quarta-feira, 11 de abril de 2012

FOTOGRAFIAS DE LAMPIÃO EM 1936

CANGAÇO E CANGACEIROS: HISTÓRIAS E IMAGENS
FOTOGRÁFICAS DO TEMPO DE LAMPIÃO
Marcos Edílson de Araújo Clemente*
Universidade Federal do Tocantins – UFT
marceddilson@yahoo.com.br
RESUMO: Este trabalho analisa a relação história e fotografia em seus aspectos teóricos e
metodológicos, com enfoque no cangaço da fase de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião) entre 1926-38.
Há imagens fotográficas de Lampião e seu bando em pelo menos duas ocasiões: a primeira, em 1926,
quando esteve em Juazeiro, Ceará, para encontro com Padre Cícero. Na segunda ocasião, em 1936, o
mascate Benjamim Abrahão Botto filmou Lampião e seu bando no deserto do Raso da Catarina. As
fotografias mostram os cangaceiros em cenas da vida cotidiana, em poses de guerra, rezando, lendo. Tal
aparato fotográfico expõe um conjunto de representações do cangaço. Duas questões são colocadas: qual
o lugar da imagem fotográfica enquanto evidência histórica? Quais são os limites e as possibilidades da
iconografia fotográfica do cangaço?
PALAVRAS-CHAVE: Cangaço – História – Fotografia
ABSTRACT: This work brings the analysis of the relationship between history and photograph
concerning its theorical and methodological aspects, emphasizing the cangaço during the phase of
Virgulino Ferreira da Silva – known by the name (Lampião) from 1926 to 1938. There are photographic
images of Lampião and his band on at least two occasions: firstly, in 1926, during his stay in Ceará for a
meeting with the Priest Padre Cícero. Secondly, in 1936, the peddler Benjamin Abrahão Botto filmed
Lampião and his band in the desert of Raso da Catarina. The photographs show the cangaceiros in their
everyday lives, posing with weapons, praying, reading. Such photographic apparatus displays a bulk of
representations of the cangaço. Two questions arise and are put in this work then: what is the place of the
photographic image while historical evidence? Which are the boundaries and the possibilities of the
photographic iconography of the cangaço?
KEYWORD: Cangaço, History, Photograph
Este trabalho aborda a relação história e fotografia, destacando algumas
questões teórico-metodológicas acerca do uso da imagem fotográfica como documento
histórico. O objeto das reflexões é cangaço, banditismo típico do sertão nordestino, mais
exatamente o cangaço da época de Virgulino Ferreira da Silva – Lampião. O cangaço
desse período é definido na literatura para referir-se ao bandido que vive debaixo da
* Professor Assistente Universidade Federal do Tocantins – UFT. Doutorando Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
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canga, o complexo de armas sobrepondo-lhe o corpo, mas principalmente para referir-se
a um modo específico de ação independente, em que o cangaceiro estaria subordinado
apenas ao seu bando. Isto não significa vê o cangaço como resposta a dominação dos
coronéis. Ao contrário, conforme demonstrou Ramos, Lampião e seus cangaceiros
firmaram alianças vantajosas com os mais poderosos coronéis da época: “[...] a relação
cangaceiro – coronel mostrava-se vantajosa para as duas partes: ganhavam os
bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na caatinga e ganhavam os proprietários,
que se fortaleciam e engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso”.1 Virgulino
Ferreira da Silva é o representante emblemático deste ciclo. Lampião, tendo se tornado
chefe de cangaço por volta de 1920, reinou absoluto até 1938 quando, junto com Maria
Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, sua companheira, morreu em Angico, sertão de
Sergipe. Em 1940, a morte do Cristino Gomes da Silva Cleto, o cangaceiro Corisco,
tido como vingador de Lampião, pôs um fim ao ciclo geral do cangaço.
No campo da memória coletiva Lampião tornou-se uma espécie de protótipo
dos cangaceiros, eclipsando, digamos assim, os demais cangaceiros do seu tempo. Não
obstante, deve-se atentar para o fato de que o cangaço não se resume a Lampião,
embora comumente se confunda com ele. Há justificativas para isso: Lampião
desfrutava de liderança reconhecida no bando, era valente e habilidoso em combate e
tinha o exemplo acima da palavra. Por outro lado, do ponto de vista das relações do
cangaço com a sociedade do seu tempo, é necessário levar em conta que o chefe dos
cangaceiros soube construir, quando teve oportunidade, uma relação com jornalistas e
fotógrafos da época, o que lhe rendeu algumas imagens favoráveis.
Estudos apontam que, diferentemente de cangaceiros famosos tais como
Jesuíno Brilhante (1844-1879) e Antônio Silvino (1875-1944), Lampião teria se
empenhado na construção da sua própria imagem pública. Enquanto aqueles dois chefes
de cangaço raramente se deixavam fotografar, Lampião, ao contrário, mesmo sofrendo
intensas perseguições de inimigos pessoais e de numerosas forças policiais, decidiu dar
visibilidade a si e ao seu bando, por meio de entrevistas e imagens fotográficas. Neste
ponto, faremos a seguinte distinção entre os termos imagem e imagem fotográfica: o
termo imagem, simplesmente, será usado neste artigo para referir-se a “representação”,
que significa um conjunto de formas discursivas e imagéticas pelas quais os homens
1 RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste. São Paulo, Martins
Editora, 1962, p. 126.
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expressam a si próprios e ao mundo. Mais especificamente, são os códigos sociais
compostos na fotografia. Por sua vez, o termo imagem fotográfica refere-se à fotografia
como artefato portador de imagem.
As principais imagens fotográficas do cangaço resultaram do encontro de
Lampião com o Padre Cícero em 1926 e depois o encontro de Lampião com o libanês
Benjamin Abrahão Botto, em 1936. Discutiremos esses acontecimentos e tentaremos
sistematizar teórica e metodologicamente as questões abordadas.
O Cangaço entre a Morte e o Espetáculo
A imagem fotográfica é o que resta do acontecido, fragmento de uma realidade
passada, além de ser a intromissão do fotógrafo num instante dos tempos. Para o
historiador é mais que isso. Conforme Marc Ferro, a fotografia é um inventário temático
onde se encontra a “[...] enumeração de motivos – objetos representados, papéis sociais
postos em cena, produção e recepção culturais”.2 Com efeito, já sabemos que os
fotógrafos realmente interferem e que o seu olhar não é “inocente.” De Paula, em livro
surpreendente sobre a guerra de imagens na Revolução Constitucionalista em São
Paulo, mostra como em torno de uma fotografia existem narradores visuais, e que além
da subjetividade do fotógrafo “[...] é preciso considerar a visão do próprio fotografado,
que pode estar exprimindo, de forma consciente ou não, seus anseios e sua auto-imagem
idealizada”.3 Diante do fotógrafo, afirma Moura,
[...] o retratado é convidado a transformar-se em personagem, a
exprimir seus sentimentos (ou a passá-los através de atitudes
convencionais), enlevando-se, em seguida, com a duplicação de sua
imagem. No processo se perde a inocência – haverá algo mais
construído e equívoco do que uma pose?4
Todavia, nesse processo, deve-se considerar não apenas o encontro entre o
evento e o fotógrafo, mas considerar ainda a produção da fotografia como um
acontecimento. A literatura do cangaço costuma reproduzir em suas páginas fotografias
de cangaceiros, sobretudo fotografias do ciclo de Lampião. São imagens persuasivas,
dirigidas ao leitor como prova da ocorrência do fato histórico. Não obstante a
2 FERRO, Marc. Imagem. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques. (Dir.). A
Nova História. Tradução de Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra: Almedina 1978, p. 291.
3 DE PAULA, Jeziel. 1932: Imagens construindo a história. Campinas / Piracicaba: Editora da
UNICAMP / Editora da UNIMEP, 1998, p. 33-37.
4 MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Retratos quase inocentes, In: ______. Retratos quase
inocentes. São Paulo: Nobel, 1983, p. 12.
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consagração do texto escrito, com seu cânone secularmente estabelecido, a fotografia
entremeia o texto, intrusa e ao mesmo tempo laudatória do seu próprio texto. Afinal
“[...] todo texto dá a ler, toda imagem dá a ver. Mas todo discurso se reporta a uma
imagem mental, assim como toda imagem comporta uma mensagem discursiva”.5
Uma dessas fotografias expõe espetacularmente as cabeças decapitadas de
Lampião, Maria Bonita e de mais nove cangaceiros, exibidas ao público na escadaria da
Prefeitura de Piranhas, Alagoas.6
Cabeças em simetria, algumas apoiadas por calços de pedra, cabelos
desgrenhados, feições rígidas, olhos fechados. A ordem de apresentação do escalão é
inversa e quebra a hierarquia que tiveram em vida. No plano mais baixo, isolada, a
cabeça de Lampião; acima a de Maria Bonita tendo à direita a de Luís Pedro e à
esquerda Quinta-Feira; degrau acima, as cabeças dos cangaceiros Mergulhão (E),
5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 86.
6 Esta informação do local onde foi produzida a fotografia está em Guerreiros do sol: violência e
banditismo no Nordeste do Brasil, livro de autoria de Frederico Pernambucano de Mello. Élise Jasmin
afirma que esta fotografia foi tirada na escadaria da Igreja de Santana de Ipanema, Alagoas. Cf.
GRUNSPAN –JASMIN, Élise. Cangaceiros. Tradução B&C Revisão de textos. São Paulo: Terceiro
Nome, 2006, p. 149.
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Elétrico e Caixa de Fósforo; no plano mais alto, as cabeças de Enedina (E), Cajarana,
um cangaceiro não identificado, dito “desconhecido” e o cangaceiro Diferente.
A cena parece forjada para conjurar o espectro dos cangaceiros e de tudo o
mais que representam. As arrumações reforçam uma imagem de Lampião solitário, que
não mais detém o comando do grupo. Ademais, rompe com a imagem à época já
lendária do casal Lampião e Maria Bonita, pois esta não aparece ao seu lado. Para tanto,
a contemplação fúnebre não é suficiente. Aloca-se nos espaços da escadaria os
pertences dos mortos. Pelo modo como são expostos, não identificam seus donos, seus
usuários. Identificam, contudo, o espólio material do cangaço. No plano superior, à
esquerda e à direita, duas máquinas de costura marcas singer. Ao centro, artefatos de
couro. Ladeando as cabeças, pistolas, mosquetões e punhais longos e medianos; chapéus
de couro com abas viradas, pontuados com estrelas em diferentes padrões. Um dos
chapéus repousa sobre uma caixa com a marca registrada da empresa petrolífera inglesa
Standar Oil Company of Brazil, inscrição somente identificada quando colocada a
imagem de baixo para cima. Embornais, cartucheiras, peças da indumentária adornada
com moedas de ouro e traços geométricos. A autoria da imagem não é identificada.. Os
mortos são nomeados em ordem numérica, vendo-se logo após a data: 28 de julho de
1938. Oficialmente, a data da morte de Lampião.
Contudo, o espetáculo estava apenas começando. Da cidade de Piranhas, as
cabeças seriam transportadas em cortejo pelas cidades do sertão em direção a Maceió e
finalmente para Salvador onde ficaram expostas até 1969. Nesta data, o conhecido líder
das ligas camponesas de Pernambuco, Francisco Julião, exigiu que as cabeças dos
cangaceiros, até então expostas no Museu Nina Rodrigues, fossem finalmente
enterradas, argumentando que “Lampião foi o primeiro a lutar contra os latifúndios e a
injustiça dos poderosos”.7 O que efetivamente ocorreu e, junto com as cabeças de
Lampião e Maria Bonita, parece ter sido enterrada também definitivamente as teorias do
criminalista italiano Cesare Lombroso que tanto sucesso fizeram em fin de siècle no
Brasil. Em Santana do Ipanema, cidade do sertão de Alagoas, Aurélio Buarque Ferreira
de Holanda era menino quando testemunhou a estranha “feira de cabeças”. Era final de
tarde, dia de feira e para ali acorriam sertanejos de toda a região. Em crônica escrita
7 Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião: o rei dos cangaceiros. Tradução de Sarita Linhares Barsted.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 268.
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anos depois, lembra Aurélio das imagens arrepiadoras (para ele) revestidas de espécie
de ritual confirmatório – Lampião está morto.
Espetáculo e teatralização da morte, entre imagens arrepiadoras, discursos e
bravatas, espocar de foguetes, sinos dobrando e banda de música. Cenas reproduzidas
pelos fotógrafos profissionais e amadores que
[...] batem chapas, apressados, do povo e dos pedaços humanos
expostos na feira horrenda. Feira que, por sinal, começou ao terminar
a outra, onde havia carne-de-sol, o requeijão de três mil réis o quilo,
[...] as pinhas doces, abrindo-se de maduras, [...] e as alpercatas
sertanejas, de vários tipos e vários preços.8
Cenas incomuns, inclusive pelo fato de que para a composição das fotos os
fotografados não expressavam intencionalidade e os fotógrafos estavam à vontade para
eternizar as imagens e para reproduzi-las nos grandes centros, sob aplausos da
“civilização”:
[...] ao olho frio das codaques interessa menos a multidão viva do que
os restos mortais em exposição [...] O espetáculo é inédito: cumpre
eternizá-lo, em flagrantes expressivos. Um dos repórteres pousa
espetacularmente para o retratista, segurando pequenas melenas
desgrenhadas os restos de Lampião. Original. Um furo para A Noite
Ilustrada.9
O correspondente do Jornal carioca A Noite Ilustrada era Melchíades da
Rocha, sertanejo da região de Santana de Ipanema, mas que havia migrado para o Rio
de Janeiro. Este jornalista é autor de livro publicado em 1942 em que constam os
detalhes da morte de Lampião e o destroçamento do seu bando. Para Rocha, envolvido
com o ideário estadonovista, aquilo era sacrifício necessário, pois
[...] com o Estado Novo, que veio para elevar o padrão de nossa
cultura, da nossa mentalidade, dando-lhe um cunho mais humano,
mais cristão, mais brasileiro, é possível que não tardem, nas Alagoas,
os benefícios que carecemos. Então, caminharemos para um futuro
melhor.10
De fato, conforme observou Aurélio Buarque de Holanda, fotógrafos e
jornalistas estavam mais preocupados com os mortos e menos com os vivos – velho
dilema da história.. No entanto, simples gestos de profissionais e mais ainda da multidão
aglomerada possibilitam compreender como a violência, imputada a cangaceiros e ao
8 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Feira de Cabeças. Suplemento Cultural, Diário Oficial, Estado de
Pernambuco, Ano IX, p. 15, Julho de 1995.
9 Ibid.
10 ROCHA, Melchiades da. Bandoleiros das catingas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 35.
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Estado, achava-se entranhada em códigos culturais dos sertanejos. Holanda observou
que:
[...] entre a massa rumorosa e densa não consigo descobrir uma só
fisionomia que se contraia de horror, boca donde saia uma expressão
de espanto. Mocinhas franzinas, romanescas, acostumadas talvez a
ensopar lenços com a desgraça dos romances cor-de-rosa, assistem a
cena com a calma de um cirurgião calejado no ofício.11
Até aqui vimos como foram encenadas as representações do poder no sentido
de dar visibilidade à morte de Lampião e seu bando. Mecanismo que funcionava
também no sentido de demonstrar às populações sertanejas que Lampião não era
invencível e não era invulnerável.
O TEATRO DA VIDA – A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO
CANGACEIRO
Inegavelmente, Lampião foi de longe o chefe de cangaço que mais se
empenhou na construção de sua imagem pública. Não exatamente pela vaidade, pois
esta parece ter sido uma característica comum a seus predecessores. Antônio Silvino,
por exemplo, já usava e abusava dos perfumes, gostava de anéis brilhantes, mas não
ficava nisso. Conforme noticiava o jornal pernambucano A Província ele trazia também
um toque de elegância, pois: “[...] não dispensa um bouquet de flores na lapella da sua
blusa”.12
Para além de uma tradição do bacamarte, escorada em código de honra severo,
localizada no universo sertanejo, particularmente no cangaço, identifica-se entre os
cangaceiros uma tradição da vaidade, do esmero e requinte na imagem pessoal. Assim é
que Lampião não apenas herdou uma tradição da vaidade, mas também chegou a
praticá-las em extremos. São conhecidas as fotografias dele próprio e de cangaceiros do
seu bando, sendo penteados e cuidados por suas mulheres. O Cruzeiro exibiu uma
imagem de Maria Bonita em traje civil, um vestido de seda longo e um lenço no
pescoço, mimando Lampião. A legenda informa que “[...] a agressividade de Lampião
arrefeceu depois que ele encontrou Maria Bonita: ela cuidava dele com carinho,
11 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Feira de Cabeças. Suplemento Cultural, Diário Oficial, Estado de
Pernambuco, Ano IX, p. 15, Julho de 1995.
12 A PROVÍNCIA, 28 de janeiro de 1906.
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penteava-lhe os cabelos, cerzia suas roupas, polia-lhe as unhas”.13 O major Optato
Gueiros, oficial das forças pernambucanas, escreveu um livro de memórias do tempo
em que combateu os cangaceiros. Em seu Lampião, Optato Gueiros mostra esta mesma
fotografia, sem referência da fonte, com uma curta legenda: “Maria Bonita, faz a toilette
em Lampeão”.14 Talvez sejam estas as fotografias em que Lampião aparece mais
despreendido. Benjamin Abrahão conseguiu extrair outras fotografias de cangaceiros
em “scena idyllica na catinga”, conforme consta no Diário de Pernambuco:
[...] mostra a fotografia o famoso cangaceiro Luís Pedro do Retiro,
que faz parte do grupo de Lampeão. Sua companheira ‘D. Nenén’
penteando carinhosamente os cabellos, diante da objetiva. Luiz Pedro
é o mais antigo companheiro de Lampeão [...] e sua companheira ‘D.
Nenén’ é natural da Bahia.[...] é um flagrante que o sr. Benjamin
Abrahão ofereceu com exclusividade aos Diários Associados.15
Portanto, o tom da matéria, destaque de página, é de coluna social. Confirmam
as referências biográficas do cangaceiro Luiz Pedro – do Retiro – lugar onde nasceu – e
antigo companheiro de Lampião. Quanto a sua mulher, em tom respeitoso e cordial a
matéria diz que “D. Nenén” é natural de Bahia. Assim, vaidade e projeção social – ou
expectativa de projeção social – estão presentes tanto na imagem fotográfica, quanto no
texto referente à imagem, embora muito provavelmente em algum ponto as
coincidências cedam lugar para as divergências entre a imagem fotográfica e o texto de
jornais. Quanto a Benjamin Abrahão, este fazedor de imagens, possivelmente fez
também bons negócios com destacados setores da imprensa do Distrito Federal, mais
destacadamente A Noite Ilustrada, O Globo e Os Diários Associados.
Em 1930, Lampião permite a inclusão de mulheres no bando, fato igualmente
inédito na história do cangaço. Embora esta tradição da vaidade seja muito anterior a
este acontecimento, é certo que a presença feminina no cangaço teve como
conseqüência uma fase de maiores zelos com a aparência pessoal, concorrendo para isso
o fato de se tratar de uma fase em que o cangaço fora empurrado para áreas ribeirinhas,
13 O Cruzeiro, p. 11, 27 de junho de 1953. A foto exibida mostra Lampião de perfil com Maria Bonita à
direita. A revista Fatos e Fotos exibiu uma variante desta fotografia em que aparece Lampião em pose
frontal, arrumando o lenço, ladeado por Maria Bonita. Cf. FATOS E FOTOS. A aventura sangrenta
do cangaço: Maria Bonita, o grande amor de Lampião, p. 5-6.
14 GUEIROS, Optato. Lampião: Memórias de um oficial ex. comandante de fõrças volantes. 2. ed. São
Paulo: s/ed. 1953, p. 83. Em Amaury Correa de Araújo esta fotografia aparece invertida, sem
indicação de fonte, estando Maria Bonita a esquerda de Lampião, penteando-lhe os cabelos. Cf.
ARAÚJO, Antônio Amaury Correa de. Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço: 1985,
p. 180.
15 Diário de Pernambuco, 21 de fevereiro de 1937.
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entre as margens direita e esquerda do grande rio São Francisco, na confluência dos
Estados da Bahia, Alagoas e Sergipe. Portanto, uma área menos seca, temporada de
banhos mais freqüentes, um tempo de mais alívio com as perseguições. Nesta fase, a
indumentária do cangaço exprime diretamente o ciclo de cuidados com o corpo e com a
aparência pessoal. Para elas, as mulheres do cangaço, cabelos bem penteados com
brilhantina, presos por “pega rapaz”; chapéu de feltro tipo escoteiro, lenços de seda no
pescoço, tecido leve, decorativo; vestidos de campanha, funcionais e enfeitados, com
bolso, alguns de mangas longas como proteção contra arbustos; anel em cada deda e
ocasionalmente luvas sem dedo, meias de tecido grosso, protegendo as pernas e
resistentes alpercatas de couro. Eventualmente, traje civil, passeio, vestido longo de
seda. A moda do cangaço, atraente, funcional.
Eles, os cangaceiros, deviam pouco às mulheres. Vistosos chapéus de couro
adornados com estrelas, abas viradas á moda Napoleão; testeira com moedas de ouro;
uniformes de alvorada grossa; óculos escuros, lenços, anéis e para alguns, dentes de
ouro; perneiras de couro enfeitado próprias para o devassamento da caatinga; sandálias
de couro; alças de cantis, cartucheiras, bornais decorados. Houve mesmo quem
reclamasse de que ocasionalmente tornaram-se afeminados. Gilberto Freyre, em
prefácio para a obra de Frederico Pernambucano de Mello, talvez tenha sido o primeiro
a problematizar a questão: “Há quem recorde de certos caudilhos nordestinos do
cangaço tenderem a abusos de jóias e de perfumes e a se enfeitarem como se fossem
mulheres”.16 E arremata, referindo-se a Lampião:
E não seja esquecido, de Virgulino Lampião, haver flagrante
cinematográfico em que aparece costurando femininamente em
máquina Singer. Costurando o quê? Remendando a própria calça? Ou
bordando adorno para seu próprio trajo de chefe? Será que precisasse
de recorrer a adorno especial – e este, talvez, um tanto feminino – para
afirmar sua qualidade de chefe?17
Indagações muito pertinentes que de certo modo continuam na sombra de um
prefácio. Em parte, contrastam com a abordagem do prefaciado, Frederico
Pernambucano de Mello que, àquela altura, 1985, produziu obra clássica sobre o
cangaço, com ênfase excessiva para o código de honra do sertanejo, sobretudo o
sertanejo da região do Pageú, em Pernambuco. Em obra posterior, Mello desenvolveu as
16 Cf. Mello, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violências e banditismo no Nordeste do
Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 11-12.
17 Ibid.
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questões propostas por Freyre ao apresentar um conjunto de imagens fotográficas e de
informações acerca do que ele denominou de aburguesamento de Lampião. Segundo
Mello Lampião “[...] beirando os quarenta anos adquirira requintes de burguês bem
sucedido”.18
Respondendo em parte a essas indagações de Freyre, Daniel Lins defende que
Lampião era exímio artesão que trabalhava tão bem o couro como o tecido, “Lampião,
sabemos, criava e costurava seus próprios modelos. Tanto seus lenços de seda quanto
seus trajes. Seus lenços eram marcados pelas iniciais C.V.F.L (Capitão Virgulino
Ferreira Lampião).” Lins, contudo, não nega a vaidade de Lampião: “Lampião era
narcisista e vaidoso. Ele gostava de se vestir bem, curtia sua elegância, era um
aficcionado do espelho. Possuía coleções de jóias. Ele usava dois ou três anéis em cada
dedo. Suas armas eram decoradas com moedas de ouro. Adorava se perfumar, sobretudo
com a marca francesa ‘fleur d’Amour”.19 Mas este autor vai mais longe e vê neste
atavio mais que simples vaidade, um significado simbólico ou um conteúdo religioso.
Hobsbawm em estudo clássico sobre os bandidos sociais abordou a
composição da imagem pública de Lampião. Sua abordagem privilegia o aspecto
violento do bandido como constitutivo de sua própria imagem pública. Daí a
classificação dos cangaceiros como bandidos “vingadores”. A principal característica
desses foras da lei seria a prática do terror como parte integrante de sua própria imagem
pública: “São vistos como homens que provam que até mesmo os fracos e pobres
podem ser terríveis”.20 Hobsbawm faz suas leituras de Lampião a partir da literatura de
cordel e focou seu interesse na tradição oral. Chandler contestou a hipótese dos
cangaceiros como bandidos sociais. Ao contrário de Hobsbawm, interessou a Chandler
analisar a figura histórica de Lampião e não uma pesquisa do folclore sobre ele. A
lenda, segundo este autor, não teria muita importância na compreensão do personagem
histórico, concorrendo mesmo para obscurecê-lo. Chandler reconhece, entretanto que
Lampião se preocupava com suas relações públicas:
Lampião, afinal de contas, se preocupava com suas relações públicas.
Porém, devemos nos lembrar que ele vinha de uma família de
pequenos proprietários, e desejava vivamente voltar à sociedade legal
e à respeitabilidade [...] Não ficou nunca totalmente brutalizado pela
18 MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do
Brasil. Prefácio de Gilberto Freyre. São Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 300-301.
19 LINS, Daniel. A moda do tempo do cangaço. Universidade Aberta. Fortaleza: s/ed., p. 4-5.
20 HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975, p. 54.
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natureza de sua profissão; até o fim procurou conservar a imagem de
um homem de honra.21
A questão é: Apenas as fontes documentais impressas seriam suficientes a uma
compreensão do cangaço? Além do uso de fontes de arquivos públicos e inúmeros
jornais da época, este autor utilizou ainda depoimentos de testemunhas do cangaço e
reproduções fotográficas. Contudo, Chandler não explora as vinte e duas fotografias
arroladas em seu livro, expostas em ordem cronológica. Afinal, a análise do documento
fotográfico pode ajudar a esclarecer como foram produzidas e como foram apropriadas
em diferentes contextos. Os jornais, do litoral e do sertão, reproduziram inúmeras
fotografias do cangaço da fase de Lampião. Neles, são visíveis os compromissos
políticos da linha editorial, os silêncios e formas de manipulação: a excisão de figuras,
cortes e atenuações para alterar a interpretação do observador, uso arbitrário das
legendas. Considere-se ainda que o próprio Lampião ajudou a construir a sua imagem
pública, conforme conclusão de Élise Grunspan Jásmin:
Lampião foi o primeiro cangaceiro [...] a cuidar de sua personagem;
utilizou métodos de comunicação – principalmente a imprensa e a
fotografia, que não faziam parte de sua cultura – para impor a imagem
que queria dar de si mesmo. [...] Essa elaboração de imagens pela
imprensa, pela fotografia e pelo cinema repercutiu nos diferentes
protagonistas da luta contra o cangaço que [...] devolveram
regularmente contra-imagens a Lampião.22
Assim, afirma a autora que Lampião produziu a sua própria imagem,
auxiliando-se de jornais, folhetos e fotografias. Discutível, no entanto, a afirmação de
que tais recursos, jornais, fotografias e cinema, não faziam parte da cultura de Lampião.
Quanto à fotografia, é necessário examinar alguns aspectos da sua produção, recepção e
circulação tanto no sertão quanto no litoral, no período aqui analisado.
Lampião em Juazeiro – O “Cangaceiro Emérito”
Em 4 de março de 1926, Lampião à frente de 49 cangaceiros, acompanhado de
um oficial dos “Batalhões Patrióticos”, entrou em Juazeiro do Norte, Ceará, atendendo a
chamado do Padre Cícero Romão Batista. Queria o Padre Cícero que Lampião
combatesse os militares “revoltosos” sob o comando de Luís Carlos Prestes. O período
21 CHANDLER, Billy J. Lampião: o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 270.
22 GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 28.
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era de extremas agitações políticas envolvendo as oligarquias regionais, mas será
marcado sobretudo pelos combates entre “revoltosos” e “legalistas”, estes apelidados
por aqueles de “piolhos do Padre Cícero”. Floro Bartolomeu da Costa, médico baiano
que havia se tornado inseparável colaborador do padre Cícero, estava no comando das
forças legalistas. Segundo Nertan Macedo, “Dizia-se que a Coluna atacaria o Juazeiro, a
fim de tomar os estoques de armas ali guardados desde a sedição contra Franco
Rabelo”.23 Floro assume a mobilização das tropas compostas por mais de mil jagunços
com a missão de defender as fronteiras do Estado do Ceará. A 22 de janeiro de 1926, a
Coluna Prestes entra no Ceará, aproveitando-se de desentendimentos entre os
comandantes legalistas. Afirma Nertan Macedo que “[...] é nessa altura que Floro decide
chamar Lampião com o apoio do Padre”.24
Quando Lampião chegou a Juazeiro, Floro Bartolomeu já estava afastado do
comando das forças “legalistas”, acometido de grave
doença.25 Lampião “serenamente, protegido por
invisíveis poderes, penetrou no Juazeiro, às dez horas da
noite. Quatro mil pessoas acorreram ao seu encontro.
Para conhecê-lo, admirá-lo de perto. E muitos para
receber esmolas de suas mãos. Pois o bandido era
pródigo com a pobreza”.26 Nessa circunstância, mesmo
sendo duramente censurado por parte de autoridades e
de jornalistas, Padre Cícero não hesitou em armar,
municiar e fardar os cangaceiros e, em arranjo
controverso, outorgar a Lampião a patente de “Capitão
das milícias patrióticas”.
Aclamado pelo povo, Lampião entrou em Juazeiro, concedeu entrevistas,
deixou-se fotografar. Uma dessas fotografias mostra Lampião encenando combate, com
o uniforme dos batalhões patrióticos, portando o famoso lenço amarrado em um anel, o
23 MACEDO, Nertan. Floro Bartolomeu: o caudilho dos beatos e dos cangaceiros. Rio de Janeiro:
Agência Jornalística Image, 1970, p.157.
24 Ibid., p.190.
25 Floro morreu no dia 8 de março de 1926, no Rio de Janeiro. O presidente Artur Bernardes expediu
decreto concedendo-lhe “honras do pôsto de General-de- Brigada – [...] considerando os relevantes
serviços prestados pelo Dr. Floro Bartolomeu da Costa á defesa da ordem do Estado do Ceará,
organizando e comandando fõrças patrióticas”. Decreto presidencial publicado no Boletim do Exército
nº 298, primeira parte, página 37, de 20 de março de 1926, citado por MACEDO, 1970, op. cit., p.203.
26 Ibid., p. 158.
Lampião, comandante do
Batalhão Patriótico (13,9 X
9,0). Autoria: Lauro Cabral de
Oliveira. Coleção Frederico
Pernambucano de Mello.
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punhal e o alforje que lembram sua vinculação com o cangaço. Entrevistado, ele teria
afirmado seu empenho em prestar serviço ao governo da Nação, justificando que “tenho
o intuito de incorporar-me às fôrças patrióticas do Juazeiro e com elas oferecer combate
aos rebeldes [...] geralmente, as forças legalistas não têm planos estratégicos e d’aí os
insucessos dos seus combates que de nada tem valido”.27 Observa o jornalista que as
últimas palavras de Lampião foram para pedi-lhe que enviasse “alguns números do
jornal que publicasse sua entrevista”. Lampião foi entrevistado pelo médico Otacílio
Macedo, correspondente do Jornal O Ceará. Otacílio Macedo descreveu o “retrato” de
Lampião. A entrevista foi publicada em duas edições sucessivas de O Ceará, em 17 e
18 de março de 1926.
[...] era magro, bem proporcionado, de estatura mediana, pele escura e
cabelos fartos e pretos. Sua vestimenta, do tipo comum, incluía um
chapéu de feltro simples (sem os enfeites na aba virada para cima
como os cangaceiros geralmente usavam) e um par de alpargatas de
couro, do tipo usado pelos vaqueiros da região. Ao redor do pescoço,
usava um lenço verde, preso por um anel de brilhante. Mais seis anéis
de pedras preciosas – um rubi, um topázio, uma esmeralda e três
brilhantes – enfeitavam seus dedos, símbolos irônicos das chamadas
profissões liberais no Brasil... Estava armado com um rifle, uma
pistola e um punhal de quase quarenta centímetros de
comprimento.Como protótipo de um cangaceiro, Lampião estava bem
enfeitado e bem armado [...] compenetrado de suas responsabilidades
e da fama de seu nome não
abandonou um momento o
seu mosquetão lendário:
sentado em um tamborete,
apegado à arma homicida,
chapéu na cabeça,
cobrindo os cabelos
longos, pretos e lisos,
óculos e anéis doutorais
[...] Lampião, nesta atitude,
dá assim a impressão de
um Buda chinês.28
Coube ao fotógrafo Lauro Cabral
fotografar Lampião. Cabral propôs-lhe fotografar, prometendo que “dentro de oito dias
seria conhecido em todo o Brasil”. As fotografias foram tiradas dias depois em Juazeiro
quando Lampião e os cangaceiros “se prepararam exclusivamente para isso”. As
imagens fotográficas foram distribuídas à imprensa nacional e o próprio Lampião teria
27 Jornal Pequeno, Recife, 29 de março de 1926.
28 O Ceará, Fortaleza, 17 e 18 de março de 1926.
Lampião (D) e família em Juazeiro de
Norte (14,4 X 22,3). Autoria presumida
de Lauro Cabral de Oliveira, 1926.
Coleção Frederico Pernambucano de
Mello.
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distribuído essas fotografias à população de Barbalha, segundo noticiou O Nordeste:
“[...] apareceram aqui photografias de Lampeão, ostentando duas cartucheiras, que se
cruzam sobre o peito, um lenço sobre o pescoço”. Fotografou-se Lampião ao lado de
irmãos e irmãs, entre os quais os que já viviam em Juazeiro, compondo-se uma espécie
de retrato de família. Entre fotografias e entrevistas, Lampião projetou múltiplas
imagens: chefe guerreiro, homem apegado à família, moralizador dos costumes,
vingador de honra, legalista. A imprensa local denunciou estes “clichês”: “Lampeão lá
esteve como trimphador; e, como requinte de civilização e de estética, [...] fazendo-se
photografar em várias attitudes clássicas de cangaceiro emérito”.29
A estada em Juazeiro teria servido para refinar a imagem do cangaceiro, pois
ele conhecera o sabor da fama, estivera em contato direto com o povo, com fotógrafos,
com jornalistas e autoridades. Depois de 1926, Lampião cuidaria dos pormenores
cenográficos de sua aparência, estilizando a indumentária com chapéus de couro
decorados com medalhas, correias recobertas com peças de ouro, alforjes bordados com
requinte, longos punhais. Ao lado do terror como força de imagem pública, a estética do
cangaço que o consagrou, fazendo-se reconhecer ao público.
LAMPIÃO EM CARTÃO DE VISITA
Em 1936 abria-se a Lampião outra grande oportunidade de ser fotografado
junto com o seu bando. O fotógrafo foi o mascate libanês Benjamin Abrahão Botto.
Benjamin Abrahão fotografado com Lampião, Maria Bonita e cangaceiros. Benjamin Abrahão porta um
embornal com o nome da Abafilm. 1936. Acervo Abafilm.
29 O Ceará, Fortaleza, 29 de dezembro de 1926.
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Na fotografia acima, vê-se Benjamin Abrahão à esquerda apertando a mão de
Lampião, ao centro, tendo a sua direita Maria Bonita em trajes civis. Observado de
perto por outros cangaceiros, Benjamim Abrahão porta um tipo de bornal onde consta o
nome da Aba films. A pose sugere que o palestino desejava provar o inédito encontro
com o chefe dos cangaceiros e possivelmente encarregou algum integrante do bando
para tirar a foto. Benjamin Abrahão instalou-se no Recife, em 1915; depois em Juazeiro
no início dos anos 20, quando se tornou secretário particular do Padre Cícero. Em 1926,
Benjamin Abrahão teria organizado a vinda de Lampião e seu Estado Maior a Juazeiro
do Norte e teria encomendado o trabalho do fotógrafo Lauro Cabral. O fato é que, em
1934, Benjamin Abrahão associa-se com a Ademar Albuquerque, proprietário da
AbaFilms, empresa de divulgação fotográfica sediada em Fortaleza. A Aba Films
representava a firma alemã Zeiss, que deu apoiou financeiro ao empreendimento.
Quando, finalmente, Benjamin Abrahão conseguiu entrar em contato com Lampião, em
maio de 1936, portava equipamento e material fotográficos cedidos pela Carl Zeiss.
Para agradar ao chefe dos cangaceiros, foi-lhe oferecido um par de óculos de fabricação
alemã, cartes-de-visite e cartões postais com sua foto no verso. Em reconhecimento,
Lampião escreveu um bilhete autenticado garantindo direitos exclusivos a Benjamin
Abrahão:
IIImo. Sr. Benjamin Abrahão – Saudações
Venho lhi afirmar que foi a primeira peçoa que conseguiu filmar eu
com todos os meu peçoal cangaceiros, filmando assim todos us
muvimento da noça vida nas catingas dus sertões nordistinos. Outra
peçoa não consiguiu nem consiguirá nem mesmo eu consintirei mais
Sem mais do amigo – Capm. Virgulino Ferreira da Silva
Vulgo Capm. Lampião.30
Lampião já havia adotado para si e para o bando a prática de despachar bilhetes
autenticados de acordo com a ocasião. Entre os inúmeros bilhetes estão os que
cumpriam objetivo de advertir, fazer cobrança, declarar amizade, dar um ultimato,
oferecer venda de proteção, fazer acusação, emitir licenciamento de atividade
econômica, dar garantia perante os cangaceiros, fazer encomenda de armas, encaminhar
entrega de criança e autenticar suas ações. Em 25 de novembro de 1929, na cidade de
Capela, Sergipe, Lampião escreveu uma mensagem em que acusa a polícia de roubo e
violência contra as famílias:
30 Bilhete reproduzido em MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião. Recife/Zurich:
Editora Stahli, 1993, p. 143.
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SALVI – EU CAPm. VIRGULINO FERREIRA LAMPIÃO – Deixo
esta Lça. Para o officiá qui aqui parçar Em minha perçeguição, apois
tenho Gosto que voceis me persigam, Desculpe as letras qui sou Um
bandido como voceis me chama pois eu não mereço, Bandido é voceis
que andam roubando e deflorando as famias aléia porem eu não tenho
este costume todos me desculpe a gente a quem odiar? – Aceite Lças.
Do meu irmão Ezequiel vulgo Ponto Fino e de meu cunhado Virginio
vulgo Moderno.31
Longe de tratar-se de flagrante, a produção e publicação das imagens
fotográficas foram pacientemente negociadas. A revista O Cruzeiro, em edição de
1937, noticiou o encontro e deu ares de façanha a Benjamin Abrahão: “O Sr. Benjamin
Abratias (sic) numa façanha sem par nos anais do cinema nacional, foi encontrar o
bandido em seu covil, e conseguiu convencê-lo a posar para ser admirado pelo público
de todo o Brasil!” Ao final de 1936, Abrahão entregou a Aba Film cerca de quinhentos
metros de filmes para revelação. Em abril de 1937, de acordo com Grunspan-Jasmin,
havia mais de mil metros de filmes processados.
A intensa exposição de parte deste material na
imprensa nacional gerou reação no governo de
Getúlio Vargas, em plena vigência do Estado
Novo. Lourival Fontes, diretor do Departamento
de Imprensa e Propaganda –DIP – ordenou a
apreensão de todo o material produzido na
filmagem. Na seqüência, em 9 de maio de 1938,
Benjamin Abraão foi assassinado em uma cidade
do interior de Pernambuco. Em julho de 1938,
Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros
foram mortos pela polícia alagoana, encerrando-se
praticamente ali a saga do cangaço nos sertões do
Nordeste.
Do trabalho de Abrahão, poucas
fotografias restaram, sendo que a maior parte do material foi destruído pela ação do
tempo. Em algumas, observa-se Lampião lendo um exemplar da Revista Noite
Ilustrada, tendo Maria Bonita ao seu lado.
31 Mensagem reproduzida por MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião.
Recife/Zurich: Editora Stahli, 1993, p. 142-143.
Maria Bonita e Lampião na caatinga,
em 1936 (13,9x 8,8). Autoria:
Benjamin Abrahão Botto. (Acervo
Aba film, Forlaleza – CE/ Família
Benjamin Abrahão -RJ/ Família
Ferreira Nunes, Aracaju-SE.)
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Fotografia e História
Detalhemos a fotografia. Maria Bonita sentada, pernas cruzadas, cabelos
cuidados, tom sereno, segurando dois cães em pose fidalga. O equipamento alemão –
máquina Ica de última geração, da Karl Zeiss, 35 mm, contendo um maço de filmes
Gevart Belgium – focaliza Lampião que está ao lado dela, em pé, olhos fixos na
câmera, tendo em mãos um exemplar de um jornal, provavelmente A Noite Ilustrada.
A imagem fotográfica sugere uma imagem de Lampião como leitor e mais
especificamente leitor de Noite Ilustrada. Sugere ainda possíveis relações do fotógrafo
Benjamin Abrahão com a imprensa do Rio de Janeiro, haja vista a existência de outras
fotografias em que Lampião aparece segurando um exemplar de O Globo. Aliás, desde
o século XIX havia se instalado entre os fotógrafos a prática de se fotografar pessoas
que portavam às mãos algum objeto, inclusive livros. Percebe-se a encenação em
ambiente natural, a pose seguida das representações para a posteridade, plena de
sentido e recursos cenográficos. Esta foto fornece pistas da relação dos cangaceiros
com o mundo dos negócios e da comunicação, indicando que o documento fotográfico
esconde atrás de si uma história cuja intencionalidade deve ser esclarecida.
Donde a necessidade de analisá-lo como monumento e como documento.
Enquanto monumento, a fotografia é uma escolha das forças atuantes no real, uma
herança do passado; enquanto documento, é uma escolha efetuada pelo historiador.
Marc Ferro propõe partir das imagens, mas “[...] não procurar somente nelas
exemplificação, confirmação ou desmentido de um outro saber, aquele da tradição
escrita. Considerar as imagens tais como são, com a possibilidade de apelar para outros
saberes para melhor compreendê-los”.32
A análise das imagens fotográficas requer a distinção entre os conceitos de
iconografia e de iconologia. A análise iconográfica inventaria o conteúdo das imagens
em seus elementos icônicos formativos. A análise iconológica, por sua vez, busca o
significado intrínseco do documento fotográfico e refere-se à realidade interior, o
significado intrínseco de uma imagem. Para ultrapassar o realismo fotográfico é
necessário desenvolver as análises iconológicas, levando-se em conta as representações
32 FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre.
(Dir.). História: Novos Objetos. Tradução de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.
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e as práticas culturais construídas em torno delas e por meio delas. Para o caso das
imagens fotográficas do cangaço, vimos que diferentes sujeitos atuam com
representações distintas nos processos de produção, reprodução e recepção das imagens.


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