sexta-feira, 6 de abril de 2012

EDWARD WIENER (REVISTA ODISSÉIA)

TOMASINO, Kimiye. Os Kaingang da Bacia do Tibagi e suas
relações com as terras baixas. Relatório parcial de pesquisa sem
maiores datos. Londrina: [s. n.] 1998.
125 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
126 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana1
Solange Teles da Silva2
INTRODUÇÃO
Agestão do meio ambiente urbano representa um
desafio complexo para as sociedades contemporâneas.
Não se trata apenas de considerar a preservação dos
recursos ambientais3, mas também de assegurar condições de vida
digna à população, propiciando que parcelas da sociedade não sejam
excluídas do processo de desenvolvimento das cidades. O meio



ambiente, qualificado de urbano, engloba tanto o meio ambiente
natural quanto o meio ambiente transformado, resultado da ação do
homem e da sociedade, ou seja, o meio ambiente na e da cidade.
Como seria possível então apreender a “problemática urbana”?
Há uma dificuldade de elaboração de uma problemática
científica do meio ambiente urbano, como assinala Pascale
METZGER, que advém do próprio contexto político, ideológico,
científico e social. Este contexto é caracterizado pelos seguintes
elementos interdependentes: a) a redefinição das relações entre
1 Palestra sobre Políticas Públicas e Estratégias de Sustentabilidade Urbana no II Seminário de Direito Ambiental –
I Congresso de Direito Ambiental da Amazônia, 14 de maio 2003, Belém – Pará.
2 Doutora em direito pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne. Professora do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Professora convidada do curso de especialização em
engenharia ambiental da Universidade de Campinas (UNICAMP).
3 De acordo com o artigo 3°, inciso V da Lei 6.938, de 31.08.1981, recursos ambientais são : “a atmosfera, as águas
interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a
fauna e a flora” (redação dada pela Lei nº 7.804, de 18.07.89).
127 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
ciência e sociedade; b) uma outra concepção do saber através das
questões ecológicas e ambientais; c) uma nova problemática das
relações Norte-Sul, ou melhor, dos países ricos-pobres através da
adoção do conceito do “desenvolvimento sustentável”; d) o movimento
ecologista, atuando e influenciando decisões do nível local ao nível
internacional; d) uma nova concepção das relações homem-natureza,
quer dizer, do homem ocidental e da natureza do planeta; e) a
percepção de uma crise dos meios urbanos e rurais4. O referido autor,
ao realizar um inventário dos trabalhos sobre ecologia urbana e meio
ambiente urbano, identifica três concepções distintas. A primeira
delas refere-se à natureza na cidade, e é constituída de estudos
referentes aos elementos biológicos do meio urbano, ou seja, trata-se
da preservação de espaços verdes e dos elementos físico-naturais nas
cidades. A segunda visão do meio ambiente urbano relaciona-se aos
riscos da cidade e na cidade, quer dizer, a problemática da saúde das
populações, como também os riscos naturais, físico-químicos,
biológicos, morfo-climáticos, tecnológicos e segurança. A terceira
vertente de análise busca equacionar o problema da gestão ou
administração da cidade, tratando das políticas públicas sob o
prisma da gestão dos serviços, da planificação urbana e uso do solo,
como também da democratização dos modos de gestão e do papel das
questões ambientais na determinação das políticas públicas5. Sem ter
a pretensão de esgotar todas as questões referentes à temática da
gestão da cidade, o objetivo deste artigo é realizar uma análise a
partir desta terceira concepção da problemática urbana, da gestão do
meio ambiente urbano sob o prisma das políticas públicas e
estratégias de sustentabilidade urbana.
1. POLÍTICAS PÚBLICAS
Antes de analisar as mudanças que ocorreram no âmbito das
ações governamentais e que resultaram na adoção de políticas
públicas como estratégias e diretrizes da própria ação governamental
e dos indivíduos, é importante identificar o espaço privilegiado de
atuação destas políticas que tem como meta e objetivo a
sustentabilidade urbana.
4 METZGER, Pascale: “Contribution à une problématique de l’environnement urbain” in Cahiers des Sciences humaines
vol. 30 n.4/1994, pp. 596-598.
5 Idem, pp. 599-601.
6 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 241.
128 Solange Teles da Silva
1.1 Espaço geográfico da realização de programas de ação
governamental: as cidades
As políticas públicas constituem instrumentos da ação
governamental, ou seja, como destaca Maria Paula Dallari BUCCI
“são programas de ação governamental visando a coordenar os meios
à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de
objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”6. Em
realidade, há um componente prático e finalístico na idéia de política
pública como “programa de ação governamental para um setor da
sociedade ou um espaço geográfico”7, buscando a concretização de
determinados objetivos e metas.
O espaço geográfico, no presente estudo, objeto das políticas
públicas é a cidade e, pode-se observar que houve uma evolução
considerável no tratamento da questão urbana no Brasil. Luiz César
de Queiroz RIBEIRO ressalta que apenas na década de 1980, “a
questão urbana é integrada à questão social, e as representações
anti-urbanas são substituídas pelo diagnóstico orientado por ideais
republicanos de justiça social e democracia. A tarefa do pensamento
e da ação dos urbanistas passa a ser o fazer coincidir a cidade e a
cidadania”8. Atualmente, a sociedade brasileira vive “um momento de
transição histórica, no qual essa questão urbana perde
paulatinamente a legitimidade alcançada por sua disseminação no
pensamento social e sua tradução em políticas públicas, sob os
impactos da imposição da agenda neoliberal. Os ‘problemas urbanos’
deixam de ser reconhecidos como integrantes da questão social e
passam a ser explicados como decorrentes do suposto divórcio entre
a cidade e os imperativos da ordem econômica global, e o saber e a
ação urbanísticos são mobilizados para fazer coincidir a cidade com
o mercado”9. A questão da cidadania, outrora incluída na esfera dos
direitos políticos e sociais, passa a ser incorporada ao campo dos
direitos civis, instituindo-se uma lógica de “contratos” e
“consumidores”. É neste contexto, onde os espaços tornaram-se
globalizados, no qual emergem novas tecnologias e há uma crescente
urbanização, que as políticas públicas têm como desafio alcançarem
129 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
7 MULLER, Pierre/ SUREL, Yves. L’analyse des politiques publiques. Paris: Montchrestien, 1998, cit. P. 16. Os autores
se referem a conceituação de Mény e Thoenig, em Politiques publiques, 1989, apud BUCCI, Maria Paula Dallari.
Direito Administrativo e ...op.cit., p. 252.
8 RIBEIRO, Luiz César de Queiroz RIBEIRO: “Cidade, nação e mercado: gênese e evolução da questão urbana no Brasil”
in PINHEIRO, Paulo Sérgio/ SACHS, Ignacy/ WILHEIM, Jorge (org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, pp. 134-135.
9 Idem, p. 135.
a sustentabilidade urbana para o pleno exercício da cidadania,
assegurando uma vida harmônica do homem em seu meio ambiente.
Como delimitar, então, o espaço meio ambiente urbano, ou
seja, como definir o espaço geográfico que se denomina cidade,
território da atuação destas políticas públicas? Como destaca José
Afonso da SILVA, três concepções podem ser utilizadas para definirse
a cidade: a) a concepção demográfica, de acordo com a qual
considera-se cidade determinado aglomerado urbano com um certo
número de habitantes – para a ONU este número seria de 20.000
habitantes; b) a concepção econômica de cidade que,
fundamentando-se na doutrina de Weber, analisa toda cidade como
um local onde se constrói e se desenvolve o mercado; c) a concepção
de subsistema, que considera a cidade como um conjunto de
subsistemas no sistema nacional geral. Nos subsistemas
administrativos, a cidade é a sede de organizações públicas; nos
subsistemas comerciais, é o centro do comércio no sistema nacional;
nos subsistemas industriais, forma o nexo da atividade industrial no
país e nos sócio-culturais, é o local propício ao florescimento destas
atividades10. Se, do ponto de vista urbanístico, um centro
populacional adquire a característica de cidade, quando possui
unidades edilícias e equipamentos públicos11, do ponto de vista
jurídico, a definição de cidade foi dada no Brasil pelo Decreto-Lei nº
311, de 02.03.1938, que dispôs sobre a divisão territorial do país,
transformando em cidades todas as sedes municipais existentes,
independentemente de suas características estruturais e funcionais.
Atualmente, nas cidades vive a maioria da população brasileira12,
sendo que algumas capitais possuem mais de um milhão de
habitantes13. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE-2000), na Região Norte, por exemplo,
130 Solange Teles da Silva
10 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 24-25.
11 Idem, p. 26.
12 De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – o Brasil do final do século XX é
um país urbano, pois em 2000 a população urbana ultrapassou 2/3 da população total, correspondendo a 138
milhões de pessoas. Este processo iniciou-se na década de 50 na região Sudeste, acentuando-se e generalizandose
pelas cinco grandes regiões do país. É interessante notar que Maria das Graças Rodrigues FOSSA e Mardone
Cavalcante FRANÇA questionam os critérios para a classificação da população brasileira como urbana. Destacam que
a separação administrativa dos espaços rurais e urbanos faz com que os estudos sobre o Brasil rural fiquem restritos
a uma parcela de 32 milhões de habitantes que residem fora dos perímetros oficialmente urbanos, tendo um
impacto direto na formulação e implementação de políticas públicas nestes espaços. FOSSA, Maria das Graças
Rodrigues/ FRANÇA, Mardone Cavalcante: “Uma avaliação dos critérios de classificação da população urbana e
rural”, Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Ouro Preto, MG –
4 a 8 de novembro de 2002.
13 De acordo com dados do IBGE-2000, as capitais brasileiras que apresentam uma população superior a um milhão
de pessoas são: 1) na região nordeste: a) Salvador – 2.443.107 hab.; b) Fortaleza – 2.141.402 hab.; c) Recife –
1.422.905 hab.; 2) na região centro-oeste: a) Brasília – 2.051.146 hab.; b) Goiânia – 1.093.007 hab.; 3) na região
Sudeste: a) São Paulo – 10.434.252 hab.; b) Rio de Janeiro – 5.857.904 hab.; c) Belo Horizonte – 2.238.526 hab.;
4) na região Sul: a) Curitiba – 1.587.315 hab.; b) Porto Alegre – 1.360.590 hab.
Manaus e Belém contam, respectivamente com uma população de
1.405.835 e 1.280.614 habitantes. É verdade, que as reflexões sobre
a Amazônia tem, majoritariamente, como idéia central questões
relacionadas à biodiversidade, aos povos da floresta e às populações
tradicionais, aos recursos hídricos. Todavia, é importante frisar que
já se alcançou na Amazônia uma taxa de 69,7% de urbanização14.
Neste contexto de crescente concentração urbana, como o direito das
políticas públicas transformou os modos de ações governamentais?
Apenas uma atuação governamental local, ou seja, nas cidades seria
suficiente para alcançar-se a sustentabilidade urbana?
1.2 Transformações das modalidades de ações governamentais:
as políticas públicas
Charles-Albert MORAND analisa as transformações das
modalidades de ação do Estado sob a forma de políticas públicas e as
mutações radicais da estrutura jurídica15. De acordo com o autor, os
modelos de Estado caracterizam-se por uma forma de intervenção,
constituindo tipos ideais e representando um reflexo imperfeito da
realidade, mas que permitem, todavia, sua decodificação. Além disso,
as diversas formas de Estado e estruturas de direito coexistem ao
mesmo tempo. Ao Estado liberal corresponde o direito moderno16,
síntese da herança do Estado de polícia, do Estado liberal e do Estado
de direito. O Estado providência, fornecedor de prestações – serviços
públicos – , gerou uma estrutura jurídica intermediária entre o
Estado moderno e o Estado propulsivo. Com o Estado propulsivo
toma forma o direito de programas finalísticos e a estrutura jurídica
busca fazer com que os destinatários do direito participem em sua
formação e implementação. Os programas relacionais gerados por
esta participação implicam outras modificações na estrutura do
direito, e, assim ao Estado reflexivo corresponde justamente o direito
de programas relacionais, que se explicam pelo fato da sociedade
tornar-se progressivamente complexa e pela capacidade dos sistemas
sociais autônomos – autopoiéticos – de resistirem aos comandos
estatais. Ao Estado incitador corresponde o direito fundado na
persuasão e influência, sendo possível verificar uma propensão do
131 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
14 NOVAES, Jurandir Santos de /RODRIGUES, Edmilson Brito (org) Luzes na floresta : o governo democrático e popular
em Belém (1997-2001) 2ª ed. Belém: Prefeitura Municipal de Belém, 2002, p.13.
15 MORAND, Charles-Albert. Le droit néo-moderne des politiques publiques. Paris: L.G.D.J., 1999, p. 13.
16 O direito moderno deve ser compreendido como um direito “autônomo, formado de regras gerais e abstratas
aplicáveis de forma dedutiva pelo silogismo jurídico; um direito hierarquizado e organizado de maneira sistemática;
enfim, um direito legítimo, pelo menos em última instância por instituições democráticas”. (Tradução livre) Idem,
p. 28.
Estado de renunciar a coerção para recorrer à informação, incitação
e persuasão17.
O direito das políticas públicas opera uma modificação
substancial do raciocínio jurídico em direção do imperativo da
eficácia, entrando na era da pós-modernidade18. No Estado social de
direito, as políticas públicas devem ser concebidas não mais no
sentido de intervenção sobre a atividade privada, “mas de diretriz
geral tanto para a ação dos indivíduos e organizações, como do
próprio Estado”19. Neste sentido, os princípios diretores têm um papel
essencial para a implementação do direito de políticas públicas,
sobretudo em matéria de proteção ambiental e ordenamento do
território. A preferência na utilização dos princípios diretores às
regras fixas explica-se porque “eles são os únicos capazes de
assegurar a compatibilidade de valores e interesses complementares
ou contraditórios que buscam a ‘otimização da vida’”20 e permitem,
assim, a coexistência de legislações que protejam valores e interesses
diversos. Entre os princípios que orientam as políticas públicas no
meio ambiente urbano encontram-se, por exemplo, o princípio da
supremacia do interesse público na proteção do meio ambiente
urbano sobre os interesses privados; o princípio da intervenção
estatal obrigatória na defesa e proteção do meio ambiente urbano; o
princípio da avaliação prévia dos impactos ambientais de atividades
de qualquer natureza; o princípio da função sócio-ambiental da
propriedade urbana; o princípio da participação popular e da gestão
democrática da cidade e; o princípio da garantia do direito a cidades
sustentáveis21.
Não se devem abandonar as exigências da legalidade, mas no
confronto entre as políticas públicas e o princípio da legalidade,
símbolo da unidade do direito moderno, este sai estilhaçado. Como
sublinha Charles-Albert MORAND a “ecologização do direito, que é
132 Solange Teles da Silva
17 Idem, pp. 15-17.
18 Idem, p. 189.
19 BUCCI, Maria Paula Dallari, op. cit., p. 247.
20 (Tradução livre) MORAND, Charles-Albert. Op. cit., p. 189.
21 Esta lista não é exaustiva. Álvaro Luiz Valery MIRRA ao analisar os princípios fundamentais do direito ambiental,
que pode-se considerar que também se aplica ao meio ambiente urbano, destaca entre eles os seguintes: a)
princípio da supremacia do interesse público na proteção do meio ambiente em relação aos interesses privados; b)
princípio da indisponibilidade do interesse público na proteção do meio ambiente; c) princípio da intervenção
estatal obrigatória na defesa do meio ambiente; d) princípio da participação popular na proteção do meio
ambiente; e) princípio da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentado; f) princípio
da função social e ambiental da propriedade; g) princípio da avaliação prévia dos impactos ambientais das
atividades de qualquer natureza; h) princípio da prevenção de danos e degradações ambientais; i) princípio da
responsabilização das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente; j) princípio do respeito à identidade, cultura
e interesses das comunidades tradicionais e grupos formadores da sociedade; k) princípio da cooperação
internacional em matéria ambiental. MIRRA, Álvaro Luiz Valery: “Princípios fundamentais do direito ambiental”,
Revista de Direito Ambiental n° 2, abril-junho 1996, pp. 50-66.
um fenômeno que ultrapassa largamente o da proteção ambiental,
supõe que sejam encontrados os pontos de equilíbrio, assegurando
uma flexibilidade suficiente para que ele seja capaz de agir sobre uma
realidade instável, conservando o mínimo de previsibilidade sem a
qual ele não mereceria o seu nome”22. Em realidade, as políticas
públicas adotam programas finalísticos que por natureza são flexíveis
e as exigências da legalidade devem ser diferenciadas em função do
grau de finalização da ação como também do grau de imperatividade
das normas23.
No meio ambiente urbano há a necessidade de integração das
políticas públicas setoriais, como por exemplo, as políticas públicas
de habitação, de transportes, de saneamento ambiental e a própria
política ambiental. Os planos e programas governamentais devem
levar em conta os aspectos ambientais, urbanos, sociais e
econômicos. Se os planos são obrigatórios para o setor público, para
o setor privado eles são indicativos24. Destaque-se que a Lei orgânica
do Município de Belém, determina em seu artigo 167 que a
conservação e recuperação do ambiente serão, prioritariamente,
consideradas na elaboração de qualquer política, programa ou
projeto público ou privado, nas áreas do Município. É imprescindível
que se realize também a análise de grandes projetos e de sua
incidência sobre a questão da sustentabilidade urbana, tais como os
grandes projetos que foram incluídos no Avança Brasil e seus Eixos
de Integração Nacional. Na Região Amazônica, por exemplo, tais
projetos podem ocasionar pressões migratórias para cidades que não
possuem infra-estrutura urbana e não têm capacidade para atender
as crescentes demandas deste fluxo migratório. Além disso, outros
problemas como desmatamento e pressão sobre o uso do solo podem
vir a causar situações contrárias à sustentabilidade urbana. Pode-se
então indagar como poderiam ser concretizadas as políticas públicas
no meio ambiente urbano para alcançar a sustentabilidade urbana?
2. CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO
AMBIENTE URBANO
As políticas públicas podem ser definidas também como
“processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional
22 (Tradução livre) MORAND, Charles-Albert. Op. cit., p. 196.
23 Idem, pp. 196-197
24 Artigo 174 da Constituição Federal de 1988.
133 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos
reconhecidos pelo direito”25. Entre os interesses públicos
reconhecidos pelo direito encontra-se o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, englobando o meio ambiente
urbano.
2.1 Objetivos e metas das políticas públicas: sustentabilidade
urbana
A expressão “sustentabilidade” remete ao conceito de gestão
durável dos recursos ambientais no espaço e no tempo. O espaço ao
qual refere-se este estudo é o urbano. A Constituição Federal de 1988
consagra no caput do seu artigo 225 o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado – inclusive o meio ambiente
urbano – , bem de uso comum do povo, cabendo ao Poder Público e
a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações. Ressalte-se que a Constituição do Estado do
Amazonas, além de proclamar o direito de todos ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, determina que o “desenvolvimento
econômico e social, na forma da lei, deverá ser compatível com a
proteção do meio ambiente, para preservá-lo de alterações que, direta
ou indiretamente, sejam prejudiciais à saúde, à segurança e ao bemestar
da comunidade, ou ocasionarem danos à fauna, à flora, aos
caudais ou ao ecossistema em geral” (art. 229, § 1°).
A qualificação do meio ambiente como “urbano” não significa
que haja compartimentalização do meio ambiente. O adjetivo
“urbano” apenas vem delimitar a problemática ambiental em um
espaço geográfico determinado, as cidades. Mas o estudo do meio
ambiente urbano não pode olvidar que as cidades estão inseridas em
outras dinâmicas territoriais, sociais e ambientais, como já se
ressaltou neste estudo. A adoção de políticas públicas buscando a
sustentabilidade urbana implica, portanto, em repensar o modelo de
desenvolvimento, repensar o desenvolvimento das relações sociais e
econômicas na cidade e o papel do direito enquanto propulsor do
direito à cidade sustentável. Trata-se, portanto, de gestão sustentável
do espaço urbano tendo em vista estratégias de inclusão social,
equidade no acesso aos recursos ambientais e a realização da justiça
ambiental.
Atualmente, a situação do país encontra-se distante desse
ideário, ou seja, de um meio ambiente equilibrado para todos. Como
134 Solange Teles da Silva
25 BUCCI, Maria Paula Dallari. Op. cit, p. 264.
destaca o Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos, Econômicos,
Sociais e Culturais de 2003, no Brasil, combinam-se “formas
predadoras de ocupação e de exploração do território praticadas
desde o ‘descobrimento’ e um desenvolvimento dito moderno, mas
que não encontrou uma sociedade suficientemente organizada para
que se coloquem limites efetivos à exploração do que ele faz dos
recursos naturais e do meio ambiente. Os ecossistemas foram e
continuam sendo sistematicamente destruídos pelo avanço da frente
de exploração da madeira e da agropecuária que destrói as
comunidades tradicionais que se encontrem no seu caminho”26.
Pensar o meio ambiente urbano é repensar também as relações do
homem tanto na cidade quanto no campo, é repensar a política de
reforma agrária. Há de se considerar que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e a sustentabilidade urbana não deve ser
contemplado como uma situação ideal, mas como um direito de
realização progressiva no espaço e no tempo.
Um outro aspecto da sustentabilidade é a gestão das cidades no
tempo, ou seja, a administração presente e futura dos recursos
ambientais da e na cidade associada à gestão social. Trata-se de
buscar soluções para alcançar a sustentabilidade para as gerações
presentes e vindouras. Neste sentido, “os objetivos de interesse
público não podem ser sacrificados pela alternância no poder,
essencial a democracia”27. Seria possível então exigir dos Poderes
Públicos a implementação de políticas públicas para a preservação do
meio ambiente urbano? Esta indagação conduz a distinção: a) da
escolha das diretrizes da política pública para concretização de
determinadas metas, ou seja da formulação de determinadas
políticas públicas e, b) dos próprios objetivos que a política pública
visa alcançar, que dizer, sua efetiva execução. Por um lado, não cabe
ao Judiciário a formulação de políticas públicas no meio ambiente
urbano. Cabe aos representantes do povo, quer dizer, ao Poder
Legislativo, organizar as grandes linhas das políticas públicas e ao
Poder Executivo sua execução. Ressalte-se que esta separação das
funções estatais não é absoluta, pois para a concretização das
políticas públicas “o próprio caráter diretivo do plano ou programa
implica a permanência de uma parcela da atividade ‘formadora’ do
direito nas mãos do governo (Poder Executivo), perdendo-se a nitidez
135 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
26 LIMA JR. Jayme Benvenuto (coord. e org.) Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e
Culturais. Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais/ Projetos Relatores Nacionais
em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, 2003, p. 9.
27 BUCCI, Maria Paula Dallari, op. cit., p. 271.
da separação entre os dois centros de atribuição”28. Por outro lado,
cabe o controle judicial de omissões do Poder Público na execução
das políticas públicas no meio ambiente urbano. Isto significa que
cabe ao Judiciário, por meio de ações judiciais, determinar que os
governos adotem de medidas de preservação do meio ambiente, tais
como a implantação de sistema de tratamento de esgotos29 ou de
resíduos sólidos urbanos30 ou ainda a implantação definitiva de
espaço territorial protegido, já instituído por norma, ou a preservação
de um bem de valor cultural31. Em realidade, o Judiciário impõe a
execução das políticas públicas que já foram estabelecidas seja na
Constituição, em leis ou formuladas e adotadas pelo próprio governo.
Em matéria ambiental “não há mais propriamente, liberdade efetiva
do administrador na escolha do momento mais conveniente e
oportuno para a adoção de medidas específicas de preservação”32. O
Poder Público tem, portanto, o dever de agir para alcançar os
objetivos e metas previstos em normas constitucionais e infraconstitucionais.
O inciso I do artigo 2º do Estatuto da Cidade – Lei n° 10.257,
de 10.07.2001 – , por exemplo, consagra entre as diretrizes gerais da
política urbana a garantia do direito a cidades sustentáveis. Este
direito é entendido como o direito à terra, à moradia, ao saneamento
136 Solange Teles da Silva
28 Idem, p. 270.
29 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Meio idôneo para compelir o Poder Público a tratamento de esgoto – Arbitramento de prazo
para cumprimento da obrigação determinado na sentença à luz da prova técnica – Providência sensata, tendo em
vista a força orçamentária do Município – Recurso não provido”. (TJSP – 2ª Câmara Civil – Apelação Cível 158.646-
1/0 – j. 26.05.1992 – v.u. – rel. Des. Cezar Peluso). “AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Demanda proposta pelo Ministério
Público visando obrigar a Municipalidade a efetuar prévio tratamento antes de lançar o esgoto em cursos d’água,
com restauração do ambiente degradado – Carência da ação decretada em primeira instância, sob o fundamento de
interferência no Poder Executivo – Possibilidade da demanda e da atuação ministerial na forma do artigo 129, III
da Constituição Federal e Lei n. 7.347/85 – Pretensão buscando coibir degradação de meio ambiente e de danos à
saúde pública, não podendo ser obstada sob o manto da discricionariedade administrativa – Sentença de carência
afastada, com determinação para prosseguimento da ação – Recurso ministerial provido. Possível o ajuizamento de
ação civil pública, pelo Ministério Público, visando obstar ato de Municipalidade de despejar esgoto, sem
tratamento, em curso d’água, evitando-se a degradação do meio ambiente e danos à saúde pública”. (Apelação Cível
n. 47.991-5 – General Salgado – 1ª Câmara de Direito Público – Relator: Luís Ganzer- 16.11.99 – V.U.). “MUNICÍPIO
– Lançamento de esgoto in natura – Possibilidade jurídica do pedido – Existência – É admissível ação civil pública
para obstar que município, comissiva ou omissivamente, continue lançando esgoto in natura em corpo de água,
por estar tal medida prevista em lei, notadamente contra aquele que tem o dever legal de proteger o meio ambiente
e combater a poluição em qualquer de suas formas – Ilícita, porém, é determinação judicial para que reative ele
estação de tratamento de esgoto, por descaber ao Poder Judiciário, sob pena de inversão de competência, dizer
qual obra deva ou não o Executivo realizar, para impedir ou minorar a poluição ambiental – Inteligência da
Constituição Federal de 1988, artigos 2º, 23, inciso VI, e 225, da Constituição Bandeirante, artigo 208, e da Lei
nº 7.347, de 24.7.1965, artigo 1º, inciso I – Recurso parcialmente provido”. (Agravo de Instrumento n. 271.588-
5 – São José do Rio Pardo – 5ª Câmara de Direito Público – Relator: Xavier de Aquino – 03.10.02 – V.U.).
30 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Meio Ambiente – Degradação – Comprovação – Alegação de impossibilidade financeira do
Município para regular destinação final de lixo urbano – Irrelevância – Aterro instalado sem observância das
medidas devidas – Art. 225, § 1º, IV da Constituição Federel e do Decreto Estadual 8.468/76 – Prioridade social
da Administração Publica – Recurso não provido” (TJSP – 7ª Câmara Civil – Apelação Cível 229.105-1/3 – j.
09.08.1995 – v.u. – rela. Dês. Leite Cintra).
31 Cf. a visão inovadora e mais atualizada sobre a preservação da qualidade ambiental que prestigia a ampliação do
controle judicial tendente à supressão da omissão administrativa lesiva ao meio ambiente MIRRA, Álvaro Luiz
Valery: “O problema do controle judicial das omissões estatais lesivas ao meio ambiente”, Revista de Direito
Ambiental n° 15 julho-setembro/1999, p. 77.
32 Idem, p. 73
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
O desenvolvimento das cidades deverá, portanto, respeitar os limites
da sustentabilidade, ou seja, o desenvolvimento urbano deve ocorrer
com “ordenação, sem caos e destruição, sem degradação,
possibilitando uma vida urbana digna para todos”33. Trata-se de um
direito coletivo da população a cidades sustentáveis, ou seja, o direito
ao acesso a condições de vida urbana digna, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e aos equipamentos e serviços públicos.
2.2 Estratégias de sustentabilidade urbana
A “Agenda 21”, documento aprovado na Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de
Janeiro, estabeleceu diretrizes para mudança do padrão de
desenvolvimento global para o século XXI. Trata-se de uma tentativa
de promover, em todo o planeta, um padrão de desenvolvimento que
venha a conciliar os instrumentos de proteção ambiental, eqüidade
social e eficiência econômica.
No Brasil, o decreto federal de 26.02.1997 criou a Comissão de
Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda XXI Nacional,
com a finalidade de propor estratégias de desenvolvimento
sustentável e coordenar, elaborar e acompanhar a implementação da
Agenda 21. Dentre os temas centrais deste documento encontram-se
as cidades sustentáveis. No decorrer de discussões sobre a Agenda 21
brasileira, buscou-se diagnosticar os problemas urbanos-ambientais
e as estratégias de sustentabilidade urbana34.
De acordo com a análise realizada, a rede urbana brasileira
caracteriza-se por diferentes escalas de cidades, tais como as regiões
metropolitanas e, grandes, médias e pequenas cidades. É certo que
cada uma dessas cidades possui desafios próprios para o
desenvolvimento sustentável. Se, por um lado, as cidades brasileiras
apresentam problemas similares, em maior ou menor escala,
“problemas intra-urbanos que afetam sua sustentabilidade,
particularmente os decorrentes de: dificuldades de acesso à terra
urbanizada, déficit de moradias adequadas, déficit de cobertura dos
serviços de saneamento ambiental, baixa qualidade do transporte
137 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
33 MEDAUAR, Odete: “Comentários dos arts 1º a 3º” in ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de/ MEDAUAR, Odete
(coord.). Estatuto da Cidade: Lei n° 10.257, de 10.07.2001. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.
34 MMA/ IBAMA/ CONSÓRCIO PARCERIA 21. Cidades Sustentáveis: Subsídios à elaboração da Agenda 21 Brasileira.
MMA/ IBAMA: Brasília, 2000.
público, poluição ambiental, desemprego e precariedade de emprego,
violência/precariedade urbana e marginalização social”35. Por outro
lado, estas cidades também apresentam sinais positivos de
desenvolvimento, como por exemplo “maior dinamismo econômico e
social, articulação mais ampla entre governo e sociedade,
democratização da esfera pública, fruto de experiências inovadoras e
boas práticas de gestão local” 36. Para que as cidades brasileiras do
século XXI possam vir a ser palco de uma vida urbana enriquecida,
será necessário que se operem “transformações dos padrões
insustentáveis de produção e consumo que resultam na degradação
dos recursos naturais e econômicos do país, afetando as condições de
vida da população nas cidades”37.
Dentre as propostas estratégicas de sustentabilidade urbana,
identificadas como prioritárias para o desenvolvimento sustentável
das cidades brasileiras encontram-se as seguintes:
a) o aperfeiçoamento e a regulamentação do uso e da ocupação do
solo urbano e a promoção do ordenamento do território,
contribuindo para a melhoria das condições de vida da
população, considerando a promoção da eqüidade, a eficiência
e a qualidade ambiental.
b) a promoção do desenvolvimento institucional e do
fortalecimento da capacidade de planejamento e de gestão
democrática da cidade, incorporando no processo a dimensão
ambiental urbana e assegurando a efetiva participação da
sociedade.
c) a realização de mudanças nos padrões de produção e de
consumo da cidade, reduzindo custos e desperdícios e
fomentando o desenvolvimento de tecnologias urbanas
sustentáveis.
d) o desenvolvimento e o estímulo a aplicação de instrumentos
econômicos no gerenciamento dos recursos naturais visando à
sustentabilidade urbana.38
Em matéria de regulamentação do uso e da ocupação do solo
urbano, o Estatuto da Cidade estabeleceu normas de ordem pública
e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol
35 Idem, p. 14.
36 Idem, ibidem.
37 Idem, ibidem.
38 Idem, p. 15.
138 Solange Teles da Silva
do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem
como do equilíbrio ambiental (parágrafo único do art. 1º). A
propriedade urbana tem como fundamento a sua função social. A
função social da propriedade, como afirma José Afonso da SILVA, não
se confunde com os sistemas de limitação da propriedade, pois estes
se relacionam com o respeito ao direito do proprietário, enquanto a
função social da propriedade integra a própria estrutura do direito de
propriedade39. Como determina o parágrafo 2° do artigo 182 da
Constituição Federal de 1988, a propriedade urbana cumprirá sua
função social quando atender às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor. Caso a política de
desenvolvimento urbano municipal estabelecida no plano diretor não
tenha como prioridade “atender as necessidades essenciais da
população marginalizada e excluída das cidades, estará em pleno
conflito com as normas constitucionais norteadoras da política
urbana, com o sistema internacional de proteção dos direitos
humanos, em especial com o princípio internacional do
desenvolvimento sustentável”40.
Ressalte-se ainda que a Constituição Federal de 1988
determinou quais os instrumentos poderiam ser utilizados pelo Poder
Público Municipal para exigir do proprietário urbano o adequado
aproveitamento de sua propriedade em razão de solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado (art. 182, § 4°, I, II e III da
CF/88). O Estatuto da Cidade, ao fixar as diretrizes gerais da política
urbana, estabeleceu os contornos dos instrumentos para garantir o
cumprimento da função social da propriedade urbana: o
parcelamento e edificação compulsórios, o imposto sobre propriedade
predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo e
desapropriação para fins de reforma urbana41.
Não apenas a regulamentação do uso e da ocupação do solo
urbano deve contribuir para a melhoria das condições de vida da
população, mas também a promoção do ordenamento do território
deve buscar que a todos seja assegurada a eqüidade no acesso aos
equipamentos e serviços públicos bem como aos recursos ambientais,
a eficiência na prestação dos serviços e a qualidade ambiental. Neste
139 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
39 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 280-281.
40 SAULE JR., Nelson: “Estatuto da cidade e o plano diretor: possibilidades de uma nova ordem legal urbana justa e
democrática” in OSÓRIO, Letícia Marques. Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades
brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 81.
41 GUIMARAES, Maria Etelvina B.: “Instrumentos de garantia da função social da propriedade urbana: parcelamento e
edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação para fins de reforma urbana” in OSÓRIO,
Letícia Marques. Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, pp. 121-136.
sentido, destaque-se o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE),
instrumento de ordenamento do território, que deve ser
obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e
atividades públicas e privadas. Este instrumento estabelece medidas
e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade
ambiental, dos recursos hídricos e do solo e a conservação da
biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a
melhoria das condições de vida da população42. Henri ACSELRAD
distingue três momentos da realização do ZEE: a pré-compreensão do
mundo da ação, a configuração do ordenamento proposto e a
mediação social, destacando que “o campo da intervenção política do
ZEE não se limita ao momento da decisão final, mas perpassa todo o
processo (...), definindo um novo lócus de negociação e conflito em
torno do acesso aos recursos ambientais”43.
A sustentabilidade urbana também é enfocada sob o prisma da
gestão democrática das cidades. O Estatuto da Cidade prevê neste
sentido que sejam utilizados os seguintes instrumentos: a) órgãos
colegiados de política urbana nos níveis nacional, estadual e
municipal; b) debates, audiências e consultas públicas; c)
conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional,
estadual e municipal; d) iniciativa popular de projeto de lei e de
planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43
incisos I, II, III e IV). O orçamento participativo44, instrumento que já
vem sendo utilizado em alguns municípios brasileiros, como Porto
Alegre (desde 1989) e Belém (1997), também foi incluído no Estatuto
da Cidade como um dos instrumentos de planejamento municipal
(art. 4°, III, f e art. 44). É justamente num processo de
democratização do Estado que as políticas públicas são decididas
pelos seus destinatários, ou seja, a participação popular garante a
escolha das prioridades em matéria de políticas públicas no espaço
urbano. Os organismos das regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas também deverão assegurar a participação da população e de
associações representativas dos vários segmentos da comunidade
140 Solange Teles da Silva
42 Artigo 2° do Decreto nº 4.297, de 10.07.2002.
43 ACSELRAD, Henri: “O Zoneamento Ecológico-Econômico da Amazônia e o panoptismo imperfeito” in Cadernos
IPPUR/ UFRJ/ Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Planejamento e Território: ensaios sobre a desigualdade. N° 2, ago-dez. 2001/ N° 1, jan-jul 2002. Rio de Janeiro:
UFRJ/ IPPUR/ DP&A Editora, 2002, p. 55
44 “O Orçamento Participativo (OP) é uma brilhante experiência de participação popular. Mais do que decidir as obras
que serão feitas no outro ano, trata-se de um processo inserido na dinâmica do planejamento do desenvolvimento
da cidade, organizado a partir do Congresso da Cidade e que democratiza a gestão municipal, tornando o governo
transparente, permeável e, o mais importante, criando um controle da sociedade sobre o governo e sobre a
execução do que foi decidido pelo povo”. NOVAES, Jurandir Santos de /RODRIGUES, Edmilson Brito (org). Op.cit.,
pp. 49-50.
(art. 45 do Estatuto da Cidade). Em realidade, pode-se afirmar que a
gestão democrática das cidades representa a única possibilidade de
que os instrumentos de política urbana não sejam apenas
“ferramentas a serviço de concepções tecnocráticas, mas, ao
contrário, verdadeiros instrumentos de promoção do direito à cidade
para todos sem exclusão”45. Busca-se uma nova conexão entre a
cidade legal e a cidade real, através da formulação de um novo pacto
territorial. Todavia, é importante sublinhar que infelizmente houve
um veto na disposição do artigo 52, I deste diploma legal, que
determinava que incorreria em improbidade administrativa o Prefeito
que impedisse ou deixasse de garantir a participação de
comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil. E, como
afirma Marcos Jordão Teixeira do AMARAL FILHO, isto torna
bastante “evidente que sequer a liderança política do País entende ser
exigível a participação democrática, embora intenção proclamada e
reafirmada no texto constitucional”46.
As mudanças nos padrões de produção e de consumo da cidade
implicam sobretudo em modificações comportamentais. Ações em
matéria de educação ambiental propiciando a conscientização da
população são fundamentais. Só assim será possível a redução de
desperdícios. Há que se atentar igualmente para o fomento ao
desenvolvimento de tecnologias urbanas sustentáveis, como em
matéria de construção de imóveis e tratamento de resíduos urbanos.
A aplicação de instrumentos econômicos no gerenciamento dos
recursos naturais visando à sustentabilidade urbana deve estar
orientada a uma melhor implementação dos princípios poluidorpagador
e usuário pagador. Todavia, isto não pode significar pura e
simplesmente a “mercantilização” dos recursos ambientais, e a
exclusão de parte da população ao acesso destes bens, tais como a
água e o ar em quantidade e qualidade suficiente para uma digna
qualidade de vida.
CONCLUSÃO
A sociedade já se encontra majoritariamente instalada em
cidades e as questões sócio-ambientais têm e terão cada vez mais um
141 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
45 BUCCI, Maria Paulo Dallari: “Gestão democrática da cidade” in DALLARI, Adilson Abreu/ FERRAZ, Sérgio. Estatuto
da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 324.
46 AMARAL FILHO, Marcos Jordão Teixeira do: “Capitulo IV – Da gestão democrática da cidade” in ALMEIDA, Fernando
Dias Menezes de/ MEDAUAR, Odete (coord.). Estatuto da Cidade: Lei n° 10.257, de 10.07.2001. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002, p. 180.
papel predominante na determinação das políticas públicas no meio
ambiente urbano. Trata-se de assegurar condições dignas de vida
urbana a todos, buscando um equilíbrio social e ambiental do
planeta. Não se trata de abandonar os modelos clássicos de regulação
do mercado ou de intervenção direta na construção dos
equipamentos e na prestação de serviços públicos. Mas há a
necessidade de democratização nas escolhas prioritárias de cada
sociedade. Estas escolhas fundamentarão as ações e programas
governamentais, ou seja, as políticas públicas. Ao lado da ação
governamental são as parcerias entre o setor público e o setor privado
que devem auxiliar no processo de gestão sustentável do meio
ambiente urbano.
142 Solange Teles da Silva
REFERÊNCIAS:
ACSELRAD, Henri: “O Zoneamento Ecológico-Econômico da
Amazônia e o panoptismo imperfeito” in Cadernos IPPUR/ UFRJ/
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Planejamento e Território:
ensaios sobre a desigualdade. N° 2, ago-dez. 2001/ N° 1, jan-jul
2002. Rio de Janeiro: UFRJ/ IPPUR/ DP&A Editora, 2002, pp. 53-
75
AMARAL FILHO, Marcos Jordão Teixeira do: “Capitulo IV – Da gestão
democrática da cidade” in ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de/
MEDAUAR, Odete (coord.). Estatuto da Cidade: Lei n° 10.257, de
10.07.2001. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp.
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Sociais e Culturais, 2003.
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144 Solange Teles da Silva
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reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras.
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____________________. Direito urbanístico brasileiro. 3ª ed. rev. e atual.
São Paulo: Malheiros, 2000.
145 Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana
146 Solange Teles da Silva
Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
Ozório J. M. Fonseca1
Continua muito complicada, a definição de uma
regulamentação definitiva sobre o acesso e uso do
patrimônio biológico, genético e conhecimento tradicional associado.
Quase todos os dias, a imprensa do país noticia as intermináveis
discussões sobre este problema, que envolve também os organismos
geneticamente modificados, a bioética e a biosegurança. E, como se
essas questões já não fossem suficientemente complexas, elas ainda
trazem, embutida, a discussão sobre o tema que se convencionou
denominar de biopirataria.
A questão da retirada, não autorizada, de organismos da biota
brasileira, tem seu foco principal centralizado na Amazônia, sob a
justificativa de que é aqui que está concentrada a maior diversidade
biológica do Brasil2 e talvez do Planeta3. Curiosamente, essa
discussão, raramente, aparece vinculada à Mata Atlântica e ao
Pantanal, embora esses biomas detenham, também, uma exuberante
multiplicidade de espécies.
A biopirataria, sem dúvida, é uma questão de extrema
relevância e, justamente por isso, o debate precisa ser desvinculado,
tanto do componente emocional, como das disputas políticopartidárias,
cuja finalidade última é sempre o próximo processo
1 Professor doutor do Curso de Direito Ambiental da Universidade Estadual do Amazonas UEA e Coordenador do
Núcleo de Pesquisas Professor Samuel Benchimol da UEA.
2 SALATI, Enéas et al. Porque Salvas a Floresta Amazônica. Manaus: INPA, 1998. p.47-76
3 MARTINS, Eduardo de Souza. The ecological challenge of the new millenium. IN: FREITAS, Maria de Lourdes Davies
de.(coord.) Amazonia Heaven of a new World. Rio de Janeiro: Campus, 1998. p 219-234.
147 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
eleitoral. O resgate histórico das discussões sobre este tema,
ocorridos sob influência emotiva ou político-ideológica, mostra que só
se conseguiu produzir argumentos voltados para afirmações míticas
e místicas sobre o poder terapêutico das plantas amazônicas. E
assim, de equívoco em equívoco, foi se construindo um binômio
filosófico-imaginário, que atribui um poder miraculoso aos chás e
infusões, difícil de ser cientificamente comprovado.
Na verdade, se esse poder terapêutico da biota fosse verdadeiro,
tanto os níveis de saúde como a média de vida dos povos da região,
seria similar à dos habitantes dos países com alto grau de
desenvolvimento tecnológico. Mesmo sem usar as estatísticas
regionais4, o observador atento pode ver, através de um simples olhar
pelo entorno, que a qualidade de vida da população amazônica é
muitas vezes inferior à existente nos países classificados como
desenvolvidos.
É claro que a ciência mantém uma grande expectativa sobre os
organismos amazônicos e, no caso de medicamentos, os olhares têm
um brilho de esperança maior, quando se direcionam para os
microorganismos. Ainda que não se tenham comprovações
inequívocas, acredita-se que muitos organismos amazônicos
produzem princípios ativos, potencialmente eficazes no tratamento de
certas patologias.
Todos que conhecem, ou pelo menos tiveram um contato mais
próximo com a vida e a cultura do hinterland amazônico, sabem que
a única esperança de cura para os males que atingem os
desassistidos habitantes do interior da Amazônia, são as plantas e o
conhecimento dos pagés, raizeiros e benzedeiras.
Vêm deles, que acumulam grande parte do conhecimento das
populações indígenas e tradicionais, a quase totalidade das
indicações sobre essas substâncias, embora, no caso de fungos e
bactérias, talvez essa afirmativa não seja verdadeira, já que os
habitantes seculares da região, nunca tiveram muita intimidade com
o uso de organismos microscópicos.
No entanto, para que essas substâncias bioativas, (diga-se, de
passagem, quase todas tóxicas), sejam incorporadas a fórmulas de
medicamentos com aceitação mundial, é necessária a participação de
um enorme contingente de cientistas, executando pesquisas de
elevadíssimo nível científico e tecnológico, com garantia de
financiamento de longo prazo. O fato é que, para produzir um
medicamento que figure nas farmácias do mundo, são necessários 20
4 Censo Brasileiro 2002. www.ibge.gov.br
148 Ozório J. M. Fonseca
a 30 anos de pesquisa, e um investimento cujo montante varia de
algumas centenas de milhões a cerca de um bilhão de dólares.
Um enorme e grave problema social originado na exacerbação
do poder terapêutico da flora, é que os governos têm, hoje, uma
tendência a oficializar dois tipos de tratamento médico para a
população em geral. Um deles, direcionado para os economicamente
abastados, faz uso dos mais modernos métodos diagnósticos e
terapêuticos disponibilizados pela ciência e tecnologia de ponta. O
outro destinado para a porção carente da sociedade, utiliza os
princípios da medicina popular, usando chás e infusões, ministrados
com alta dosagem de insucesso, e folclóricos rituais de magia.
Para muitos, é difícil entender as razões que levam o noticiário
da mídia e algumas entidades ambientalistas a fazerem uma conexão
direta e determinística entre plantas e remédios, entre saúde e biota
amazônica, entre recursos biológicos e indústria farmacêutica. Essa
distorção equivocada, além de sugerir uma única utilidade para os
organismos ainda aduba o terreno para a proliferação de discussões
emocionais e ideológicas, que são extremamente perigosas e
totalmente inadequadas para o equacionamento correto do problema.
Essa passionalidade que surge nos debates sobre a prática de
biopirataria, acaba por direcionar, via de regra, uma parcela de culpa
para as instituições oficiais de ensino e pesquisa, mais
especificamente para os cientistas e pesquisadores que nelas
trabalham. Isso, além de revelar um evidente despreparo intelectual
dos denunciantes e constituir uma calúnia injuriosa e maledicente,
ainda faz ressurgir uma prática que se julgava definitivamente
abolida, pelo menos nos meios intelectualizados: de o denunciado ter
que provar sua inocência.
E assim, o termo biopirataria, por ainda não ter uma clara
definição jurídica, acaba sendo utilizado como veículo para uma
deduragem inconseqüente e ignominiosa, que acaba criando, nos
pesquisadores, um certo receio de exercer, em sua plenitude, as
tarefas pertinentes às suas atividades profissionais.
Esse comportamento descabido, além do efeito deletério sobre a
investigação científica, que é necessariamente uma atividade
globalizada e direcionada para o conforto e bem estar da
Humanidade, ainda provoca danos morais em pessoas que optaram
pelo estudo, em vez utilizar energia, tempo, conhecimento e
inteligência para acumular riqueza, exercendo atividades,
intelectualmente, menos nobres.
149 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
Na Amazônia, especialmente, onde as instituições ainda estão
inadequadamente instrumentalizadas5, e o número de pesquisadores
qualificados é insuficiente para atender a demanda por conhecimento
científico6, a solução mais inteligente é promover o fortalecimento
delas, seja através da divulgação de sua importância, seja
procurando incentivar o estabelecimento de convênios, acordos, e
parcerias nacionais e internacionais 7, 8.
A sociedade precisa saber que a atividade de pesquisa envolve,
obrigatoriamente, a remessa de amostras para o exterior, onde
laboratórios modernamente equipados, sem similar no Brasil fazem,
rotineiramente, análises sofisticadas, imprescindíveis para resolver
problemas científicos de importância vital. Para entender bem essa
questão, é preciso lembrar que, felizmente, a ciência foi a primeira
atividade humana globalizada e que, graças a isso, o conhecimento
flui pelo mundo para ser, paulatinamente, aperfeiçoado. Essa
agregação de saberes é que permite o surgimento de inovações
tecnológicas, que resolvem os problemas de infra e super estrutura,
até mesmo dos países sem muita ciência e tecnologia.
Cientistas, pesquisadores e diretores de instituições oficiais de
ensino e pesquisa são servidores públicos com responsabilidade
pessoal e social, que não usam (salvo raríssimas exceções) meios
escusos para exercer a honrosa missão. Na realidade, a experiência
mostra que, para retirar material biológico da Amazônia, não há
necessidade de estruturas formais. Na era da biotecnologia e da
engenharia genética, tudo que se precisa, para reproduzir uma
espécie, são algumas células facilmente levadas e dificilmente
detectadas, por mecanismos de vigilância e segurança.
O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de
maquiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e costuras
das roupas, enfim, há milhares de maneiras de esconder fragmentos
de tecidos, culturas de microorganismos, minúsculas gêmulas ou
diminutas sementes, sem que seja necessário, sequer, o uso de muita
criatividade.
Além disso, não se pode esquecer que o comércio legalizado de
plantas, mais ou menos beneficiadas pela indústria de fitoterápicos,
150 Ozório J. M. Fonseca
5 VAL, Adalberto. C&T na Amazônia: ontem, hoje e amanhã. LIIIª Reunião Anual da SBPC, Salvador, 13-18 de junho
de 2001.
6 MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Brasília: MMA/SCA, 1996
7 ARAGÓN, Luiz, E. Desenvolvimento Sustentável e Cooperação Internacional. IN: XIMENES, Tereza (org).
Perspectivas do Desenvolvimento Sustentável. Uma contribuição para a Amazônia 21. Belém:UFPA, 1997. p
577-604.
8 MCT. O INPA como Centro de Excelência em pesquisas na Amazônia. Brasília:MCT, 1993. Relatório da Comissão
de Alto Nível Constituída pelo MCT/PR
disponibiliza fragmentos e extratos vegetais, que podem ser
adquiridos em mercados, feiras e mesmo em lojas dos sofisticados
Centros de Compras podendo ser levados, sem nenhuma restrição.
Quanto às práticas delituosas ou criminosas que caracterizam
a biopirataria, elas podem ser praticadas em qualquer ponto dos
cinco milhões de quilômetros quadrados da Amazônia, que estão
disponíveis para receber a visita autorizada de vários tipos de
pessoas, entre as quais se incluem turistas, empresários, estudantes,
missionários de várias seitas e religiões, jornalistas de periódicos do
mundo inteiro, equipes de cinema e televisão, dirigentes e membros
de ONGs nacionais e internacionais, agentes comerciais, curiosos,
etc.
E existem ainda as visitas não autorizadas de contrabandistas,
narcotraficantes, bandoleiros internacionais, etc., que podem
transpor os 12.220 quilômetros de fronteira terrestre e os 1.428
quilômetros de limites oceânicos, onde a fiscalização é quase nula,
embora seja heróica onde é exercida9.
Adicione-se a esse contingente de peregrinos e nômades
constantes e eventuais, os cerca de 21 milhões de habitantes dos
nove Estados da Amazônia Legal ou mesmo os cerca de 13 milhões
que habitam os sete Estados da Região Norte10, todos absolutamente
livres para ir e vir. Esse conjunto de realidades cria um universo
infinito de possibilidades, onde o combate à retirada ilegal de nossos
recursos biológicos, se torna uma tarefa quase impossível.
A saída através dos aeroportos das capitais tem alguma chance
de ser detectada, mas todos os municípios da Amazônia possuem
pistas de pouso usadas por pequenos aviões que decolam sem
qualquer proteção ou fiscalização dos órgãos de qualquer nível de
governo. E, para complicar ainda mais o problema, a destruição de
pistas clandestinas, embora importante, não resolve o problema, pois
já inventaram o hidroavião.
É clara a necessidade de incrementar a fiscalização nos
aeroportos de forma a poder apreender, se possível, todo o material
biológico indevidamente retirado dos nossos sistemas naturais. O que
não se deve é transformar cada prisão de acusados, contraventores
ou criminosos, em uma verdadeira histeria de políticos da turma do
“eu acho”, que se aproveita desses fatos para inflamar seus eleitores,
sabendo que isso toca, profundamente, o ufanismo inculto e provoca
arroubos de patriotismo insano.
151 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
9 www.ibge.gov.br
10 Censo do Brasil 2002. www.ibge.gov.br
Aqui, uma outra e grave questão precisa ser refletida. Será que
muito pior do que a retirada não autorizada de alguns exemplares da
fauna e da flora amazônica, não é a queimada de nossas florestas,
feitas por brasileiros, que destrói, anualmente, milhares de hectares
de floresta? Não será essa perda irreparável de informação genética,
muitas vezes mais danosa aos interesses do país do que a
biopirataria?
As variáveis são inúmeras e difíceis de serem todas
enumeradas, mas uma delas, relacionada aos recursos hídricos
precisa ser evidenciada, pois, inexplicavelmente, passa
desapercebida ou ignorada. As estimativas indicam que a Amazônia
possui cerca de 20% da água potável do Planeta e os trabalhos
científicos revelam a existência de uma diversidade da biota aquática
tão grande quanto nos sistemas terrestres11.
No rio Negro, aqui usado como exemplo emblemático, existe, de
forma abundante, uma espécie de bactéria denominada
Chromobacterium violaceum, que foi um dos primeiros organismos a
terem seu genoma determinado no Brasil. Sua importância está
ligada à produção de violaceina, uma substância bioativa altamente
promissora, que está sendo objeto de estudos avançados para sua
utilização como antibiótico e na terapia de algumas outras patologias.
Um estudo sobre sua incidência natural, realizado em 1976,
revelou que essa espécie representava, aproximadamente, 60% da
microflora bacteriana do rio Negro, e esse trabalho foi apresentado na
XXIXª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, realizada em São Paulo, em 1977 12.
Esse dado biológico da maior importância, não é levado em
conta pelos patrulheiros da biodiversidade, quando barcos e navios
brasileiros e estrangeiros, que aqui aportam, autorizados ou não,
enchem seus tanques com enormes quantidades de água in natura,
do Negro e do Solimões-Amazonas.
Note-se e anote-se, que essa apropriação de um recurso mineral
líquido, escasso, essencial e mal distribuído no Planeta (exatamente
como o petróleo) é feita sem qualquer restrição, sem qualquer
processo de filtragem, sem qualquer controle biológico e sem
qualquer manifestação dos denuncistas. E, para agravar o quadro da
delinqüência, a retirada abusiva desse recurso mineral, não envolve
152 Ozório J. M. Fonseca
11 ARAUJO LIMA, Carlos; PIEDADE, Maria Tereza; BARBOSA, Francisco. Water as a major resource of the Amazon. IN:
FREITAS, Maria de Lourdes Davies (coord.) Amazonia Heaven of a New World. Rio de Janeiro: Campus, 1998. p.55-
76.
12 GUARIM, Vera Lúcia Monteiro dos. Chromobacterium violaceum nas águas do Rio Negro. XXIXª Reunião Anual da
SBPC. São Paulo, julho de 1977.
qualquer pagamento, seja pelo justo preço, seja pelo justo tributo
indicado pelo Princípio Usuário Pagador.
Além de usar nossa jazida mineral sem qualquer
constrangimento, eles retiram também bactérias, fungos, vírus,
protozoários, algas e animais planctônicos, larvas de peixes, peixes
pequenos, enfim, uma enorme quantidade de organismos aquáticos e
seus conteúdos genéticos, todos capturados e levados pelos navios
cargueiros e de turismo.
Essa água, livremente coletada, tanto pode ser tratada para o
consumo interno da tripulação e dos passageiros, como pode servir
apenas de lastro, já que a importação de cabotagem é muito maior
que a exportação. Vale dizer ainda, sobre esse aspecto específico, que
todos os navios transoceânicos possuem laboratórios montados em
seu interior, e que a tripulação é composta por pessoas que ninguém
sabe quem são, de onde vêm, qual a capacitação real e para quem,
realmente, trabalham.
O combate a biopirataria, que é aqui definida como atividade
idealmente ilegal e moralmente condenável, parece ser uma questão
puramente policial. As causas, como em qualquer atividade
criminosa, é que precisam ser combatidas ou anuladas e, no caso
específico da retirada ilegal de organismos, a prevenção só tem dois
caminhos: 1) fazer primeiro, investindo pesadamente em Ciência e
Tecnologia e anulando as discrepâncias regionais na alocação de
recursos; 2) negociar e implantar, efetivamente, um Acordo
Internacional, que proíba o patenteamento de substâncias cuja
origem não esteja perfeitamente identificada. Para o primeiro
mecanismo não temos recursos nem pessoal qualificado, e para o
segundo não temos força política nem prestígio internacional real.
Do ponto de vista da regulamentação do problema, espera-se
que o Congresso Nacional aprove, rapidamente, uma legislação
moderna e específica, mas evidentemente, isso só não resolve.
O exemplo mais evidente de que normas, por si só, não são
suficientes, é a recente Portaria 001/03 editada, no início do período
das queimadas deste ano de 2003, e assinada conjuntamente pela
Fundação Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso e IBAMA,
proibindo o fogo em Mato Grosso até setembro de 2003. A natureza
inócua desse ato proibitivo foi revelada no dia 09/09/03, pelo site de
um jornal matogrossense13: “...Mato Grosso, entre janeiro a agosto,
registrou 33.257 focos de calor, alcançando o primeiro lugar absoluto
em queimadas, seguido pelo Estado do Pará com 10.525 focos”.
13 www.diariodecuiaba.com.br – consulta em 09/09/2003
153 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
A colonização, posse e uso do solo, na Amazônia, precisa ser
estudada e avaliada por caminhos que se estendem além da
legalidade, pois está muito claro, desde muito tempo, que
incendiários da floresta não respeitam leis, nem governos e muito
menos governantes.
O fiat lux da difícil problemática amazônica é o investimento em
Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação, cuja realidade histórica
tem distorções inaceitáveis. Faz muito tempo que o país destina
apenas algo em torno de 1% do Produto Interno Bruto para o setor e,
desse irrisório volume de recursos, só cerca de 1% é direcionado para
a Amazônia14, 15.
Como os quantitativos dos orçamentos raramente têm uma
correspondência com a liberação efetiva de dinheiro sonante, o fluxo
financeiro se torna ainda mais insuficiente. Os contingenciamentos
das verbas orçamentárias, todos sabem, atingem, de forma insana, a
pesquisa científica e tecnológica e o financiamento de bolsas de
pesquisa e de pós-graduação.
Para minimizar essa distorção é necessário adotar, como
princípio de justiça na distribuição de recursos, critérios de
proporcionalidade que tanto pode ser a da relação entre população e
número de bolsistas, como a razão entre o PIB regional e o volume de
recursos destinados à pesquisa.
Hoje, a Amazônia abriga cerca de 12% da população brasileira
e contribui com cerca de 7% para a formação do PIB nacional. O
melhor critério de justiça seria que a Amazônia tivesse cerca de 12%
dos bolsistas pagos pelo CNPq e CAPES, e que para cá fossem
destinados aproximadamente 7% dos recursos nacionais destinados,
no orçamento federal, para C&T.
Essa falta de investimento tem conseqüências graves, tanto na
disponibilização de informação qualificada, importante para a correta
utilização dos nossos recursos naturais, como na formação de
recursos humanos com nível adequado às necessidades regionais 16.
Um levantamento, feito por pesquisadores do INPA e apresentado na
reunião LIIIª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência em 200317, revelou que a Amazônia possui apenas 600
doutores, distribuídos pelas Instituições de Ensino e Pesquisa,
154 Ozório J. M. Fonseca
14 FONSECA, Ozório José de Menezes; VAL, Adalberto Luiz. Recursos para pesquisa e desenvolvimento.
Manaus:INPA, 1999. 24p. Relatório Técnico apresentado à Câmara Setorial de Agropecuária da SUFRAMA;
15 DINIZ, Wanderley Cristovam Picanço. Universidades da Amazônia Brasileira: O pecado e a penitência. Belém:
UFPA, 1996.
16 BARROS, Fernando Antonio Ferreira de. Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil.
Brasília: UnB, 1999.
17 VAL, Adalberto Luiz. op.cit
muitos dos quais, por causa dos baixos salários, trabalham em mais
de uma IES.
O cálculo é inevitável. Para 5 milhões de quilômetros
quadrados, existem 600 doutores, ou seja, um doutor para cada
8.333 quilômetros quadrados ou cerca de 833 mil hectares. Pensando
que a duração da vida profissional, após a titulação, não ultrapassa
35 anos, e como esse quantitativo não se modifica significativamente
18,19,20, faz muito tempo, pode-se afirmar que cada doutor têm a
obrigação de liderar e/ou estudar mais ou menos 65 hectares por dia,
em projetos que precisam incluir da atmosfera superior ao subsolo.
E como a vida é curta e a Amazônia imensa, essas tarefas
devem ser exercidas durante as 24 horas de todos os dias, sem direito
a finais de semana, feriados, férias, etc. Para dias com menor duração
de jornada de trabalho, o cálculo, evidentemente, é outro.
Não se pode esquecer, também, que biopirataria não é uma
questão exclusivamente amazônica, pois a Mata Atlântica, por
exemplo, possui enorme diversidade biológica. Apesar disso, não
existe fiscalização muito severa, e não se ouvem denúncias sobre os
projetos desenvolvidos nas instituições do sul e sudeste.
Até parece que o fato dessas regiões receberem mais de 90%
dos recursos nacionais para C&T, desencadeou a criação de uma
ambiência de honestidade, que impede a remessa ilegal de material
biológico para o exterior, inclusive de amostras coletadas na
Amazônia.
Há ainda um outro componente dessa difícil questão, sobre o
qual é preciso refletir. Parece claro, e perfeitamente aceitável, até
mesmo pelos mais empedernidos partidários do xenofobismo, que os
recursos naturais da Amazônia precisam ser exportados, para gerar
riqueza e bem estar para as populações locais 21.
Para os mais lúcidos, a inserção da Amazônia no comércio
internacional é imperiosa, não sendo admissível que ela fique restrita
a vender seus produtos apenas para o mercado interno. Até porque
haveria necessidade de proibir os empresários do outras regiões
brasileiras de revender esses produtos para o mercado externo, num
processo triangular irracional, indesejável e que não resolve
absolutamente nada.
155 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
18 FONSECA, Ozório Jose de Menezes Fonseca. Guia de Referência dos Pesquisadores do INPA. Manaus:INPA, 1994,
19 UFMA. Guia de Referência dos Pesquisadores das Universidades da Amazônia Legal. São Luiz: PIUAL. 1996.
20 FONSECA, Ozório José de Menezes Fonseca; FERREIRA, Efrem Jorge Gondim. Guia de Referência dos Pequisadores
do INPA. Manaus:INPA. 1998.
21 BENCHIMOL, Samuel. Exportação da Amazônia brasileira 1997. Manaus: Valer, 1998
Aceita a comercialização dos produtos como atividade
econômica importante e desejável, não se pode esquecer que os
compradores externos podem mandar analisar os produtos que
adquirirem por compra, e sobre os quais passam a exercer o direito
de propriedade.
Há muitos exemplos a serem considerados nesse caso. Como
evitar, por exemplo, que os pigmentos dos peixes ornamentais, que
fazem parte da carteira de exportação, sejam investigados em
laboratórios de pesquisa de qualquer instituição do Planeta? Que
substâncias bioativas existirão nos frutos regionais, nas plantas
ornamentais e nas madeiras que são exportadas? Quantos outros
exemplos existirão associados aos produtos naturais retirados da
floresta e colocados no comércio nacional e internacional?
Evidentemente a riqueza biológica e genética da Amazônia precisa ser
defendida, mas esse princípio não pode conduzir a um isolamento,
nem fazer surgir uma absurda reserva de mercado de seus produtos.
Claro que o problema não pode ser deixado solto, caminhando
apenas pelas vias determinadas pelos interesses de empresas e
nações, ou deixado sob o controle dos mecanismos do mercado.
Na esfera internacional é indispensável o fechamento de
acordos que proíbam registros e patenteamento de organismos, de
suas partes e dos produtos derivados de seu metabolismo, se a
origem e a forma de obtenção não estiverem absolutamente claras.
Também é necessário garantir o direito de propriedade intelectual das
populações que geraram o conhecimento, para que não haja também
uma pirataria cultural, tão repugnante quanto o bucaneirismo
biológico. E há ainda as questões ligadas à ética e biosegurança, que
são um outro capítulo desse complicado problema.
No ambiente interno, algumas providências são prementes e
devem apenas começar pela definição de uma legislação que organize
adequadamente o setor. Na face econômica, é indispensável a criação
de um parque industrial, tecnologicamente moderno, direcionado
para processar a biota e seus produtos22, de forma a garantir um alto
índice de valor agregado, indispensável para a construção de uma
sociedade moderna de biomassa23, preconizada pela primeira e
inteligente versão da “Agenda Amazônia 21” editada em 1997 24.
Na face educacional, científica e tecnológica, essa tríade que
contém importantes elementos portadores de futuro, é indispensável
156 Ozório J. M. Fonseca
22 MMA. Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o uso sustentável da biodiversidade da Amazônia.
Proposta básica. Brasília:MMA, 1997.
23 SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamnd, 2000.
24 MMA. Agenda Amazônia 21. Bases para discussão. Brasília: MMA/SCA, 1997
a alocação de recursos e a formação de parcerias boas, leais e legais,
que serão tão melhores e tão mais leais e legais, quanto mais
fiscalizadas e melhor acompanhadas, de forma competente, por
cientistas, pesquisadores e técnicos de alto nível.
Mesmo que o Brasil consiga realizar todas essas façanhas no
âmbito interno, jamais se poderá dispensar a contribuição de
instituições nacionais e internacionais para ajudar a entender e
resolver os problemas da região. Nunca seremos inteiramente autosuficientes
para encontrar soluções cientificamente definidas que
permitam desenhar os caminhos que permitirão a manutenção dos
nossos ecossistemas, que viabilizam e abrigam essa formidável
diversidade biológica amazônica.
Existe, hoje, a certeza de que o futuro da Terra está
intimamente associado e dependente do futuro da Amazônia e esse
postulado deve ser utilizado para a construção de uma base teórica
que tenha fundamentos científicos, densidade social, valores
ambientais, produtividade econômica, instrumentação política, e
denso húmus ético.
Para a construção desse novo modelo, que pode minimizar a
biopirataria internacional, a sociedade brasileira deve ter, como
objetivo essencial, a construção de um desenvolvimento regional
alicerçado em novas e modernas bases 25, 26. A única forma de fazer
isso, solidamente, é construir, com a sociedade, um Projeto de Estado
para a Amazônia, cujos objetivos, prazos e metas, todas de médio e
longo prazo, sejam imunes às aventuras eleitorais e periódicas, muito
próprias dos Projetos de Governo.
Não é possível que, a cada quatro anos, isto é, a cada novo
Presidente ou novo Governador, os planos sejam alterados,
modificados, reestruturados, ou abandonados, pois cada novo grupo,
vem sempre acometido da síndrome incurável do complexo de Pedro
Álvares Cabral, aquele navegante que morreu pensando que o Brasil
começou no dia que ele chegou aqui.
A utilização plena de nossas várias diversidades (cultural 27,
física 28 29, econômica 30, social 31, étnica, biológica, etc.) para construir
157 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
25 CONAMAZ. Política Nacional Integrada para a Amazônia Legal. Brasília: MMA, 1995.
26 MENDES, Armando Dias. Amazônia: modos de (o)usar. Manaus: Valer, 2001.
27 BENCHIMOL, Samuel. Amazônia. Formação cultural e social. Manaus: Valer, 1998.
28 SIOLI, Harald. Amazônia. Fundamentos da Ecologia da maior região de Florestas Tropicais. Petrópolis RJ: Vozes, 1983
29 VEIGA, Tadeu. A geodiversidade e o uso dos recursos minerais da Amazônia. Revista de Estudos Amazônicos. v.1, n.1,
1999. p. 88-107.
30 HANAN, Samuel Assayag; BATALHA, Bem Hur Luttembarck. Amazônia. Contradições no paraíso ecológico. São Paulo:
Cultura, 1999.
31 MORÁN, Emilio. A Ecologia Humana das Populações da Amazônia. Petrópolis RJ: Vozes, 1990.
o futuro, depende da existência de um Projeto de Estado, que deve
estar acima das competências e incompetências dos governos que se
sucedem.
Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação, são os pilares desse
Projeto de desenvolvimento com sustentabilidade e a mais eficiente
arma contra atos de biopirataria. Mas a configuração desse novo
modelo, que deve trazer a marca de propostas e atividades criativas,
requer, também, o estabelecimento de metas ambiciosas, que só
serão atingidas se não houver solução de continuidade, provocada
tanto pela escassez de pessoal altamente qualificado, como pela
quebra de financiamento de longo prazo.
O principal fundamento e objetivo maior desse Projeto de
Estado deve ser o ser humano amazônico, que para enfrentar o
mundo globalizado, precisa ser alçado à uma condição bem mais
nobre do que as que ocupam o cidadão ou o consumidor, fartamente
contemplados nas teorias econômicas do século passado.
E como o ser humano amazônico deve estar em harmonia com
o meio ambiente, é preciso que o modelo inclua a preservação dos
ecossistemas, do patrimônio natural, do patrimônio cultural, e de
todas as suas complexidades funcionais e estruturais.
Só assim se conseguirá promover a melhoria da qualidade de
vida de nossa gente, e perpetuar a ambiência onde se desenrola o
mais formidável espetáculo do fenômeno da vida, no Planeta Terra.
158 Ozório J. M. Fonseca
REFERÊNCIAS
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Nível Constituída pelo MCT/PR
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www.ibge.gov.br
160 Ozório J. M. Fonseca
161 Biopirataria: um problema
(quase) sem solução.
162 Ozório J. M. Fonseca
– PARTE 03 –
TUTELA PENAL DA COBERTURA VEGETAL DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE . . . . .151
(Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .151
1. Considerações introdutórias sobre meio-ambiente e a constituição federal . . . . . . . .152
2. Tutela do bem jurídico ambiental e o direito penal ambiental . . . . . . . . . . . . . . . .157
2.1 O Princípio da legalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .160
3. A Lei 9.605/98 – Lei dos crimes ambientais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .162
3.1 A Tutela penal da cobertura vegetal de preservação permanente . . . . . . . . . .166
3.1.1 Considerações acerca dos artigos destacados, o código florestal e
a legislação local . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .169
3.1.1.1 O Código Florestal e as Florestas de Preservação Permanente . . . .169
3.1.1.2 Legislação do Município de Manaus Acerca de Áreas e Florestas de
Preservação Permanente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .175
4. Considerações finais e aplicação na prática judicial em Manaus-Amazonas . . . . . . . .179
REFERÊNCIAS: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182
ASPECTOS JURÍDICOS DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA NA CIDADE DE MANAUS . . .201
(Fábio Pacó de Matos, João Francisco Wanderley da Costa,Raimundo Sérvulo Lourido Barreto)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201
1. ASPECTOS GERAIS DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .203
1.1 Dinâmica da constituição dos centros urbanos: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .203
1.2. Conceito de Poluição Atmosférica: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .205
1.3. Tipos de poluentes: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .206
1.4. Classificação física dos poluentes atmosféricos: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .207
1.5. Fontes, impactos e efeitos da Poluição Atmosférica . . . . . . . . . . . . . . . . . . .207
2. ASPECTOS JURÍDICOS DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA NA CIDADE DE MANAUS . . . . . . . .210
2.1. Evolução do processo de urbanização e os problemas ambientais gerados: . . .210
2.2. Fontes localizáveis de poluição atmosférica: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .214
2.3. Danos ao patrimônio ambiental artificial: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .216
2.4. Legislação aplicável: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219
2.4.1. Fixação dos Padrões de Qualidade do Ar: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .220
2.4.2. Legislação Aplicável às Fontes Fixas de Poluição Atmosférica: . . . . . . .222
2.4.3. Legislação Aplicável às Fontes Móveis de Poluição Atmosférica: . . . . . .224
2.4.5. Crime de poluição atmosférica: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227
163 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
2.5. Da responsabilização, em caso de dano, dos agentes causadores de Poluição
Atmosférica: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227
2.6. Ações do Poder Público: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .228
2.7. Das medidas preventivas e mitigadoras passíveis de implementação: . . . . . . .233
3. CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .234
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .236
FLAT TROPICAL – MANAUS UM ESTUDO DE CASO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .231
(Carla Brum Carvalho)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .231
1. Patrimônio natural e seu enquadramento urbano:
“Flat Service – Hotel Tropical” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .236
1.1 Apresentação do caso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .236
2. Panorama legislativo ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .238
3. Localização e descrição do Local de Implantação “Flat-Tropical” codinome dado ao
“Tropical Executive And Residence Hotel “ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .244
3.1 Área de Preservação Permanente: conceito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .244
4. Ator ambiental: Flat – Tropical. O Direito Privado e Privativo e competência
em matéria ambiental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .247
5. O Direito transindividual aos bens ambientais – conclusões . . . . . . . . . . . . . . . .250
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .257
ANEXOS — Certidões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .259
164 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação
Permanente
Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho1
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo analisar alguns dos
instrumentos jurídicos utilizáveis para a tutela
penal do meio ambiente, centrando o foco de nossa atenção no bem
ambiental floresta, mais especificamente aquelas definidas em lei
como de preservação permanente e nos diplomas legais a elas
relacionados com ênfase ao Código Florestal, a Lei de Crimes
Ambientais e a legislação municipal no que guardar relação com o
tema.
O trabalho não tem por objetivo apresentar um estudo do meio
ambiente em si, limitando-se a abordar noções gerais acerca deste
tema, bem como acerca dos princípios e institutos informadores do
Direito Penal e Direito Penal Ambiental, de modo a estabelecer as
premissas e fundamentos norteadores da abordagem desenvolvida.
A análise do tema foi desenvolvida ao longo de quatro capítulos,
elaborados a partir de pesquisa na literatura específica, sem
pretender esgotá-lo, mas suscitar reflexões e debates.
O trabalho está baseado em bibliografia nacional, mencionando
apenas as obras consultadas que foram de grande relevância para a
pesquisa. A jurisprudência pátria foi igualmente cotejada, pois
1 Mestranda do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
165 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
corresponde à manifestação concreta do direito analisado e aplicado
às situações fáticas levadas ao Judiciário no exercício de seu poder
jurisdicional.
No último capítulo, estão esboçadas as conclusões do presente
trabalho.
1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE MEIO
AMBIENTE E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A Constituição representa a norma superior a qual todas as
demais previsões legais devem adequar-se, sob pena de terem sua
eficácia, e a própria existência, fulminada através dos filtros de
controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, previsto no
arcabouço jurídico pátrio.
Assim é que no Brasil, cabe a Magna Carta apontar e delimitar
o alcance da normatização jurídica, sendo por óbvio nela que
encontramos o fundamento da tutela jurídica de direitos e garantias
que ela expressamente cuidou de explicitar.
Neste sentido, destacamos, por ser o foco do presente trabalho,
a tutela ambiental, mais especificamente o meio ambiente e seu
objeto, o bem ambiental, atualmente erigido a direito e garantia
constitucional. Sem dúvida posição de vanguarda adotou o
Constituinte brasileiro ao contemplar o meio ambiente com capítulo
próprio e abrangente, dotando-nos de instrumentos materiais e
processuais visando a sua proteção.
O art 225 da Constituição de 88 dispõe que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia
qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as futuras gerações.
Importantes lições e profundas alterações propiciam o caput
deste artigo, causando verdadeira inovação em conceitos que
repercutindo juridicamente, introduziram e solidificaram na
sociedade visão diferenciada acerca deste “novo bem”. A primeira a
ser destacada deve ser a constitucionalização do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, seguido do não menos
importante conceito de ser ele um bem pertencente a todos, a cada
um e a ninguém individualmente, ou quiçá, um bem cuja propriedade
166 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
é ao mesmo tempo individual e comunitária, no sentido de permear
toda a sociedade.
Como destacou a Professora Cristtiane Derani, não há que se
negar aos bens ambientais a condição de Patrimônio, na medida em
que se entenda este como o conjunto de direitos sobre algo, podendo
estes direitos estar relacionados a propriedade (pública, privada,
coletiva), ou a interesses de sujeitos que não guardam vínculo de
posse ou propriedade com o bem. Revela-se necessário informar o
sentido com que se trabalha a questão do Patrimônio Ambiental
estabelecendo ser este formado por direitos relacionados a sujeitos
que tem interesse no bem e no meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Há então uma nova categoria de bens sobre os quais recaem
direitos e interesses de todos e não apenas de seus detentores, a
qualquer título, uma vez que nem todos os bens podem ser
individualmente apropriáveis, sendo, entretanto, considerados como
tal para efeito de constituir o bem ambiental.
Rompe-se aqui a compartimentação até então sedimentada de
bem propriedade, seja ele de natureza pública ou privada, para
adentrarmos ao novo mundo dos bens pertencentes à coletividade,
incumbindo-se, portanto, a ela, e não mais apenas ao Poder Público,
o dever/direito de defendê-lo. Aqui, mais uma inovação,
comprometendo a própria sociedade com a sua qualidade de vida,
pela defesa do patrimônio ambiental, no sentido exposto acima.
Este comprometimento assume proporções gigantescas com a
necessidade de garantir-se a sadia qualidade de vida não só das
gerações presentes como também das gerações futuras. Curial
destacar a visão antropocêntrica do meio ambiente, tratado não como
a defesa dos recursos naturais aí incluídos a flora, a fauna e os
recursos naturais, de per se, mas na medida em que se constituem
bem fundamental a garantia da sobrevivência da espécie humana,
destinatário último da tutela constitucional.
Ao cuidar do homem, como centro da questão ambiental, ao
invés de restringir seu campo de abrangência, o direito ambiental
espraiou-se para searas antes apenas resvaladas, impondo
visualizar-se e apreender-se o verdadeiro sentido de meio ambiente,
adicionando ao já conhecido e familiar meio ambiente natural, este
entendido outrora como a defesa da natureza (flora, fauna, rios), a
preocupação com os, doutrinariamente denominados, meio ambiente
cultural e artificial, de modo a disciplinar as ações do Homem sobre
167 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
o meio ambiente em suas diversas acepções, buscando minimizar os
impactos ambientais delas decorrentes.
Por certo que se esta conduta impactante/degradadora
representava a própria essência da atuação humana, não se pode
negar a conscientização da necessidade de mudança deste
paradigma. Revelada quer pela premência das novas situações de
catástrofes ambientais, quer pela apreensão de novos valores
impregnados a partir de uma visão de responsabilidade social, foi
sem dúvida a incubadora onde foram gestadas as bases de uma nova
legislação protetiva ao meio ambiente, por vezes de modo tímido, mas
não menos importante no somatório para a construção do Direito
Ambiental Brasileiro.
Neste sentido, verifica-se que a Carta Política não se contentou
com estas primeiras e importantes determinações. Ciente da
precariedade da conscientização da importância deste novíssimo
direito, o legislador constituinte faz incluir a obrigatoriedade da
promoção da educação ambiental, instrumento fundamental ao
progresso real de um povo e da nação onde ele habita. Dispôs ainda
acerca de outros instrumentos garantidores da efetividade dos
preceitos enunciados no caput do citado artigo, ao tempo que
estabeleceu a responsabilização civil, penal e administrativa das
pessoas físicas e jurídicas que atentassem contra o meio ambiente.
Dimensionar o alcance de tal preceito é tarefa que transcende
nossa capacidade intelectiva, pois todos nós operadores do Direito
somos conhecedores das infindáveis discussões e das conflitantes
jurisprudências acerca da responsabilização da pessoa jurídica na
esfera cível, imagine na esfera penal. A clareza meridiana do comando
constitucional colocou uma pá de cal sobre as pretensões daqueles
que buscavam escudar-se nas ficções jurídicas, como define a
doutrina a pessoa jurídica para, quer pela ação quer pela omissão,
lesar o bem jurídico ambiental.
E como podemos definir o bem ambiental? Qual a sua
característica? Para tal valemo-nos do ensino do professor Celso
Antonio Pacheco Fiorillo2 que define: “O bem ambiental é, portanto, um
bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e
qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais, e ainda, um bem
essencial à qualidade de vida”.
Destaca ainda com propriedade o ilustre mestre que deve se
entender como vida saudável, aquela que contemple a satisfação dos
direitos fundamentais positivados, entre eles, o da dignidade da
168 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
2 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 3. ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p.53.
pessoa humana, que passa pela concretização dos direitos sociais
elencados no art. 6o, no qual vislumbra o estabelecimento do que
denomina de piso vital mínimo, assim entendido os direitos básicos,
indispensáveis a sadia qualidade de vida.
Ao tratar do bem ambiental, como já destacamos, a
Constituição concebeu uma nova categoria de bem, uma vez que o
tratou de forma distinta do bem público e do privado, atribuindo sua
titularidade a coletividade, cabendo ao Poder Público, nas suas
variadas expressões e esferas de competência gerenciá-lo, não como
seu proprietário, mas como gestor, positivando, assim, a existência
do bem ambiental como bem juridicamente tutelado, a teor do que
dispõe o Art. 129, inciso III, da Constituição Federal, ao especificar
ser função institucional do Ministério Público a promoção da Ação
Civil Pública para proteção do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos.
Se como destacamos a nova Carta de 88 inovou na
conceituação do bem ambiental, ela não foi o primeiro texto a tratar
explicitamente do tema. Tal primazia em nosso sistema normativo
coube sem dúvida a Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente) que embora anterior à nova ordem constitucional, foi por
esta recepcionada, que enuncia definições fundamentais para a
tutela ambiental, seja ela cível ou penal.
Define este importante diploma legal, meio ambiente,
degradação ambiental, poluição, recursos ambientais possibilitando
assim pela identificação do fato a apreensão do fenômeno e a
atribuição da responsabilidade, civil, penal e administrativa, àquele
que lhe deu causa, ao tempo em que estabelece sanções pelo
descumprimento de obrigações inclusive aos entes públicos quer por
ação como por omissão.
Espetacular inovação no campo da responsabilidade trouxe
este diploma legal ao estabelecer a responsabilidade objetiva em sede
de direito ambiental como expressa no Art. 14, § 1o, vislumbrando
aqui a doutrina, com propriedade, a primeira manifestação legal no
sentido de conferir titularidade ao Ministério Público para a tutela
protetiva do meio ambiente, o que veio a ser corroborado pela Lei da
Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), pela Constituição Federal de 88, o
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a Lei de Crimes
Ambientais (Lei 9.605/98) dentre outros diplomas legais.
Entretanto, a busca de disponibilizar meios para a tutela dos
bens ambientais não é tão recente, remonta aos primórdios de nossa
história com as Ordenações Manuelinas que introduziram uma
169 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
rigorosa defesa das florestas, não com cunho ecológico ou
ambientalista, mas em razão da exploração florestal voltada ao
comércio, prática fundamental da economia à época. Esta tutela
inicial propiciou o desenvolvimento de uma série de normas ao longo
de nossa história até chegarmos a instituição do primeiro Código
Florestal em 1934, sendo hoje tal papel desempenhado pela Lei 4.771
de 15/09/65 com as modificações que lhe foram introduzidas ao
longo dos anos, e cuja pequena parte será objeto de nosso estudo, ao
par com a Lei de Crimes Ambientais, temas sobre os quais
reservamos uma abordagem mais detalhada em tópicos específicos,
deste trabalho.
Filiamo-nos a corrente que entende tratar-se o Direito
Ambiental de um direito autônomo, com princípios próprios, objeto
individualizado e distinto, constitucionalmente tutelado dotado de
normas infraconstitucionais modernas e efetivas, que ao permearem
os demais ramos do direito, possibilitam a proteção material e
processual do meio ambiente.
Assim, trazemos a lume, a supedanear o entendimento por nós
esposado a brilhante colocação do Professor Paulo de Bessa
Antunes3, que passamos a transcrever:
As normas ambientais tendem a se incrustrar em cada uma das
demais normas jurídicas, obrigando a que se leve em conta a proteção
ambiental em cada um dos demais ‘ramos’ do Direito. O Direito
Ambiental penetra em todos os demais ramos da Ciência Jurídica. Os
direitos que vem surgindo recentemente, sobretudo a partir da
década de 60 do século XX, são essencialmente direitos de cidadania,
ou seja, direitos que se formam em decorrência de uma crise de
legitimidade da ordem tradicional. O movimento de cidadãos
conquista espaços políticos que se materializam em leis de conteúdo,
função e perspectivas bastante diversos dos conhecidos pela ordem
jurídica tradicional. O Direito Ambiental inclui-se dentre os novos
direitos como um dos mais importantes.
O Direito Ambiental trata da conservação das relações entre o
ser humano e a natureza, sendo o homem natureza em si, como se
depreende dos ensinamentos da professora Cristiane Derani, que se
utiliza deste conceito para fundamentar a visão de comunhão entre o
Direito Ambiental Natural e Cultural, afirmando que aquele é definido
por este na medida em que a norma protetiva representa, no
momento de sua criação os valores culturais, a cultura do povo.
170 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
3 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 24.
Nesta esteira de pensamento voltamo-nos para a vontade
protetiva consubstanciada na norma sancionadora, adentrando-se o
campo do Direito Penal e sua repercussão no Direito Ambiental,
construindo o ramo denominado de Direito Penal Ambiental que
representa a concretização da vontade social de impor limites às
condutas humanas degradadoras do meio ambiente com a cominação
de sanções aqueles que transgredirem estes ditames.
Estabelecemos assim os fundamentos conceituais e
doutrinários que nortearão a abordagem a ser desenvolvida sobre o
meio ambiente (art. 225 da CF) e alguns dos instrumentos jurídicos
utilizáveis para sua defesa judicial, centrando o foco de nossa
atenção no bem ambiental floresta, mais especificamente aquelas de
preservação permanente e nos diplomas legais a elas relacionados,
neste caso o Código Florestal, a Lei de Crimes Ambientais e algumas
leis municipais.
2. TUTELA DO BEM JURÍDICO AMBIENTAL E O DIREITO
PENAL AMBIENTAL
A partir das últimas décadas é que o homem parece ter se
apercebido da verdadeira dimensão da questão ambiental, passando
a reconhecer a necessidade de conservação do meio ambiente, tanto
para si como para assegurar o futuro da humanidade. A preocupação
com a questão ambiental pode ser considerada nova quando
comparada à própria existência do ser humano como elemento
modificador do planeta, para satisfação de suas necessidades.
Este despertar de consciência estabelece uma nova relação
HOMEM X NATUREZA, antes fundada no binômio DOMINADOR X
DOMINADO, substituindo-a pela relação de respeito e
interdependência, reconhecendo que o verdadeiro progresso não se
dá com as conquistas econômicas, mas que estas devem estar
associadas aos valores inerentes a sustentabilidade de tal atividade
econômica, assim entendido o equilíbrio entre desenvolvimento e
preservação ambiental cunhando-se o chamado desenvolvimento
sustentável, este sim representativo da compatibilização destas duas
questões que constituem o cerne da civilização moderna economia e
meio ambiente.
Neste sentido, o texto constitucional de 1988 confirmou a
tendência mundial de zelo para com as questões ambientais
determinando que a todos é garantido o direito ao meio ambiente
171 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
ecologicamente equilibrado, de uso comum do povo e fundamental
para a existência de uma saudável qualidade de vida, impondo poder
público e à coletividade, a defesa e a preservação ambiental para as
presentes e futuras gerações, nos exatos termos do art. 225 da Magna
Carta.
Trazemos a lume as ponderações do constitucionalista José
Afonso da SILVA4, sobre o tema:
As normas constitucionais assumiram a consciência de que o
direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais
do homem é que há de orientar toda a forma de atuação no campo da
tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor
preponderante que há de estar acima de quaisquer considerações
como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de
propriedade, como as da iniciativa privada. Também são garantidos
no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar
sobre o direito fundamental à vida que está em jogo quando se
discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental
no sentido de que, através desta tutela, o que se protege é um valor
maior: a qualidade da vida humana.
De modo a conferir efetividade maior a esta tutela estabeleceu
o constituinte no § 3° do referido art. 225 a responsabilização nas
esferas civil, penal e administrativa, dos responsáveis por condutas
lesivas ao meio ambiente.
A doutrina penal brasileira já reconheceu a existência de bens
jurídicos de natureza coletiva, meta-individuais, enfatizando ser esta
caracterização necessária para que se apreenda a necessidade de
mudanças e adaptações necessárias ao sistema penal de modo a
prestar uma adequada proteção a sociedade na área dos interesses
difusos, dentre os quais inclui-se o meio ambiente.
Nesta esteira o ensinamento de Eugenio Zaffaroni, apud
Gianpaolo Smanio5, que ao mesmo tempo em que afirma não existir
diferença qualitativa entre bens supra-individuais e bens individuais,
reconhece a existência de bens jurídicos de sujeito múltiplo, de forma
que um não possa dispor do bem individualmente sem que afete a
disponibilidade do outro.
Por certo que o meio ambiente é bem merecedor de tutela penal,
uma vez que se trata de um bem jurídico de especial transcendência
cuja proteção resulta essencial para a própria existência do ser
humano e em geral, da vida, o que justifica lançar mão às mais
172 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
4 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 773.
5 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos. São Paulo: Atlas, 2000, p. 105.
contundentes medidas de proteção proporcionada pelo ordenamento
jurídico.
Segundo o ensinamento de Luiz Regis Prado, bem jurídico
“implica a realização de um valor acerca de determinado objeto ou
situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser
humano”. Sob o ângulo penalístico, Francisco de Assis Toledo leciona
que “bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial,
no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes,
em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico,
em outras áreas extra-penais”.
É entendimento majoritário em nossa doutrina que a
intervenção penal em sede ambiental deve temperar-se com o critério
de ultima ratio do direito penal. Cabe então, às normas não penais
exercer o papel primário preventivo, reservando-se a sanção penal
para o momento posterior uma vez esgotadas todas intervenções
extra-penais (administrativas,cíveis) na proteção ao meio ambiente,
bem jurídico a ser tutelado.
Por certo que antes da Constituição de 1988 já se encontravam
em nosso ordenamento jurídico normas penais esparsas que tinham
por finalidade a tutela de bens ambientais, ressaltando-se, contudo,
que estas não tinham em sua origem a vontade de proteção ecológica
do meio ambiente, que tampouco era visto como um patrimônio
comum a toda a sociedade, consoante expusemos nas considerações
introdutórias. Visualiza-se de forma pontual a necessidade de
proteger ora determinados rios, ora florestas, ora a saúde pública,
mas sem pensar estes bens de forma inteira com suas relações de
dependência, sua titularidade compartilhada pela sociedade
destinatária maior da concretização da tutela almejada.
As sanções como já mencionado encontravam-se tanto no
Código Penal, como em legislações esparsas, enquanto que o novo
ordenamento constitucional, ao visualizar o homem como centro e
parte integrante do meio ambiente, regulava e estabelecia limitações
a sua intervenção sobre este, atingindo inclusive a dogmatizada
propriedade privada, exigindo que esta cumprisse sua função sócioambiental
para legitimar-se como inviolável, estava a exigir uma
sistematização das regras ambientais.
Assim, objetivando regulamentar o referido art. 225 da CF/88,
entrou em vigor, nos seus aspectos penais, a partir de 30/03/1998,
a Lei 9.605/98, conhecida como a Lei de Crimes Ambientais. Este
diploma legal é decorrente da imperativa necessidade de
normatização das condutas que afetavam e afetam o meio ambiente,
173 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
de modo a garantir-se tanto no presente como para o futuro a eficácia
do texto constitucional no que pertine a proteção ambiental.
Deixaremos para capítulo próprio a análise de alguns
dispositivos desta lei que guardam relação com o escopo deste
trabalho, a saber, a proteção da cobertura vegetal em e das áreas
e/ou faixas de preservação permanente, para abordarmos sem
pretensão de exaurirmos os fundamentos do Direito Penal e sua
aplicação ao campo ambiental, destacando dentre outros os
princípios da legalidade e seus corolários, de modo a supedanear a
discussão que é o cerne desta abordagem ponderando-se com base
nestes princípios a efetividade da tutela penal prevista na Lei de
Crimes Ambientais.
2.1 O Princípio da legalidade
Ao mencionarmos tal princípio de pronto nos vem a mente os
ensinamentos primeiros do campo do direito penal resumido no
brocardo jurídico nullum crimen, nulla poena sine legge. Por expressar
a tradução da garantia de valores democráticos, tal princípio tornouse
quase que unanimidade nas Constituições dos países modernos
exceção feitas aqueles totalitários descomprometidos com os
fundamentos do Estado Democrático de direito.
O princípio da legalidade penal é a premissa da teoria da
tipicidade de ERNEST BELING, pois antes de ser antijurídica e
imputável ao autor, uma ação reconhecível como punível penalmente
deve ser típica, amoldando-se a um dos esquemas ou delitos tipos
objetivamente descritos pela lei penal.6
Sem dúvida que este princípio representa o limite ao poder
punitivo estatal, estabelecendo ser função exclusiva da lei, em
sentido estrito, a elaboração de normas incriminadoras a qual
competirá também de forma exclusiva estipular a sanção
correspondente. Por óbvio que o Direito Penal Constitucional pátrio,
abraçou tal princípio como se depreende do art. 5° inciso XXXIX da
CF, impondo assim a descrição precisa e rígida das condutas a que
se pretenda impor carga de ilicitude.
Corolário do princípio da legalidade, o princípio da intervenção
mínima, contempla um sentido ao mesmo tempo orientador e
limitador ao poder do Estado de criar normas penalizadoras, ao
174 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
6 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 253.
estabelecer que a criminalização de condutas só se justifica se esta
for o único meio efetivo para a proteção de determinado bem jurídico.
Ironicamente o que se contempla no Brasil atualmente é a
banalização da norma penal incriminadora como se pudesse assim
substituir a inexistência de uma política pública voltada ao controle
preventivo da criminalidade, esta sim atuação reconhecida como
eficiente desde a época do Iluminismo, que parece não haver atingido
nossos legisladores de modo a abrandar-lhes a vazia sanha
legiferante criminal.
Ainda decorrente do princípio da legalidade temos o princípio
da taxatividade ou da determinação taxativa, que prescreve a
necessidade de clareza da lei na descrição das condutas incriminadas
proibindo incriminações vagas e imprecisas, devendo aprimorar-se a
técnica legislativa de modo a tornar a lei penal clara e precisa para
que possa ter seu conteúdo facilmente entendido pelos seus
destinatários. A eficácia da função garantidora do tipo fica na
dependência da descrição das normas incriminadoras e dos bens
jurídicos valorados.7
O tipo é um paradigma que passa a ser referência para os
operadores do direito. É uma estrutura que decorre do real e que se
articula com o bem jurídico subjacente ao valor cristalizado na
norma. O fundamento jurídico-político para a caracterização de
condutas antijurídicas encontra-se na Constituição que estabelece as
linhas externas do quadro referencial das condutas humanas que
reporta merecerem a reprovação penal.
Neste talante, reafirmando seu compromisso com os
fundamentos constitucionais do direito penal, inequivocamente
adotados na seara ambiental, não é demais mencionar que a doutrina
aponta outros princípios decorrentes do princípio da Legalidade como
o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa ao par com a
proibição da analogia malum parte; o princípio da retroatividade da
lei mais benéfica, da exigibilidade da lei escrita, da legalidade das
penas e das contravenções penais.8
Estas as considerações que consideramos necessárias para a
abordagem que pretendemos desenvolver nos próximos capítulos ao
tratarmos da proteção penal dispensada a cobertura florestal das
áreas de preservação permanente.
175 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
7 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 257.
8 SIRVINSKAS, Luis Paulo. Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes a Lei n. 9605, de 12 de
fevereiro de 1998. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 15/16.
3. A LEI 9.605/98 – LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS
A proteção do meio ambiente revela-se, nos dias atuais, uma
necessidade primordial para a sobrevivência da própria espécie
humana. A ordem constitucional revela a proteção do meio ambiente
como bem jurídico fundamental.
Num Estado Social Democrático de Direito, como sói ser o
Brasil, a tutela penal do meio ambiente constitui uma exigência
irrenunciável de controle do progresso técnico, nascida do
reconhecimento da situação de ameaça do ambiente e da
conseqüente necessidade de uma melhor proteção das nossas
condições de vida. Ao legislador:
Incumbe tentar encontrar o justo equilíbrio entre o progresso
económico e social e o direito fundamental à manutenção e
restauração de um ambiente são. O que poderá fazer apelando
também à técnica e promovendo novos meios ou recursos que
permitam o controlo daquelas actividades que podem causar danos
ou pôr em perigo aquele interesse fundamental.9
Assim após tramitar por sete anos no Congresso Nacional,
tempo durante o qual seu texto sofreu várias e por vezes desastrosas
intervenções de modo a atender interesses de ruralistas, madereiros,
além dos vetos presidenciais, veio incorporar-se ao nosso sistema
jurídico A Lei dos Crimes Ambientais, Lei 9.605 de 12 de fevereiro
de 1998.
Várias críticas foram feitas e se fazem acerca da técnica
legislativa adotada neste diploma legal, mas é forçoso reconhecer que
uma das primeiras vantagens da nova lei foi a consolidação em
grande parte de diversos textos legais que se encontravam esparsos.
Ainda que desta consolidação tenha resultado a revogação parcial na
maior parte dos ordenamentos relativos ao meio ambiente, merece
aplausos o esforço encetado no sentido de reduzir a infinidade de leis
já existentes.
Mas deve ser dito que a nova lei representa avanços
importantes. Entre estes, destaca-se a criminalização de condutas
antes consideradas meras contravenções, representadas por
agressões de diversos graus ou sorte, ao meio ambiente nos seus
múltiplos aspectos e a bens culturais intocáveis. A responsabilização
penal da pessoa jurídica, numa clara demonstração de atualidade
com as novas práticas delitivas, envolvendo interesses que
176 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
9 . MIRANDA RODRIGUES, Anabela. Direito penal do meio ambiente – uma aproximação ao novo direito português.
Revista de direito ambiental, n. 2, p. 15.
transcendem as pessoas individualizadas para alcançar valores
monetários por vezes transnacionais ou internacionais. Doravante,
tais crimes terão conseqüências administrativas, civis e penais, além
de existir a previsão das penas poderem ser aplicadas
cumulativamente.
Dentre as críticas mais recorrentes a lei, podemos apontar a
que reporta-se a norma penal em branco, definida por Mirabete como:
Normas de conteúdo incompleto, vago exigindo complementação
por outra norma jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria
etc.) para que possam ser aplicadas ao fato concreto. Em sentido
estrito é apenas aquela cujo complemento está contido em outra
regra jurídica procedente de uma instância legislativa diversa, seja de
categoria superior ou inferior aquela. Em sentido amplo são normas
incompletas ou fragmento de normas. Em primeiro lugar, os
dispositivos legais que tem seu complemento na própria lei. (...) Em
segundo lugar, existem leis cujo complemento se encontrarem outros
diplomas legais.10
Para Wladimir e Gilberto Passos de Freitas11 o tipo penal
ambiental possui características próprias de modo que é justificável
a remissão pela lei a outras normas de modo a descrever com
adequada precisão a conduta do agente. Em defesa de sua posição
vale-se da argumentação técnico jurídica de doutrinadores do escol
de Luis Rodrigues Ramos e Carlos Leme Serrano.
Em contraposição temos a firme crítica de Luis Paulo
Sirvinska12 que acena com a insegurança jurídica ao se deixar para o
administrador a tarefa de, ao seu ver, criar tipos penais, o que fere o
princípio da legalidade, assim expressando-se: “Os crimes contra o
meio ambiente devem estar expressamente previstos em lei, evitandose
a adoção, mesmo no seu mínimo legal, de normas penais em
branco”.
Temos que as duas opiniões encontram-se fundamentadas,
mas entendemos que nem se pode deixar a tipificação penal
ambiental completamente a mercê de normas penais em branco com
tampouco se deve bani-las . Há que se fazer o indispensável tempero,
mormente quando as condutas degradadoras do meio ambiente
exigem conhecimento técnico que permeia a todas as áreas do
conhecimento, dificultando sobremaneira ao legislador descrever com
177 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
10 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. 11 ed. ver. atual. São Paulo: Atlas, 1996, p. 47/48.
11 FREITAS, Vladimir Passos de, FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza: de acordo com a Lei 9.605/.98.
– 6 ed. rev., atual. e ampl. São P:aulo : Ed Revista dos Tribunais, 2000.
12 SIRVINSKAS, Luis Paulo. Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes a Lei n. 9605, de 12 de
fevereiro de 1998. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 16.
precisão, no corpo da própria norma, a conduta lesiva ao bem
ambiental. Nestes casos, comungamos coma posição dos primeiros,
sem, entretanto, olvidarmo-nos de ressaltar a parcimônia com que tal
expediente deve ser utilizado de modo a não gerar a temida
insegurança apontada por Luis Paulo Sirvinska.
Também se constitui em objeto de debates a tipicidade, esta
entendida dentro da teoria adotada por nossa legislação penal, como
a adequação perfeita entre o fato concreto e a descrição em abstrato
contida na norma incriminadora, exsurgindo daí sua dupla função de
garantia, fundada no princípio da legalidade, e de indicadora da
antijuridicidade.
É cediço, em nossa doutrina, o entendimento que o tipo penal
constitui-se dos elementos a) descritivos-objetivos que podem ser
apreendidos sem maiores dificuldades posto representados por um
verbo (ação), um sujeito ativo ou passivo, o objeto material, etc; b)
elementos normativos, circunstâncias que se referem à
antijuridicidade e que não se limitam a descrição da conduta, mas
exigem um juízo de valoração e c) elementos subjetivos reconhecidos
como dados ou circunstâncias pertencentes ao campo psíquico do
autor, dolo e culpa.
Em sede de Direito Penal ambiental como já mencionamos ao
tratarmos da norma penal em branco, há uma quase impossibilidade
de descrever-se de forma precisa e objetiva as condutas lesivas ao
meio ambiente. Temos aqui a figura do tipo penal aberto que na lição
de Heleno Cláudio Fragoso apud Vladimir Passos de Freitas13 “são
aqueles em que não aprece expressa por completo a norma que o
agente transgride com seu comportamento, de tal maneira que não se
contem no tipo a descrição completa do comportamento delituoso, que
depende da transgressões de normas especiais que o tipo pressupõe”.
Apresenta expressões como “sem justa causa”, “sem permissão legal”,
“sem licença da autoridade competente”, “sem autorização”.
Observa-se a ocorrência do “tipo aberto” na Lei de Crimes
Ambientais, por exemplo nos artigos, 29, 30, 31, 33 II, 38, 39, 45, 60
dentre outros.
No que concerne aos elementos subjetivos, a definição de dolo
e culpa encontram-se expressas no art. 18 I e II respectivamente do
Código Penal. Por não se constituir no foco deste trabalho deixaremos
de discorrer acerca das teorias do dolo e da culpa, ressaltando
entretanto que em nosso ordenamento jurídico o crime doloso é a
178 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
13 FREITAS, Vladimir Passos de, FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza: de acordo com a Lei 9.605/.98.
– 6 ed. rev., atual. e ampl. São P:aulo : Ed Revista dos Tribunais, 2000, p.35
regra admitindo-se o culposo apenas quando a lei expressamente o
disser, como ocorre por exemplo nos artigos art. 38 Parágrafo Único;
art. 41 Parágrafo Único; art. 49 Parágrafo Único da Lei 9.605/98.
Cabe destacar ainda em relação a Lei 9.605/98 que esta veio
incorporar ao ordenamento jurídico a visão ambiental fundamentada
nos princípio da prevenção ao contemplar em seus tipos a
modalidade de crimes de perigo, que se verifica sempre que a lei
transfere o momento consumativo do crime da lesão para a ameaça14.
Tal se justifica em razão de constituírem-se os crimes ambientais em
delitos de difícil e por vezes impossível reparação, interessando à
sociedade impedir a sua ocorrência reprimindo-o de modo a evitar o
dano. Daí entender a doutrina ambiental que a adoção desta técnica,
pouco recomendável no direito penal tradicional, justifica-se no
campo ambiental ante as peculiaridades inerentes a proteção ao meio
ambiente contra as condutas que podem causar-lhe danos
irreparáveis.
Não poderíamos passar ao largo da questão que mais
acalorados debates suscitou que é a responsabilização penal da
pessoa jurídica. No que pese o respeito que merecem de nós os
doutrinadores que se posicionam contra esta realidade jurídica,
entendemos que embora seus argumentos sejam brilhantes não
representam o que se espera do direito penal nos dias atuais.
Apegam-se a conceitos que transformaram em dogmas entre os quais
o brocardo societas deliquere non potest aferrando- se a teoria da
ficção de Savigny em total descompasso com a moderna visão de
combate a criminalidade organizada, presente e vicejante inclusive
em sociedades comerciais legalizadas que desconhecem fronteiras e
nacionalidades. A criminalidade ao longo do tempo assumi formas e
modalidades diversificadas, merecendo da parte dos que estão
comprometidos com o seu combate uma visão igualmente
diferenciada, enxergando que a culpabilidade da pessoa jurídica não
pode estar vinculada ã vontade própria da pessoa física, mas deve
sim ser fundada na reprovabilidade da conduta, vinculada a sua
responsabilidade social.
Vários outros institutos e instrumentos jurídicos presentes na
Lei de Crimes Ambientais merecem ser abordados, e espero fazê-lo de
modo mais acurado em trabalho específico sobre este diploma legal,
o que não é o nosso desiderato presente. De qualquer modo
destacamos o caráter ressocializador da norma, que reconhecendo o
179 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
14 COSTA JUNIOR, Paulo José da, MILARÉ, Edis. Direito penal ambiental: comentários a Lei 9.605/98. Campinas, SP:
Millenium, 2002, p. 1.
fracasso da pena de prisão como modo de solução do conflito, opta
pelas chamadas penas alternativas, também porque a função da
pena, atualmente, deve estar ligada à prevenção geral, e não caráter
meramente punitivo.
Assim, remetendo expressamente à Lei 9.099/95, encontramse
expressamente contemplados no texto legal a transação penal (art.
27) e a suspensão condicional do processo (art.28) com os temperos
exigidos para a efetiva tutela do meio ambiente novamente
privilegiando-se a prevenção e posteriormente a reparação específica,
deixando-se a reparação indenizatória para os casos em que as duas
primeiras mostrarem-se impossíveis de concretizarem-se.
A Lei fiel ao seu princípio informador de instrumento tutelar de
bem cuja defesa compete a coletividade e ao poder público, por
expressa previsão constitucional, estabeleceu em seu art. 26 que as
condutas incriminadas pela norma se processarão mediante ação
penal pública incondicionada, cabendo, portanto, ao Ministério
Público a sua promoção nos termos do art. 129, inciso I da
Constituição Federal.
Feitas estas considerações passaremos ao próximo tópico que
constitui-se no ponto central desta abordagem, qual seja analisar a
tutela penal das coberturas vegetais em e de áreas ou faixas de
preservação permanente, nomenclatura esta adotada
indiscriminadamente nas norma legais.
3.1 A Tutela penal da cobertura vegetal de preservação
permanente
A Lei 9.605/98 constitui-se na norma penal apta a tutelar este
bem jurídico ambiental, e procurou fazê-lo na Seção II do Capítulo V
– Dos Crimes Contra a Flora, reservando o legislador quinze artigos,
tipificando condutas delituosas, nos artigos 38 a 52 e seus incisos e
parágrafos.
Não é demais ressaltar que as penas cominadas em abstrato
nos arts. 44, 46, 48, 49, 50, 51 e 52 não ultrapassam um ano de
detenção, sendo aplicável, a princípio, nessas hipóteses, o instituto
da transação penal, previsto no art. 76 da Lei 9.099/95 e 27 da Lei
9.605/98. Nos artigos 38, 39, 40, 42 e 45 as penas mínimas previstas
são de um ano, possibilitando, portanto, a aplicação do instituto da
suspensão condicional do processo ou como se convencionou chamar
180 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
o sursis processual, previsto no art. 89 da Lei 9.099/95 e no art. 28
da Lei 9.605/98.
Como já exposto reiteradamente teceremos breves
considerações acerca de alguns artigos desta Seção II, e ao final
passaremos a análise da adequação da tipificação adotada.
Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de
preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizála
com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as
penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à
metade.
Elementos descritivos objetivos:
Bem jurídico tutelado: o meio ambiente, a preservação do
patrimônio natural, especialmente a conservação das florestas de
preservação permanente. Trata-se de crime material.
Núcleo do tipo: São três os verbos núcleos do tipo em análise,
quais sejam, destruir, danificar ou utilizar. Cuida-se de crime de
múltipla ação (várias condutas); não importa se o agente praticou
uma única ou várias condutas ao mesmo tempo descritas no tipo
penal: responderá por um só delito. É um crime comissivo, exigindo
uma ação por parte do agente.
Resultado: Trata-se de crime de dano, pois o efeito lesivo
concretiza-se com a exteriorização das ações destacadas no tipo.
Consuma-se o delito com a prática de qualquer das ações
incriminadas.
Sujeito ativo. Qualquer pessoa imputável (física ou jurídica).
Sujeito passivo. A coletividade.
Objeto material. É a floresta considerada de preservação
permanente, mesmo que em formação.
Elemento normativo:
Exige-se a autorização para eventual destruição da floresta
para fins de utilidade pública. É, portanto, um elemento normativo
com referência à ilicitude.
Há também o elemento normativo de índole jurídica, quando
qualifica “considerada de preservação permanente”.
181 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
Elemento pessoal:
Dolo genérico. Aqui, admite-se o crime na modalidade culposa.
Art. 39. “Cortar árvores em floresta considerada de
preservação permanente, sem permissão da autoridade
competente:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as
penas cumulativamente.
Elementos descritivos objetivos:
Bem jurídico tutelado: o meio ambiente, a preservação do
patrimônio natural, especialmente a conservação das florestas de
preservação permanente. Trata-se de crime material, a exemplo do
artigo anterior.
Núcleo do tipo: O verbo núcleo do tipo em análise é cortar,
separar uma parte do todo, sem a prévia autorização da autoridade
competente. Trata-se de crime comissivo, exigindo uma ação por
parte do agente.
Resultado: Trata-se de crime de dano, pois o efeito lesivo
concretiza-se com a exteriorização das ações destacadas no tipo.
Consuma-se o delito com o corte da árvore, entendendo a doutrina
que o crime se consuma ainda que tenha o corte de uma única
árvore.
Sujeito ativo. Qualquer pessoa imputável (física ou jurídica).
Sujeito passivo. A coletividade.
Objeto material. É a árvore localizada em floresta considerada
de preservação permanente.
Elemento normativo:
Exige-se a permissão da autoridade competente para o eventual
corte da árvore em floresta de preservação permanente.
Há também o elemento normativo de índole jurídica, quando
qualifica “considerada de preservação permanente”.
Elemento pessoal:
Dolo não se admitindo o crime na modalidade culposa.
182 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
3.1.1 Considerações acerca dos artigos destacados, o código
florestal e a legislação local
Os tipos descrevem as condutas delitivas que se achavam
contempladas no art.26 letras a e b da Lei 4.771/65 (Código
Florestal), como contravenções penais, e que foram revogadas pela
nova Lei.
Nos dois artigos o objeto jurídico é a proteção do meio ambiente,
a flora, com a proteção das florestas de preservação permanente
ainda que em formação, tendo a descrição da conduta reprovável
centrada nos verbos destruir, danificar e utilizar, no art. 38 e cortar
árvores no art.39.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa física ou jurídica
imputável, apresentando como sujeito passivo material a coletividade
e de forma indireta o proprietário ou possuidor da referida área.
Tem-se aí uma normal penal em branco, porquanto o operador
necessita de outra definição normativa atinente às florestas de
preservação permanente, bem como da presença de outras normas de
proteção, para aperfeiçoar o ilícito consistente na utilização da
floresta em desacordo com elas.15
3.1.1.1 O Código Florestal e as Florestas de Preservação
Permanente
Este diploma legal trata de florestas de preservação permanente
em seus artigos 2, 3, 26 a, b, e c, e 31 b.
Os artigos 2 e 3 tratam das florestas e demais formas de
vegetação que não podem ser removidas em razão de sua localização,
áreas de preservação permanente, enfatizando suas funções
protetoras do ecossistema em que se encontram inseridas.
Art 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito
desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural
situadas:
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu
nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja:
15 COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro, BELLO FILHO, Ney de Barros, COSTA, Flávio Dino de Castro e. Crimes e infrações
administrativas ambientais: comentários à Lei n° 9.605/98. 2 ed. ver. e atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p.
236.
183 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
1) de 30 (trinta) metros para os cursos d’água com menos de 10
(dez) metros de largura;
2) de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d’água que tenham
de 10 (dez) metros a 50 (cinqüenta) metros de largura;
3) de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50
(cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
4) de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham
de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
5) de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que
tenham largura superior a 600(seiscentos) metros;
b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais e
artificiais;
c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados
“olhos d’água”, qualquer que seja a situação topográfica, num
raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura;
d) no topo de morros, montes, montanhas e serras;
e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a
45º (quarenta e cinco graus), equivalente a 100% (cem por
cento) na linha de maior declive;
f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de
mangues;
g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de
ruptura do relevo, em faixa nunca inferior aos 100 (cem) metros
em projeções horizontais;
h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros,
qualquer que seja a vegetação.
Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas
as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei
municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o
disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo,
respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.
Art. 3o Consideram-se, ainda, de preservação permanentes,
quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas
e demais formas de vegetação natural destinadas:
a)a atenuar a erosão das terras;
b)a fixar dunas;
c)a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
d)a auxiliar a defesa do território nacional a critério das
autoridades militares;
184 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
e)a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou
histórico;
f)a asilar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de
extinção;
g)a manter o ambiente necessário à vida das populações
silvícolas;
h)a assegurar condições de bem-estar público.
§ 1.º A supressão total ou parcial de florestas de preservação
permanente só será admitida com prévia autorização do Poder
Executivo Federal, quando for necessária a execução de obras,
planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou social.
§ 2.º As florestas que integram o patrimônio indígena ficam
sujeitas ao regime de preservação permanente (letra g) pelo só
efeito desta Lei.
Art. 3º-A. A exploração dos recursos florestais em terras
indígenas somente poderá ser realizada pelas comunidades
indígenas em regime de manejo florestal sustentável, para
atender a sua subsistência, respeitados os arts. 2º e 3º deste
Código.
Aqui, aponta-se a necessidade de definir ou conceituar floresta,
tarefa não isenta de dificuldades. Apresentaremos algumas definições
que corroboram a complexidade de reconhecimento no caso concreto
do bem ambiental floresta.
FLORESTA – Associação arbórea de grande extensão e
continuidade. Não há limite definido entre uma vegetação arbustiva e
uma vegetação florestal. No Brasil, os cerradões, as matas de cipós e
os jundus, que são as florestas menos altas do país, têm de 7 a 12 m
de altura média. Em contraste na Amazônia ocorrem florestas de 25
a 36 m de altura com sub-bosques de emergentes que atingem até
40-45 metros, como no polígono dos Castanhais no Pará. A floresta
pode ser nativa ou natural (com espécies ou essências características
do meio ou ecossistema) ou plantada (com essências nativas ou
espécies exóticas).16
Ecossistemas completos, nos quais as árvores são a
forma vegetal predominante que protege o solo contra o impacto
direto do sol, dos ventos, das precipitações. A maioria dos
185 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
16 Glossário Ambiental. In MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. 2. ed. São Paulo: RT, 2001.
autores apresenta matas e florestas como sinônimos, embora
alguns atribuam à floresta maior extensão que às ambas.17
FLORESTA, MATA – Ecossistemas complexos, nos quais as
árvores são a forma vegetal predominante que protege o solo contra o
impacto direto do sol, dos ventos e das precipitações. A maioria dos
autores apresentam matas e florestas como sinônimos, embora
alguns atribuam à floresta maior extensão que às matas.
Vegetação de árvores com altura geralmente maior
que sete metros, com dossel fechado ou mais ralo, aberto;
às vezes (mata) significa um trecho menos extenso que
floresta, e mais luxuriante (densa ou alta) do que arvoredo
(Goodland, 1975).
Trecho de vegetação dominado por árvores (de três
metros ou mais de altura) cujas copas se tocam, ou quase
se tocam (as árvores com mais de sessenta por cento de
cobertura). É uma categoria estrutural referindo-se apenas
à fisionomia, sem qualificação; não é tipo de vegetação”
(ACIESP, 1980).18
Verifica-se que os conceitos apresentados apontam como
característica recorrente a necessidade de áreas extensas que
apresentam cobertura vegetal constituída por árvores de médio e
grande porte.
Em sua obra Marques19 ao apresentar a conceituação de
florestas aponta a visão jurídica dada por Guyot “é um imóvel
plantado de árvores, onde a madeira (material lenhoso ou outras
substâncias tiradas das árvores, tais como resina e cascas) constitui a
produção principal”. Como se verifica uma visão puramente
econômica do bem totalmente descomprometida com sua função
ecológica.
Mas o Código Florestal não se limitou a declarar de preservação
permanente apenas as florestas, ao contrário em momento de
extrema lucidez e técnica fez incluir nesta norma protetiva as demais
formas de vegetação natural alcançando destarte a finalidade
precípua que deve nortear a proteção ambiental, vislumbrando o todo
e não apenas partes deste.
17 FEEMA- Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente. Vocabulário básico do meio ambiente. verbete
“floresta”.
18 Disponível em . Acesso em 20.04.2003.
19 MARQUES, José Roque Nunes. Direito ambiental – análise da exploração madereira na amazônia. São Paulo: Ltr,
1999, p. 96.
186 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
Melhor explicando, entendemos que ao estabelecer a
necessidade de haver florestas de preservação permanente, por certo
que não se pode apequenar a mens legis, interpretando que buscavase
proteger tão somente o reino vegetal. Se assim o fosse não teria
sido levado em conta a localização das florestas e demais formas de
vegetação como sói ocorrer nos artigos do Código Florestal ora
abordados.
Por certo que esta proteção visa a efetivar a necessária tutela já
sedimentada nos meios de pesquisa científica e acadêmicos que
reconhecem a importância da cobertura vegetal para determinados
locais, destacando que sem esta os rios se assoreiam, as fontes
secam, o solo se impermeabiliza com a consequente laterização, as
encostas tornam-se mais suscetíveis de desabamentos, perde a fauna
seu habitat natural, enfim rompe-se o sábio equilíbrio existente na
natureza.
Reconhece assim o legislador a função ecológica das florestas
ao par com suas funções econômica e social. Por certo que não se
pode olvidar serem as florestas recursos naturais, suscetíveis de
apropriação e inserção no comércio, constituindo-se em bem de
produção. O que se pretende destacar na legislação protetiva é que
esta função mercantil deve sofrer limitações em prol do bem estar da
coletividade, sendo sua utilização exercida de forma racional a fim de
evitar-se sua exaustão, daí a existências das normas limitadoras,
como o Código Florestal.
Consideramos importante destacar que ao tratarmos as
florestas como bens apropriáveis buscamos reafirmar nossa visão de
enfocar o bem ambiental de forma global, reconhecendo sua
existência e, por conseguinte, sua proteção também na propriedade
privada que hoje, como já mencionamos, sofre as limitações inerentes
ao cumprimento da função social da propriedade, prevista na Magna
Carta (art. 170, III) que inovou ao estabelecer no art. 186 critérios
objetivos para o cumprimento desta função social, que passou a
contemplar além dos aspectos econômico e social o aspecto ecológico.
Consoante o texto Constitucional a função social da
propriedade não se contenta mais com a sua produtividade e
consequente melhora da condição social do trabalhador, mister se faz
que tais funções se realizem em atinência à preservação do meio
ambiente pela sua utilização racional, atrelando inequivocamente o
exercício do direito de propriedade aos preceitos constitucionais de
ordem social, econômica e ecológica.
187 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
Retomando o tema da proteção ambiental integrada e integral
dos ecossistemas, fauna, flora, solo, recursos hídricos, etc,
reportamo-nos ao § 2° do artigo 1° da Lei 4.771 que estatui:
§ 2° Para os efeitos deste Código, entende-se por:
I (...) Omissis
II – Área de preservação permanente : áreas protegidas nos
termos dos arts. 2 e 3 desta Lei, coberta ou não por vegetação
nativa com a função ambiental de preservar os recursos
hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade,
o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o
bem estar das populações humanas.
Importante destacar a inserção do homem nesta proteção
consolidando a visão antropocêntrica que defendemos deve permear
toda a proteção ambiental, e que se encontra expressa em “assegurar
o bem estar das populações humanas”, reconhecendo estas não como
agentes modificadores do meio ambiente e, portanto, externas a este
e sim inserindo-as como parte integrante e importante da
preservação ambiental. Afinal como bem estatui a Constituição a
preservação do meio ambiente deve se dar para as presentes e
futuras gerações, isto é para o HOMEM e por causa dele, de modo a
assegurar-se a continuidade de sua existência, e por que não do
próprio planeta.
Ao par com as florestas de preservação permanente do art. 2º,
prevê o Código Florestal, em seu art. 3º a possibilidade de nos casos
ali identificados, criar o Poder Público, florestas de preservação
permanente, que não se confundem com aquelas.
O que se deve destacar aqui é que o art. 3° cria uma situação
em para que serem consideradas de preservação permanente as
florestas e demais formas de vegetação aí contempladas necessitam
que um ato administrativo que as declare como tais, são as
denominadas áreas de preservação permanente administrativas
(APP’s).
O Professor Paulo Affonso Leme Machado20 ao tratar das
florestas de preservação permanente aponta: “As do artigo 2° existem
ex vis legis, enquanto que as do art. 3° foram criadas por uma decisão
que emanou do poder discricionário da Administração”.
Ao proceder a análise do disposto no § 1° do art. 3° prossegue
afirmando que as florestas de preservação permanente do art. 3°
podem ter sua supressão autorizada pelo pelo mesmo poder que as
20 Machado, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 10. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2002, p. 691.
188 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
criou, o Executivo, ressaltando ainda que poderá o Poder Juciário
apreciar a conformação destas autorizações aos preceitos da lei. E em
sua explanação posiciona-se que em relação às florestas de
preservação permanente do art. 2° do Código Florestal estas pela sua
própria natureza “só poderão ser alteradas ou suprimidas parcial ou
totalmente por força de lei”.
No Parágrafo Único o art. 2° o Código Florestal trata das
florestas de preservação permanente em áreas urbanas dizendo que
“observar-se-á o disposto nos respectivos planos Diretores e leis de uso
do solo respeitados os princípios e limite a que se refere este artigo”.
Verifica-se que ao contrário do que se afirmava, em sede
doutrinária que o Código Florestal se prestaria a disciplinar e ou
tutelar somente a flora rural, ao reportar-se especificamente às áreas
urbanas, estendeu e obrigou a adequação da legislação suplementar
a adequar-se aos parâmetros ali estabelecidos.Não vislumbramos
aqui, a tão freqüentemente argüida invasão de competência
legislativa ou interferência de uma esfera de Poder sobre a outra. Ao
contrário, o Código Florestal, consoante previsão constitucional em
sede de competência legislativa, estabelece como norma geral, os
princípios norteadores, enquanto que ao legislador “local” caberá
estabelecer em norma própria as previsões que julgar convenientes e
necessárias ao atendimento das peculiaridades locais.
Aqui pedimos vênia para inserirmos tópico específico, tratando
da legislação local no que julgamos guardar relação com o tema
abordado.
3.1.1.2 Legislação do Município de Manaus Acerca de Áreas e
Florestas de Preservação Permanente
O Código Ambiental do Município de Manaus, instituído através
da Lei 605 de 24/07/01 “regula as atividades do Poder Público
Municipal e sua relação com os cidadãos e instituições públicas e
privadas, na preservação, conservação, defesa, melhoria, recuperação
e controle do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
natureza difusa e essencial à sadia qualidade de vida”, ao tratar das
áreas de preservação permanente estatui:
Art. 31- São espaços territoriais especialmente protegidos:
I- as áreas de preservação permanente
Art. 32 – São áreas de preservação permanente aquelas que
abriguem:
189 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
I – as florestas e demais formas de vegetação natural, definidas
como de preservação permanente pela legislação em vigor;
II – a cobertura vegetal que contribui para a estabilidade das
encostas sujeitas a erosão e ao deslizamento;
III – as nascentes, as matas ciliares e as faixas marginais de
proteção das águas superficiais;
Como se verifica no inciso I do art. 32 ao remeter à “legislação
em vigor” estabeleceu sua conformidade com os textos legais que lhes
são superiores na estrutura hierárquica das normas legais no
arcabouço jurídico pátrio, entre as quais citamos a Lei 4.771/65
(Código Florestal).
Em 04 de Novembro de 2002 foi editado um conjunto de leis
municipais contemplando o Plano Diretor Urbano e Ambiental (Lei
671), o Uso e Parcelamento do Solo (Lei 672) e o Código de Obras do
Município (Lei 673) que visam estabelecer as diretrizes normativas
para o município, das quais destacaremos os artigos que entendemos
terem pertinência com o escopo deste trabalho.
Neste sentido iniciamos destacando na Lei 672 de 04/11/02:
Art. 25 [...] § 1° – Aplicam-se às diversas áreas que compõe as
áreas de proteção dos recursos naturais de Manaus, além do
disposto nesta Lei, a seguinte legislação: Código Florestal, lei de
criação de áreas especiais e de locais de interesse turístico,
decreto e Resolução CONAMA sobre Reservas Ecológicas e
Áreas de Relevante Interesse Ecológico.(grifamos).
Art. 108 – Em todos os cursos d’água localizados na área
urbana e de transição será adotada faixa de proteção marginal
mínima de 30m (trinta metros) contados de cada margem da
maior enchente durante o período em que o Plano de
Saneamento e Drenagem ainda não tiver sido implantado.
Como se observa o legislador municipal não deixou margens a
discussão, estabelecendo de pronto, para a área urbana a faixa
mínima idêntica a prevista no art. 2º, alínea a da Lei 4.771/65.
Não resisto a abordar uma questão que entendo relevante e de
interesse para a sociedade local que é a relacionada com a faixa de
preservação permanente dos Rios Negro e Solimões. Estes dois
federais banham a cidade de Manaus, dentre outras do Amazonas,
aplicando-se a eles a lei federal, o que se fará com relação às suas
faixas de preservação permanente, já de longas datas ocupadas,
190 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
abrigando inclusive, em Manaus, monumentos integrantes do
patrimônio cultural devidamente tombados!
Ousamos enveredar pelo campo das conjecturas, para indagar
se não seria o caso de tentar conformar esta situação à lei pelo
reconhecimento de sua “utilidade pública” justificando assim a
supressão já efetivada. Não cremos ser esta a melhor técnica jurídica,
mas sem querer ser arauto da degradação das áreas de preservação
permanente, a favor das quais álias litigamos diariamente no
exercício de nosso mister, chamamos a atenção para a realidade
amazônica, onde os rios substituem as rodovias e são às suas
margens que se estabelecem a grande maioria das cidades e
aglomerações humanas.
Não se pode olvidar que os rios amazônicos, em sua maioria
superam em largura os 600 metros enquadrando-se, portanto, no art.
2º, a item 6, o que redunda numa área de preservação de 500 metros.
Ainda suscitando a discussão e para chamar atenção sobre a
questão, salientamos que estes 500 metros correspondem a
denominada várzea, local onde tradicionalmente se desenvolvem as
principais culturas da região, posto que representam por vezes as
únicas áreas agricultáveis para o caboclo que habita o interior do
Amazonas, havendo inclusive programas de incentivo e
financiamento a agricultura de várzea (Pro-Várzea).
Ao seu turno a Lei 671 de 04/11/02 que Regulamenta o Plano
Diretor Urbano e Ambiental de Manaus ao tratar do Plano de
Saneamento e Drenagem estabelece entre seus objetivos o controle e
proteção do uso da água em todas as suas formas e aponta seus
componentes mínimos dos quais destacamos:
Art. 126 [...] § 1 ° São componentes mínimos do Plano de
Saneamento e Drenagem:
I –Subsistema de Macrodrenagem:
a) definição da faixas de proteção dos rios, igarapés, lagos,
mananciais da Bacia do São Raimundo, Educandos, Tarumã-
Açu e Puraquequara;
b) Programa ambiental para manutenção ou recuperação da
vegetação das margens dos cursos d’água;
Verifica-se neste mesmo diploma legal que ao tratar do Plano de
Proteção das Margens dos Cursos d’Água, que contempla os rios
Negro e Solimões, portanto rios federais, estatui:
191 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
Art. 112 – O Plano de Proteção das Margens dos Cursos d’Água
tem por objetivo delimitar as faixas marginais non aedificandi e
adequar o uso e ocupação dos imóveis localizados nas proximidades
das margens dos rios e igarapés.
A Lei Municipal 673 que institui o Código de Obras e
Edificações define no seu art. 4° o termo área non aedificandi:
Art. 4° Para melhor compreensão e aplicação deste Código
ficam estabelecidas as definições a seguir:
Área Non Aedificandi – área do terreno onde não é permitida a
edificação de qualquer natureza, admitida apenas construção de
muro de arrimo, escadas de acesso, obras de canalização e
escoamento de águas e canalização de gotos.
Tais dispositivos guardam perfeita sintonia com o que
determina a Lex Mater em sede de competência legislativa comum
estabelecida no art. 23 da CF, editando norma suplementar coerente
com o preceito da norma geral, o que deve nortear, aliás a produção
legislativa como ensina o Professor Paulo Affonso Leme Machado21
“Ressalte-se que não se pode suplementar um texto legal para
descumpri-lo ou para deturpar sua intenção, isto é, para desviar-se da
mens legis ambiental federal”.
Assim, no município de Manaus, considerando a interpretação
integrada da legislação, entendemos que se tornou estéril a discussão
travada acerca dos limites fixados para as faixas de preservação
permanente em áreas urbanas quando confrontados o Código
Florestal e a Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano (Lei
6.766/79) que no inciso III do Art. 4° estabelece:
Art. 4° Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos
seguintes requisitos:
I- (Omissis)
II- (Omissis)
III- ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de
domínio público das rodovias, ferrovias e dutos será obrigatória
a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de
cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica.
21 Machado, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 10 ed. São Paulo: Melhoramentos, 2002, p. 88.
192 Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho
Justificamos a necessidade de abordarmos a legislação local
para estabelecermos as premissas sobre as quais entendemos deva
sustentar-se a tutela jurídica protetiva do meio ambiente,
demonstrando a inexistência de óbices locais a ensejar debates
hermenêuticos quando da busca da prestação da tutela jurisdicional
no campo penal ambiental.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS E APLICAÇÃO NA PRÁTICA
JUDICIAL EM MANAUS-AMAZONAS
Observamos que tanto o art. 38 como o art. 39 da Lei 9.605/98
trazem na sua descrição tipológica o bem ambiental, floresta de
preservação permanente, sem reportar-se a serem estas naturais ou
plantadas diversamente do que ocorreu nos arts. 2 e 3 da Lei
4.771/65, que expressam “as florestas e demais formas de vegetação
natural” que dão ensejo a que ao proceder a interpretação
hermenêutica da norma, se construísse corrente defensora da tese
que as florestas e outras formas de vegetações plantadas não sejam
consideradas de preservação permanente.
É certo que tal posicionamento é fruto de uma opção pela
interpretação literal, mas deve-se alertar para o fato que a terra é hoje
um bem econômico de altíssimo valor e que a intocabilidade ou
mesmo a restrição ao uso de uma parte da propriedade pode fazer seu
valor cair a níveis baixíssimos, ou ainda inviabilizar sua utilização na
atividade pretendida, justificando-se assim em nome do capital e do
lucro o sacrifício da melhor técnica hermenêutica.
Entendemos que as florestas e demais formas de vegetação
plantadas ou reflorestadas, se e quando situadas em áreas de
preservação permanente, seja as do art. 2º ou do art. 3º, equivalem e
recebem a mesma tutela protetiva das naturais. Ao sustentar nosso
posicionamento recorremos ao próprio Código Florestal que ao tratar
no art. 12 da livre exploração das florestas plantadas, excepciona as
consideradas de preservação permanente, admitindo portanto a
existência de florestas plantadas de preservação permanente.
Neste sentido posiciona-se o jurista José Afonso da Silva22
afirmando que “ se se plantaram florestas no ambiente previsto no
art. 2º, nada mais lógico que elas se subsumam ao regime jurídico ali
qualificado.”, estendendo às previstas no art. 3º o mesmo
22 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional . 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 165.
193 Tutela Penal da Cobertura
Vegetal de Preservação Permanente
entendimento corroborado pelo que estatui o art. 18 do Estatuto
Florestal.
Portanto, ao mencionar o termo “floresta de preservação
permanente” por certo que a Lei de Crimes Ambientais albergou em
sua tutela protetiva tanto as florestas naturais como as plantadas.
Outro ponto que merece ser apreciado nos citados artigos da Lei
9.605/98 refere-se a opção pelo termo floresta ao invés de cobertura
vegetal, que tem possibilitado a arguição de teses bem sucedidas em
amparar a impunidade em razão da especificidade do termo.
Em tópico específico, apresentamos conceitos de florestas de
diversos autores e destacamos que estes levam em consideração
nesta nomenclatura a extensão da área ocupada e o porte da
vegetação. Apontamos também a questão do tipo penal e os princípios
do Direito Penal, da legalidade, da taxatividade, entre outros.
A análise, desapaixonada, dos dois artigos ao par com as
abordagens feitas não nos deixam outra opção senão reconhecer que
da forma como se acham redigidos os art. 38 e 39 prestam-se a tutela
penal das florestas de preservação permanente, deixando a
descoberto as demais formas de vegetação pela ausência de expressa
previsão nesta lei penal.
Se em sede de tutela civil é possível e aceita a interpretação
extensiva do texto legal, tal não se concebe em sede de direito penal
sob pena de se desconstruir todo o alicerce no qual este se embasa.
Apoiamos nosso entendimento nas lições de Luiz Paulo Sirvinska23 e
Paulo da Costa Junior24.
Entretanto, o operador do Direito deve buscar na legislação
disponível instrumentos que lhe permitam conferir proteção ao bem
ambiental, por vezes obtendo-a de modo reflexo, de acordo com o caso
concreto, valendo-se de outros tipos penais inseridos Lei 9.605, que
se revelem adequados a tipificação da conduta lesiva ao bem
ambiental abrangendo as demais formas de vegetação porventura
encontradas em áreas de preservação permanente que não foram
contempladas nos artigos 38 e 39 do citado diploma legal.
Nestes casos, embora a capitulação penal venha a ser menos
severa, possibilitando por vezes a transação penal, a finalidade
protetiva ambiental vê-se contemplada, uma vez que, a teor do art. 27
a aplicação deste instituto, ou benefício, condiciona-se à prévia
23 SIRVINSKAS, Luis Paulo. Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes a Lei n. 9605, de 12 de
fevereiro de 1998. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 63.
24 COSTA JUNIOR, Paulo José da, MILARÉ, Edis. Direito penal ambiental: comentários a Lei 9.605/98. Campinas, SP:
Millenium, 2002,

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