Life
and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe..., Daniel
Defoe; Oeuvres, Boileau; Oeuvres, Alain René Lesage; Paul et
Virginie, Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre; Oeuvres,
Prevost; Le poeme sur la Religion, Racine; Obras, Virgílio; Oeuvres,
Gresset; La Henriade, Voltaire; Tales of Fashionable Life, Maria
Edgeworth.
Esse conjunto traz uma concentração um pouco maior de
obras clássicas, mas novamente mantém-se, no topo da lista,
Aventuras de Telêmaco, seguida de perto por outras obras de
prosa de ficção já presentes entre os livros mais procurados no
período anterior como a Histoire de Gil Blas de Santillane e o Don
Quijote de la Mancha. As licenças conservadas pelo Desembargo
do Paço mostram que havia interesse também pelo romance
moderno, representado pela história de Robinson Crusoé, por
Paulo e Virgínia e por Tales of Fashionable Life. 7
Durante todo o período há um interesse expressivo pelas
obras de prosa ficcional. Entre 1769 e 1807, 55% das obras que
compõem a lista das preferidas são ficcionais; entre 1808 e 1826,
considerados os envios controlados pela censura portuguesa, elas
passam a ser responsáveis por 58% dos livros mais solicitados.
Apesar de a concentração de clássicos nos pedidos examinados
pela Mesa do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro ser superior
àquela encontrada nos documentos lusitanos, a presença da
prosa ficcional é também bastante forte, correspondendo a 45%
das obras mais enviadas.
Estudos recentes, como o de Carlo Alberto González
Sánchez sobre o comércio de livros no vice-reino do Peru,
confirmam a importância da ficção no comércio livreiro
7 Obra publicada em 6 vols (I (1809) vii, 400p; II (1809) 338p; III (1809) 369p; IV
(1812) iv, 460p; V (1812) 392p; VI (1812) 466p), referida em todos os pedidos de
autorização como Scènes de la vie du grand monde – tradução francesa dos vols
4–6.
171
americano, mostrando uma linha de permanência no interesse
por narrativas ficcionais já verificado no clássico trabalho de
Irving A. Leonard sobre a presença das novelas de cavalaria na
América no século XVI. (LEONARD, 1949)
Estendendo o período de análise, Sánchez estudou
inventários elaborados por ocasião da morte de dois livreiros
espanhóis estabelecidos em Lima no primeiro terço do século
XVII, período em que a capital do vice-reino peruano era o mais
importante centro cultural do Novo Mundo. (SÁNCHEZ, 1993.)
Curiosamente, o acervo deixado pelo livreiro Pedro
Durango era composto, sobretudo, por obras laicas (88% do total),
contrariando a tendência habitual em que predominavam os livros
religiosos, seja nos acervos de livrarias, seja na composição de
bibliotecas. Dentre essas obras, destacavam-se as de “História”
(63% do conjunto) e as de “Literatura” (13%). Como ressalta o
autor, os limites entre História e Literatura eram, muitas vezes,
bastante tênues, pois na categoria História “en general se trata de
unas obras cuyo contenido responde al relato de hazañas épicas,
a modo de novelas de aventuras”. No conjunto de obras literárias
predominavam as novelas de cavalaria, “dando pruebas de la
persistência de su popularidad a princípios del siglo XVII, fecha
en la que, en teoría, habían sido sustituidas por la afición a otros
generos.”
Segundo Irving Leonard, à medida que decrescia o
interesse pelas novelas de cavalaria, ampliava-se o gosto pelas
novelas picarescas, idéia que se confirma nos inventários
analisados por Sánchez, que mostram uma forte presença de
narrativas picarescas, em especial o livro Guzmán de Alfarache, de
Mateo Alemán. Da mesma forma, os inventários registram o
amplo interesse pelo livro Don Quijote, de Cervantes.
Os pedidos de autorização para envio de livros para o Rio
de Janeiro, embora recubram um período bastante posterior,
registram a manutenção do interesse tanto pela obra de Cervantes
quanto pelos romances picarescos, ali representados pelo livro
História de Gil Blas de Santilhana, do francês Le Sage.
Essas obras, entretanto, embora estivessem entre os
livros preferidos em todo o mundo ocidental, eram pouco
consideradas pelos letrados, por pertencerem a um gênero
172
desvalorizado no período: a prosa ficcional, chamada à época de
romance, novela, ou até mesmo, história. Ela era tida como
menor por não estar prevista em Poéticas ou em Retóricas e por
ser destinada a amplos públicos leitores, que não possuíam as
referências eruditas e não compartilhavam de seus critérios de
avaliação.
A predominância das obras ficcionais entre os pedidos
permite refletir sobre uma das possíveis fontes do discurso sobre
a precariedade da cultura letrada no Brasil. Nos séculos XVIII e
XIX – assim como hoje – o problema não parece ser de
desinteresse pela leitura, mas, ao contrário, de interesse por um
tipo particular de leitura. Enquanto as obras mais valorizadas
pela alta tradição eram os clássicos da Antigüidade, assim como
escritos mais recentes feitos à sua imitação, o público tinha
interesse por obras ficcionais. Como se não bastasse, liam-se
romances escritos por mulheres, como a história de Carolina de
Litchfield, escrita em francês por Isabelle de Montolieu ou como os
Tales of Fashionable Life da anglo-irlandesa Maria Edgeworth. Da
mesma forma, uma outra mulher, Pauline de Montmorin obteve
destaque mundial com sua produção, intitulada Magasin
d’enfants e traduzida para o português como Tesouro de Meninas.
Nesse caso, além do desprestígio do gênero textual e da autoria,
acrescenta-se nova desvalorização pelo fato de se tratar de obra
destinada ao público infantil.
Ao extraordinário interesse dos leitores pelas obras de
ficção correspondia um não menos intenso repúdio por parte dos
letrados e das autoridades. São bem conhecidos os sucessivos
editos reais espanhóis proibindo a circulação de romances de
cavalaria na América, devido ao temor de que os nativos
confundissem ficção e realidade e embaralhassem os “desatinos”
dessas obras com as verdades expressas na Bíblia (VILLENA,
2000). No século XVIII, a imensa difusão dos romances modernos
acendeu o entusiasmo dos moralistas e letrados que denunciavam
os perigos que poderiam advir da leitura de obras desse tipo por
amplos setores da população.
Carlo Alberto González Sanchez, que também observou o
forte interesse pela ficção nos inventários por ele analisados,
acredita que a leitura de obras ficcionais deveria ser ainda mais
173
eloqüente do que mostram os números. Devido ao preconceito
associado a esses livros, muito deixou de ser registrado e
conservado. Conforme ele pondera,
se suele mostrar a los demás y hacer alarde de lo que está
aceptado en la comunidad, más en una cultura dirigida
como era la del siglo XVII. Me inclino a pensar que la ficción
literária se leia com una intensidad y frecuencia que no
muestran los inventários, porque, como suele ser corriente
en la actualidad, queda bien colocar en los anaqueles
determinados autores de modo aunque no se lean y, a la vez,
denostar géneros inferiores (pienso en la novela rosa) que,
sin embargo, son auténticos superventas. (SÁNCHEZ, 1993,
p. 14)
É possível pensar, assim, que o alardeado discurso sobre
a ignorância cultural americana esteja mais assentado em idéias
pré-concebidas sobre o que fossem leituras dignas e obras de
valor do que na observação efetiva do que ocorria nas Américas,
em que havia importante presença de livros e de leitores, os quais,
entretanto, estavam interessados, sobretudo, em obras tidas como
inadequadas pelos intelectuais e letrados do tempo.
Bibliografia
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