sexta-feira, 6 de abril de 2012

edward wiener (odisséia)

do possível e
conforme o caso:
a. incorporar o exame da conservação e utilização sustentável de
recursos biológicos no processo decisório nacional;
b. adotar medidas relacionadas à utilização de recursos biológicos
para evitar ou minimizar impactos negativos na diversidade
biológica;
c. proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos
biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais
compatíveis com as exigências de conservação ou utilização
sustentável,
d. apoiar populações locais na elaboração e aplicação de medidas
corretivas em áreas degradadas onde a diversidade biológica
tenha sido reduzida; e
77 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
e. estimular a cooperação entre suas autoridades governamentais
e seu setor privado na elaboração do método de utilização
sustentável de recursos biológicos.
Art. XV
1. Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre
seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso
a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está
sujeita à legislação nacional.
2. Cada parte Contratante deve procurar criar condições para
permitir o acesso a recursos genéticos para utilização
ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não
impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.
3. Para os propósitos desta convenção, os recursos genéticos
providos por uma parte contratante, a que se referem este
artigo e os artigos 16 e 19, são apenas aqueles providos por
Partes Contratantes que sejam países de origem desses
recursos ou por Partes que os tenham adquirido em
conformidade com esta Convenção.
4. O acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo e
sujeito ao disposto no presente artigo.
5. O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao
consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante
provedora desses recursos, a menos que de outra forma
determinado por essa Parte.
6. Cada Parte Contratante deve procurar conceber e realizar
pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos providos
por outras Partes Contratantes com sua plena participação e,
na medida do possível, no território dessas Partes Contratantes.
7. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas,
administrativas ou políticas, conforme o caso e em
conformidade com os Arts. 16 e 19 e, quando necessário,
mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos arts. 20 e
21, para compartilhar de forma justa e eqüitativa os resultados
da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os
benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra
natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos.
Essa partilha deve dar-se de comum acordo.
78 Cristiane Derani
5. DIREITO DE ACESSO: TITULAR E DIREITOS GERADOS
Se não é o titular do domínio do bem o detentor
necessariamente do domínio da informação, a primeira questão que
se coloca, querendo definir-se um sujeito titular do direito do acesso,
é a relativa a quem pode permitir o acesso?
Havendo interesse de mercado sobre o conhecimento, não será
o detentor do bem, necessariamente, o titular da transação e nem o
definidor do valor de mercado. A Medida Provisória n º 2.186-16/01
prevê que a autorização para investigação sobre as informações do
patrimônio genético provém da União, precisamente do Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético. No caso de utilização deste
patrimônio para fins comerciais, o contrato e o valor serão em última
análise supervisionados pelo CGPG com a subscrição de
representantes da coletividade detentora do conhecimento e contarão
com a sua anuência, mais uma mostra da independência do regime
jurídico do direito de acesso à informação sobre um bem perante o
direito de propriedade sobre o mesmo objeto.
Neste sentido também se coloca o texto do art. 2o. da MP 2.186-
16/01, que define a necessidade de autorização da União para acesso
ao patrimônio genético existente no país:
O acesso ao patrimônio genético existente no País somente será
feito mediante autorização da União e terá o seu uso, comercialização
e aproveitamento para quaisquer fins submetidos à fiscalização,
restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições
estabelecidas nesta medida provisória e no seu regulamento.
A segunda questão que deve ser respondida é sobre quais os
direitos que o acesso pode gerar?
Em primeiro lugar há de se distinguir direito de acesso e direito
de propriedade intelectual. O direito de propriedade intelectual pode
ser atribuído àquele que tem o direito de acesso, porém nem todo
direito de acesso gera direito de propriedade intelectual. A Medida
Provisória, aliás, antes de disciplinar as autorizações como
formalização ao acesso, reconhece um direito de acesso preexistente,
que é o direito das comunidades indígenas e comunidades locais no
uso e exploração do conhecimento que detêm sobre o patrimônio
genético. Embora este acesso seja reconhecido pelo direito, a ele não
se outorga um direito de propriedade. O direito de acesso destes
sujeitos é protegido por outras formas prescritas no capítulo III da MP
79 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
sob o nome da “Da Proteção ao Conhecimento Tradicional Associado”,
arts. 8o e 9o, onde a norma reconhece um fato anterior a ela e o
institucionaliza, incorporando-o ao direito. Como conseqüência, um
conjunto de direitos, garantias e limitações passa a se impor sobre
esta relação dada tradicionalmente.
Por ser uma modalidade de apropriação, a tutela jurídica do
acesso assemelha-se aos elementos constitutivos do direito de
propriedade. A norma define titular, direitos decorrentes do acesso,
garantias contra terceiros e valores sociais que devem estar
contemplados nesta relação de acesso, agora como prática
juridicamente conforme.
Os titulares iniciais do direito de acesso são reconhecidos pelo
Estado como as comunidades indígenas e comunidades locais,
atribuindo-se a elas o poder “para decidir sobre o uso de seus
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do
País, nos termos desta Medida provisória e de seu regulamento” (art.
8o, §1o).
A estes titulares iniciais são também garantidos direitos
específicos expressos no art. 9o:
Art. 9º. À comunidade indígena e à comunidade local que
criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:
I ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em
todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações;
II impedir terceiros não autorizados de:
a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados
ao conhecimento tradicional associado;
b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que
integram ou constituem conhecimento tradicional associado;
III perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros,
direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado,
cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta
Medida Provisória.
Parágrafo único: Para efeito desta Medida Provisória, qualquer
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético
poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas
um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse
conhecimento.
80 Cristiane Derani
Na verdade, aquilo que está expresso no inciso II como direito é
garantia contra terceiros, que também se desenrola no caput do art.
8o, que, de maneira estruturalmente incorreta, segundo nosso ponto
de vista, inicia o tratamento jurídico desta modalidade de acesso pela
garantia contra terceiros, antes de qualquer outra delimitação. Diz o
texto:
Fica protegido por esta Medida Provisória o conhecimento
tradicional das comunidades indígenas e das comunidades locais,
associado ao patrimônio genético contra a utilização e exploração
ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo Conselho de
Gestão de que trata o art. 10, ou por instituição credenciada.
Os poderes e direitos acima expostos são decorrentes de uma
situação jurídica que se reconhece e legitima, qual seja, a de ser
possível sujeitos deterem, originariamente, de forma comunal,
direitos de apropriação sobre informações contidas num bem. A
apropriação das informações genéticas e das suas propriedades por
coletividades, uma vez reconhecidas pelo direito, ganham a forma
jurídica de direito de acesso, cujo sujeito detentor não pode ser
individualizado.
Esta é uma espécie de direito de acesso reconhecida pelo
direito, o qual prescreve também a conversão deste direito de acesso
comum em direito de acesso privatizado, pela sua transmissão.
Por ser uma terceira dimensão de apropriação de um bem, o
exercício do direito e acesso não pode prejudicar os direitos relativos
às demais dimensões. Por exemplo, o conhecimento sobre o uso
medicinal de uma erva não autoriza a invasão de propriedade alheia
para colhê-la. O valor social dos bens hão de ser também respeitados,
pela imposição da observância do princípio da função social da
propriedade no exercício do direito de acesso. Assim se pronunciam
os parágrafos 2o. e 3o. do art. 8o:
“§ 2o. O conhecimento tradicional associado ao patrimônio
genético de que trata esta Medida Provisória integra o patrimônio
cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser
o Conselho de Gestão ou legislação específica”.
§ 3o. A proteção outorgada por esta Medida Provisória não
poderá ser interpretada de modo a obstar a preservação, a utilização
e o desenvolvimento de conhecimento tradicional de comunidade
indígena ou comunidade local.”
81 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
O parágrafo segundo distingue o valor de uso daquele que
detém o conhecimento e o valor social do conhecimento propriamente
dito. A MP tutela o uso e a disposição sobre o conhecimento por seu
titular, e assegura ao mesmo tempo a proteção deste conhecimento
como um aspecto do patrimônio cultural brasileiro, assegurando seu
cadastramento segundo reza o decreto n º 3.551 de 4 de agosto de
2000, que dispõe sobre a proteção da propriedade imaterial que
constitui patrimônio cultural brasileiro.
O parágrafo terceiro limita a interpretação do direito de acesso
ao valor ambiental e propriamente ao exercício da propriedade da
coletividade detentora do bem, explicitando as três tutelas da
apropriação: direito de acesso, princípio da função social da
propriedade, direito de propriedade.
Além de determinação dos titulares, de assegurar direitos a
eles, garantias contra terceiros e poder de ação, além de delimitar o
campo de ação do direito de acesso perante os demais direitos
relativos à apropriação como o direito de propriedade e o princípio da
função social da propriedade, há ainda, de maneira tímida a distinção
destes perante o direito de propriedade intelectual.
Um pouco perdido, sem conteúdo, encontramos a prescrição do
§ 4o. do art. 8o:
A proteção ora instituída não afetará, prejudicará ou limitará
direitos relativos à propriedade intelectual.
Ora, a proteção apresentada, justamente se caracteriza por ser
um reconhecimento a uma situação dada, prévia à regulamentação
jurídica. É certo que direitos de acesso podem gerar direito de
propriedade intelectual, porém, seu momento é posterior ao da
produção cultural tradicional. Portanto, o que se sublinha é o
equivocado enquadramento desta prescrição, que turva sua
compreensão e pertinência, ao inverter causa e conseqüência. A
proteção ao conhecimento tradicional é pressuposto para uma
possível atribuição de direito de propriedade intelectual, como
conseqüência de transação do direito de acesso comunal para um
sujeito individualizado.
O direito de propriedade intelectual é previsto no caso de uso
econômico do conhecimento acessado. Só se justifica o DPI para uso
de mercado, isto é, para gerar valor de troca. O conhecimento como
valor de uso prescinde da atribuição de direito de propriedade, basta
82 Cristiane Derani
ao direito resguarda-lo e assegurar o seu uso definindo, seus titulares
e correlatos poderes.
6. DIREITOS DE PROPRIEDADE E O INGRESSO DO
CONHECIMENTO TRADICIONAL NO MERCADO
O direitos de propriedade são indispensáveis para que se
desenvolvam as relações de mercado. O bem que possui valor de
mercado encontra-se sob o domínio de um sujeito. O mercado
pressupõe a propriedade privada, sujeitos proprietários aptos a
realizarem contratos. No mercado, sujeitos, pessoas generalizadas
pelo seu papel comum de atores do intercâmbio, desprezados em
suas características ontológicas, históricas ou culturais, trocam
direitos de propriedade.
Lógica individualista e privatista entra em choque quando
objetos não são e nem podem ser de apropriação exclusiva e quando
sujeitos não se comportam perante objetos como seus senhores e
prontos a aliena-los.
O mercado tem uma lógica, que não traduz o caminho das
demais relações na sociedade. Nas relações de mercado, os sujeitos
envolvidos são necessariamente proprietários. Sem direitos de
propriedade não se participa destas relações produtivas. A lógica do
mercado é expansiva e exige constante inovação, provocando em seus
agentes uma crescente e inerentemente insatisfeita necessidade de
crescimento e aprimoramento, indispensáveis para manter o livre
jogo das forças produtivas. Conseqüência desta lógica é o domínio do
tempo e espaço histórico e social que devem se submeter às
ansiedades de expansão e de satisfação insaciável.
Na transformação do direito de acesso reconhecido às
comunidades locais e comunidades indígenas em direito privado de
propriedade, ocorre a inserção do processo de apropriação do
conhecimento no mercado. O direito de acesso não tem
necessariamente um valor de mercado, até o momento em que ele
passa a se submeter à lógica do mercado, no que tange o tempo, o
espaço e as intenções dos sujeitos titulares desse direito.
O mercado expande-se para além das fronteiras nacionais e
para além dos seus ambientes e sujeitos. Por onde passa, o mercado
transforma o valor das coisas, precificando-as, isto é, reduzindo-as a
um equivalente comum. Com esta dinâmica, o mercado arrasa com
as diferenças culturais e despreza qualquer medida social e histórica
83 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
de tempo e espaço, na medida que transforma em relação de
intercâmbio mediada por equivalente monetário os gostos, desejos,
cultura, informações, dentro de um espectro mundial. O mercado não
segue qualquer critério moral ou estético senão o criado pelo seu
próprio movimento – moral é negociar, belo é o traduzido pela
mercadoria e por sua publicidade.
Nesta atividade expansionista, ocorre o confronto entre
movimento de criação cultural nas sociedades tradicionais e o
movimento de incorporação e mercantilização das culturas que se
desenvolvem com outro tempo. Deste confronto, a submissão da
cultura à lógica do mercado é a colonização da cultura pelo mercado.
A colonização como processo de adaptação de culturas e
recursos a uma determinada dinâmica produtiva e a um específico
regulamento sobre ela é historicamente presente no desenvolvimento
das relações de mercado, decorrente do movimento expansionista da
produção. Tempo e espaço são submetidos a uma lógica produtiva.
O direito desempenha um papel fundamental no
desenvolvimento desta colonização da cultura pelo mercado, na
medida que consagra sob a forma de um conjunto formalmente
coerente de regras oficiais e, por definição, sociais, universais, os
princípios práticos do estilo de vida simbolicamente dominante10.
Segundo Bourdieu, o efeito de normalização vem redobrar o efeito de
autoridade social que já exercem a cultura legítima e seus detentores
para dar toda sua eficácia prática à coação jurídica11.
A contratação como forma de integração de uma cultura a
outra, disciplinada pelo direito de acesso privado ao conhecimento
tradicional é uma expressão colonialista porque não estabelece um
equilíbrio, gera dominação, ao reduzir idealmente e formalmente as
diferenças efetivas no momento do contrato, transformando
diferenças materiais que se tornam hipoteticamente equivalentes.
No processo de assimilação do direito de acesso comunitário ao
direito privado de propriedade intelectual, com valor de mercado, sem
a construção de uma base estrutural sólida que permita a
reconstrução da cultura, reproduz-se a ciranda do subdesenvolvimento.
O direito de acesso quando incorporado ao processo de
desenvolvimento valoriza a cultura e as relações humanas locais,
enquanto gera riqueza de mercado. A transferência do direito de
acesso reconhecido pelo direito para terceiros, transporta esta forma
10 Cf. BOURDIEU, Pierre. Poder, Derecho y Clases Sociales. Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S. A, 2000, p. 213.
11 IDEM
84 Cristiane Derani
de apropriação em mercadoria, que se não devidamente inserida no
mercado perpetua e aprofunda as diferenças entre os povos.
Segundo J.M. Cardoso de Mello, “três elementos caracterizam a
periferia subdesenvolvida: a natureza dinamicamente dependente do
sistema produtivo; a fragilidade monetária e financeira externa; a
subordinação político-militar. Estes são os traços determinantes da
condição periférica e não, propriamente, a produção de alimentos e
matérias-primas”12.
Como já explicado, o acesso à informação é uma forma de
apropriação que passa a ser protegido pela MP 2186-16/01, que
inicialmente reconhece uma relação de apropriação preexistente, o
direito de acesso por comunidades tradicionais, para depois regular
as formas de sua transferência para terceiros. A transferência
onerosa, do direito de acesso, entra na dinâmica da liberalização do
mercado e na busca incessante de se incorporar novas mercadorias
às práticas de intercâmbio globalizada, a exemplo do que ocorreu com
os serviços públicos.
As formas de liberalização e desregulamentação trabalhadas na
rodada do Uruguai apresentaram uma nova maneira de construir
valores (especialmente na forma de direitos de propriedade
intelectual), transformando-os em mercadorias negociáveis. Onde
chega a apropriação privada, deve desaparecer o acesso livre,
incorporados em negociações das poderosas corporações transnacionais
voltadas à biotecnologia13.
Os teóricos do mercado neoliberal modelam suas teorias para
um mundo sem tempo nem espaço, isto é, sem história, sem cultura;
onde o dinheiro acima de tudo neutro, não oferece qualquer restrição.
Na realidade, entretanto, o mercado mundial oferece grande
resistência a esta expansão monetária, quais sejam sociais,
ecológicas e mesmo econômicas.
Os anos 90 aprofundaram as diferenças sociais nos países e ao
mesmo tempo o fosso entre os países ricos e pobres e entre as regiões
mais abastadas e menos prósperas. Ao invés de levar adiante mais
proteção ambiental pública e responsabilidade social, a globalização
conduziu à concepção de um ambiente que somente é visto como um
‘busisness opportunity’.
12 MELLO, João Manuel Cardoso de. “A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição
crítica latino-americana”; in Tavares, Maria da conceição e Fiori, José Luís (org.). Poder e dinheiro - Uma
economia política da globalização. Rio de Janeiro, Vozes, 1997, P. 18.
13 ALTVATER, Elmar; Mahnkopf, Birgit Grenzen der Globalisierung, Münster,
Verlag Westfalisches Dampfboot, 1997
85 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
A tomada do tema ambiental pela agenda do Mercado, onde
nada além do crescimento acumulativo é notado aprofundou ainda
mais a separação nefasta entre questões ambientais e sociais14.
O capital intelectual é a força propulsora da nova era, e muito
cobiçada. Conceitos, idéias e imagens – e não coisas – são verdadeiros
itens de valor na nova economia. A riqueza já não é mais investida no
capital físico, mas na imaginação e na criatividade humana. Deve-se
ressaltar que o capital intelectual raramente é trocado. Em vez disso,
é detido pelos fornecedores, alugado ou licenciado para terceiros,
para uso limitado15. Rifikin fala em “Commodities culturais”16, para
expressar o valor de mercado das expressões oriundas do
desenvolvimento cultural.
Na década de 80 e 90, a desregulamentação das funções e dos
serviços do governo foi a moda na política. Em menos de vinte anos,
o mercado global absorveu, com sucesso, grande parte do que antes
era a esfera pública – incluindo o transporte coletivo, serviços de
utilidade pública e telecomunicações – no âmbito comercial. Agora, a
economia voltou sua atenção para a última esfera independente
remanescente da atividade humana: a cultura. Ritos culturais,
eventos comunitários, reuniões sociais, as artes, esportes e jogos,
movimentos sociais e engajamentos cívicos estão ocupando a esfera
comercial. A grande questão nos próximos anos é se a civilização
poderá sobreviver com um governo e uma esfera cultural
extremamente reduzidos e onde apenas a esfera comercial é deixada
como o mediador básico da vida humana17.
Apesar da colonização operada pelo mercado sobre o espaço
público, há um limite de expansão do mercado que necessita de
relações fora-do-mercado, para sobreviver. Jeremy Rifikin anota com
perspicácia:
É importante frisar que a esfera comercial sempre derivou da
esfera cultural e dependeu dela. É por isso que a cultura é a fonte
eterna da qual normas de comportamento de aceitação geral são
estabelecidas. São essas regras de conduta, por sua vez, que criam um
ambiente confiável dentro do qual o comércio e as negociações
ocorrem. Quando a esfera comercial começa a devorar a esfera
14 ACSELRAD, Henri. “Die ökologische Herausforderung zwischen Markt, Sicherheit und Gerechtigkeit”; in Görg, Christoph
(org.). Mythen Globalen Umweltmanagements. Münster, Verlag Westfälisches Dampfboot, 2002, p. 56.
15 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso. São Paulo, Makron Books, 2001, p.4.
16 idem, p.6.
17 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso. São Paulo, Makron Books, 2001, p. 8, 9.
86 Cristiane Derani
cultural ela ameaça destruir as próprias fundações sociais que dão
origem às relações comerciais.[...]
Encontrar um meio sustentável de preservar e incentivar a
diversidade cultural que seja vital para a civilização em uma
economia de rede global cada vez mais baseada no acesso pago a
experiências culturais transformadas em commodities é uma das
tarefas políticas fundamentais no novo século”18.
Quando a apropriação da cultura passa a gerar direitos de
propriedade individualizados, é importante cuidar para que a fonte
desta riqueza apropriada não seja destruída. A cultura representa
uma riqueza, que poderá ser traduzida por um preço ao ser
privatizada e inserida no mercado. Porém, nem sempre preço equivale
ao valor da riqueza, sobretudo se esta riqueza não é produzida no
interior do mercado. É possível, que a precificação, isto é, a inserção
de um valor no mercado, leve à destruição da riqueza ou sua
desvalorização, se este movimento de inserção no mercado não
resultar em benefícios concretos de melhoria das condições sociais de
existência.
Concluindo, é importante estabelecermos a divisão das
categorias jurídicas a serem enfrentadas para podermos operá-las em
benefício da produção de riqueza concreta e de um desenvolvimento
social que seja sustentável. Direito de propriedade - material e
intelectual-, o princípio da função social da propriedade e, agora, o
direito de acesso são três dimensões jurídicas da tutela da relação de
apropriação do meio, que devem ser utilizadas de maneira
instrumental. Não se trata aqui de idealizar um e satanizar outro. O
importante é conhecer as possibilidades e os limites ofertados por
cada uma destas categorias para a construção do verdadeiro
desenvolvimento das potencialidades humanas e do poder criativo da
cultura para construir o bem-estar das sociedades humanas.
A idéia do fundamentalismo do mercado, fundada na
distribuição de direitos de propriedade individualizados e na fé da
iniciativa individual para maximizar suas vantagens mediante a
definição de preços e o intercâmbio, deve ser afastada. As práticas de
mercado e suas categorias devem ser circunscritas a um campo em
que o mercado seja um dos momentos viabilizadores da integração,
porque ele, sem dúvida, não é a panacéia dos males da desigualdade.
Toma-lo como o caminho e a verdade certamente não é o mais correto
na busca da superação do abismo em que se colocam regiões e
87 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
18 Idem, p.10.
setores mais afortunados daqueles depauperados cobertos de
desesperança.
O patrimônio genético é valor buscado pelo mercado e,
paradoxalmente, concentra-se em regiões de pobreza. O caminho do
valor pode ser sua transformação em riqueza concreta ou sua
representação em expressão monetária intercambiável. No primeiro
caso, o valor se converte em bem-estar pela sua incorporação na rede
produtiva da sociedade que o detém. No segundo caso, há sua
precificação, que viabiliza sua transferência. Resta saber se esta
transferência será apta a aportar novas riquezas ou viabilizar,
apenas, a perda e evasão mediada pela “negociação”. Enfim,
desenvolvimento não tem como condição a incorporação pelo
mercado de todos os valores existentes na sociedade.
Desenvolvimento requer a capacidade de transformar valor em
riqueza social, da maneira mais direta e eficiente. Direitos de
apropriação devem ser instrumento do desenvolvimento e não
finalidades em si mesmas ou – pior – caminhos para a reprodução do
roto papel de fornecedor apático de valor primário no mercado
internacional.
88 Cristiane Derani
Os Povos Indígenas
Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual1
Fernando Antonio de Carvalho Dantas2
INTRODUÇÃO
Quando os conquistadores espanhóis invadiram o
império Asteca, na América Central, em 1518, encontraram
prostitutas que mascavam um tipo de goma, descoberta
centenas de anos antes pelos Maias, no sul do México. Eles
perceberam que o chicle – um líquido grosso e leitoso que
saía de cortes feitos na árvore sapodilha e depois
endurecia em forma de goma – era extremamente
saboroso. A goma de mascar foi preservada pelos
habitantes das florestas do México e da América Central
até ser descoberta nos Estados Unidos pelo fotógrafo
Thomas Adams Jr., em 1870. Ele era vizinho do ditador
mexicano António Lopez de Santa Anna, exilado em Nova
York um ano antes, junto com seu secretário, Rudolf
Napegy. Lopez aliviava as tensões de seu exílio forçado
mascando pedaços de chicle. Napegy apresentou a
novidade para seu amigo Adams. Alguns dias depois,
Adams estava numa farmácia e ouviu uma moça pedir um
1 Trabalho desenvolvido para o Encontro sobre Propriedade Intelectual e Direito dos Povos realizado entre os dia 2
e 4 de dezembro de 2002, em Sevilha – Espanha, organizado pela Fundación Iberoamericana de Derechos Humanos
por iniciativa do Forum Mundial de Alternativas de Sevilha e do Forum do Terceiro Mundo, com sede em Dakar,
patrocinada pelo Instituto de Estudos Europeus Internacionais e pelo Ministério da Cooperação de Luxemburgo.
2 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professor e Coordenador do Programa de Mestrado
em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
89 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
tablete de cera parafinada para mascar. Foi aí que teve um
estalo.
Depois de inúmeras tentativas, Adams adicionou
alcaçuz ao produto e o batizou de Black Jack. Fez o chicle
em forma de pequenas bolas, embalou-o em caixas e
passou a oferece-lo em estabelecimentos de Nova Jersey
em 1872. Oito anos depois, uma indústria de Cleveland
lançou um chicle que se transformou num dos sabores
preferidos: hortelã. Na mesma década, Adams criou
máquinas automáticas para vender chiclete em
plataformas de estações de trem e surgiu aí o sabor tuttifrutti.
3
O texto acima, amplamente divulgado como paradigma de
marcas e produtos famosos, mundialmente conhecidos, muito bem
ilustra o tema que será abordado no presente trabalho, qual seja: A
propriedade intelectual e o direito dos povos indígenas. De
imediato, algumas questões de caráter histórico, sócio-político,
econômico e jurídico, imprescindivelmente deverão ser abordadas,
uma vez que os processos colonialistas – sempre repetidos e
renovados – situam-se na ponta de qualquer discussão sobre o
direito, seja este o ocidental moderno ou o direito dos povos, ambos
caracterizados, respectivamente, pelos binômios
dominante/universalizante e dominado/particular-instituinte, diante
do arcabouço jurídico-formal das sociedades ditas modernas, que
pretende-se hegemônico no mundo contemporâneo.
É o que procurar-se-á apresentar a seguir, através de
demonstrações, de como o modelo de sociedades (organizadas em
Estados), de economia (triunfalmente festejada como unicamente
capitalista após a queda do muro de Berlin) de conhecimento
(estruturado em formas e fórmulas científicas) e de direito
(monisticamente formalizado), ao longo da história – entendida como
método que permite, conhecer, transmitir e, conseqüentemente,
avaliar as origens, tradições, costumes dos povos4 e suas instituições
– paradoxalmente, ademais de excluir e ocultar toda e qualquer
diferença, apropriou-se e, constantemente, busca apropriar-se de
determinados aspectos sócio-culturais dessas diferenças que lhes
3 DUARTE, Marcelo. O livro das invenções. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 318. A título de informação,
juntamente com o chiclete Adams, o autor traz, entre outras, marcas igualmente famosas como: Toddy, Yacult, alka
Setzer, Aspirina, Bic.
4 TAPIOCA, Ruy. A República dos bugres. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 209.
5 GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
90 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
pareçam relevantes, reelaborando-os e traduzindo-os em formas e
fórmulas culturais dominantes5.
Para os contornos do presente estudo, tomaremos como
aspecto relevante a biodiversidade, o patrimônio genético e o
conhecimento tradicional associado dos povos indígenas e das
comunidades locais sul-americanas, notadamente as brasileiras – de
modo genérico – com vistas a situá-los diante das, cada vez mais
intensas, investidas de mercantilização do patrimônio genético e do
conhecimento tradicional associado, defendidas e impostas pelas
políticas neoliberais do processo de globalização, por meio da
chamada “padronização” dos regimes de propriedade intelectual.
Os âmbitos de problematização do presente trabalho
encontram-se delimitados no campo do direito e suas necessárias
relações interdisciplinares. Assim, a abordagem será guiada no
sentido de fornecer subsídios para a discussão no que diz respeito à
paradoxal complexidade que envolve a formalização dos direitos de
patente (criação/produção intelectual) e os direitos pessoais, direitos
patrimoniais e direitos humanos; sua origem individual ou coletiva;
possibilidades de acesso privado ou público; modalidades de proteção
interna (local/nacional) ou externa (global/internacional); os
benefícios advindos do acesso e, por último, se é possível outras
formas alternativas e conceituais de sistematização e aproveitamento
das criações e produções intelectuais, todas essas questões
relacionadas com o direito de povos (sociedades simples ou
complexas) não integrantes do seleto grupo de países desenvolvidos.
Nesse sentido, é importante salientar, desde logo, que a questão
da criação/produção intelectual dos povos, no contexto atual, não
pode afastar-se da perspectiva informacional/comercial que “parece”
ter tomado de assalto todos os recônditos do mundo e, de um
momento para outro, uma prática sócio-cultural de cura de um povo
longínquo, de repente, pode tornar-se objeto de cobiça mercantil e
ser, segundo os padrões internacionais de registro de patentes de
invenções e outras formas de propriedade intelectual, apropriadas
por grandes empresas multinacionais. Não é outro o interesse de
países desenvolvidos como, por exemplo, os EUA, segundo Benjamin
CORIAT, ao afirmar que a política desse país, de infiltração de suas
próprias leis sobre propriedade intelectual nos acordos bilaterais e
91 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
6 CORIAT, Benjamin. The new global intellectual property rights regime and its imperial dimension:
implications for “north/south” relations. Seminário Internacional “Novos Rumos do Desenvolvimento”. Rio de
Janeiro: BNDES, Setembro 2002.
multilaterais de comércio,6 visa o predomínio e a manutenção do
fosso tecnológico entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Ainda, o mesmo autor, em entrevista publicada em periódico de
abrangência nacional adverte sobre a dimensão imperial das
posturas norte-americanas em relação à infiltração de suas leis de
patentes nos acordos de comércio, às quais denomina de “direito
imperial”. O objetivo americano, segundo o professor da Universidade
de Paris 13, é reservar o “uso exclusivo do novo conhecimento para
benefício de grandes firmas multinacionais”.7
Assim, as reflexões sobre os direitos de propriedade intelectual
dos povos indígenas e das comunidades locais encontrarão no
conflito individual / coletivo, privado / público, comércio /
indisponibilidade, primitivo/alternativo, a dialética necessária para a
abordagem de tema tão complexo quanto atual, iniciando-se com a
característica primordial e inafastável das culturas indígenas que é a
relação/contraposição homem natureza, espaço e vida.
1. DIREITOS INDÍGENAS: POVOS, TERRITÓRIOS E
RECONHECIMENTO
Os povos indígenas no Brasil, hoje, somam uma população
aproximada de 280 mil pessoas, distribuídas em 210 etnias
conhecidas, que falam em torno de 170 línguas diferentes e ocupam
563 terras indígenas.8 Vivendo espalhados por todo o território
nacional, a maior concentração demográfica e populacional indígena
situa-se na Amazônia legal,9 região considerada como a última
fronteira de ocupação e exploração do país, e, evidentemente, onde,
de certo modo, a natureza mantém-se preservada.
Três motivos parecem contribuir para isto: em primeiro lugar, o
ambiente propício, equilibrado ecologicamente; em segundo, o
processo de ocupação e desenvolvimento do país, somente alcançou
a região amazônica no final da década de 1960 e durante a década de
1970, com a euforia dos governos militares do chamado milagre
econômico; e, em terceiro, a mudança no senso comum acerca das
92 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
7 CORIAT, Benjamin. Direito imperial made in usa. Entrevista concedida a William Salasar. Revista Carta Capital:
Política, Economia e Cultura. São Paulo: Ano IX, nº. 208, 2002, p. 40-41.
8 PANTALEONI RICARDO, Fany e SANTILLI, Márcio. Terras indígenas no Brasil: um balanço da era Jobim. São Paulo:
Documentos do ISA, nº. 003, 1997, p. 31.
9 A Amazônia legal, para efeitos de estudo, é a região que compreende todo o Norte do país com os estados de
Rondônia, Acre, Amazonas, Pará, Roraima e Amapá, parte do Centro-oeste com o norte de Goiás e Mato Grosso e
extremo ocidente do Nordeste com o Estado do Maranhão.
sociedades indígenas, por meio da divulgação e incremento dos
estudos de etnologia e antropologia, com a conseqüente organização
dos próprios índios e da sociedade civil em defesa dos direitos das
populações indígenas.
As regiões Sul, sul do Mato Grosso e Goiás, Sudeste e Nordeste,
apresentam, nos três primeiros, grandes concentrações de população
indígena, ficando o Sudeste e Nordeste, por questões históricas que
remetem a uma análise criteriosa do processo de colonização e
ocupação do país, com número mais reduzido.
A considerar que as estimativas da população indígena
brasileira, à época da conquista, dão conta de mais de dois milhões
pessoas, o decréscimo populacional que os reduziu à soma atual se
deu em função de vários fatores genocidas e etnocidas, entre outros:
as guerras, doenças, massacres e espoliação territorial. O principal
objetivo era o extermínio e o afastamento dos povos indígenas dos
territórios que a Coroa portuguesa e, posteriormente, o Estado
brasileiro pretendiam ocupar.10
Nesse sentido, é preciso contextualizar os períodos históricos
da ocupação do país o que implica em demonstrar os interesses
econômicos definidores dos modelos de ocupação, calcado na
propriedade privada e exploração dos recursos naturais que podem
ser representados, segundo a obra de Berta RIBEIRO, em três frentes
de expansão: extrativista, agropastoril e a última fronteira.11
Na época do Brasil Colônia, o interesse da Coroa portuguesa em
explorar os recursos naturais das terras conquistadas basicamente
cingia-se à extração vegetal e mineral, aliada ao projeto político de
ocupação territorial, com o intuito de consolidar o domínio sobre as
terras que considerava suas por direito de descoberta.
O processo de ocupação iniciado pela costa, com o corte de
imensas florestas de pau-brasil (Caesalpinia echinata) propiciou o
encontro fatal para o povo Tupinambá, que praticamente
desapareceu de seu vasto território litorâneo, compreendido entre o
Rio de Janeiro e Pará. Com o escasseamento dos recursos vegetais,
partiu-se para a investida agrícola na região mais interiorana, com o
estabelecimento de canaviais para abastecer os engenhos de açúcar
e a implantação dos currais12 nos interiores do sertão nordestino,
93 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
10 RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global Editora, 1987. A mesma classificação pode ser
encontrada em Eduardo GALVÃO, Egon SCHADEN, Roberto Cardoso de OLIVEIRA e Darcy RIBEIRO, entre outros.
11 Id., p. 17.
12 Fazendas de criação de gado, segundo Frederico Bezerra MACIEL. (MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião seu tempo
e seu reinado. Vol I. Petrópolis: Vozes, 1985).
tendo como principal empresa a Casa da Torre, braço da Companhia
das Índias Ocidentais.
Em seguida, ainda no período colonial, o extrativismo mineral
configura nova frente expansionista que atinge os sertões de Minas
Gerais, em busca das jazidas de ouro e pedras preciosas. Partindo de
São Paulo, os bandeirantes abriam caminho para a implementação
das fazendas de criação de gado e empresas cafeeiras na região
Sudeste, espantando os povos indígenas que encontravam, quando
não, exterminando-os em guerras. Deste modo, a custa de muito
sangue derramado - e isto não como força de expressão! -, o
afastamento dos povos indígenas de territórios imemorialmente
ocupados, foi inevitável.
Nessa época, a pretexto de legitimar a declaração de guerra aos
povos indígenas, o Reino Português, através da Carta Régia de 9 de
setembro de 1718, declarava que os índios “...são livres e izentos de
minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras
para tomarem um modo de vida de que elles se não agradão.”13
Em meados do século XIX e início do século XX, já no período
político de transição do Império para a República, a Amazônia
desponta com incomensurável potencial extrativista, tendo na
borracha o principal produto. As empresas caucheiras, pressionadas
pela demanda da matéria-prima para a fabricação de pneumáticos,
intensificam a busca de seringueiras (Hevea brasiliensis) adentrando
por regiões longínquas, atingindo povos indígenas até então
desconhecidos.
O advento da República e o estabelecimento do Estado
Federativo Brasileiro implementaram nova política integracionista,
baseada em princípios positivistas e tendo como ideário geopolítico a
ocupação e definição das fronteiras e limites territoriais do país.
Nessa época, com a instituição das linhas telegráficas e das ferrovias,
interligando as regiões mais distantes ao poder central, surge a
Comissão Rondon que realizou contato com diversos povos indígenas
do Brasil central.
Ao longo das últimas décadas do século passado, os povos
indígenas deparam-se com as investidas de garimpeiros, empresas
mineradoras e madeireiras, construções de rodovias e hidrelétricas,
entre tantos outros empreendimentos econômicos que, seguindo a
histórica estratégia de exploração econômica dos recursos naturais
do país, desconsideravam a presença e o domínio territorial das
sociedades indígenas.
94 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
13CARNEIRO DA CUNHA, Maria Manuela. Os direitos do índio. Sao Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 61.
Atualmente, uma nova frente de exploração se avizinha, desta
vez engendrada pela política econômica global, notadamente no que
concerne a bioprospecção tendente à conseqüente utilização do
patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados dos
povos indígenas em escala comercial. Esta última frente será o
principal foco que a seguir será apresentado, não sem antes delinear
algumas características relativas ao espaço de desenvolvimento das
ações e práticas da vida indígena.
2. AS TERRAS INDÍGENAS: ESPAÇOS DE VIDA CONCRETA
A primeira questão que vem à mente quando se fala em povos
indígenas e seus direitos é saber: o que são e em que consistem os
espaços de domínio indígenas? A resposta é complexa, uma vez que
envolve as noções de território e de terra, cuja conceituação remete a
categorias juridicamente antagônicas.
Segundo Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO, terra referese
à propriedade individual, portanto é conceito eminentemente
civilista, privado; já território, diz respeito à jurisdição sobre um
espaço geográfico, evidenciando o caráter coletivo, público. Sobre o
conceito jurídico de território, enfatiza a clássica postura que o situa
como um dos elementos que formam o Estado, juntamente com povo
e governo. Assim, o território define os limites físicos do poder do
Estado, o que vale dizer: jurisdição e soberania.14
A terra é para os povos indígenas, espaço de vida e liberdade.15
O espaço entendido enquanto lugar de realização da cultura. As
sociedades humanas e, neste caso, as sociedades indígenas,
constroem seus conhecimentos a partir de cosmologias próprias,
elaboradas coletivamente com base nas experiências sociais, o que
demonstra visões de mundo não compatíveis com o modelo
individualista ocidental.
Na lição de Kimiye TOMASINO, “cada sociedade elabora a sua
concepção de tempo e de espaço conforme sua visão de mundo, a
qual também orienta as suas práticas e relações sociais e simbólicas
com a natureza e entre si”.16 Equivale dizer: a construção do território
14 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, p. 131.
15 Id., p. 130.
16 TOMASINO, Kimiye. Os Kaingang da Bacia do Tibagi e suas relações com as terras baixas. Relatório parcial de
pesquisa sem maiores datos. Londrina: [s. n.] 1998, p. 6.
95 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
e da pessoa relacionam-se em um complexo de significados
produzidos socialmente.
Portanto, para responder à indagação inicial é imprescindível
levar em conta alguns pressupostos que diferenciam conceitualmente
os espaços/terras indígenas das noções estanques de terra e
território delineadas anteriormente. Em primeiro lugar a terra
indígena enquanto espaço vital e necessário para o habitat de um
povo, representa o meio de sobrevivência físico-cultural; em segundo,
as relações que esse povo estabelece com o espaço constituem-no em
base da sua organização social. O espaço da subsistência, onde se
praticam as atividades de agricultura, caça, pesca e coleta, segundo
o modo de utilização de cada povo. Este espaço alia-se,
conseqüentemente, às formas simbólicas que orientam a cultura.
A conjunção dos elementos naturais e culturais na construção
dos espaços habitados pelas sociedades indígenas evidencia o
conceito de território como mais adequado para a sua definição, pois,
os modos de utilização e ocupação, segundo usos, costumes e
tradições os especializam, conforme teoriza Alcida Rita RAMOS:
Para essas sociedades a terra é muito mais do que simples meio
de subsistência: ela representa o suporte da vida social e está
diretamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é
apenas um recurso natural, mas - e tão importante quanto este - um
recurso sócio cultural.17
A Constituição Federal brasileira de 1988, no § 1º. do Art. 231,
define a categoria jurídica em que consistem as terras indígenas,
como aquelas tradicionalmente ocupadas pelos índios, habitadas em
caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas,
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar, necessárias à reprodução física e cultural, segundo
seus usos costumes e tradições.18
Assim, pode-se dizer, a partir dos pressupostos constitucionais,
que terras indígenas são aquelas habitadas pelos povos indígenas,
enquanto espaço de vida, adequado às suas peculiaridades culturais
e imprescindíveis para sua reprodução física e cultural.
96 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
17 RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. Apud: TOMASINO. Os Kaingang... op. cit., p.6.
18 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
“Art. 231 (...) § 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições”.
19 SOUZA FILHO. O renascer..., op. cit., p. 134.
Invertendo a ordem dos pressupostos anunciados acima,
configura-se não a terra, mas os territórios indígenas, porque
orientados pelo evidente princípio que encerra a disposição
constitucional, qual seja: a ocupação indígena é definida a partir dos
usos costumes e tradições de cada povo. Nesse sentido, afirma
SOUZA FILHO que usos, costumes e tradições “quer dizer direito, e,
mais, direito consuetudinário indígena”.19
Assim, a Constituição reconhece a ocupação tradicional, ou
seja, as formas de uso que cada cultura indígena emprega ao definir
o território como construção social, base física para a realização da
cultura, conforme já foi dito anteriormente, e como, para citar mais
um exemplo, o povo Guarani-Mbyá, habitantes de vasta região do
Brasil meridional o concebem: espaço, lugar, possibilitador da vida
social, com características ecológicas, históricas e míticas,
relacionadas ao modo de ser guarani.
A tradicionalidade da ocupação indígena, referida na
Constituição Federal, não se relaciona com a noção de tempo linear
como parece supor, mas ao modo tradicional da ocupação indígena,
segundo a cultura de cada grupo. Este é o entendimento de José
Afonso da SILVA:
O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância
temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e
utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao
modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há
comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm
espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo
se realiza segundo seus usos costumes e tradições.20
Anteriormente à Constituição de 1988, o Estatuto do Índio já
reconhecia a tradicionalidade como forma da ocupação indígena
sobre as terras, razão pela qual, neste aspecto específico, foi
recepcionado pela nova ordem constitucional,21 classificando-as em
três categorias: terras ocupadas, áreas reservadas e terras de
domínio indígena. 22
As terras ocupadas são aquelas habitadas permanentemente
pelos índios segundo seus usos, costumes e tradições, sobre as quais
têm a posse e o usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas
97 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
20 SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In: SANTILLI Juliana (Org.). Os direitos
indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI-Núcleo de Direitos Indígenas e Sérgio Antonio Fabris Editor. 1993,
p. 45.
21 SOUZA FILHO. O renascer..., op. cit., p. 142.
22 BRASIL. Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973. (Estatuto do Índio)
as utilidades nelas existentes. Os direitos dos índios sobre as terras
ocupadas independem de demarcação.
Por áreas reservadas compreende-se àquelas que a União
poderá estabelecer em qualquer parte do território nacional,
destinadas à ocupação pelos índios. Essas áreas são as seguintes:
reserva indígena; parque indígena; colônia agrícola indígena e
território federal indígena.
As terras de domínio indígena são aquelas de propriedade plena
do índio ou de comunidade indígena, havida por qualquer das formas
de aquisição elencadas na legislação civil.
Pela análise dessas categorias, percebe-se que no conceito de
terras ocupadas reside a identidade com o princípio constitucional,
porque baseadas na tradicionalidade da ocupação. Ademais, toda a
legislação indigenista deve ser interpretada a partir dos princípios
consagrados na Constituição, de modo a dar efetividade às garantias
consagradas na nova Carta Política.
A tradicionalidade e as características especiais da ocupação,
aliadas à natureza de bens da União, implicam a inalienabilidade,
indisponibilidade e a imprescritibilidade dos direitos originários dos
índios às terras e a nulidade absoluta dos títulos que porventura
incidam sobre o domínio, ocupação ou posse indígenas, assim como
exploração dos recursos nelas existentes.
Além dessas conseqüências, a Constituição garante aos povos
indígenas outros direitos relacionados às terras como: a posse
permanente, usufruto exclusivo das riquezas naturais, a vedação à
remoção dos lugares onde habitam, a obrigatoriedade da consulta aos
grupos sobre a exploração, por terceiros, dos recursos naturais, bem
assim, garante a participação nos resultados.
Os fundamentos jurídicos das terras indígenas, enquanto
direito constitucionalmente garantido, permearam a história
constitucional brasileira a partir da Constituição de 1934.
Entretanto, o reconhecimento desses direitos enquanto originários
veio com a Constituição de 1988, que consagrou a tese de João
MENDES JÚNIOR, segundo a qual os direitos indígenas sobre as
terras configuram “direitos congênitos”, ou seja, direitos históricos
que precedem à criação do Estado.23
A formulação teórica desse conceito, no início do século
passado, pelo jurista João MENDES JÚNIOR, tem como base o
98 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
23 MENDES JUNIOR, Joao. Os indígenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos. Sao Paulo: Edição Facsimilar,
Typ. Hennies Irmaos. 1912.
24 CARNEIRO DA CUNHA. Os direitos..., op. cit., p. 59.
indigenato consagrado no Alvará de 1.º de abril de 1680 que declarou,
de modo protetivo, a salvaguarda dos direitos indígenas sobre as
terras, que não poderiam ser afetados pela concessão de sesmarias,
justificando essa proteção, no fato de serem os índios “primários e
naturais senhores de suas terras”.24
O indigenato como fonte primária e congênita de posse
territorial, segundo José Afonso da SILVA, “é legítimo por si, pois não
se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é
direito congênito, enquanto que a ocupação é direito adquirido”.25
As terras indígenas, congenitamente apropriadas como manda
a Constituição, e declaradas26 como bens da União, portanto, bens
públicos, não se regem pelas regras do direito privado, nem tampouco
podem ser enclausuradas nos estritos conceitos de posse e
propriedade formulados pelo direito privado clássico. Essa
especialidade faz com que Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO
conclua que “não são propriedade”. Constituem outro modo de
apropriação, coletivo, marcado pela cultura, espaço de liberdade e
práticas sociais de um povo, portanto, distinto do conceito
privatístico.27
Por outro lado, José Afonso da SILVA entende que a outorga
constitucional desses bens à União visa à proteção das terras
indígenas e vinculam-se à efetividade dos direitos indígenas, pois
quando a Constituição declara:
Que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou uma
propriedade reservada com o fim de garantir os direitos dos índios
sobre elas.28
A destinação constitucional das terras indígenas para a posse
permanente e habitação permanente dos índios, a exemplo do
conceito de tradicionalidade explicado anteriormente, não se
confunde com efetividade de posse como utilização econômica do
prédio, enquanto instituto regulado pelo direito civil.
A posse indígena é específica, e seus contornos são
determinados pelo princípio que impõe o modo indígena de utilização
do território fundado em usos, costumes e tradições. Segundo, ainda,
José Afonso da SILVA:
99 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
25 SILVA, José Afonso da. Auto-aplicabilidade do Art. 189 da Constituição Federal de 1969. Boletim Jurídico da
Comissão Pró-índio de São Paulo. Ano I, nº. 3, 1984, p. 4.
26 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
“Art. 20 - São bens da União: (...) XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.”
27 SOUZA FILHO. O renascer..., op. cit. p. 131.
28 SILVA. Terras..., op. cit., p. 46
[...] quando a Constituição declara que as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam a sua posse
permanente, isso não significa um pressuposto do passado como
ocupação efetiva, mas, especialmente uma garantia para o futuro, no
sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são
destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se se destinam (destinar
significa apontar para o futuro) à posse permanente, é porque um
direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário....29
Desta forma, a posse civilista enquanto poder de fato sobre a
coisa, com o ânimo de tê-la como se dono fosse, configura categoria
jurídica à qual as terras indígenas não se enquadram. A posse
indígena, como foi visto, refere-se ao habitat de um povo, é posse
coletiva. Para as sociedades indígenas a posse se dá com atenção ao
modo de vida singular e às práticas sociais de cada povo, enquanto
utilização do espaço para sua reprodução física e cultural.
Esses espaços, altamente simbolizados, compreendem os
lugares de localização das aldeias, lugares de caça e coleta, lugares
sagrados, enfim, o território de realização da cultura.
Por fim, o direito dos povos indígenas à terra, por ser originário,
independe de demarcação, como se denota do texto constitucional.
No entanto, para a garantia da efetividade desses direitos, a própria
Constituição competiu à União o dever de demarcar, proteger e fazer
respeitar todos os bens das sociedades indígenas.
No plano jurídico internacional, a proteção das terras indígenas
encontra fundamento nas regulações da Organização Internacional
do trabalho – OIT. A Convenção 169 – não ratificada pelo Brasil –
dispõe nos artigos 13 a 19, as formas de garantias e conceitos
aplicáveis a essas terras.30
A garantia dos direitos indígenas sobre a terra e seus recursos
naturais do solo e subsolo, o patrimônio genético e o conhecimento
tradicional associado, bem assim a liberdade de autodeterminação no
governo desses bens a partir de práticas sociais especificamente
indígenas, com o apoio do Estado, de outros povos e de organismos
internacionais, sem burocracias externas, tutelas ou imposições,
constituem a possibilidade de construir um espaço nacional
pluralizado, novo, baseado no diálogo intercultural. No entender de
Rigoberta MENCHU: “esta nova forma de relação entre as culturas
29 SILVA. Terras..., op. cit., p. 50.
30 OIT – Organização Internacional do Trabalho. Convenção 169 sobre povos indígenas e tribais em países
independentes. Aprovada em 07 de junho de 1989.
31 MENCHÚ TUM, Rigoberta. La construcción de naciones nuevas: una urgencia impostergable. In, ALTA V., ITURRALDE
D. e LÓPEZ-BASSOLS. Pueblos indígenas y estado en América Latina, Quito: Editorial Abya-Yala, 1998, p. 41.
100 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
deve sustentar-se no reconhecimento e respeito dos direitos de todos
os povos; no reconhecimento da multiculturalidade mundial e
nacionais, de tal maneira que contribua para a construção de nações
pluriétnicas, multiculturais e plurilíngües”.31
O reconhecimento formal das diferenças que configuram os
povos indígenas, em todas as suas formas, da pessoa e sociedades ao
modo de apropriação da terra, dos recursos naturais e do
conhecimento, como já vimos, requer efetividade, requer mudanças
nas instituições políticas, para a construção de um Estado realmente
democrático, pluralista e multiétnico. O papel dos povos indígenas
nessa empreitada, em suas lutas cotidianas pela sobrevivência, pelo
direito à identidade e à participação política, como salienta Marcos
Roitman ROSENMANN, que desde suas realidades, reformulam a
“utopia viável de uma América nova”.32
Retomando o aspecto constitucional do reconhecimento dos
direitos dos povos indígenas brasileiros, sobre suas terras e os bens
nelas existentes, é inarredável a conclusão de que esses direitos
contemplam o patrimônio genético e o conhecimento tradicional
associado a esses espaços. Como a base da construção do
conhecimento indígena sobre o meio reside em uma tarefa coletiva,
baseada em usos, costumes e tradições, o conhecimento produzido
não pertence a um indivíduo, senão a toda a comunidade. Deste
modo, a inadequação dos sistemas formais de registro, exploração e
proteção dos direitos intelectuais é patente, posto que estes direitos,
em sua origem, são caracterizados pelo individualismo proprietário.
3. O CONHECIMENTO TRADICIONAL INDÍGENA E O
SECULAR PROCESSO DE DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA
Os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas são
associados ao meio, ao espaço territorial de desenvolvimento da vida
e da cultura de cada povo. Segundo Cristiane DERANI, “o
conhecimento tradicional associado é conhecimento da natureza,
oriundo da contraposição sujeito-objeto sem a mediação de
instrumentos de medida e substâncias isoladas traduzidas em
códigos e fórmulas. É oriundo da vivência e da experiência,
101 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
32 ROSENMANN, Marcos Roitman. América Latina en el processo de globalización “los límites de sus proyectos.”
México: UNAM, 1994. p. 55.
33 DERANI, Cristiane. Patrimônio genético e conhecimento tradicional associado: considerações jurídicas sobre
seu acesso. In, LIMA, André. (org.). O direito para o Brasil socioambiental. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor, 2002, p. 155.
construído num tempo que não é aceito pela máquina da eficiência e
da propriedade privada, mas cujos resultados podem vir a ser
traduzidos em mercadoria geradora de grandes lucros, quando
tomados como recursos da produção mercantil”.33
As sociedades indígenas e suas formas coletivas de pensar o
mundo e o meio em que vivem, foram amplamente estudadas por
Claude LÉVI-STRAUSS, que denominou essa articulação de idéias de
“pensamento selvagem”, no qual encontrou uma lógica, um
conhecimento objetivo das relações do homem com o meio e entre si.
O pensar indígena segundo o autor e, contrariamente às posições
meramente funcionalistas, não se motiva unicamente nas estratégias
de satisfação das necessidades.34
Essa lógica do pensar indígena coloca os conhecimentos
oriundos desse pensar no mesmo nível de importância do
conhecimento científico. Em valor, e, também, do ponto de vista
explicativo, porque segue complexos procedimentos informais de
estruturação que se diferem da ciência clássica por serem coletivos e
compartilhados quanto à origem e por não adotarem mecanismos e
regras universais de sistematização. O confronto do homem com o
meio (sujeito-objeto), permeado com aportações mágicas e
simbólicas, sempre presentes na formulação do conhecimento
tradicional, dá conta da complexa e histórica experiência da vida,
contextualizada a cada realidade específica. Esses atributos
conformam o que Edgar MORIN almeja para uma nova configuração
do conhecimento científico, baseada na transdisciplinariedade.
Afirma ainda o mesmo autor: “só a razão aberta, capaz de trabalhar
com o irracional, saberá vencer o desafio da complexidade”.35 A
complexidade é característica da organização social das sociedades
indígenas.
Ratificando esse entendimento, Darrel POSEY afirma, após
longos estudos sobre a cultura e o conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético do povo Mebêngôkre, conhecidos
como Kayapó, que esse conhecimento “é um sistema integrado de
crenças e práticas. Existe muita informação compartilhada em uma
aldeia Mebêngôkre, apesar de haver, também, muitos especialistas”.36
102 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
34 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Edusp, 1970.
35 MORIN, Edgar. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990.
36 POSEY, Darrel. A ciência dos Mebêngôkre: alternativas contra a destruição. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi
– MPEG/CNPq, 1989, p. 12.
37 RODDICK, Anita. Meu jeito de fazer negócios. São Paulo: Editora Negócios, 2002. Também no site:
http://www.bodyshop.com .
O conhecimento construído e acumulado pelo povo Kayapó,
que realiza hoje comércio justo com a multinacional inglesa Body
Shop,37 contribui para a sua sobrevivência física e cultural. Contudo,
não é privilégio destes somente. Afirma, ainda Darrel POSEY: “os
índios sobreviveram na Amazônia por milênios. Seu conhecimento de
ecossistemas, as relações planta-homem-animal e a manipulação dos
recursos naturais desenvolveram-se através de incontáveis gerações,
fruto de tentativas e de experiências acumuladas”. E prossegue:
“culturas indígenas oferecem uma fonte rica e inaproveitada de
informações sobre os recursos naturais da bacia amazônica. Se o
conhecimento indígena puder ser transmutado em know how
tecnológico moderno, terá sido descoberto, então, um novo caminho
para o desenvolvimento ecologicamente sadio da Amazônia”.38
Nesse mesmo sentido, Berta RIBEIRO coordenou a publicação
do maior acervo de documentos científicos sobre o conhecimento dos
povos indígenas brasileiros: a Suma Etnológica Brasileira, uma
edição atualizada do Handbook of South American Indians. A Suma
Etnológica Brasileira além de reunir, nos seus três primeiros
volumes, textos clássicos e contemporâneos sobre Etnobiologia,
Tecnologia indígena e Arte índia, temas que hoje debate-se de forma
tão intensa e constitui o objeto da presente reflexão, invoca os
conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, associado ao seus
patrimônios genéticos, “como uma reflexão profunda sobre modelos
alternativos de desenvolvimento, baseados no saber indígena, como
únicas saídas ecologicamente válidas e socialmente responsáveis
para os atuais impasses de ocupação devastadora de imensas
regiões, principalmente da Amazônia.”39
Outra obra de grande relevancia para o reconhecimento e
salvaguarda dos direitos intelectuais das populações tradicionais da
amazônia brasileira, foi elaborada por Antonio Carlos DIEGUES e
outros pesquisadores, denominada: “Populações tradicionais” e
biodiversidade na Amazônia: levantamento bibliográfico
georreferenciado”.40
Se, por um lado, os estudos desses autores, buscaram
“adequar” o conhecimento indígena às regras de sistematização da
ciência ocidental – o que poderia ser entendido como uma imposição
universalizante do método científico – isto não ocorre, uma vez que
103 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
38 POSEY, Darrel. Op. Cit. P. 13.
39 RIBEIRO, Berta. (coord.). Suma Etnológica Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1986.
40 DIEGUES, Antonio Carlos, ANDRELLO, Geraldo e NUNES, Marcia. “Populações tradicionais” e biodiversdidade na
Amazônia: levantamento bibliográfico georreferenciado. Disponible na página web:
http://www.socioambiental.org/website/bio/doc.htm .
essa produção, baseada na ética responsável e no intuito de fornecer
o contributo indígena ao conhecimento da humanidade, por outro,
serve de documento científico comprobatório da anterioridade, da
preferência na autoria dessas criações/produções intelectuais.
As sociedades indígenas como fontes produtoras de
conhecimento para o mundo podem oferecer alternativas, desde seus
saberes, às complexas questões que assolam o cenário políticoeconômico-
social da atualidade. O grande problema que se afronta,
reside na forma como essa alternativa poderá chegar e ser utilizada
pela humanidade como um todo, respeitando-se os direitos dessas
sociedades. A economia capitalista, baseada na eficiência e no lucro
fácil, ancorada no projeto político neoliberal que sustenta
mundialmente o processo de globalização investe nesse sentido.
Todavia, reserva às instituições e aos procedimentos estatais, o modo
de acesso a esses saberes, fundados nos sistemas de propriedade
intelectual: o sistema de patente e o sistema sui generis.
4. CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO AO
PATRIMÔNIO GENÉTICO E PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os saberes dos povos indígenas brasileiros, assim como de toda
comunidade tradicional, conforme visto anteriormente, constituem
fenômenos complexos construídos socialmente a partir de práticas e
experiências culturais, relacionadas ao espaço social, aos usos,
costumes e tradições, cujo domínio geralmente é difuso.
Os costumes, por sua vez, são construções sociais que
permanecem e englobam usos, práticas e convenções, encerrando
“atitudes institucionalizadas em um grupo social, indispensáveis
para as relações sociais porque seu desrespeito implica em sanção”,41
ou seja, configuram o corpo normativo consuetudinário de um
determinado povo ou coletivo social. Como os direitos indígenas são
cosmogônicos,42 as práticas sociais e por conseqüência, os costumes,
mantêm uma vinculação originária com os mitos de criação do
mundo, às quais se aliam o sentido da tradição e o
etnoconhecimento, segundo a concepção de cada modo indígena de
pensar e construir a vida comunitária, seu meio e suas instituições.
104 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
41 ABBAGNANO, Nicola. Diccionário de filosofía. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 254-6.
42 SOUZA SANTOS, Boaventura. Pluralismo jurídico y jurisdición especial indígena. In, Del olvido surgimos para
traer nuevas esperanzas; la jurisdición especial indígena. Santa Fe de Bogotá: Imprenta Nacional, 1997, p. 204.
A complexidade do processo de construção do conhecimento
tradicional é que esse processo relaciona-se, intimamente, com a
organização social, ou seja, com todo o complexo de representações
simbólicas interligadas à atividade social de um povo. As sociedades
tradicionais organizam-se não como uma mera coleção de indivíduos,
senão quando se pode distinguir internamente, “unidades sociais
mais ou menos permanentes, institucionalizadas, que mantém entre
si relações integradas, ao mesmo tempo estruturais e funcionais”.43
Assim, o conhecimento coletivamente construído, produz-se a partir
de relações comaprtilhadas, de intercâmbios; esta uma das fontes
mais marcantes do saber indígena.
Segundo Laymert Garcia SANTOS, algumas características
muito específicas do conhecimento tradicional, são extremamente
relevantes na sua confrontação com o conhecimento técnicocientífico-
formal: “1) O conhecimento tradicional difere
fundamentalmente do conhecimento tecno-científico moderno, por
integrar uma outra cultura; 2) que não é e nunca foi concebido como
propriedade de alguém, não podendo portanto ser alienado; 3) que
por ser coletivo, tanto sincrônica quanto diacronicamente, só pode
ser protegido através de um direito coletivo; 4) que por ser de outra
natureza, inalienável e coletivo, deve ser regido por um regime
jurídico sui generis e não pela propriedade intelectual; 5) que seu
valor não se reduz à dimensão econômica, conservando ainda as
dimensões social, cultural, ambiental, técnica, cosmológica; 6) que
não tendo valor exclusivamente econômico, não pode ser referido
apenas a uma questão de repartição de benefícios dele decorrentes;
7) que a sua proteção é imprescindível da conservação da bio e da
sociodiversidade; 8) que em virtude do seu caráter específico e de sua
fragilidade perante o conhecimento tecno-científico moderno só pode
ser preservado se os povos que o detém puderem mantê-lo e
desenvolve-o, negando inclusive o acesso aos recursos a eles
associados quando julgarem necessário e, 9) que o conhecimento
tradicional não pode ser reduzido à condição de matéria prima
disponível para a valorização do conhecimento e do trabalho
biotecnológico”.44
Os conhecimentos tradicionais configuram, portanto, direitos
coletivos dos povos que os detém. Assim, a natureza coletiva desses
105 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
43 BONTE, Pierre; IZARD, Michel; ABÉLÈS Marion; DESCOLÁ, Philippe; DIGARD, Jean-Pierre; DUBY, Catherine;
GALEY, Jean-Claude; JAMIN Jean; LENCLUD, Gérard. Diccionário de etnología y antropología. Traducción: Mar
Llinares García. Madrid: Ediciones Akal, 1996, p. 541-2.
44 SANTOS, Laymert Garcia. Propriedade intelectual ou direitos intelectuais coletivos? In, ARAÚJO, Ana Valéria e
CAPBIANCO, João Paulo (Orgs.). Biodiversidade e proteção do conhecimento de comunidades tradicionais.
Documentos do ISA – Instituto Socioambiental, nº. 2, 1996, p. 22.
direitos, contrapõe-nos ao caráter individualista, privatista e
exclusivista dos direitos de propriedade intelectual, na forma em que
estes se encontram formalizados e “padronizados” nas legislações
nacional e internacional. Segundo Andressa CALDAS, a questão que
se impõe é: como lançar mão de um sistema que se funda no
reconhecimento de proteção a título privado, individual e exclusivo
para regular o conhecimento tradicional, sem limitá-lo ou ainda, sem
(direta ou indiretamente) interferir na organização social e política
das comunidades que detém esses saberes?45
Cristiane DERANI responde ao discorrer sobre o acesso ao
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético: “acessar
é apropriar-se. Quando a norma fala sobre acesso, dispõe sobre a
apropriação em que o sujeito ‘acessante’ torna-se proprietário privado
de algo que não é privativo de ninguém, pois ou pertencem a todos
(patrimônio genético) ou pertence a uma coletividade específica
(conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético). Só há
propriedade privada se o proprietário encontrar-se legitimado pela
norma jurídica. Ocorre uma apropriação originária, em que aquilo
que está fora do mercado e do sistema privado de propriedade tornase,
pela primeira vez, integrante do modo capitalista de produção”.46
A questão não é simples. Manuela CARNEIRO DA CUNHA,
parte do pressuposto de que o conhecimento indígena é passível de
ser explorado economicamente, sem que isto interfira negativamente
na organização social desses povos, uma vez que, analogicamente,
outras figuras legais estranhas ao mundo indígena são
imprescindivelmente utilizadas, como a proteção do direito à terra,
por exemplo. Afirma a autora que “os antropólogos não teriam
percebido que conceitos estranhos ganham novos usos e são
estrategicamente apropriados pelas sociedades ‘fracas’? Que eles
podem, uma vez usados como armas, serem mantidos à distância,
guardados nas fronteiras, dentro das esferas que não se misturam a
instituições internas? Ou ainda expressos em novas instituições que
seguem regras diferentes do mundo como um todo? O conhecimento
pode ser colocado no mercado mundial por sociedades indígenas e
ainda ser distribuído em diferentes caminhos no interior do mesmo
grupo (como nas academias tradicionais)”.47
45 CALDAS, Andressa. Regulação jurídica do conhecimento tradicional: a conquista dos saberes. Curitiba, 2001.
Dissertação de Mestrado. Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 117.
46 DERANI, Cristiane. Op. Cit., p. 156.
47 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Deve o conhecimento ser livre? A invenção da cultura e os direitos de propriedade
intelectual. Revista Sexta-feira: Antropologia, Artes e Humanidades, São Paulo, nº. 3, Outubro 1999, p. 95.
106 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Contrariamente, Vandana SHIVA sustenta que a os sistemas
alternativos desaparecem a partir do momento em que o biospector
ocidental acessa o conhecimento tradicional associado, aparecendo
como a única fonte desse saber, ao mesmo tempo em que projeta
como natural o monopólio dos Direitos de Propriedade Intelectual; e,
prossegue questionando: “será que a rota do patenteamento protege
o conhecimento nativo? Proteger esse conhecimento implica uma
contínua disponibilidade e acesso a ele por parte das gerações
futuras, nas suas práticas diárias agrícolas e de cuidados com a
saúde. Se a organização econômica que emerge baseada nas patentes
destrói os estilos de vida e sistemas econômicos nativos, o
conhecimento nativo não está sendo protegido como herança viva. Se
reconhecermos que o sistema econômico dominante está nas origens
da crise econômica porque ignorou o valor ecológico dos recursos
naturais, a expansão desse mesmo sistema não irá proteger nem o
conhecimento nem a biodiversidade nativas”.48
Em posição intermediária, o grupo de autores e organizações
denominada Rede do Terceiro Mundo, lançou proposta a que chamou
de regime sui generis de Direitos Intelectuais Coletivos – DPIC, que
tem defendido as seguintes proposições: “que o sistema não atente
contra a sobrevivência física e cultural das comunidades; que
respeite as formas coletivas de representação; que ofereça
mecanismos de proteção da propriedade intelectual acessíveis
contemplando a possibilidade de assistência legal gratuita; que o
sistema tenha um âmbito de proteção internacional; que reconheça o
caráter de imprescritibilidade do conhecimento; que esteja dotado de
mecanismos de negociação necessários para assegurar uma
participação nos benefícios às comunidades; que proteja de forma
integral o processo coletivo do conhecimento tradicional; que
estabeleça mecanismos de controle necessários sobre os sistemas
ocidentais de propriedade intelectual, e que assegure um registro do
conhecimento tradicional com alcance mundial que inclua a
participação das comunidades, tanto no uso desse conhecimento
como na repartição dos benefícios dele derivados”.49
Essa profícua discussão, têm ocupado espaço nos debates
internacionais, principalmente no Fórum Indígena sobre a
Diversidade Biológica, reunião que se realiza paralelamente à
48 SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 99-104.
49 CALDAS, Andressa. Op. Cit., p. 120-121. Também no site: http://www.twnside.org .
50 ONU. Informe del Grupo de Trabajo sobre la Aplicación del artículo 8 j y disposiciones conexas.
UNEP/CDB/COP/5/5, p. 19-20.
107 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
Conferência das partes da Convenção sobre Diversidade Biológica,
especialmente do Grupo de Trabalho sobre a aplicação do artigo 8 j e
disposições conexas. Entre as reivindicações dos povos indígenas,
ressalta-se a necessidade de participação efetiva nas deliberações da
Conferência, como um dos pontos principais de inserção da
legitimidade dos povos indígenas e das populações locais nos
organismos institucionais de debate.50
Entretanto, as lutas dos povos indígenas pela participação nas
discussões e nas reuniões internacionais sobre os direitos de
propriedade intelectual, não encontra recepção ampla, conforme
demonstra Victoria TAULI-CORPU, ao discorrer sobre o encontro de
um grupo de indígenas com um representante do governo norteamericano.
Entre perguntas e respostas sobre a Convenção sobre a
Biodiversidade – CBD, ouviram daquela autoridade que: “...tudo na
Convenção seria negociável, com exceção dos direitos de propriedade
intelectual.” Segundo o relato, isto deixou os indígenas muito
preocupados e disseram que: “simplesmente não acreditamos que o
regime ocidental dos direitos de propriedade intelectual devam nos
ser impostos. Ele respondeu que vocês necessitam ser parte do
mercado global para proteger seus direitos de propriedade intelectual.
Os indígenas retrucaram: Este é um dos problemas. Nós não temos
nenhum controle sobre essa economia, a economia de mercado
global. Como poderemos proteger nossos direitos em uma arena onde
não temos nenhum direito a falar sobre as regras do jogo e, se nem
somos reconhecidos como jogadores?51
A busca de respostas satisfatórias seja do ponto de vista legal,
consubstanciadas no Estado plural e no seu correspondente pluralismo
jurídico o que exigiria uma modificação estrutural no conceito clássico
de Estado, ou na definição de âmbitos supranacionais heterogêneos e
alternativos, governados solidariamente pelos povos indígenas, constitui
imperativo inadiável porque significa a ruptura com o tempo da
espoliação dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas
implicando no reconhecimento e proteção desses direitos e povos.
No plano internacional, os direitos de propriedade intelectual, os
direitos das comunidades tradicionais e a proteção à biodiversidade, são
regulados por diversos instrumentos jurídicos engendrados pelos
Estados.
51 TAULI-CORPU, Victoria. Biotechnology and indigenous peoples. Extraído em 15.11.2002, do site:
http://www.twnside.org/sg/beta/arquivos.
52 Esse grupo foi liderado por representantes de grandes empresas transnacionais norte-americanas, européias e
japonesas, como a IBM, Monsanto entre outras. CALDAS, Andressa. Regulação jurídica do conhecimento
tradicional: a conquista dos saberes. Curitiba, 2001. Dissertação de Mestrado. Setor de Ciências Jurídicas,
Universidade Federal do Paraná.
108 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Os direitos de propriedade intelectual, inseridos por pressão dos
EUA, nas discussões dos acordos internacionais de comércio, passam a
integrar a pauta dessas cimeiras a partir da década de oitenta, ao longo
da Rodada do Uruguay, que se estendeu até 1994 e resultou na
substituição do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) pela OMC
(Organização Mundial do Comércio). Os países centrais formaram um
grupo de trabalho52 sobre questões de propriedade intelectual
relacionadas ao comércio e, em 1995, cento e vinte e três países
firmaram em Marrakesh o acordo TRIPS (Agreement on Trade Related
Aspects of Intellectual Rights). Até então, o âmbito internacional
competente era a WIPO (World Intellectual Property Organization), no
entanto a estrutura deliberativa colegiada desta, não atendia aos
propósitos dos países industrializados, na questão de patentes.
O chamado Acordo TRIPS, chamado porque acordo não é, não há
sinalagma uma vez que as partes (Estados) têm a obrigação de firmá-lo
integralmente sob pena de sofrerem sanções comerciais ou serem
excluídas da ordem mercantil mundial, muda, radicalmente, as
discussões internacionais sobre propriedade intelectual. Anteriormente
ao acordo, “até 1995, os tratados e acordos internacionais sobre
propriedade intelectual e Propriedade Industrial não contavam com
qualquer instrumento sancionador, que eventualmente pudesse ser
aplicado contra um Estado que se recusasse a editar uma legislação
interna de conformidade com as normas internacionais, ou que editasse
normas em discordância com suas obrigações internacionais”.53
Segundo Benjamin CORIAT, a padronização dos regimes de
propriedade intelectual, tendo como paradigma a legislação norteamericana,
compromete drasticamente os movimentos emancipatórios
de redução do fosso tecnológico entre os países industrializados e os
países em desenvolvimento, ao bloquear processos de imitação e de
53 BERMÚDEZ, Jorge antonio Zepeda et. Al. O acordo TRIPS da OMC e a proteção patentária no Brasil: mudanças recentes
e implicações para a produção local e o acesso da população aos medicamentos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ENESP, 2000,
p. 57. Apud CALDAS, Andressa. Regulação jurídica do conhecimento tradicional: a conquista dos saberes. Curitiba,
2001. Dissertação de Mestrado. Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná
54 CORIAT, Benjamín. Op. Cit., p. 5. Para ilustrar, autor afirma que decisão da Suprema Corte dos EUA abre caminho para o
patenteamento de resultados de pesquisas que nem existem ainda: Regarding Living Entities, a first key moment was the
U.S. Supreme Court’s 1980 Charkrabarty ruling establishing the patentability of a genetically modified single cell organism.
However, this watershed decision was no more than the inaugural act of a series of rulings that culminated, as F. Orsi
demonstrates in great detail, in the patentability of partial genes sequences (ESTs) and also of the genes that are
implicated in illnesses (F. Orsi 2002). In this process, and asides from the Chakrabarty ruling, at least one other major
decision (the “re Brana” ruling) has played a key role, since it also overturned previous jurisprudence that had caused the
USPTO to be so circumspect about granting patents in this field. Re Brana recognises claims on discoveries that have not
been made yet, i.e., which have not materialised or even been described for the moment. The establishment of a new IPR
in an area that is hypersensitive (because it deals, as we will see, with the status of basic research products and both
covers and determines policies for accessing healthcare and medicine) was accompanied by, or in certain instances led
to, major theoretical controversies (Rai, 2001) and economic battles. At the same time, it also cast a spotlight on the
need to rethink the ethical dimension of certain IP laws.
109 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
engenharia inversa. Esses procedimentos foram amplamente utilizados,
ao longo do século XIX pelos países que hoje ocupam os lugares centrais
na economia mundial. Sustenta, ainda, o professor francês, que
decisões da Suprema Corte dos EUA, abrem caminho para a
possibilidade de se patentear conceitos “à jusante da cadeia de
conhecimento científico, transformando vantagens cognitivas em
vantagens competitivas, monopolísticas para firmas beneficiadas”.54
Em posição similar J. BAUTISTA VIDAL, quase uma década
antes afirmava: “a adoção de regras internacionais de padronização
ou, como são chamadas, de harmonização, como as do Acordo TRIPS
da Rodada Uruguai do GATT, que criou a Organização Mundial de
Comércio, conduzirão necessariamente ao congelamento do atual
desequilíbrio mundial entre as nações hegemônicas e as periféricas,
retirando destas últimas a possibilidade de defesa pela concentração
monopólica do saber mundial nas primeiras. Harmonização, no caso,
serve como designação dessa operação impositiva, subjugatória.
Quando um país mais desenvolvido insiste em que suas leis de
propriedade industrial - que são apropriadas apenas para um elevado
nível de desenvolvimento industrial - sejam adequadas para países
menos desenvolvidos, o que está desejando não é outra coisa senão
subjugá-los a uma forma sofisticada de imperialismo...”55
Nesse sentido, irrefutável é a preocupação dos representantes
indígenas, anunciada por Victoria Tauli-Corpu. Os conhecimentos
indígenas já descritos e sistematizados por cientistas, portanto
publicizado – no sentido da informação – principalmente nas áreas
relacionadas à etnobiologia, tecnologia e arte indígenas, podem se
transformar, segundo esse entendimento jurídico norte-americano,
55 BAUTISTA VIDAL, J. W. Monopólio das patentes. São Paulo: Revista ADUSP, Maio 1996. Nesse mesmo sentido prossegue
o autor: O Acordo de Paris, e todos seus ajustes posteriores garantiram aos países o direito soberano de escolher os setores
em que se concederia o privilégio das patentes. Talvez por isso o sistema tenha durado tanto. Como então classificar de
piratas aqueles países que não reconhecem patentes em determinados setores? Cada um, naturalmente, ajusta a lei de
patentes a suas necessidades e interesses. Japão, Suíça e Itália, por exemplo, só adotaram patentes farmacêuticas já
avançada a década de 70, mais de um século após a criação desse sistema internacional; o Japão, quando as indústrias
japonesas já supriam 80% da demanda nacional, e a Suíça, quando ocupava a posição privilegiada de terceira potência
farmacêutica mundial. Como é possível, por isso, acusá-los de praticarem pirataria! Valesse esse critério, poder-se-ia acusar
os EUA de serem uma nação pirata durante todo o século XIX. Só quando suas indústrias se desenvolveram e eles se
tornaram importantes exportadores, passaram a interessar- se por uma rigorosa lei de proteção de sua criatividade e de
eliminação da concorrência externa. A Itália e a Espanha, por exemplo, embora representem situações muito distintas
daquelas brasileiras, passaram a adotar patentes farmacêuticas dentro de uma ampla negociação de benefícios
compensatórios correspondentes a suas respectivas entradas na ex-Comunidade Européia, hoje União Européia. A China e
a Índia, com políticas nacionais consistentes de defesa de seus legítimos interesses, resistem bravamente, criando meios
de defesa impensáveis pelos legislativos brasileiros. A queixa das corporações farmacêuticas norteamericanas de que
perdem dinheiro naqueles países onde não podem gozar do privilégio do monopólio para seus produtos e processos
também não é verdadeira. Não se pode perder o que não se tem. Na pior das hipóteses, deixam de ganhar o que não lhes
é legalmente devido. Na realidade, queixam-se de não deter o monopólio por concessão de Estado interventor que elimine
qualquer tipo de competição e lhes garanta polpudos subsídios e poder de arbítrio inaceitável. Para conquistar a
privilegiada situação, queixam-se de fantásticas falsas perdas, que a imprensa venal brasileira divulga como verdades,
enganando a população.
110 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
em patentes de empresas multinacionais. Não é em vão, a acalorada
discussão acerca da natureza do conhecimento tradicional associado:
se pública ou privada.
Emerge desse debate uma constatação problemática. Se os
conhecimentos tradicionais têm natureza pública, portanto são
direitos intelectuais coletivos de domínio público, quer dizer,
pertencem a toda a humanidade, eles não podem ser apropriados por
ninguém. Assim, a utilização desses conhecimentos seria livre.
Acontece que, em se tratando de conhecimento tradicional associado,
a noção de público deve ser delimitada e circunscrita ao âmbito
daquela sociedade, daquele povo que, coletivamente, construiu dado
conhecimento e, em decorrência tem o seu domínio. Em caso
contrário, a correspondência necessária para esta hipótese seria a de
que todas as criações e produções intelectuais, independentemente
do lugar, da sociedade, do Estado de registro de patente, também
seriam de domínio público; conseqüentemente, a sua utilização
poderia livremente se dar através de imitações e tecnologias inversas,
o que não é permitido pelo sistema jurídico internacional de patente.
Então, o que justifica tamanho interesse na configuração
jurídica do conhecimento tradicional na atualidade? Segundo J.
BAUTISTA VIDAL, “com a saturação da química de síntese, a
indústria farmacêutica internacional caminha na direção dos
medicamentos e fármacos de origem natural, cujo patrimônio
genético básico encontra-se nos trópicos - cerca de 90%, conforme
avaliação de órgão especializado do Conselho de Ministros da União
Européia. A patente dos microorganismos visa indiretamente
apoderar-se, de modo gratuito, desse incalculável patrimônio, em
regime de monopólio. Segundo Noam Chomsky, professor do MIT,
organismo de comércio internacional da Casa Branca, essa legislação
de patentes, uma vez aprovada, implicará um aumento do fluxo de
recursos financeiros do Sul para o Norte (EUA) da assustadora ordem
de 61 bilhões de dólares por ano, o que, necessariamente, irá
acarretar a trágica elevação da miséria no País.”56
Recentemente, ao divulgar os resultados de uma pesquisa
realizada pelo médico Elisaldo Carlini e pela bióloga Eliana
Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo, junto aos Krahô,
povo indígena habitante da região central do Brasil, foram
identificadas 164 espécies vegetais usadas com fins medicinais, com
as quais, os xamãs preparam 298 receitas curativas, destinadas a 51
56 BAUTISTA VIDAL, J. W. Op. Cit., 1996.
57 PIVETTA, Marcos. As lições dos Krahô. Revista pesquisa/FAPESP, São Paulo, 2002. Extraído em 30.10.2002 do site:
http://www.revistapesquisa.fapesp.br .
111 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
tipos de indicações terapêuticas. De acordo com o responsável pela
pesquisa, “o nome científico das plantas e seu possível uso
terapêutico é mantido em sigilo. A precaução se justifica: a
informação é valiosa e poderia ser aproveitada indevidamente por
laboratórios farmacêuticos e outros grupos de pesquisa interessados
em eventuais dividendos econômicos decorrentes do mapeamento
feito pelo projeto.”57
A precaução se afigura, no momento atual, como uma atitude
altamente recomendável, aliada aos movimentos de luta pela garantia
dos direitos das sociedades indígenas, para que não ocorra com os
conhecimentos indígenas, a biopirataria como no caso do Chiclete
Adams, anteriormente anotado. “Enquanto o sistema de patentes tem
deformado seriamente o mercado farmacêutico dos EUA – diz Michael
Davis, professor de direito da Universidade Estadual de Cleveland -,
a aplicação de uma forte proteção patentária em países menos
desenvolvidos resultará em desastre.” E acrescenta: “Aqueles países
que adotarem as políticas de patentes dos mais desenvolvidos podem
ter a certeza de que sairão perdendo, em todos os sentidos”.58
No caso do Brasil, país signatário do acordo TRIPS desde
meados da década de noventa,59 a pressa em adotar o sistema de
patentes nos moldes preconizados pelos países centrais, justificava a
inserção do país no comércio globalizado e as políticas neoliberais
levadas a cabo após a derrocada do regime militar.
Essa continua sendo a posição do governo brasileiro,
recentemente manifestada pelo Ministro das Relações Exteriores em
seminário organizado pelo Instituto Nacional da Propriedade
Intelectual, no qual se referiu, ao discorrer sobre a inclusão de
regras-padrão de propriedade intelectual ao acordo TRIPS “como
parte do preço a pagar pelo fortalecimento do sistema de comércio
multilateral”.60
Não se pretende realizar, neste trabalho, uma análise de
discurso, entretanto, cabe salientar que o reconhecimento oficial,
numa espécie de “servidão voluntária”61 dos governantes diante do
58 BAUTISTA VIDAL, J. W. Op. Cit., 1996.
59 BRASIL. Decreto Legislativo nº. 30 de 15.12.1994. Através do Decreto Legislativo n.º 1355, de 30.12.1994, o Brasil
promulgou a Ata Final da Rodada do Uruguai.
60 LAFER, Celso. O papel da proteção da propriedade intelectual nos campos da biodiversidade e dos
conhecimentos tradicionais. Seminário Internacional organizado pela Comissão Européia e Instituto Nacional da
Propriedade Intelectual – INPI, Manaus, setembro 2001. Extraído do site: http://www.mre.gov.br/sei/laferinpi.
htm
61 LA BOÉTIE, Etienne. Dicurso da Servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1986.
62 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
“Art. 62 – Em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá adotar Medidas provisórias, com
força de lei, devendo submete-la de imediato ao Congresso Nacional.”
112 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
poder imperial dos países centrais, de um “preço a pagar” pela
aceitação de normas-padrão de propriedade intelectual, corrobora as
posições teóricas anteriormente elencadas. Não é por acaso, que o
caminho legislativo escolhido pelo governo do Brasil para regular o
acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio
genético, foi a Medida Provisória, lei de iniciativa do Poder Executivo,
que prescinde do prévio processo legislativo democrático.62
A Medida Provisória nº. 2.186-16, de 24 de agosto de 2001,
regula juridicamente o acesso ao conhecimento tradicional associado
ao patrimônio genético63, cujos detentores desses conhecimentos são
as populações indígenas e as comunidades tradicionais. Segundo
Cristiane DERANI, “são sujeitos detentores dos objetos cujo acesso é
regulado pela MP, as comunidades indígenas e locais”.64
Segundo, ainda, a mesma autora, a regulação brasileira sobre
o acesso aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio
genético, configura uma privatização da biodiversidade. “Direitos de
propriedade são atribuições individuais. Porém, o conhecimento pode
ser construído pela tradição e pela vivência coletiva, em oposição à
razão individualista”.65
Os conhecimentos tradicionais indígenas associados ao
patrimônio genético configuram direitos coletivos de cada povo, são
direitos culturais.66 Como tais, são protegidos constitucionalmente
pela ordem jurídica brasileira e pelo conjunto integrado dos direitos
humanos.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no caput do Art. 5.º,
os valores vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, como
espelho do conjunto dos direitos fundamentais consubstanciados ao
longo dos setenta e sete incisos que os discriminam, cujo último
dispositivo, manda aliar aos direitos fundamentais expressamente
dispostos, os diversos princípios constantes do texto constitucional
63 BRASIL. Medida Provisória nº. 2.186-16, de 24 de agosto de 2001. Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o
do art. 225 da Constituição, os arts. 1o, 8o, alínea “j”, 10, alínea “c”, 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre
Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento
tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua
conservação e utilização, e dá outras providências
64 DERANI, Cristiane. Op. Cit., p. 153.
65 DERANI, Cristiane. Op. Cit., p. 163.
66 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Op. Cit., p. 184.
67 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
“Art. 5.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade... (...) LXXVII - são... (...) § 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Contituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.”
113 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.67
Essa ordenação, em nome do princípio da unidade da
constituição68 e do ordenamento jurídico, vincula o conjunto desses
direitos aos princípios fundamentais do Estado brasileiro,
consagrados no Título I da Constituição. Para o presente estudo,
interessa-nos especificamente, no âmbito dos fundamentos do
Estado e dos direitos fundamentais, a noção de cidadania, a
dignidade da pessoa humana, a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação e a prevalência dos direitos humanos na
ordem jurídica brasileira, respectivamente estabelecidos nos artigos
1.º, incisos II e III; e 3.º, inciso IV; e, Art. 4.º, insciso II da
Constituição.69
Esses princípios, para a finalidade que pretendemos no
presente estudo, serão aliados ao reconhecimento constitucional dos
índios e suas organizações sociais, Art. 231 e parágrafos, conjugado
com a inclusão das culturas indígenas, portanto seus direitos
intelectuais coletivos, enquanto formas de vida e conjunto de valores
objetivados, Arts. 215, § 1.º, e 216, ao patrimônio cultural brasileiro,
que também constituem princípios porque estabelecem direitos, são
constitutivos da ordem jurídica.70 Especificamente, constituem
princípio de diferenciação étnico-cultural das pessoas e sociedades
indígenas,.
Os sujeitos indígenas coletivos e diferenciados, detentores dos
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético,
reconhecidos pela Constituição de 1988, pelos termos: índios,
organização social, comunidades, populações, grupos, organizações e
culturas indígenas, nos leva a fazer as seguintes perguntas: quem são
os índios? Quais são suas organizações sociais? O que são as
organizações indígenas?
68 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Edición Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p.
18.
69 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil..
“Art. 1.º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: (...) II - a cidadania; III - a
dignidade da pessoa humana; (...)
Art. 3.º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos,
sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4.º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...)
II - prevalência dos direitos humanos.”
70 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil; ley derechos y justicia. 2. ed. Madrid: Editorial Trotta, 1997, p. 110.
71 LITTLE, Paul. Conferência proferida no dia 28 de julho de 1999, durante o Seminário: Bases para uma nova política
indigenista, promovido pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro.
114 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
A resposta para essas questões perpassa a história brasileira,
da negação ao reconhecimento. À negação das sociedades indígenas
característica do período colonial, sucedeu a romantização do bom
selvagem que perdurou durante o Império e a República, o século
dezenove foi caracterizado pela retomada de idéias passadas de
negação, nos anos sessenta e setenta do século passado, e,
contemporaneamente, com um aspecto neo-romanticista, do bom
selvagem protetor da natureza, com forte tendência à naturalização.71
Nos dias atuais, o reconhecimento das diferenças étnicas se impõe,
dada a complexidade da formação étnico-social dos Estados, que
reclama espaços instituintes de direitos em favor da vida e da
diferença, no sentido de superar os paradigmas absolutos da
modernidade no que se refere à noção de pessoa e de identidades,
reduzidas nos conceitos homogêneos de cidadania e nacionalidade.
Os sujeitos indígenas diferenciados e titulares de direitos,
substantivados na Constituição como índios, representam uma
complexidade tão grande que, além do contexto nacional em relação,
para defini-los, como acentua Manuela CARNEIRO DA CUNHA, é
imprescindível, previamente, definir o que é grupo étnico e
comunidade indígena. Para a autora, citando Fredrik Barth, grupos
étnicos são “formas de organização social em populações cujos
membros se identificam e são identificados como tais pelos outros,
constituindo uma categoria distinta de outras categorias da mesma
ordem”.72 Por sua vez, “comunidades indígenas são aquelas que se
consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da
consciência de sua continuidade histórica com sociedades précolombianas”
e, índio, “quem se considera pertencente a uma dessas
comunidades e é por ela reconhecido como membro”.73
A realidade multiétnica brasileira compõe uma sociodiversidade
formada não pelo ideário humanístico-oligárquico e unificador da
presumida comunhão das três raças, mas, sobretudo, pela
pluralidade de povos brancos de origem européia; de povos orientais
e árabes; povos negros de diversas etnias africanas e, povos indígenas
autóctones do continente sul-americano, que conformam um
mosaico cultural muito distanciado, porque conflituoso, da noção
aparentemente pacífica de Estado nacional unitário, com seu direito
também unitário.
72 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os direitos do índio. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 25.
73 Id., p. 26.
74 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías; la lei del más débil. Madrid. Editorial Trotta, 1999, p. 41.
115 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
A começar pela idéia de nação única, que presume validez
universal ao ordenamento jurídico, por intermédio dos estatutos de
pessoa, de cidadão e de capacidade de exercício. Entre aqueles povos
acima referidos, trataremos especialmente das pessoas e sociedades
indígenas. Estes não faziam parte da esfera de “civilização nacional”
que pensou e arquitetou o Estado-nação. A construção do conceito de
nação única se deu através da anulação de toda e qualquer diferença
étnica, e, evidentemente, aos índios enquanto diferentes, “era negada
a identidade de pessoa e a capacidade jurídica;”74 estavam excluídos
juridicamente, embora integrantes do corpo social, mantidos sob o
conceito da transitoriedade, pelo regime da incapacidade relativa.
As sociedades indígenas são sociedades sem estado,75 e, pelo
menos no contexto atual, não constituem forças políticas
suficientemente organizadas para transformar-se em estados
independentes, nos moldes ocidentais modernos. Essa é a conclusão
a que chega Darcy RIBEIRO, ao afirmar que as sociedades indígenas
excepcionam a unidade nacional porque constituem “múltiplas
microetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não afeta o
destino nacional”.76
Isto não quer dizer que no futuro, talvez não muito distante, as
sociedades indígenas brasileiras não lutem pela emancipação
política, como preconiza a Declaração Universal dos Direitos dos
Povos, a Carta de Argel. Entretanto, este é um problema que
certamente as ciências políticas e o Estado terão de enfrentar, não
cabendo nos limites do presente trabalho a sua discussão. Todavia,
ao abordar a questão nestes parâmetros ocidentais, universal e
formal do Estado como única possibilidade de organização
sóciojurídico-política, limitamo-nos aos contornos etnocentristas do
pensamento moderno eurocêntrico. As sociedades indígenas
apresentam extraordinária diversidade e podem ser fonte de modelos
organizativos sociais, particulares e universalizáveis. É preciso
conhecê-los, não negá-los aprioristicamente.
A negação da diferença ofende, de forma violenta, a dignidade
humana dessas pessoas e sociedades, além do que discrimina-as.
Mas, esses são fatos históricos que, no atual contexto, de
reconhecimento constitucional das diferenças étnico-culturais em
75 Pierre CLASTRES, como o próprio título da obra nos informa, afirma que as sociedades indígenas, não somente são
sociedades sem Estado, mas, também, contra o Estado. (CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Tradução
de: Theo Santiago. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988, p. 132-3).
76 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.
22-3.
116 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
que as pessoas e povos indígenas se constituem, não mais devem
repetir-se. Situamo-nos, no momento presente, diante do valor
igualdade, normatizado na Constituição como direito fundamental,
contrapondo-se com a igualdade jurídica arquitetada pelo direito e
fundamento do Estado moderno, em que a abstração do diferente
possibilitou sua exclusão. Assim, essa igualdade constitucional, que
Luigi FERRAJOLI chama de “igual valoração jurídica das diferenças”,
baseada no princípio normativo de igualdade de direitos
fundamentais, e, nos seus processos de efetivação, implica a garantia
da livre afirmação da pessoa e da identidade.77
Como afirma o autor citado acima, as interdependências, os
processos de integração, as pressões migratórias, cada vez mais
aumentam a antinomia entre igualdade e cidadania, entre o
universalismo dos direitos e sua validez circunscrita aos limites de
jurisidição do Estado, posto que, por sua atual insustentabilidade
terá que resolver-se, “com a superação da cidadania, com a definitiva
desnacionalização dos direitos fundamentais e a correlativa
desestatalização das nacionalidades”.78
Com efeito, a Constituição brasileira estabelece a igualdade de
todos (Art. 5.º, caput) e, mais adiante, determina que aos princípios
dos direitos fundamentais devem ser aliados outros princípios
igualmente dispostos na Constituição e nos tratados internacionais
(Art. 5.º, inciso LXXVII). Relacional e logicamente conclui-se que, a
partir dos fundamentos e objetivos do Estado, que incluem a
dignidade da pessoa humana (Art. 1.º, inciso III) e a promoção do bem
comum sem distinção de origem, sexo, cor, idade ou qualquer outra
forma de discriminação, o reconhecimento das pessoas e sociedades
indígenas, com seus valores diferenciados (Art. 231 e parágrafos) com
caráter de princípio, porque estabelece direitos e uma série de modos
77 Luigi FERRAJOLI aponta três possíveis modelos de configuração jurídica das diferenças, além do apontado acima,
a saber: 1) indiferença jurídica das diferenças, a partir do qual as diferenças simprlesmente não existem, é a força
física que domina, então vence o mais forte; 2) diferenciação jurídica das diferenças. Para este modelo, a
valorização de algumas identidades consideradas superiores prevalece em detrimento de outras, em razão do sexo,
religião, etnia, língua, nascimento, renda entre outras condições. É o modelo do mundo jurídico pré-moderno;
porém, é o paradigma dos princípios do direito moderno de sujeito: homem, branco, proprietário. Aqui começam
os privilégios; 3) homologação jurídica das diferenças. Este modelo é caracterizado pela negação jurídica das
diferenças porque não constituem valor, entretanto, em nome da igualdade, todas as diferenças são desvalorizadas.
A igualdade enquanto abstração. É o modelo próprio dos ordenamentos jurídicos liberais, em que a igualdade é
normatizada a partir de um padrão abstrato de normalidade. (FERRAJOLI. Derecho y Razón; teoría del garantismo
penal. Madrid: Editorial Trotta, 1997, p. 74-6).
78 FERRAJOLI. Derecho y..., op. cit., p.57. (Texto original: “[...] con la superación de la ciudadanía, la definitiva
desnacionalización de los derechos fundamentales y la correlativa desestatalización de las nacionalidades.) Tradução
livre do autor.
79 ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Hacia la exigibilidad de los derechos económicos, sociales y
culturales. Estándares internacionales y critérios de aplicación ante los tribunales locales. In, ABREGÚ, Martín
e COURTIS, Christian (org.). La aplicación de los tratados internacionales sobre derechos humanos por los
tribunales locales. 2. ed. Buenos Aires: Editores del Puerto/ONU - Organización de las Naciones Unidas/PINUD -
Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo, 1998, p. 289.
117 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
de efetivá-los, integra o conjunto de direitos fundamentais e devem
prevalecer diante de toda e qualquer discrepância.
Além desse conjunto normativo expressamente declarado, a
Constituição inclui como princípio orientador das relações
internacionais do Estado a prevalência dos direitos humanos (Art.
4.º, inciso II). Os direitos humanos constituem um conjunto
“integrado, indivisível e interdependente”79 entre os direitos
individuais civis e políticos e direitos coletivos, econômicos, sociais e
culturais.
O respeito aos direitos humanos em conjunto, e,
principalmente, aos direitos culturais, no entender de B. BOUTROS
BOUTROS-GHALI, configura os “novos direitos humanos” devendo
ser colocados em posição de anterioridade, referência para
interpretação e aplicação dos demais dispositivos, tanto da
Declaração quanto dos Pactos.80 Essa anterioridade possibilita a
plasmação e reconstrução dos seus conteúdos de acordo com o
contexto social em que se situem; equivale dizer, nas palavras de
Joaquín HERRERA FLORES: “marcos de relação que possibilitam
alternativas e tendem a garantir possibilidades de ação amplas no
tempo e no espaço, em favor da consecução dos valores da vida, da
liberdade e da igualdade”.81
Os tratados internacionais de direitos humanos integram o
ordenamento jurídico brasileiro, como normas constitucionais, por
força do disposto no Art. 5.º, parágrafos 1.º e 2.º da Constituição de
1988. Segundo Flávia PIOVESAN, essa inclusão constitucional dos
direitos consubstanciados nos tratados em que o país seja signatário,
“atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e
diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional”.82
Por outro lado, continua a autora, a natureza especial dos
tratados internacionais de direitos humanos conferida pela
Constituição impõe a aplicação imediata e se expande pela
Constituição, bem assim por todo o ordenamento jurídico,
diferentemente dos demais tratados internacionais, que têm natureza
de normas infra-constitucionais:
80 Apud: MINGOT, Tomás. La negación universal de los derechos humanos. In: La declaración Universal de
Derechos Humanos en su cincuenta aniversário; un estudio interdisciplinar. Série Ayuda Humanitaria.
Monografías, Vol. 1, Universidad de Deusto, 1999, p. 428.
81 HERRERA FLORES, Joaquín. Presupuestos básicos para educar en derechos humanos. El “diamante ético.”
Revista Andalucía Educativa, Junta de Andalucía - Conserjería de Educación y ciencia, n.º 16, 1999, p. 8. (Texto
original: “[...] Es decir, marcos de relación que posibilitan alternativas y tienden a garantizar posibilidades de acción
amplias en el tiempo y en el espacio en aras de la consecución de los valores de la vida, de la libertad y de la
igualdad”). Tradução livre do autor.
82 PIOVESAN, Flávia. Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e sua aplicação no exercício
da advocacia pública. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Governo do Estado do Paraná, n.º 6,
1997, p. 85-6.
118 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz opção por um
sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um
regime aplicado aos tratados de direitos humanos e outro aplicável
aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos - por força do Art. 5.º, parágrafos 1.º
e 2.º - apresentam natureza de norma constitucional e aplicação
imediata, os demais tratados internacionais apresentam natureza
infra-constitucional e se submetem à sistemática da incorporação
legislativa (e não automática).83
O mesmo ocorre com os direitos contidos nos Pactos
internacionais de direitos humanos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais, entre outros instrumentos internacionais de
direitos humanos, ratificados pelo Brasil sem qualquer reserva.84
Especialmente, no que se refere aos povos indígenas, o
reconhecimento dos direitos coletivos e diferenciados, constantes no
Art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e políticos, que
confere às minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas o direito às
suas especificidades de modos de vida, orientadas por seus valores
culturais, língua e religião.85
Está claro que o reconhecimento constitucional dos direitos
coletivos diferenciados dos povos indígenas constitui um novo marco
no contexto sócio-jurídico brasileiro, e demanda um firme processo
de efetivação desses direitos a orientar relações que valorizem a
dignidade humana desses povos. Relações entre si, com os membros
da sociedade nacional, com o Estado e com organismos
internacionais. Este processo constitui, nas palavras de Charles
TAYLOR, um desafio que supõe a diversidade profunda, porque a
única maneira em que se pode fazer justiça às populações indígenas
é mediante a adaptação do Estado ao molde pluralista.86
Os valores da vida, da vida humana concreta, diferenciam-se
culturalmente de uma sociedade para outra. A Constituição brasileira
valoriza a vida humana sem qualquer distinção, sem qualquer
hierarquia de modos de vida ou de origem, porque veda toda
discriminação (Art. 3.º, inciso IV). Ao mesmo tempo, reconhece as
diferentes formas culturais de promovê-la (Art. 116 caput e inciso II),
83 PIOVESAN, Os tratados..., op. cit., p. 86-7.
84 Id., p. 92.
85 ONU - União das Nações Unidas. Pacto Internacional de Direitos Civis e políticos.
“Art. 27. Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, não se negará às pessoas que
pertençam a ditas minorias o direito que lhes corresponde, em comum com os demais membros do seu grupo, a
ter sua própria vida cultural, a professar e praticar sua própria religião e a empregar seu próprio idioma”.
86 TAYLOR. Valores compartidos..., op. cit., p. 67.
119 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
e aos povos e pessoas indígenas como diferentes (Art. 231 e
seguintes).
Deste modo, os costumes, as línguas, as crenças, as tradições
e o conhecimento indígenas configuram, em cada povo, aspectos do
seu direito consuetudinário, respaldado e garantido pela Lei
Fundamental.
Nessa linha de pensamento, a satisfação das necessidades
humanas essenciais como forma de realizar a justiça social, significa,
na análise de Antonio Carlos WOLKMER, satisfazer as necessidades
“existenciais (de vida), materiais (de subsistência) e culturais”.87 Isto
equivale dizer: proporcionar o bem-estar socio-econômico bem assim,
não somente reconhecer as diferenças étnico-culturais e a
sociodiversidade, mas, sobretudo, reconhecer e criar espaços e
processos mediante os quais se tornem efetivas.
Para tanto, os processos plurais e heterogêneos de que falamos,
advindos do reconhecimento constitucional dos sujeitos e sociedades
indígenas diferenciados, implicam a participação políticodemocrática
nas instâncias governamentais do Estado e de todas as
instâncias internacionais88, que possibilite o acesso diferenciado aos
bens necessários à vida, nos sentidos “existencial, material e
cultural”,89 ao desenvolvimento acorde com o modo específico e
aspirações de cada povo, administração interna do território e dos
recursos naturais.
O sujeito indígena diferenciado constitui-se, portanto, em dois
aspectos fundamentais: em primeiro lugar a pessoa em relação,
contextualizada em sua cultura, inseparável do contexto social em
que foi construída e que, por suas características, vinculação e
dependência do social, diferencia-se do indivíduo moderno; em
segundo, o sujeito coletivo maior, a sociedade na qual a pessoa é
parte indissociável, na qual concreta os ideais de vida comunitária
tendo em vista a sobrevivência física e cultural, ambas relacionadas,
como observa Xabier ETXEBERRÍA, ao “direito de ser diferente, e ser
diferente como grupo”.90
O reconhecimento dos povos indígenas como detentores dos
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético e
como partes legítimas nos debates, tanto no âmbito interno dos
Estados, como nos âmbitos internacionais que tratem dos direitos
87 WOLKMER. Pluralismo jurídico..., op. cit., p. 145.
88 OIT – Organização Internacional do Trabalho. Convenção 169, de 07.06.1989.
89 WOLKMER. Pluralismo jurídico..., op. cit., p. 137-9.
90 ETXEBERRIA, Xabier. El desafio del otro indígena. Cuadernos Letras de Deusto, Universidad de Deusto, vol. 28,
nº. 79, Abril-Junio 1998, p. 49.
120 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
coletivos intelectuais é imperativo na atualidade. Somente assim,
quinhentos anos depois, talvez, o mundo ocidental possa entender
como crítica e não como ameaça, a observação de alguns índios
brasileiros, que, em visita à Corte Francesa, segundo relatado por
Michel de Montaigne: “observaram que há entre nós gente bem
alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metade de
homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam à porta dos
outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam de
“metades”); e acham extraordinário que essas metades de homens
suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem a casa dos
demais”.91
Os povos indígenas, eles próprios, metade-homens durante o
longo processo de colonização, hoje resistem diante dessa nova
investida colonialista – a apropriação privada dos seus
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético – com
base na resistência. Este o propósito primordial, também, deste
escrito. Contribuir para resistir.
91 MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Dos canibais. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p.
203.
121 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
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125 Os Povos Indígenas Brasileiros e os Direitos de
Propriedade Intelectual
126 Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Políticas Públicas e Estratégias
de Sustentabilidade Urbana1
Solange Teles da Silva2
INTRODUÇÃO
Agestão do meio ambiente urbano representa um
desafio complexo para as sociedades contemporâneas.
Não se trata apenas de considerar a preservação dos
recursos ambientais3, mas também de assegurar condições de vida
digna à população, propiciando que parcelas da sociedade não sejam
excluídas do processo de desenvolvimento das cidades. O meio
ambiente, qualificado de urbano, engloba tanto o meio ambiente
natural quanto o meio ambiente transformado, resultado da ação do
homem e da sociedade, ou seja, o meio ambiente na e da cidade.
Como seria possível então apreender a “problemática urbana”?
Há uma dificuldade de elaboração de uma problemática
científica do meio ambiente urbano, como assinala Pascale
METZGER, que advém do próprio contexto político, ideológico,
científico e social. Este contexto é caracterizado pelos seguintes
elementos interdependentes: a) a redefinição das relações entre
1 Palestra sobre Políticas Públicas e Estratégias de Sustentabilidade Urbana no II Seminário de Direito Ambiental –
I Congresso de Direito Ambiental da Amazônia, 14 de maio 2003, Belém – Pará.
2 Doutora em direito pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne. Professora do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Professora convidada do curso de especialização em
engenharia ambiental da Universidade de Campinas (UNICAMP).
3 De acordo com o artigo 3°, inciso V da Lei 6.938, de 31.08.1981, recursos ambientais são : “a atmosfera, as águas
interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a
fauna e a flora” (redação dada pela Lei nº 7.804, de 18.07.89).

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