quinta-feira, 5 de abril de 2012

EDWARD WIENER (HILÉIA)

HILEIA
Revista de Direito Ambiental da Amazônia
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HILEIA
Revista de Direito Ambiental da Amazônia
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Universidade do Estado do Amazonas – UEA
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
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CONSELHO EDITORIAL
Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Prof. Luiz Edson Fachin
Prof. David Sánchez Rubio
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Prof.ª Cristiane Derani
Prof. Sérgio Rodrigo Martinez
Prof.ª Solange Teles da Silva
Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
PROJETO GRÁFICO
KintawDesign
REVISÃO
Marcos Sena
FICHA CATALOGRÁFICA
Ycaro Verçosa
AmM Silva, Francisco Gomes da.
Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. Manaus: Edições
Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura /
Universidade do Estado do Amazonas, 2003.
144 p.
Raro
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS-UEA
Programa de Mestrado em Direito Ambiental
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Sumário
APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
PRIMEIRA PARTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
HOMENS E MULHERES DO CHÃO LEVANTADOS
Luiz Edson Fachin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
NUEVOS COLONIALISMOS DEL CAPITAL. PROPIEDAD INTELECTUAL, BIODIVERSIDAD Y DERECHOS DE
LOS PUEBLOS
David Sánchez Rubio e Norman Solórzano Alfaro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
SEGUNDA PARTE
TUTELA JURÍDICA DA APROPRIAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E AS TRÊS
DIMENSÕES DA PROPRIEDADE
Cristiane Derani . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
OS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS E OS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
Fernando Antonio de Carvalho Dantas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
POLÍTICAS PÚBLICAS E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE URBANA
Solange Teles da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
BIOPIRATARIA: UM PROBLEMA (QUASE) SEM SOLUÇÃO
Ozório J. M. Fonseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
TERCEIRA PARTE
TUTELA PENAL DA COBERTURA VEGETAL DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
Vânia Maria do P. Socorro Marques Marinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
ASPECTOS JURÍDICOS DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA NA CIDADE DE MANAUS
Fábio Pacó de Matos,
João Francisco Wanderley da Costa
Raimundo Sérvulo Lourido Barreto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
FLAT TROPICAL - MANAUS: UM ESTUDO DE CASO
Carla Brum Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
QUARTA PARTE
RESENHA DA OBRA: NEOLIBERALISMO & DIREITOS HUMANOS
Sérgio Rodrigo Martinez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
Prefácio
Vem de longe, anos muitos passados, o uso da
expressão hiléia remontando mesmo ao tempo de
Heródoto (-484/-425), na antiga Grécia, o pai da história, um dos
mais reconhecidos e proclamados historiadores, prosador sincero na
forma e na crítica do que dizia. Pelos registros de Antonio Houassis,
a etimologia é de hulaía, do bosque, selvagem (Dicionário Houassis da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed Objetiva, 2001). Na terra-mãe
nada mais era do que um inseto himenóptero, na expressão grega
hylaios ou hileu, ou como outros assinalam, o correspondente a
hylaíe, de hylé, madeira, região da Sarmácia européia, até que
Alexandre von Humboldt (1769-1859) resolveu adotá-lo na condição
de termo reconhecidamente erudito para designar a região botânica
existente nas selvas da Amazônia, especificamente a que se localiza
em derredor do rio das Amazona que ele vinha penetrando em
reconhecimento científico.
A viagem deve ter ocorrido a partir de La Corogne, em 5 de
junho de 1799, quando ele tinha 30 anos, voltando-se pela primeira
vez para uma região distante, quando se deparou com a Amazônia.
De sua segunda viagem retornou em 1804.
Humboldt é aquele a quem Sant’Anna Nery proclamou como o
Aristóteles moderno e que ao deixar a região das florestas úmidas e
traçar um papel preponderante para o Cassiquiare insistiu na
pregação de que ele uniria o rio Orenoco ao rio Amazonas, por via do
Rio Negro, rasgado o istmo do Panamá, o que viria a permitir o
aproveitamento dos dois oceanos. No seu relatório de viagens pode-se
ler claramente este sentimento de grandeza,
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
Essa região, nove ou dez vezes tão grande quanto a Espanha,
enriquecida pelas produções mais diversas, é navegável em todas as
direções por meio do canal natural do Cassiquiare e da bifurcação dos
rios. Esse fenômeno, que terá um dia importância capital para as
relações políticas entre as nações, merece, sem nenhuma dúvida ser
considerado com seriedade (NERY, Sant’Anna. No País das
Amazonas, S.Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979).
E ele abriu caminhos novos para muitos viajantes que
invadiram a região, proclamaram suas mazelas, exuberâncias,
riquezas, sonhos e fantasias, sempre com deslumbramento incomum.
Assim se deu com Spix e von Martius, numa viagem que rendeu obras
como a Reise in Brasilien e a Flora Brasiliensis, seguidos de Eduardo
Poepping (1827-32), Robert Ave Lallemant (1863), Franz Keller (1874),
e aos quais se reúnem o conde Francis de Castelnau (1850), Paul
Marcoy (1869), Emile Carrey (1856), Caetano Osculati (1854), tenente
Nery Lister Law (1829), W. Smyth e F.Lowe (1836). Aberta a porteira
deve-se a Alfredo Wallace (1878) e a Henry Bates (1864), estudos mais
relevantes, aos quais se juntam os trabalhos de William H. Edwards
(1855), James Orton (1870), W. Chandless (1866), Henry Wickham
(1872), Edward Mathews (1879), Charles Wilkes (1858), Jules Crevaus
(1883), Charles Wiener (1883-84), C. Walklut (1882), H. Coudreau
(1886), C. Girard (1889), M. Monnier (1889), O. Ordinaire (1892),
Conde Ermano Stradelli (1889-90) - o que viu e vivenciou a região
como poucos -, Padre Coppi (1885) e Vicenzo Grossi (1897) e por aí
seguem tantos e tantos, e, aqui e ali, brasileiros como Ferreira Penna,
Hilário Gurjão, Gabriel Ribeiro Guimarães, Tavares Bastos e
Alexandre Rodrigues Ferreira, em vários estudos e relatórios.
Dentre os estrangeiros uns reuniam e estudavam as espécies,
carregavam consigo malas imensas com dezenas de exemplares
naturais, relatavam a região, a cobiçavam desabridamente e
estendiam tentáculos; outros proclamavam as suas belezas e
manifestavam os receios pela grandiloqüência. Era erudição e
curiosidade científica salientando a Amazônia como futuro celeiro
agrícola capaz de deslocar os centros de produção. Sábios, narradores,
turistas, curiosos, viajantes de caderneta, audaciosos, visionários, e
até os sonhadores desejosos de uma nova ordem econômica em que a
região seria indispensável e eixo de sua propagação.
Este tema tem seguido motivando vários escritores a
produzirem livros singulares sobre a região, alguns adotando a
expressão cunhada pelo ilustre visitante como é o caso do conhecido
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
Hiléia Amazônica: Aspectos da Flora, Arqueologia e Etnografia
Indígena, de Gastão Cruls, que venceu fronteiras.
Depois do batismo conferido pelo sábio alemão que por aqui
peregrinou pelo ano de 1800 e foi contido no meio interior da floresta
pela vigilância lusitana por conduzir em seu poder instrumentos
considerados próprios para um espião dos domínios portugueses
(sextantes, barômetros e taqueômetro), a Hiléia foi recolhendo outras
designações, e a história se pôs a registrar, igualmente, diversas
proclamações de descobertas do viajante que varou rios e paranás ao
lado do francês Aimé Bompland (1773-1858), como o exaltado
fascínio que nutria pelo peixe puraquê, capaz de provocar relâmpagos
de descargas elétricas.
Nos dias que correm a expressão está consumada e inscrita nos
dicionários de língua portuguesa como a região botânica das selvas
da Amazônia, neologismo de Humboldt. Trata-se do mesmo nome que
H. e R. von Yrenring também propôs. Os registros são muitos e os
mais variados, alguns deles coincidentes ou com raras modificações,
quase sempre como nome dado por Humboldt à grande floresta
equatorial úmida que se estende das vertentes orientais dos Andes,
pelo vale do Amazonas, e pelos seus afluentes até as Guianas. (LIMA,
Hilderando; BARROSO, Gustavo. Pequeno Dicionário da Língua
Portuguesa, 5.ª ed, São Paulo: Ed. Civilização Brasileira, 1944), tal
como está na obra clássica de Aurélio Buarque de Holanda (2000).
Dentre os que conferem uma delimitação física à região
conceituada pelo sábio há tantos anos, Adolpho Ducke experimenta
um exercício de síntese que se nos parece claro e de alcance mais
próximo da manifesta pregação daqueles anos, ao afirmar que é a
região de florestas pluviais equatoriais que abrange a bacia do
Amazonas com exclusão da parte andina, mas incluindo o alto
Orenoco, as guianas, o baixo Tocantins e o litoral paraense, com a
parte Noroeste do Estado do Maranhão (A Amazônia Brasileira, in
Anuário Brasileiro de Economia Florestal, p.28, Ano I, nº I, Rio de
Janeiro, 1948). Estava se valendo da identidade com o gênero hévea,
típica da Hiléia, de singular importância econômica. E o fez pelos
seus próprios estudos que muito bem o autorizavam, como os
cientistas ainda agora reconhecem.
A ampla popularização da expressão Hiléia decorreu, é bem
verdade, da reação de alguns setores muito bem identificados da
sociedade brasileira que impediram a consecução de um projeto
denominado de Instituto Internacional da Hiléia Amazônica,
projetando e firmando políticos e representando, por longo tempo, o
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
símbolo da resistência nacionalista em defesa da intocabilidade da
região e contra a sua pretensa internacionalização.
Há quem afirme, entretanto, que foi o intenso e claro desejo de
expandir o conhecimento para novas fronteiras que incluiu a
Amazônia brasileira entre os programas prioritários da atuação da
UNESCO a partir de 1947, ao tempo em que Paulo Berredo Carneiro
(1901-1981) motivava o presidente Getulio Vargas a apoiar a criação
do Instituto Internacional da mesma forma como fizera com relativo
sucesso com aquela importante entidade de representação de
soberanias democráticas. A pretendida república universal dos
cientistas em que deveria se transformar a região amazônica
brasileira com os laboratórios químicos, encontrou resistências,
dentre outras, como as de Artur Bernardes e Carlos de Lima
Cavalcanti quando parlamentares federais que, indignados com os
riscos de entrega da área ao domínio ou a influência política direta de
outros povos, reagiram com veemência ao lado de vozes que jamais
silenciaram como a de Arthur Reis.
Ainda se podem ver nas prateleiras dos bibliófilos e alguns raros
estudiosos das distantes terras tropicais que ensejaram a Gilberto
Freyre um estudo de Lusotropicologia, os mais diversos trabalhos
publicados a respeito do Instituto, alguns deles no calor da refrega,
outros com alguma distância no tempo, mas todos temperados do
mesmo sentimento nacionalista de defesa e manutenção da
integridade do território brasileiro. Pode-se referir, por exemplo, os de
Augusto Meira (Feliz Lusitânia, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,
1949), J. M. Othon Sidou, um em 1950 e outro em 1951 (O Instituto
Internacional da Hiléia. Ed Cambio. Recife, 1951 e Os Corvos rondam
a Selva. Ed. Cambio. Recife, 1952), e o do próprio Paulo E. de Berredo
Carneiro (O Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, 1951). Outros
mais se seguiram, e quase meia centena deles poderiam ser listados,
porque este tema é recorrente em quase todos os textos que versem
sobre o desenvolvimento da região amazônica, como em Arthur Reis,
Samuel Benchimol, João Mendonça de Souza, Armando Mendes e
Djalma Batista, para citar alguns.
Até hoje cientistas estudam as propostas que surgiram com o
Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, como Marcos Maio,
quase todos perquirindo se havia ou não cunho imperialista no
projeto que, de plano, assustou a muitos brasileiros e a respeito do
qual os amazônidas pouco ou quase nada conheciam. Vivíamos pelos
anos de 1946-48 e tais fatos além de terem gerado uma campanha
nacionalista promoveram com certa amplitude a aplicação do termo
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
cunhado por Humboldt, provocando especialmente a ampliação para
Hiléia Amazônica.
Nos dias atuais fala-se também em uma Hiléia Baiana, a que é
de rica vegetação de madeira de lei, com árvores de mais de 30 metros
de altura, uma região de mata atlântica.
Dentre os rótulos atuais podemos ver que Hiléia é também
nome conferido a conjunto habitacional, revista de estudos médicos,
propaganda de turismo de natureza, rua em várias cidades
brasileiras, empresas prestadoras de serviços de Imprensa, produtos
alimentícios, sistema de internet interativa sobre cinema e produção
cinematográfica, tema para exposição de artes, em cromos de
renomados artistas brasileiros, artigos em revista de estudos
ecológicos, espetáculo de música, discussão sobre definição de áreas
sustentáveis da região, liga desportiva, designação e metáfora sobre a
região amazônica brasileira, e até em base para receitas de comidas
típicas ou no uso de produtos naturais, loja de livros e peças raras,
artesanato, embalagens, restauração, decoração, brindes, festas,
entidade não governamental, banda de música, espetáculo de teatro
e dança, coleção de jóias com temática regional. Tudo em língua
portuguesa, alemão, inglês, francês e italiano.
O fantasma e o colosso da Hiléia Amazônica perambulam ainda
pelos mundos, ora do sonho e da fantasia, ora do interesse econômico
e de domínio político, servindo, aqui e ali, vez em quando, de ameaças
ou sortilégios para a verdadeira Hiléia de Humboldt.
Agora encima a revista de Direito Ambiental da Universidade do
Estado do Amazonas destinada a acolher estudos e perquirições dos
pesquisadores, doutores e mestrandos do Curso de Direito
Ambiental, na forma como se cascavilha no século XXI por meios e
modos de estudar, reconhecer, observar e ainda defender as
preciosidades que tanto são proclamadas e devem constar da
biodiversidade da região. Valores e conceitos contemporâneos para as
riquezas que já eram vislumbradas séculos passados.
Ainda agora vamos caminhando em passos lentos, mesmo com
os recursos mais modernos, no campo da observação e da discussão
científica para reconhecimento da Hiléia Amazônica.
Eis para o que deve servir esta Revista. Que assim seja.
Robério Braga
Secretario de Estado da Cultura do Estado do Amazonas
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
Introdução
AHiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia,
surge como espaço destinado à apresentação e
divulgação das reflexões produzidas no processo de construção do
conhecimento humano, jurídico e humanístico-jurídico-ambiental,
desenvolvido no âmbito do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.
Os contextos diversos e complexos do mundo contemporâneo,
em relação constante e paradoxal, com o acirrado processo de
globalização econômica e cultural, implicam em transformações
sociais, jurídicas, econômicas e políticas, gerando novos problemas e
conflitos, especialmente no que concerne ao direito e ao seu estudo.
A verticalidade do discurso global que busca legitimar os processos
de universalização da cultura do mercado quer seja na vertente única
da produção e do consumo capitalistas, transformando tudo em
mercadoria, ou, na imposição de modelos de normatividade
supostamente eficazes para proporcionar o desenvolvimento,
provocam uma certa idéia de que não existe solução fora desses
parâmetros, favorecendo um renovado processo econômico
neocolonial.
Nesse sentido, refletir desde os contextos da existência,
significa proporcionar e criar os espaços de lutas. Lutas pelo
conhecimento, pelo direito, pela vida e dignidade humana. Assim,
este periódico científico que ora se lança como espaço para
divulgação e reflexão do direito ambiental, tem no contexto
amazônico e brasileiro, e, em sentido mais ampliado, em trocas
geopolíticas e cognoscitivas mais iguais na correlação sul-norte,
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
norte-sul, espiralando a seara da complexidade cultural, da sócio e
biodiversidade. Almeja-se, portanto, constituir-se, pelo diálogo, em
âmbito plural e heterogêneo para convergências de conhecimentos e
alternativas, com perspectivas transdisciplinares nas abordagens e
conteúdos, assim como interinstitucional e translocal nos sujeitos.
Ademais, a riqueza humana, configurada nas diversidades
sócio-culturais-ambientais, evidenciam as imprescindíveis relações
homem-natureza, pois o homem, como ser desta integrante, a
modifica, culturalizando os espaços com suas ações. Se, por um lado,
a cultura ocidental promoveu processos mecanicistas no trato com o
meio que podem, segundo as estatísticas e estudos ambientais,
resultar na degradação e exaurimento dos recursos naturais, com
conseqüências drásticas na qualidade e manutenção da vida
humana; por outro, a consciência da inexorabilidade desse processo
desencadeia o desenvolvimento de teorias relacionadas a práticas que
proporcionem o equilíbrio entre homem e natureza, que definam a
proteção e redisciplinem sua apropriação econômica, possibilitando,
assim o desenvolvimento sustentável.
O sentido e o alcance desta revista reside na proporção e
difusão que as reflexões alcancem a complexidade e singularidades
da dimensão das relações entre o homem e o meio.
A busca de entendimentos para essas questões perpassam os
trabalhos que compõem este periódico, dividido em quatro partes: a
primeira dedicada a receber contribuições de professores e
pesquisadores externos ou visitantes do Programa de Mestrado em
Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas; a
segunda, contempla a produção científica dos docentes diretamente
vinculados ao Programa; a terceira constitui-se no espaço para a
participação discente, com a publicação do produto das reflexões
acadêmicas desenvolvidas ao longo do curso e, por último, a quarta
parte está voltada para a publicação de resenhas, resumos e notícias
de interesse acadêmico.
Assim sendo, na primeira parte, Luiz Edson Fachin aponta em
Homens e mulheres do chão levantados, para a necessidade de
reestruturação dos paradigmas clássicos da apropriação da terra,
refletindo sobre o real e a utopia a partir do seguinte paradoxo: de um
lado, o avanço formal do texto constitucional brasileiro no tocante à
função social da propriedade imobiliária rural e, de outro, a
inefetividade do acesso legítimo e democrático à terra. Já David
Sánchez Rubio e Norman Solórzano em Nuevos colonialismos del
capital. Propiedad intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos,
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Revista de Direito Ambiental do Amazonas
buscam demonstrar que as modificações nas ordens econômica,
jurídica e socioambiental mundiais podem ser percebidas mais
claramente através de grandes impactos, observados à distância. O
ator social inserido no contexto destas modificações, pode ter sua
percepção dos fatos minimizada. Na ordem atual, a globalização do
sistema econômico provocou a homogeneização cultural dos povos e
impôs monopólios sobre a biodiversidade (e demais recursos
naturais) em nível mundial. Esta tendência pode ser observada
através da política externa dos Estados Unidos da América em
relação à apropriação de recursos naturais localizados em outros
países. Em sentido contrário, o status de recurso comum, colocado
como paradigma de uma nova racionalidade jurídico-econômica, visa
evitar que a biodiversidade e a atividade humana sejam reduzidas ao
mero exercício do comércio.
Na segunda parte, Cristiane Derani, seguindo as linhas de
argumentação dos trabalhos constantes da parte anterior, decodifica
em Tutela jurídica da apropriação do meio ambiente e as três
dimensões da propriedade, sua transposição para a apropriação do
meio ambiente: direitos de propriedade (detenção), princípio da
função social da propriedade (fruição) e direito de acesso
(conhecimento). Para a autora, os direitos de apropriação dos bens
ambientais devem ser utilizados de forma instrumental para alcançar
o desenvolvimento sustentável, repensando-se os mecanismos de
apropriação, como por exemplo, dos conhecimentos das
comunidades tradicionais e indígenas. Nesse mesmo sentido,
continua Fernando Antonio de Carvalho Dantas em Os Povos
indígenas brasileiros e os direitos de propriedade intelectual onde
analisa os direitos dos povos indígenas e os direitos de propriedade
intelectual, enfrentando a interdependência das dimensões histórica,
sócio-política, econômica e jurídica da questão. O autor busca
fornecer subsídios para a complexa discussão relativa à formalização
dos direitos de patente e os direitos pessoais, patrimoniais e
humanos; sua origem individual ou coletiva; possibilidades de acesso
privado ou público; modalidades de proteção interna ou externa;
benefícios advindos do acesso e, finalmente, as possibilidades de
formas alternativas e conceituais de sistematização e aproveitamento
das criações e produções intelectuais relacionadas com o direito dos
povos. Solange Teles da Silva com Políticas Públicas e estratégias de
sustentabilidade urbana analisa a problemática da urbes a partir da
gestão do meio ambiente urbano. Habitat do homem contemporâneo,
as cidades constituem o espaço geográfico de atuação das políticas
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públicas. Atualmente, a maioria da população brasileira vive nas
cidades, mesmo na Amazônia. Assim, segundo o artigo, a formulação
e a concretização de políticas publicas nas cidades conduzem a
reflexões sobre quais são as estratégias que conduzem à
sustentabilidade urbana. Retomando a discussão sobre a proteção da
biodiversidade, Ozório J. M. Fonseca, em Biopirataria: um problema
(quase) sem solução, enfrenta essa questão e a complexidade em
torno da regulamentação do acesso e uso do patrimônio genético e
biológico. Lançando um olhar crítico sobre tendências que considera
passionais e ideológicas acerca do tema, o autor descreve dificuldades
e limites referentes ao combate da retirada ilegal dos recursos
biológicos, contrapondo a questão da biopirataria a outros problemas
ambientais na Amazônia e em diferentes regiões do país. As saídas
vislumbradas ligam-se, sobretudo, a investimentos em ciência,
tecnologia, inovação e educação, como um projeto de Estado para a
Amazônia.
A terceira parte, dedicada à divulgação da produção acadêmica
discente voltada para a problemática e contextualização regional,
conta com artigos como Tutela penal da cobertura vegetal de
preservação permanente, de Vânia Maria do Perpétuo do Socorro
Marques Marinho, que trata dos instrumentos jurídicos que
possibilitam a tutela penal do meio ambiente e, notadamente, da
cobertura vegetal de preservação permanente, destacando a
particularidade das faixas de preservação dos rios amazônicos. No
mesmo sentido o grupo de mestrandos Fábio Pacó de Matos, João
Francisco Wanderley da Costa e Raimundo Sérvulo Lourido Barreto,
discorrendo sobre os Aspectos jurídicos da poluição atmosférica na
cidade de Manaus, enfatizam que a ausência de planejamento e de
diretrizes para o desenvolvimento acabaram por provocar forte
pressão sobre os recursos naturais e o incremento de várias formas
de poluição, dentre as quais, a atmosférica. Carla Brum Carvalho, em
Flat Tropical – Manaus: um estudo de caso, realiza uma crítica a
grandes e impactantes empreendimentos que não levam em
consideração o desenvolvimento endógeno da região.
Por último, na quarta parte, Sérgio Rodrigo Martinez resenha a
obra neoliberalismo e direitos humanos, de autoria de Antonio José
de Avelãs Nunes. Além de comentários sobre o autor e o contexto de
produção da obra, a resenha sintetiza o debate estruturador do livro,
entre dois marcos econômicos do século XX – o Keynesianismo e o
Monetarismo – e suas respectivas repercussões nas esferas jurídica e
social.
16 Hileia
Revista de Direito Ambiental do Amazonas
Agradecemos ao Magnífico Reitor da Universidade do Estado do
Amazonas, Prof. Lourenço dos Santos Pereira Braga, pelo sempre
renovado otimismo. Ao Pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa Prof.
Admilton Pinheiro Salazar e a Coordenadora Geral de Pós-graduação
Profª. Fátima Bigi, pelo apoio incondicional aos projetos do Programa
de Mestrado em Direito Ambiental. Aos professores deste Programa
pela dedicação e colaboração, e em particular aos Professores Andréa
Moreira Borghi Jacinto, Sergei Aily Franco de Camargo e Solange
Teles da Silva, que auxiliaram na revisão dos textos da revista.
Agradecemos aos mestrandos deste Programa, por acreditarem no
processo de construção do conhecimento humanístico-jurídicoambiental
amazônico. Agradecemos, também à equipe de apoio à pósgraduação
Silvana Ferreira de Souza, Nazaré Ferreira de Lima e Aete
do Socorro M. de Matos. Por último, agradecemos, em especial o
apoio da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Amazonas,
sem o qual esta publicação não se realizaria em tão breve tempo.
Profª. Drª. Cristiane Derani
Coordenadora da Revista Hiléia
Prof.Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Ambiental
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– PARTE 01 –
HOMENS E MULHERES DO CHÃO LEVANTADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
(Luiz Edson Fachin)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9
1. Prelúdio da formação territorial em três movimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10
2. Primeiro. O estado privado da terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
3. Segundo. Do código à constitucionalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13
4. Terceiro. O avesso tomado pelo direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
NUEVOS COLONIALISMOS DEL CAPITAL. PROPIEDAD INTELECTUAL,
BIODIVERSIDAD YDERECHOS DE LOS PUEBLOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25
(David Sánchez Rubio / Norman J. Solórzano Alfaro)
1. La rana que no reacciona en un contexto adverso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25
2. Propiedad intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos:
expresiones concretas de la totalidad de lo real. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28
3. La envergadura, la complejidad y la perversidad del sistema capitalista. . . . . .32
4. Derechos humanos y patrimonio común de la humanidad. Contribuciones
para la elaboración de alternativas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41

Homens e Mulheres
do Chão Levantados
Luiz Edson Fachin1
Tudo já foi dito
Tudo está por dizer
Tudo está por dizer no que já foi dito”
António Ramos Rosa
INTRODUÇÃO
Opresente estudo, inserido na temática proposta
pela XVII Conferência Nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil, tem premissas, desenvolvimento e conclusão
definidos em uma perspectiva que procura desnudar paradoxos.
Verso e reverso de uma mesma melodia.
Nos sons agudos, de um lado aponta o reconhecimento do
avanço formal do texto constitucional brasileiro, apto a propiciar o
reconhecimento da ausência de proteção jurídica à propriedade
imobiliária que não cumpra sua função social, e de outro, registra a
inefetividade social do acesso legítimo e democrático à terra.
Nos sons graves, em três movimentos retoma as raízes da
estruturação do território privado brasileiro na formulação do estado
da propriedade imobiliária, mormente a rural, passa pelo
apoderamento conceitual e cultural do status derivado da titularidade
que enclausura a noção de sujeito, e alcança, ao final, entre o real e
a utopia, limites e possibilidades entre os conflitos e a esperança2.
Orquestra-se a reunião histórica das vozes que não subscrevem
uma consonância perfeita, aquelas que, através de diferentes
instrumentos e timbres, não compõem peças para soluções
1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
2 “Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista: mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e
necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícita no ser humano”,
afirmou E.P. THOMPSON à página 23 da obra Costumes em comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1998.
Homens e Mulheres do Chão Levantados 23
previamente acordadas. Na exposição desses variados coros, o
regente será o tom da esperança.
1. PRELÚDIO DA FORMAÇÃO TERRITORIAL EM TRÊS
MOVIMENTOS
Volvendo o olhar às raízes, o moderno, no Brasil, é o futuro
acontecido ontem. Nos diversos trechos de um solo inacabado, o
regime jurídico da propriedade imobiliária ainda não venceu ao
debate dos séculos XVII e XVIII. Dilemas contemporâneos, feitos
notas mal colocadas e acordes indevidos, estão obstados pelo
aprisionamento conceitual do século XIX e começo do século XX.
Esse é o resultado prático do arcabouço jurídico pátrio que teve
início com o “código imperial de terras”3, incapaz de solver as
seqüelas do anterior regime das sesmarias, se espraiou na omissão
da codificação civil, alcançou a ineficácia material com a vigência do
Estatuto da Terra e, por fim, se projetou no texto constitucional de
1988, como princípio cuja efetividade4 ainda está para se verificar.
Remanesce ante ao nominalismo individualista, projetado para
o Código Civil brasileiro, e toma a propriedade como direito subjetivo,
poder e permissão, corolários da liberdade construída, na filosofia,
pelo idealismo da ação livre. Mal vê o que já nos contratualistas,
especialmente em Locke, ligava a aquisição da propriedade ao
trabalho.
Elevado a direito do homem, inviolável e sagrada titularidade
como proclamada em 1789, veicula uma justificação kantiana5 da
perfeição da natureza do indivíduo e de sua liberdade moral. Na base
3 Sobre a matéria, ver Ricardo Pereira LIRA em estudo encartado na obra Elementos de Direito Urbanístico (Rio de
Janeiro: Renovar, 1997), sob o título “Campo e cidade no ordenamento jurídico brasileiro”, a partir de página 309,
no qual afirma: “Proclamada a independência brasileira, continuavam a viger no país as Ordenações Filipinas e as
demais lei e decretos editados até 25.04.1821, por força da lei de 20.10.1823. Durante o tempo que mediou entre
a resolução extintiva do sistema sesmarial (17.07.1822) e a entrada em vigor da denominada Lei de Terras (Lei nº
601, de 18 de setembro de 1850), houve um período designado pelos doutrinadores de extralegal ou de posses,
marcado pela inexistência de uma legislação específica de terras no Brasil” (p. 318).
4 A efetividade das normas não se confunde com sua eficácia: “la eficacia del derecho hace referencia a los objetivos
politicos del productor del discurso” (CORREAS, Óscar. A partir da página 208 da obra Introducción a la sociologia
jurídica. México, D.F.: Ediciones Coyoacán, 1994). É nessa dimensão que o vocábulo efetividade, em sentido amplo,
neste trabalho é tomado.
5 “O interesse pela filosofia de Kant não representa uma volta saudosista ao passado, seja ela na ética, seja na gnoseologia.
Sua atualidade é comprovada pela forte influência que exerceu e exerce no pensamento contemporâneo, sobretudo mas
não apenas na tradição alemã. Toda filosofia posterior precisa passar por ele, principalmente se pretende ter alcance
jurídico. Sem Kant, decerto, Hegel não chegaria da mesma maneira à concepção dialética que desemboca em Marx, nem
Husserl, ao método fenomelógico. Heidegger e o existencialismo também têm seu débito para com ele, assim como as
teorias de Habermas e Dworkin, Toulmin ou Perelman e Tyteca. Sobre os pós e neokantianos, a própria denominação
testemunha o papel da filosofia de Kant. E, no Brasil, sua influência não vem de hoje, pois a ligação de nossas teoria e
prática jurídicas com o pensamento alemão e especificamente com Kant remonta pelo menos ao século passado”
(ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito; uma crítica à verdade na ética e na ciência (através de um exame da
ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 1996, p. 36).
24 Luiz Edson Fachin
do estatuto brasileiro a propriedade imobiliária assim apreendida se
conecta à desigualdade. Nem a justiça do idealismo (igual liberdade
para todos, igual propriedade a todos) se verteu ao real.
A ordem jurídica brasileira, na tensão entre os ideais da
liberdade e da igualdade, se edificou, no público e no privado,
colonizada sob o estatuto da propriedade imobiliária, em três
movimentos distintos, sem improvisos supérfluos.
2. PRIMEIRO. O ESTADO PRIVADO DA TERRA
Distanciando-se proprietas romana6, chegando à mescla
híbrida do conceito moderno, um velho dominium tomado por uma
pretensa abstração que implica em senhoria, vem refundado pelos
modernos e reforçada pelo positivismo jurídico contemporâneo. Da
Colônia ao Império, da República Velha aos horizontes do Estado
constitucional de 1988, um traço originário inapagável.
Seqüelas dos primeiros viajantes e pioneiras expedições que
teriam sido forjados sob ancestrais náufragos, traficantes e
degredados7, filhos de um novo êxodo. A Colônia se apresenta muito
mais como resultado do processo de expansão marítima e comercial
européia, e menos como fruto de um “achamento” circunstancial que
sofreria as mesmas influências da florescente burguesia na Europa8.
É inegável que “a História do Brasil, nos três primeiros séculos,
está intimamente ligada à da expansão comercial e colonial européia
na época moderna”9. Vê-se, por conseguinte, nesse processo de
expansão dos modos de produção, um Brasil que nasce na
Homens e Mulheres do Chão Levantados 25
6 Sobre tal evolução histórica, ver, a partir da página 109, Michel VILLEY, na obra En torno al contrato, la propiedad
y la obligación. Buenos Aires: Ghersi Editor, 1980. A propósito do tema, “a propriedade liberal moderna, defendeu,
com acerto, a professora Maria Cristina C. PEZZELA, não tem sua origem na propriedade romana, com a qual guarda
insuperáveis diferenças de princípio” (à página 218 do livro Propriedade privada no Direito Romano. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998).
7 Essa é a linha pela qual se conduz Eduardo BUENO, no volume II, Náufragos, Traficantes e Degredados; as primeiras
expedições ao Brasil (Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, Coleção Terra Brasilis). Registre-se, porém, em abono à
pesquisa mencionada que o próprio autor, que já houvera escrito e publicado A Viagem do Descobrimento; a
verdadeira história da expedição de Cabral (Rio de Janeiro: 1998, Coleção Terra Brasilis), que a história daqueles
anos não pode ser vista “como um processo orgânico e coerente, nem narrada com os detalhes e a dramaticidade
que a trajetória individual dos homens que a forjaram parece exigir e importar”. Demais disso, abone-se também
tratar-se de um texto jornalístico, sem embargo de bem documentado e com consultoria técnica específica do
professor Ronaldo VAINFAS.
8 A propósito, nesse sentido: “Não quer dizer com isso que devamos adotar o estereótipo de um Brasil ocupado por
degredados, entendidos como malfeitores que, tão logo, desembarcavam, só tratavam de enriquecer, enquanto se
uniam com várias índias ao mesmo tempo, adotando sem demora a poligamia indígena. Avessos ao casamento,
errantes, aventureiros. Tampouco se deve esposas, como modelo único, o paradigma da casa-grande” (Ronaldo
VAINFAS, à página 222 do estudo Moralidades brasílicas, In:História da Vida Privada no Brasil; cotidiano e vida
privada na América portuguesa. Org. Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; volume 1 da
Coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando A. Novais).
miscigenação e se funda na exclusão social, traço que perdura desde
a herança colonial.
E aí os dois elementos fundantes: a expansão da economia
mercantil européia, e a realização dos interesses da burguesia
comercial, com fortalecimento das camadas urbanas da Europa que
se antepôs, no fim do medievo, às barreiras da Idade Média10. Na
Colônia, faz-se nascer um país sob um modo determinado de
produção, com fins preestabelecidos, possibilitando aos empresários
metropolitanos ampla lucratividade mediante regimes semi-servis ou
escravocratas.
A Época Moderna, pois, com o “achamento” territorial do
Brasil e com sua “invenção” como objeto de exploração no cenário
administrativo, político e jurídico, assiste ao nascimento de uma
Nação. Submissão e subordinação, encontro e ocupação, se tecem
mediante diversos instrumentos de realização, consolidação e
expansão do poder político e econômico.
Nucleados nessa perspectiva, os elementos culturais de
caracterização social vão alcançar as bases do Estado brasileiro: um
Estado cartorial, arquitetado pelo reino da solenidade e celebrações,
ritos e processos, e que encontra, nos seus primórdios, o
empreguismo público, a exclusão social e uma seleta classe
dominante, afortunada e poderosa, imune ao crivo da lei e ao aparato
estatal.
Essa cartorialidade se expressa num aparato estatal público,
principiado com o governo reinícola, e aos poucos, por concessão ou
delegação, se espraia por ofícios, escrivanias e registros, instalando
uma tradição tabelionatícia11 da vida pública e privada.
Por detrás do palco no qual tais personagens se apresentavam,
emerge a distância social entre as classes, e entre o povo e o Estado. De
um lado, o patronato oligárquico e parasitário, conjugado com um
patriciado estatal, quer político, militar e tecnocrático, quer civil, com
eminências, lideranças e celebridades; de outra parte, os dependentes, o
campesinato, os marginais em sentido amplo12.
26 Luiz Edson Fachin
9 Nas palavras de Fernando A. Novais, no estudo O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial, In:Brasil em
perspectiva, p. 47 e seguintes, obra organizada por Carlos Guilherme Mota, publicada em São Paulo pela DIFEL,
1980, a 11ª edição).
10 Sob essa perspectiva, Fernando Novais, obra citada, p. 48 e 49.
11 A administração colonial, de uma parte, emerge assentada no cargo público, vinculando os desdobramentos
políticos às vicissitudes do relacionamento entre a metrópole e a colônia intercedido por agentes e funcionários
públicos. Raymundo FAORO diferencia: “No agente público - o agente com investidura e regimento e o agente por
delegação ... o funcionário será apenas a sombra real” (à página 171 da obra Os donos do poder; formação do
patronato político brasileiro, volume 1, 7ª ed., Rio de Janeiro:Globo, 1987).
12 Conforme Darcy RIBEIRO, na obra O povo brasileiro; a formação e o sentido do Brasil (São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, 2ª ed., 12ª reimpressão), p. 211.
Para essa clivagem especial papel desempenhou o regime
jurídico da propriedade que propiciou, progressivamente, a
apropriação privada do patrimônio público. O privado imobiliário se
ocupou do público territorial. No regime econômico colonial, quer seja
feudal, quer seja capitalista, a titularidade privada esteve no núcleo
da estruturação de poder. Do monopólio territorial do soberano ao
poder dos titulares de grandes extensões de terra, mediante
concessão e outorgas, manteve-se um regime monopolista, imune à
justa distribuição. Nasce e se desenvolve o latifundismo brasileiro13,
sob um tipo feudal, com relações de domínio sobre coisas e pessoas.
Eis aí o primeiro movimento, reto na direção histórica. Nos
acordes de uma “auto-expropriação” dos espaços territoriais
públicos, dilapidam-se os “fundos” públicos e a titulação, mediante
legitimação, venda ou concessão, ocupa “espaços vazios”, destrói
ecossistemas. Tal movimento se encerrou à perfeição. E o Brasil, por
isso, pode ser também caracterizado como um estado privado da
propriedade imobiliária rural, elaborado por cinco séculos, a partir
das raízes da colonização.
O País se fez desfazendo-se da base territorial pública, “autodissolvendo-
se” mediante um suposto código de legitimação, com
concessões, doação e atribuições dominais à esfera particular,
pessoas jurídicas e físicas. O descaminho do lineamento fundiário
brasileiro conduziu a essa moldura que hoje gera mais perplexidade
e maiores contradições.
A semente mal plantada no processo de apropriação gera seus
troncos disformes que cresceram e agora batem às portas do
ordenamento jurídico. Apresenta-se, na dissonância dos acordes
históricos, o segundo movimento, de natureza contrária, na
composição histórica.
3. SEGUNDO. DO CÓDIGO À CONSTITUCIONALIZAÇÃO
A titularidade imobiliária privada, na Constituição de 1988, recebe
o desenho de um direito subjetivo dúctil, “cujo conteúdo pode-se definir
somente na relação concreta, no momento em que se compatibilizam as
várias situações jurídicas constitucionalmente protegidas”14.
13 É o que expõe Alberto Passos GUIMARÃES em seu livro Quatro séculos de latifúndio (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989, p. 37 e seguintes, na 6ª edição).
14 Nas palavras de Gustavo TEPEDINO, à página 291 do estudo Contornos constitucionais da propriedade privada.
In:Temas de Direito Civil”. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1999.
Homens e Mulheres do Chão Levantados 27
O que está hoje na Constituição distancia-se, por certo, dos ideais
albergados na codificação civil. A seu tempo, congruente com essa
conformação, a moldura jurídica da propriedade, veiculada pelo Código
Civil brasileiro, atendeu plenamente aquela quadra de valores ao centrarse
nas idéias de circulação e de pertença; com a primeira engendrou a
disciplina dos contratos e das obrigações e, com a segunda, edificou o
regime dos direitos reais, subordinando ambos a um estatuto cujo acesso
somente facultou aos que podem contratar e possuir.
Um paradoxo funcional que vai do conceito emancipatório à
frustração eficacial. Na era cool, na qual repõe-se em cena um
individualismo com abdicação ética, light, pragmático e vazio, o paradoxo
chicoteia o marasmo e assombra o desencanto. Esse paradoxo explica o
segundo movimento: a íngreme tarefa de selar a funcionalização dos
espaços territoriais que privaram o público da sua própria terra. Esse
segundo movimento se encontra em fase de execução numa sinfonia mal
acabada.
Havia sido escrito ao conceito de função social um réquiem quando
a Constituição brasileira de 1998, ao recuperar a experiência positivada
no texto legal do Estatuto da Terra, lhe administrou um renascimento. Da
função esculpiu-se uma obrigação social. Sepultou-se o conceito vazio, o
vocábulo de ornato, pálido retoque na estrutura do estatuto das
titularidades.
O conteúdo da função social15 constitucionalmente previsto
substantiva o direito, e por isso mesmo se torna causa que chancela o
ingresso de tal direito no universo jurídico da existência, com as seqüelas
daí decorrentes, nomeadamente a proteção possessória. A função, por
conseguinte, não comparece apenas como fim legitimador na relação
posse-trabalho, mas se abre, no movimento de “constitucionalização”16 do
Direito Civil e da “repersonalização” das relações jurídicas, como causa e
conseqüência.
Sucumbiu, porém, até agora, na ineficácia17. De um lado, foi
mitigado18 pela verbalização da eficiência, e a proclamação eficientista
28 Luiz Edson Fachin
15 Sobre o tema, amplamente, Fábio Konder COMPARATO. Função social dos bens de produção. Revista Reforma Agrária,
16 (3): 31-8, dez/86 a dez/87, p. 36 e seguintes.
16 Sobre o tema, por todos, v. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil; uma introdução ao Direito Civil
Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3a. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
17 “A função social da propriedade, assim, antes de preventiva, tem sido corretiva e, diga-se de passagem, com
insignificante eficácia”, registrou Jacques Távora ALFONSIN, no estudo A reforma agrária como modalidade de
concretização dos direitos econômicos, sociais,culturais e ambientais. Separata da Revista de Informação Legislativa.
Brasília, ano 34, nº 136, outubro/dezembro de 1997, p. 202.
18 “O malogro do constitucionalismo brasileiro, no Brasil e alhures, vem associado à falta de efetividade da
Constituição, de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade social” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação
e aplicação da Constituição; fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva,
1996, p. 221). É precisamente nesse contexto que tem relevante sentido o debate sobre a hipertrofia do Executivo
mediante a hemorragia das medidas provisórias, bem acentuada na obra do professor Clèmerson Merlin CLÈVE.
Medidas Provisórias. 2a. ed. São Paulo: Max Limonad, 1999.
suplantou a utilidade social. De outro, acabou arrostado pela organização
racionalista construiu a separação codificada entre direitos reais e
obrigacionais. Uma concepção de mundo e de vida, como escreveu MOTA
PINTO19. O dever não estaria nesse direito subjetivo, e o real não obrigaria.
Se a propriedade, em Weimar, obriga, esse projeto da
racionalidade moderna sofre fraturas. A quebra é de conceito, de
percepção20 e da construção da própria realidade. É que “a ordem
jurídica não é uma estrutura estática e acabada, mas uma ordem
evolutiva, uma resposta diferente a cada nova situação social”21.
Com efeito, aqui, nos direitos reais, é o território da “província
do direito privado mais sensível às influências da evolução social”22. A
previsão constitucional da função social da propriedade imobiliária
rural, a tendência acentuada da diminuição dos prazos de usucapião,
e a incorporação da noção posse-trabalho no universo jurídico, entre
outras circunstâncias, começam a operar transformação que já se faz
há muito sentir nos sacrários dos ícones privados.
Não é a Constituição que deve ser lida à luz do Código Civil, e
sim o Código que deve ser aplicado sob a regra constitucional. Diante
das novas exigências constitucionais, fica sem proteção possessória a
propriedade imobiliária rural formal que não cumpre com sua função
social.
A própria Constituição de 1988 prevê que ao não-cumprimento
da função social se liga a perda indenizada do título, através de forma
especial, vale dizer, a desapropriação do interesse social para fins de
Reforma Agrária. À propriedade, nessa hipótese, lhe falta causa
justificativa, aqui apreendida numa dimensão ética, social e jurídica.
Um eco feito silêncio, promessa de uma modernidade a realizar-se.
Aí são vistas as impossibilidades harmônicas da peça
historicamente escrita para ser regida fora do interesse público. Os
19 MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Direitos Reais; segundo as preleções ao 4º jurídico de 1970-71. Coimbra: Liv.
Almedina, 1971, p. 98. Escreveu Rudolf Von IHERING o seguinte a respeito do tema: “Só há um ponto de vista que
explica de modo completamente satisfatório o aspecto da proteção possessória no direito romano, é que ela foi
instituída para ajudar a proteção da propriedade. Em lugar da prova da propriedade, que deve ser fornecida pelo
proprietário quando reclame a coisa que deve estar em poder de terceiro (“reivindicatio”), bastará a prova da posse,
em confronto com aquele que a subtraiu imediatamente. Pode a posse, portanto, representar a propriedade? Sim,
porque é a propriedade em seu estado normal; a posse é a exteriorização, a visibilidade da propriedade (...) A
proteção possessória aparece assim como um complemento indispensável da propriedade” (A teoria simplificada da
posse. São Paulo: Ed. José Bushatsky, 1976, p.76-7).
20 Tratando da crescente simbiose entre sonho e realidade, escreveu MAFFESOLI: “O sensível não é mais um fator
secundário na construção da realidade social... É preciso considerá-lo como elemento central no ato de
conhecimento” (à página 189 do Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998).
21 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito - Introdução e Teoria Geral; uma perspectiva luso-brasileira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1978, p. 504.
22 Nas palavras de Caio Mário da SILVA PEREIRA. Instituições de Direito Civil. 13ª ed. (com referência às disposições
da Constituição de 1988 aos Direitos Reais) Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. IV, p. 6.
Homens e Mulheres do Chão Levantados 29
sons inacabados que dessa percussão emergem suscitam contradição
para além do paradoxo.
4. TERCEIRO. O AVESSO TOMADO PELO DIREITO
Os dados são expressivos: 4,5 milhões de famílias demandam
por terra no Brasil contemporâneo23. Maior demanda por terra e
maior concentração fundiária coexistem24. Nos últimos dez anos, de
1985 a 1995 quase um milhão a menos de estabelecimento agrícolas
foram registrados no País25.
Os que demandam por terra são descendentes do processo de
exclusão social26. São, enfim, outros. No mosaico plural dos direitos
fundamentais, cabe reconhecer como sujeito o outro27. “O outro -
escreveu BARCELLONA- é a abertura do olhar sobre a contrariedade
de todo sistema que, para incluir todos, deve reduzir a vida individual
a esquemas de ações disponíveis em uma série infinitiva, porém
sempre igual. O outro é a recusa de toda objetivação definitiva que
permita fechar a vida na gaiola de uma forma lógica ou matemática”28.
A pluralidade jurídica que compreende a inclusão do que se
configura como o outro, remete ao porvir e à utopia. Mas, pensar no
futuro não se reduz ao sonho da utopia que move crentes, sob pena
de conferir-se razão à crítica: “No fundo, a Utopia não é senão o fruto
da clara secularização do Paraíso celeste, e o reencontro, no futuro,
do mítico Éden do Gênesis”29.
30 Luiz Edson Fachin
23 As informações foram tomadas a partir dos dados do IBGE - Censo Agropecuário, 1995-1996, conforme técnicos do
IPEA José Gasques e Júnia Conceição, no estudo “A demanda de terra para a reforma agrária no Brasil”, Brasília,
novembro de 1998. Em termos mais precisos, à luz do estudo referido, são 4.515.881 famílias; no cálculo incluemse
pequenos proprietários até 10 ha, arrendatários, parceiros, ocupantes e assalariados; a distribuição, em famílias
por região, assim se apresenta: Norte: 348.351; Nordeste: .349.305; Centro-Oeste: 216.958; Sudeste: 828.966, e
Sul: 772.231.
24 Dois estados de menor pobreza no meio rural, Santa Catarina e Espírito Santo apresentam baixos índices de
concentração fundiária, conforme dados do IBGE - Centro Agropecuário 1995-1996, no estudo antes citado do IPEA.
25 Um dado estatístico historicamente importante: em 1985, constatou-se o total de 5.801.809 estabelecimentos
agrícolas; em 1995-96, foram reduzidos para 4.859.865, abrangendo 353,6 milhões de hectares, ou seja, 21,3
milhões de hectares a menos que em 1985. E aí um dado revelador: em 1985, 27 proprietários de imóveis rurais
no País detinham 25,5 milhões de hectares, ou seja, a metade da superfície, que era necessária para assentar 1,4
milhão de famílias previstas no então designado PNRA-Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República.
26 “O fato se deixa observar hoje, com mais visibilidade, em duas grandes crises da economia mundial: a) a crise do
ser humano, perante a ameaça de exclusão de parcelas enormes da população mundial da divisão social do trabalho
... b) a destruição sempre mais intensiva dos recursos naturais e de todo o meio ambiente” (HINKELAMMERT, Franz.
O cativeiro da utopia. REB, 54, 1994, Editora Vozes, p. 788).
27 “El Derecho perderá así su generalidad, su abstracción y su impersonalidad. El rostro del otro como clase alienada
que provoca a la justicia, romperá le generalidad al manifestarse como distinto, desplazará la abstracción por la
justicia concreta que reclama y superará la impersonalidad porque su manifestación es revelación del hombre con
toda sua dignidad personal que le otorga ser precisamente el otro” (TORRE RANGEL, Jesús Antônio de la. El derecho
a tener derechos; ensayos sobre los derechos humanos en México. México, Aguascalientes: CIEMA/OCA, 1998, p. 47).
28 À página 136 do livro O egoísmo maduro e a insensatez do capital. São Paulo: Ed. Ícone, 1995.
29 À página 25, Paulo Ferreira da CUNHA na obra Constituição, Direito e Utopia; do jurídico-constitucional nas utopias
políticas, dissertação de Doutoramento publicada em edição especial do Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Studia Jurídica 20, Coimbra Editora, 1996.
É que, como em RICOEUR, há uma função histórica da utopia:
“só a utopia pode dar à ação econômica, social e política uma meta
humana e, a meu ver, uma dupla meta: de um lado, querer a
humanidade como totalidade; de outro, querer a pessoa como
singularidade”30.
Tópico na utopia31, o direito deve reestruturar paradigmas, uma
“nova lógica de Estado que há de fazer com que não seja o patrimônio
individual a prevalecer contra a vida e o Direito abra suas portas para
o sonho dos homens e das mulheres de construir uma sociedade
fraterna, porque humana; igual, porque tolerante; livre, porque
justa”32.
Contrastando com a miragem da utopia, o presente registra
conflito público no campo privado33. No terreno das respostas, não
são poucas as vozes nesse sentido, em diferentes matizes. “É urgente
-sustenta Miguel REALE- encontrar uma solução jurídica para
reiterados dramas sócio-econômicos conseqüentes de conflitos entre
os proprietários de terras, vencedores em ações reivindicatórias após
dezenas de anos de demanda, e aqueles que, de boa fé, nelas
edificaram, entrementes, sua morada ou realizaram benfeitorias de
irrecusável alcance social”34.
Não há muito, a égalité des jouissances veiculou os anseios da
sans-culotterie, e lá, nos limites das proposições da época, lembra
AVELÃS NUNES, “ao direito de propriedade sobrepunha-se o direito
à existência”35.
Homens e Mulheres do Chão Levantados 31
30 Paul RICOEUR, p. 157 na obra Em torno do político. São Paulo: Ed. Loyola, 1995.
31 “As utopias fazem parte da condição humana” (HINKELAMMERT, texto já citado, p. 815).
32 Nas palavras de Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO, O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Ed.
Juruá, 1998, p. 196.
33 “Cinco séculos, a rigor, registram conflitos, violência e administração de terras devolutas aptos a evitar uma
mudança na estrutura fundiária do País”, escrevemos no ensaio Terra, Direito e Justiça: Do Código Patrimonial à
Cidadania Contemporânea, publicado nos Anais da VIII Conferência Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil,
Seção do Estado do Rio de Janeiro, 1997, p. 81. Os conflitos se agravaram: na data da vigência da nova
Constituição, em 1988, eram 19.673.897 hectares de áreas em conflitos, envolvendo 403.733 pessoas, alcançando
1.304 assassinatos de sindicalistas, líderes de trabalhadores rurais, políticos, advogados, pessoas ligadas à Igreja,
entre outros (conforme HERBBERS, Raul G. Conflitos no campo: o que dizem os dados. Revista Reforma Agrária, 19
(2): 40-72, ago./nov.1989). Já no texto base da Campanha da Fraternidade da CNBB em 1986 (Brasília: CNBB,
p.21), o crescimento dos conflitos entre 1981 a 1984, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra era evidente:
1981, 142 conflitos, numa área de 3.825.289 ha; 1982, 201 conflitos, área de 4.311.516 ha; 11983, 315 conflitos,
área de 4.533.273 ha; 1984,484 conflitos, área de 5.125,568 ha.
34 Assim escreveu na página 33 do estudo sobre O Projeto do Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 1999,
justificando a nova forma de desapropriação por interesse social a critério do juiz, encartada no projeto de Código
Civil no parágrafo quarto do artigo 1.227 (numeração já de acordo com a redação final aprovada em novembro de
1997 pelo Senado Federal) nos seguintes termos: “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
reivindicando consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável
número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados
pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.
35 A.J. Avelãs NUNES, à página 123 da indispensável obrar ímpar Os sistemas económicos (Coimbra, 1997),
relembrando o que escrevia Hébert: “A primeira propriedade é a existência”.
Para tanto, contudo, soa necessário arrostar os limites do campo
jurídico36, e preencher as grandes extensões do território fundado na
exegese do dogmatismo positivista, nelas edificando a morada da justiça
sob uma tábua axiológica renovada, em defesa da vida. Urge semear
férteis valores na aridez desse solo. Na sintomatologia do conflito,
“procurar compreender e aliviar as dores do parto de um mundo novo que
está para nascer”37.
No paradoxo de um patrimônio público que “auto-expropriou-se”
historicamente e da ineficaz chancela social de um direito subjetivo, há
espaço para os aprendizes do topoi esperança. A afirmação está sob luz de
outra racionalidade. E para tanto tem sentido ver com SARAMAGO a lição
segundo a qual “o homem mais sabido que conheci em toda a minha vida
não sabia ler nem escrever” 38. São homens e mulheres levantados do
chão, aqueles que, se ainda sobreviventes, fazem emergir luz e
contradição, e, se já mortos, estão ressuscitados pelos ideais presentes
ainda radiantes. Homens e mulheres que não deitaram em berço
esplêndido, épicos filhos de outro êxodo.
Se o fim deste século se inscreve na mediocridade de um novo
analfabetismo39, na sociedade do espetáculo e do indiferente, é
precisamente a indiferença com o outro o primeiro embate. Nele, na seara
jurídica, tem sentido refutar métodos mecânicos ou o mero jogo
semântico, e, em tudo e por tudo, refundar uma hermenêutica legitimada
pelo estado democrático de direito40.
CONCLUSÃO
A presente reflexão, calcada na temática fundante desta XVII
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, expôs suas
premissas a partir de um paradoxo41. De um lado, o avanço formal
32 Luiz Edson Fachin
36 “O campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito” (BOURDIEU, Pierre. A
força do Direito. In:O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
37 Orlando GOMES, citando Luckacs, no estudo A função social da propriedade, p. 437 da obra “Estudos em Homenagem
ao Prof. Doutor A. Ferrer-Correia”, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Coimbra, 1989.
38 José SARAMAGO, De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz, discurso perante a Real Academia Sueca,
07 de dezembro de 1998.
39 A respeito do tema, Enrique ROJAS, El hombre light; una vida sin valores. Madrid: Ed. Temas de Hoy, 1992.
40 Nas palavras que subscrevemos, integralmente, de Vicente BARRETO, no estudo Da interpretação à hermenêutica
constitucional, p. 369 e seguintes. In:1988-1998 : uma década de Constituição, org. Margarida Maria Lacombe
Camargo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
41 “(...) a grande sabedoria de um ordenamento jurídico é conceder no periférico e manter no essencial, pois se o
poder ceder no essencial ele não será mais poder e as regras dele emanadas não serão mais direito, pois o recuo
no fundamental significa a mudança do ordenamento oriunda da perda do poder político e de sua substituição por
outro grupo, justamente o que forçou a queda de um pressuposto substancial do sistema legal” (AGUIAR, Roberto
A. R. De. Direito, poder e opressão. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980, p. 35).
do texto constitucional brasileiro, apto a propiciar a tese que
sustentamos, qual seja, o reconhecimento da ausência de proteção
jurídica à propriedade imobiliária que não cumpra sua função social;
de outro, no entanto, convive a proclamação discursiva com a
inefetividade social do acesso legítimo e democrático à terra.
A função social da propriedade imobiliária rural, no direito
brasileiro contemporâneo, pode ser elevada ao patamar de condição
de existência da proteção jurídica do direito ao qual se reporta. O
texto constitucional brasileiro de 1988 deferiu à propriedade
imobiliária capítulo especial e disciplina singular, quer no capítulo
dos direitos e garantias, quer na ordem econômica, ou no atinente à
política fundiária, coerente com a dimensão do que constitui um dos
pilares da base do governo jurídico da sociedade.
Ao assim fazê-lo, na esteira da previsão da função social,
permitiu erigir esse condicionamento ao estatuto da causa
justificativa da existência do propriedade direito ali emoldurado,
captando, por isso, uma perspectiva diferenciada do modelo clássico
da propriedade imobiliária rural.
Sem embargo, procuramos anotar, entre o real e a utopia,
limites e possibilidades que entremeiam os conflitos e a esperança42.
Sob o prelúdio da formação territorial, a proposição de reflexão
aqui deduzida desdobrou seus instrumentos epistemológicos em três
movimentos: o primeiro, o da passagem do espaço territorial para o
campo privado do público; o segundo, das vicissitudes encontradas
na seara que cerca as titularidades privadas para a chancela de
interesse social, numa demonstração de olvido das raízes públicas de
tais bens de produção; e o terceiro, um síntese apertada do que tais
contradições espelham na época brasileira contemporânea, marcada
na sintomatologia expressiva das ocupações.
Arrematamos sustentando, assim mesmo, que os desafios
contemporâneos insistem numa permanente convocatória da
esperança43. A era psicológica da pós-industrialização procurou
superar as polêmicas, entre Popper e Adorno, entre Habermas e
Gadamer, para alcançar, no assim denominado posmodernismo a
Homens e Mulheres do Chão Levantados 33
42 “A época pós-moderna se caracteriza pela coexistência contraditória do retorno ao medo -que impõe o sacrifício-,
e a percepção da infinita multiplicidade da experiência, que postula a rejeição à renúncia. Aqueles que pensam os
fundamentos do Direito, cada um no seu campo de especialidade são hoje muitos a se esforçar para ter em conta
esta contradição em suas investigações. Com a esperança -não a certeza, pois o pesquisador é antes de tudo um
cético- de superá-la, ao menos parcialmente, para melhorar as condições de vida no seio da sociedade” (ARNAUD,
André-Jean. O Direito traído pela filosofia. Tradução de Wanda de Lemos Capeller e Luciano Oliveira. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 248).
43 “Foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi
a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e
destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir” (José SARAMAGO, De como a personagem foi mestre
e o autor seu aprendiz, discurso perante a Real Academia Sueca, 07 de dezembro de 1998).
indiferença dos conteúdos, o consenso das debilidades construídas
por um new lock de democracia feito gestualidade aparente que
tomou o discurso e a própria noção de crise44 como objeto.
Se a titularidade da terra se assentou em fundamentos
histórico-culturais ajustados às leis e princípios que ofereciam
aparente segurança à coexistência social, a erosão desses postulados
é flagrante, e a resposta aos novos tempos não pode ser alcançada
apenas com uma preocupação conceitual.
A tendência social revela sensível horizonte diverso aos titulares
dos direitos subjetivos individuais: se trata do exercício da
solidariedade social, solfejo para uma nova sinfonia. O conceito de
cidadania45 é continente que abriga essa dimensão fortificada da pessoa
no plano de seus valores e direitos fundamentais46. Um desafio
presente nascido de um País que, à luz de seu passado, tem a história
inteira para escrever o futuro.
44 “Todo esto conduce a pensar que en realidad no estamos ante una crisis de la ideología, sino ante una ideología
de la crisis: ante una falta de ideas apropiadas para afrontar el reto de la crisis en que nos sume la falta de
alternativas al sistema de relaciones sociales y políticas del liberalismo... Se necesita, por consiguiente, un debate
sobre la interconexión entre las ideas de liberdad, igualdad y solidariedad dentro de una teoría democrática de la
justicia”(HERRERA FLORES, Joaquín. Crisis de la ideología o ideología de la crisis? Respuestas neoconservadoras.
Revista Crítica Jurídica; revista latinoamericana de política, filosofia y derecho. Instituto de Investigaciones
Jurídicas, Universidad Nacional Autónoma de México, nº 13, 1993, p. 125 e 126.
45 “No Brasil, hoje, a experiência de luta pela construção da cidadania se expressa como reivindicação de direitos e
liberdades básicos e de instrumentos de organização, representação e participação nas estruturas econômico-social
e política da sociedade”(SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de. Um direito achado na rua: o direito de morar.
In:Introdução crítica ao direito. 4a. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 34).
46 Sobre os direitos políticos, individuais e sociais, v. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade
de suas normas; limites e possibilidades da Constituição brasileira. 2a. ed. atualizada e ampliada. Rio de Janeiro:
Renovar, 1993, p. 91 e seguintes.
34 Luiz Edson Fachin
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Homens e Mulheres do Chão Levantados 37
38 Luiz Edson Fachin
Nuevos colonialismos
del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y
derechos de los pueblos1
David Sánchez Rubio2
Norman J. Solórzano Alfaro3
1. LA RANA QUE NO REACCIONA EN UN CONTEXTO
ADVERSO.
Existe una historia que dice que si echas de repente
a una rana en un recipiente de agua hirviendo, ésta
salta rápidamente hacia fuera para salvarse. En cambio, si pones a
la misma rana en una cacerola con agua fría o del tiempo y vas poco
1 Las reflexiones que se presentan en este trabajo han sido elaboradas a raíz del Encuentro sobre Propiedad
Intelectual y Derecho de los Pueblos celebrado entre el 2 y el 4 de diciembre de 2002 en Sevilla, organizado por la
Fundación Iberoamericana de Derecho Humanos bajo el encargo y la iniciativa del Foro Mundial de Alternativas de
Sevilla y el Foro del Tercer Mundo con sede en Dakar. El Instituto de Estudios Europeos Internacionales y el
Ministerio de Cooperación de Luxemburgo fueron las entidades financiadoras. El Encuentro forma parte de un
proyecto más amplio que, en su primera etapa, culmina con la publicación del libro titulado Nuevos colonialismos
del capital. Propiedad intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos, coordinado por Norman J. Solórzano
Alfaro, Isabel Lucena Cid y David Sánchez Rubio.
En la reunión, de carácter internacional, asistieron especialistas procedentes de diversas ramas de las ciencias
sociales, algunos de los cuales colaboran en el libro. A saber: Jean Claude Fritz (Université de Bourgogne, Dijon),
Mikel Berraondo (Instituto de derechos humanos Pedro Arrupe, Universidad de Deusto, Bilbao), Rafael Rodríguez
Prieto (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla), François Houtart (Centro Tricontinental), Juan Antonio Senent
(Universidad de Sevilla), Fernando Antonio de Carvalho Dantas (Universidad Federal del Paraná, Curitiba), André
Delobelle (Centro Tricontinental), Wim Dierckxsens (DEI, San José), María Isabel Lucena Cid (Universidad Pablo de
Olavide, Sevilla), Adrian Pabst (Instituto de Estudios Europeos e Internacionales de Luxemburgo), José María Seco
Martínez (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla), Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla) y
Alejandro Médici (Universidad de La Plata), Jesús Sabariego (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla), David Sánchez
Rubio (Universidad de Sevilla), Norman J. Solórzano Alfaro (Universidad de Costa Rica).
2 Profesor de filosofía del derecho de la Universidad de Sevilla. España.
3 Profesor de la Universidad de Costa Rica.
39 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
a poco subiendo el fuego hasta que el líquido hierve, el pequeño
anfibio no reacciona porque no nota el cambio, y acaba finalmente
muerto y cocido. Moraleja: las condiciones pueden llegar a ser tan
insoportables que uno ni las nota, siempre y cuando el cambio sea
lento.4
Actualmente vivimos en un mundo que cada vez se va
ajustando más a su escala planetaria; este es un hecho que no
podemos desconocer. Saber esto tiene el valor de mostrarnos un
contexto, caracterizado por los cambios asombrosamente rápidos que
se producen en su interior, en el cual podemos jugarnos “lo posible”.5
Los seres humanos nos adaptamos rápida y asombrosamente a los
cambios y, en ocasiones, dócilmente nos hacemos al medio, por muy
adverso que sea, incluso incorporándolo en lo cotidiano. Cuando
aparece esta actitud conformista e (in)cómoda directa o
indirectamente limitamos el campo de alternativas6 y la disposición a
superar obstáculos y barreras.
En ese sentido, sin incitar al pesimismo, la situación en la que
se encuentra tanto la humanidad como la naturaleza dentro de ese
marco global y planetario, no resulta muy distinta del estado de lenta
muerte que padece la rana al interior de la cacerola, pues hay que
reconocer que en el camino han ido cayendo, no tan lentamente,
personas, flora y fauna, en zonas que ya han llegado al estado de
hervideros y de los cuales parece no haber escapatoria posible.
Podría pensarse desde una mentalidad neutral, simplista y
fragmentadora que, por un lado, la Tierra sería el recipiente, y el agua
hirviendo reflejaría el calentamiento global de la misma, el efecto
invernadero y la lluvia ácida, siendo, por otro lado, los seres humanos
los afectados debido a las consecuencias de una anónima inercia
institucional o natural. Pero no, no nos estamos refiriendo
directamente a este cuadro meramente descriptivo de instancias
distintas y separadas, sino a un panorama mucho más complejo,
porque Tierra, Humanidad y Naturaleza no están desvinculadas.
Siendo conjuntos interdependientes, paradójicamente están siendo
reducidos e incorporados dentro de una cacerola y un líquido, en el
cual todos/as nos vamos ahogando y en el que se van quemando
nuestras posibilidades de existencia. Como ranas, nos estamos
4 Ver SCHWARTZ, David B., “El concepto de vestigios. Imágenes de un mundo pasado”, en Ixtus. Espíritu y cultura,
nº 28, 2000, p. 77.
5 Cfr. HINKELAMMERT, Franz J., Crítica de la razón utópica, Desclée de Brouwer, (edición ampliada y revisada), Bilbao,
2002, particularmente capítulo VII, “El realismo como arte de lo posible”, pp. 367 ss.
6 En realidad, se trata de que el espacio de las alternativas posibles aparece bloqueado por las mismas fuerzas (por
status quo) que las declaran imposibles. De ahí que la tarea pasa por desbloquear ese espacio y buscar las formas
de viabilizar esas alternativas.
40 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
dejando llevar a un punto de cocción sin retorno, y cuyas causas
vienen determinadas por un sistema creado por el ser humano -la
economía de mercado autorregulado y moldeado por la ideología del
neoliberalismo-, que aglutina tanto el contexto y el marco histórico
actual como la estructura social que, hoy día, nos ha tocado padecer
y consolidar, bien consciente o inconscientemente, bien responsable
o irresponsablemente.
A la dinámica de funcionamiento del capitalismo neoliberal y
global en su nueva fase de desarrollo, y al orden con el que canaliza
las relaciones sociales, no les importa eliminar pluralidades,
diversidades y riquezas humanas, culturales y naturales. Abstrae lo
más valioso de la vida: la integralidad de la naturaleza con sus
especies animales y vegetales, y la convierte en objetos prescindibles,
supeditados a unos bienes más preciados: el dinero y el capital.
Asimismo, junto a estos instrumentos, otros elementos que
contribuyen a echar leña al fuego e ir incrementando la temperatura
que nos abrasa, son la racionalidad instrumental de cálculo mediofin;
el mecanismo de oferta y demanda orientado por los precios; los
criterios y los principios normativos de eficiencia, competitividad y la
obtención del máximo beneficio, y los derechos de propiedad privada
y la libertad de contratación. Todos ellos absolutizados y convertidos
en los únicos parámetros de dotación de sentido de la realidad,
provocan unos efectos aniquiladores y perversos sobre las
condiciones de existencia de todas las especies vegetales y animales
(el ser humano entre ellas) de nuestro globo terrestre.7
Una de las consecuencias más graves del predominio del
sistema de mercado totalizado sobre el conjunto de la organización
social local, nacional e internacional, queda reflejada en quienes
siendo muchos no reaccionamos, al igual que hace la rana del
cuento. Incluso en nuestro caso es peor, porque no queremos darnos
cuenta de la dinámica de destrucción que hemos contribuido a
generar, pese a la aparente comodidad en la que unos pocos se
encuentran y pese al ambiente rancio y asesino que está
perjudicando a la totalidad de la humanidad. Al final, llegamos a
normalizar lo anormal, hasta convertir en racional lo irracional. Por
consiguiente, sólo recién cuando asumimos y enfrentamos las
condiciones de ese contexto, podemos apostar por unas líneas de
acción, por unas estrategias y unos objetivos específicos. Y, en cierta
41 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
7 En este sentido, véase HINKELAMMERT, Franz J. y MORA, Henry, Coordinación social del trabajo, mercado y
reproducción de la vida humana, DEI, San José, 2002.
medida, esto es lo que pretendemos con las reflexiones que
presentamos en este trabajo.
2. PROPIEDAD INTELECTUAL, BIODIVERSIDAD Y
DERECHOS DE LOS PUEBLOS: EXPRESIONES CONCRETAS
DE LA TOTALIDAD DE LO REAL.
Uno de los principales caballos de batalla de la denominada
globalización neoliberal, también de quienes tratan de rebelarse e
interpelar sus consecuencias más perjudiciales y negativas, es el
sistema de protección de propiedad intelectual sobre materias vitales
relacionadas con la salud, la alimentación y la biodiversidad.8 Sobre
este eje, y sin pretensión de exhaustividad, se debaten diversas
cuestiones, como la referente a los productos transgénicos y la
legitimidad o ilegitimidad que posee el ser humano para manipular
genéticamente el interior de su propia vida y la de los animales y
vegetales.
También nos encontramos con el problema que surge ante la
intención de patentar los resultados obtenidos de la manipulación
genética que se realiza en determinadas especies, lo cual tiene
repercusiones directas para la seguridad alimentaria (componente de
la soberanía alimentaria de los pueblos del mundo) y la medicina. Las
consecuencias que implican la protección en exclusividad de ese
conocimiento con fines comerciales van desde la restricción o
limitación de las condiciones de existencia humana y la satisfacción
de necesidades humanas reales (p.e., por el pago obligado – y excesivo
– por semillas modificadas, medicamentos básicos o por productos
farmacéuticos con sustancias de origen animal o vegetal) hasta el
impacto medioambiental (p.e., por la utilización de herbicidas,
pesticidas, traslado de una especie propia de un hábitat natural a
otro diferente, etc.).
Asimismo, aparece el conflicto que surge del intento de proteger
exclusivamente el conocimiento científico industrial destinado a fines
comerciales frente al conocimiento popular, indígena y tradicional o
el conocimiento científico independiente no empresarial, toda vez que
42 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
8 Sin ser exclusivo y sin reducirlo a esta instancia, la base y el marco de este sistema es el Acuerdo sobre los Aspectos
de los Derechos de Propiedad Intelectual relacionado con el Comercio (ADPIC), también conocido como TRIP por
sus siglas en inglés (Trade Related Intellectual Property Rights) y elaborado por la Organización Mundial de Comercio
(OMC). Dicho Acuerdo consta de 73 artículos y se estructura en siete partes: I. Disposiciones Generales y Principios
Básicos; II. Normas relativas a la Existencia, Alcance y Ejercicio de los Derechos de Propiedad Intelectual; III.
Observancia de los Derechos de Propiedad Intelectual; IV. Adquisición y Mantenimiento de los Derechos de
Propiedad Intelectual y Procedimientos Contradictorios Relacionados; V. Prevención y Solución de Diferencias; VI.
Disposiciones Transitorias; VII. Disposiciones Institucionales, Disposiciones Finales.
existe la tendencia a considerar al primero como “invención” y no a
los segundos, por lo cual éstos últimos no son objeto de aquella
protección de que si gozan los primeros. Por otra parte, se hace
cuestión de la reducción de la biodiversidad por ese proceso de
investigación con fines exclusivamente comerciales, el cual no
atiende las exigencias de la regeneración de la biomasa terrestre y,
más bien, la arrastra hacia su destrucción; o la cuestión de la
transferencia de tecnología y su impacto en los países empobrecidos;
o sobre el tipo de explotación a aplicar en la producción agrícola, en
la ganadería y en la pesca, cuando estos rubros son orientados con
carácter exclusivamente industrial y mercantilista.
Finalmente, nos encontramos con las repercusiones en los
derechos humanos, en cuanto instancia transversal que atraviesa las
mediaciones institucionales, normativas, etc., cuando,
lamentablemente, éstos acaban asociándose reducidamente a los
derechos del mercado, de las empresas y de los grandes propietarios
y no a los derechos de los seres humanos y/o de los pueblos. En este
punto se sitúa la polémica sobre los conceptos de patrimonio,
herencia común y derecho de la humanidad (jus humanitatis),
respecto de los cuales se evidencia el peligro de dotarlos de sentidos
patrimonialistas, en cuyo caso tienden a volverse en contra de los
esfuerzos por el bien común y la solidaridad mundial.
A partir de estos núcleos problemáticos, la discusión que se
plantea está orientada a elucidar algunas de las líneas de acción (las
estrategias, los objetivos y los sujetos que los sustentan e
implementan) que se están jugando en ese contexto mundial;
elucidación y discernimiento que nos permite hacer y pronunciar un
juicio sobre este mundo y una proyección del mundo que queremos.
Ahora bien, en principio si nuestro juicio es negativo, no se queda ni
en un pesimismo catastrofista ni en el simple conformismo frente a
situaciones aparentemente inexorables. Además, desde ese espíritu
crítico y con la intención de buscar alternativas, consideramos que la
forma como se han de abordar los diversos temas implicados en torno
a la propiedad intelectual, la biodiversidad y los derechos de los
pueblos, no debe perder de vista el contexto general y global sobre el
cual se asientan nuestras relaciones interhumanas.
En este sentido, para ejemplificar esta situación, podríamos
utilizar la metáfora propuesta por Christian de Duve. Para él, la
humanidad ha engendrado un monstruo pluricéfalo que amenaza
con devorarla. Intentar combatir una de las cabezas de ese monstruo
es ineficaz, pero combatirlas todas y enfrentar el monstruo es una
43 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
tarea hercúlea.9 Por esta razón, sería ingenuo articular una estrategia
que sólo se centrara en el sistema de protección de propiedad
intelectual, aislándolo del conjunto institucional y del entramado
social, político, económico y jurídico, que tanto lo estructura como lo
comprende. También resulta inútil o poco eficaz hablar
exclusivamente en términos jurídicos, desde un punto de vista
normativo positivista, aludiendo al reconocimiento meramente formal
de los derechos humanos en textos de carácter internacional; o fijarse
en las “buenas intenciones” para el progreso de quienes son los
principales actores que intentan imponerlo y extenderlo desde su
horizonte de sentido (la OMC, las empresas transnacionales y las
grandes potencias), independientemente de las tramas sociales y las
relaciones de poder subyacentes y sin tener en cuenta los
planteamientos, entre otros, de los países más desfavorecidos (el G22
o G23 con Brasil y la India a la cabeza), de las comunidades de
campesinos, de los pueblos indígenas y de las ONG; en definitiva, de
todos los seres humanos.
Por consiguiente, consideramos que en este caso resulta
decisivo vincular la cuestión sobre la propiedad intelectual con los
derechos de los pueblos y la biodiversidad; desde esa posición,
entonces, hay que reaccionar desde distintos ámbitos, proyectando
con realismo hercúleo y rebelde una serie de alternativas que nos
permitan reducir la temperatura de ebullición que amenaza la
supervivencia de la vida (humana y no humana), tal como la
conocemos, en el planeta. Por tanto, el marco de referencia, teniendo
en cuenta que está centrado en un subcampo específico, compuesto
por múltiples temas concurrentes y/o satélites, se ha de articular
desde una perspectiva más general, que asume como un todo las
condiciones y factores que inciden en el campo en donde, en última
instancia, se están jugando las posibilidades de vida de la humanidad
y la naturaleza.
Además, procediendo de esta forma, se enfrenta una de las
cabezas del capitalismo neoliberal como si estuviera aislada del
monstruo entero, pero sin perder el referente estructural y de
totalidad. Esta forma de abordaje es posible toda vez que se considera
la complejidad de las realidades socio-históricas, plenas como están
de interrelaciones, coimplicaciones, comunicaciones y recursividades.
Es más, en virtud del principio hologramático, expuesto por Edgar
44 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
9 Cfr. DE DUVE, Christian, Poussière de vie: une histoire du vivant, Fayard, París, 1996. Referencia tomada de MORIN,
Edgar, El Método. La humanidad de la humanidad. La identidad humana, volumen V, Cátedra, Madrid, 2003, p. 253.
Versión francesa: La Méthode. L´Humanite, de l´Humanite, tomo V, Seuil, París, 2001.
Morin, que subraya que no solamente la parte está en el todo, sino que
el todo está en la parte,10 el sistema de propiedad intelectual, la
biodiversidad y los derechos de los pueblos representan un lugar
donde se hacen evidentes las contradicciones totales del sistema
capitalista y las exigencias o reclamos por cumplimiento de derechos
humanos y, en este caso, particularmente el respeto del derecho de
los pueblos. No obstante, en las siguientes páginas sólo se pretende
aportar algunos factores o insumos para facilitar la discusión y la
búsqueda de estrategias de/para la acción, desde una perspectiva de
derechos humanos en el sub-campo de los derechos de propiedad
intelectual.
A continuación nos vamos a detener en dos apartados que
poseen una gran trascendencia en relación al tema principal de la
propiedad intelectual y los derechos de los pueblos. En primer lugar,
afrontaremos el análisis crítico de la capacidad de reproducción que
posee el sistema capitalista, es decir, su capacidad de colonizar casi
todas las esferas de lo social con unos efectos perversos y que, en su
actual fase de desarrollo, apunta al interior de la vida (humana,
animal y vegetal) como un nuevo espacio para su dominación. En
segundo lugar, trataremos de asumir la cuestión de las alternativas y
de cómo desbloquear el campo donde puedan ser posibles (política).
Respecto de este último punto, en relación al plano jurídico,
debemos elucidar la condición reversible que tiene el derecho, en
general, y el derecho internacional, en particular, como instrumentos
protectores tanto de los intereses del mercado como de las
necesidades de los seres humanos y/o los pueblos (derechos
humanos y patrimonio común de humanidad). Esta condición se
torna especialmente conflictiva en los espacios de intersección entre
las áreas de influencia del ADPIC, cuyo carácter es
fundamentalmente patrimonialista, y los instrumentos
internacionales sobre derechos humanos como la Convención
Mundial sobre la Biodiversidad o la misma Declaración Universal de
los Derechos del Hombre, el Pacto Internacional sobre los Derechos
Económicos, Sociales y Culturales o la Carta Africana de los
Derechos del Hombre y de los Pueblos, entre otros.
10 Cfr. MORIN, Edgar, Introducción al pensamiento complejo, Gedisa, Barcelona, 2001, p. 107. Versión francesa:
Introduction a la pensée complexe, ESPF Editeur, París, 1990.
45 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
3. LA ENVERGADURA, LA COMPLEJIDAD Y LA
PERVERSIDAD DEL SISTEMA CAPITALISTA.
Arriba hemos mencionado que la humanidad, la naturaleza y la
tierra formaban conjuntos interdependientes; también
comentábamos el proceso de fagocitación que éstos sufrían al quedar
inmersos en la economía de mercado y su racionalidad, que opera
cual la cacerola puesta al fuego para hervir agua del cuento de la
rana. Al final, el orden que este mercado totalizado y su racionalidad
imponen, socava los conjuntos reales (ecosistemas) dentro de los
cuales acontece, hasta el punto en que esa parte del sistema termina
pretendiendo convertirse e imponerse como la totalidad y reduce los
conjuntos interconectados a meras prolongaciones suyas, hasta
dejarlos en la mínima expresión.
Si observamos la historia del capitalismo, como un profeta que
lee los signos de los tiempos, la fuerza y contundencia del lento
proceso de sucesivas e intercaladas subsunciones, formales y reales,
del orden de la vida a las exigencias del mercado capitalista, veremos
como su racionalidad ha ido plasmando al interior de las sociedades
occidentales, con un claro impacto también en otras formas
culturales y modos de vida. Además de la expansión interna a todas
las facetas de la existencia, y del condicionamiento que opera sobre
las formas de organización social, el capitalismo ha desarrollado
diferentes formas de colonialismo e imperialismo, imponiendo su
propio horizonte de sentido como si fuera el único modo de ver,
entender y actuar en el mundo.11 El carácter entrópico y destructor del
sistema capitalista, y la violencia ejercida sobre otras culturas,
especies animales y vegetales, ha sido y es una de las constantes
desde sus orígenes hasta nuestros días.
No es extraño, por tanto, que Vandana Shiva subraye como
componente esencial de la globalización contemporánea el cultivo de
lo uniforme, que presupone la homogeneidad y la destrucción de la
diversidad tanto social como de la naturaleza.12 La aspiración a
controlarlo todo: la cultura, la vida cotidiana, las materias primas, los
mercados, etc., imponiendo una única visión de entender el mundo,
exige eliminar pluralidades de especies y diferencias culturales, que
desde esa óptica son concebidas como impedimentos y obstáculos
para la expansión del capital. Declarar la guerra a la diversidad y
46 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
11 Cfr. HERRERA FLORES, Joaquín (edit.), “Introducción”, El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón
liberal, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, p. I.
12 Cfr. SHIVA, Vandana, Biopiratería. El saqueo de la naturaleza y del conocimiento, Icaria, Barcelona, 2001, p. 125.
apostar por la uniformidad de culturas y de cultivos se considera la
mejor estrategia, mientras que el arma con la que se ejecuta es el
ejercicio de una fuerza virulenta disfrazada bajo el ropaje del libre
mercado e, incluso, amparado por la fuerza militar.
La violencia desatada en este proceso de uniformidad y
homogeneización impone la creación de monopolios sobre la vida y
los recursos vivos,13 y se manifiesta en múltiples niveles: a) en el nivel
político, mediante el uso de la fuerza, el control y la centralización; b)
como violencia ecológica contra las diversas especies de la
naturaleza. No sólo se trata de provocar la extinción de la flora y la
fauna, sino, además, de controlar la producción mediante
monocultivos, pese al alto índice de desestabilización ecológica que
tienen; y c) como violencia social y cultural. Se potencia, pues, la
agresión y la fragmentación de sistemas sociales y culturales diversos
para integrarlos en un sistema global considerado el único válido. Se
desgarra el tejido social plural y la capacidad de organización de las
comunidades locales y regionales.14
Esta globalización, por tanto, implica una hegemonía, una
pretensión de apropiación exclusivista de la rica realidad, con el
efecto de reducción de todas sus dimensiones. La interacción
intercultural de sociedades y modos de vida, el equilibrio y el respeto
ecológico a escala planetaria, no entran en su orden de prioridades.
Vandana Shiva incluso llega a afirmar que es fruto de un continuado
trayecto histórico de depredación por parte de una cultura, una clase,
una raza y de un género concreto sobre todas las demás. En síntesis,
lo “global” no responde a un interés humano universal; representa un
interés y una cultura local y pueblerina, que ha adquirido el rango
global a través de su capacidad de dominio y control, su
irresponsabilidad y su falta de reciprocidad.15
De esta forma, los actuales procesos de globalización,
apadrinados por la idea del libre comercio, se diferencian con
respecto a los del pasado por la recomposición, a escala global, de la
acumulación del capital. El impulso de homogeneización es llevado
ahora por fuerzas económicas globales que, junto a unos pocos
estados poderosos con EE.UU. a la cabeza, controlan los mercados.
Gracias a las nuevas técnicas de la comunicación y de la informática,
47 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
13 Cfr. SHIVA, Vandana, Cosecha robada. El secuestro del suministro mundial de alimentos, Paidós, Barcelona, 2003, p.
11.
14 Cfr. SHIVA, Vandana, Biopiratería..., pp. 126-7. Este mundo, rico en diversidad, no podría ser transformado en
estructuras homogéneas, ni se puede mantener una uniformidad de cultivos y culturas sin un control centralizado y
el uso de la fuerza. Las comunidades y los ecosistemas autoorganizados y descentralizados generan diversidad. La
globalización genera culturas y cultivos uniformes mantenidos por la fuerza (Ídem, p. 125).
15 Ídem, p. 127.
nos encontramos con una progresiva integración mundial en
espacios geográficos diferentes, de las diversas etapas de la
producción y de la distribución. Bajo el apoyo de la Nueva Trinidad
Institucional (OMC, BM y FMI), cuya función es la de controlar y
dominar las relaciones económicas que comprometen al mundo
empobrecido (Tercer Mundo), nos encontramos con un movimiento
orgánico englobante que desemboca en una gigantesca concentración
del poder económico, en gran parte proyectado sobre el ámbito
financiero. La leyes del valor y del capital se mundializan.16 Su
gestación se desarrolla con mayor intensidad en la famosa Ronda de
Uruguay del GATT, que más tarde daría lugar a la OMC y en el
intento fallido del Acuerdo Multilateral de Inversiones (AMI). La OMC
otorga el refrendo institucional al proceso de consolidación del libre
comercio total, aunque este sólo sea en realidad una componenda
asimétrica que combina liberalización y proteccionismo a la medida de
los intereses occidentales,17 y pese a que refleje el nuevo espacio para
la centralización, el uso de la fuerza, la homogeneización y el cultivo
de lo uniforme.
No obstante, también podemos distinguir dos etapas al interior
de la globalización neoliberal. Ambas vienen a confirmar la soberbia
expansión del capital y su descarada tendencia de apropiación y de
dominación, no sólo formal sino también material, de todas las
esferas de la vida. En primer lugar, durante la década de los setenta
hasta principios de los noventa, nos encontramos con las “políticas
de ajustes estructurales”, tras el intento de humanizar el capitalismo
mediante el pacto social y político plasmado en el “Estado de
Bienestar” en los países desarrollados, junto con la aplicación de las
políticas desarrollistas en el Tercer Mundo.18 Se vuelve con mayor
contundencia hacia el mercado total y sin trabas, aplicando medidas
liberalizadoras y de apertura indiscriminada. Cualquier impedimento
u obstáculo al desarrollo de las leyes del libre comercio se quita de en
medio a cualquier precio. Los procesos de “flexibilización” del
mercado de trabajo y las medidas de desmantelamiento del estado
social (privatizaciones) forman parte de esta política que, en realidad,
tiene la función primordial de `limpiar el campo de batalla´ para el
libre accionar, como `global player´, de las grandes transnacionales,
48 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
16 Cfr. HINKELAMMERT, Franz J. y MORA, Henry, Coordinación..., pp. 205; AMIN, Samir, Los desafíos de la
mundialización, Siglo XXI, México, 1997, p. 6; y SHIVA, Vandana, Biopiratería..., p. 137.
17 Ídem, p. 136.
18 Ver MORA, Henry, “La globalización después de Iraq: de los ajustes estructurales a la privatización de la vida por el
asalto al poder mundial”, en Pasos, nº 107, pp. 12 y ss.
eliminar `distorsiones´, erradicar `interruptores´ a la libre circulación
del capital.19 No obstante, la ambición es grande.
La segunda fase de la globalización que ahora vivimos, aspira al
triunfo absoluto del capitalismo e insiste en culminar el proceso de
subsunción material de la sociedad y de la vida en todas sus
dimensiones, llegando hasta el final. Y es aquí donde hay que situar
las actuales políticas de derechos de patentes y de protección de la
propiedad intelectual. Sin embargo, el problema de la economía de
mercado es que, pese a su pretensión omniabarcadora, está
estancada. Junto a las dificultades técnicas y económicas que esta
ambiciosa empresa de subsunción material conlleva, y además de las
resistencias políticas y sociales interpuestas, este agotamiento se
debe a la contradicción en la que ha entrado el capitalismo al verse
imposibilitado para vincular la inversión con la producción de
manera rentable. Con el neoliberalismo, creció el capital
transnacional y financiero a costa de la redistribución del ingreso y
de los mercados nacionales y locales. Pero no se han creado nuevos
mercados, sino que todas las operaciones se concentran en mercados
ya existentes, llegándose a un estancamiento económico. Por esta
razón, el gran capital es consciente de ello y a corto plazo intenta una
doble solución: socializando los costos de innovación tecnológica a
través de las subvenciones estatales y utilizando la política de
patentes y de propiedad intelectual para tomar medidas
privatizadoras, monopolizadoras y proteccionistas a favor de las
empresas transnacionales (ETNS).20
Asimismo, para dar el salto cualitativo en las condiciones de
valorización y acumulación del capital a escala mundial, el objetivo
prioritario está en convertir la vida del ser humano, no solamente en
trabajo, sino en “capital humano”, subsumiendo para ello el trabajo
conceptual y general. Lo mismo sucede con la naturaleza que ya no
es suficiente únicamente como tierra, es decir, como recurso o medio
de producción, sino que también ha de convertirse en “capital
natural”.21 Todo debe traducirse en negocio: la mente humana, el
49 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
19 Como sabemos, estos ajustes estructurales estuvieron definidos por tres grandes procesos entrelazados: a) la apertura
y liberalización, incluso indiscriminada y unilateral, de los mercados de bienes, servicios y capitales en los países del
Tercer Mundo; b) el desmantelamiento de las funciones sociales y de desarrollo económico del Estado, no
necesariamente su achicamiento, sino su transformación en instrumento de ejecución de la nueva etapa de
acumulación de capital, a partir, por ejemplo, de la privatización de los activos públicos; c) la así llamada
“flexibilización del mercado laboral”, mediante el cual, derechos humanos y sindicales importantes de los
trabajadores fueron mutilados o suprimidos, lo que permitió aumentar el grado de explotación del trabajo inmediato
a lo largo y ancho del planeta (cfr. Ídem, p. 12).
20 Esta es la tesis de DIERCKXSENS, Wim. Ver sus trabajos “El movimiento social por una alternativa al neoliberalismo
y a la guerra”, en Pasos, nº 98, 2001, pp. 32 y ss.; y “Racionalidad alternativa ante una nueva depresión mundial”,
en Pasos, nº 100, 2002, pp. 12 y ss.
21 Cfr. HENRY, Mora, “La globalización...”, pp. 12 y 14.
intelecto, la educación, la cultura, la ciencia, la biodiversidad, la
biosfera, toda la naturaleza, a través de una lógica privatizadora,
extractiva y destructora, se conciben bien como factores o medios de
producción, bien como espacios de inversión. Al tener la economía de
mercado su impulso en la obtención del máximo beneficio y en la
mayor acumulación posible del capital, se buscan nuevos ámbitos y
lugares en donde lograrlos.
Por consiguiente, seres humanos y naturaleza están al servicio
del capital, no éste al servicio de los seres humanos y la naturaleza.
Ambos, por tanto, resultan sacrificables y desechables en aras de la
culminación y el triunfo de aquel. Nos convertimos en autómatas de
la valorización y el medio natural termina por reducirse a una función
económica, desdeñándose y reprimiéndose sus otras funciones igual o
mayormente válidas para asegurar las condiciones materiales de
reproducción de la vida humana.22 Ésta, ahora, sólo tiene sentido si es
susceptible de valorización y, al final, se pierde el sentido de vivirla en
toda su riqueza y complejidad.
Bajo este panorama y siguiendo esta dinámica, queda claro
como no puede ser otro el propósito de la estrategia de EE.UU., ya
manifestada abiertamente tras los atentados del 11 de septiembre de
2001. Estados Unidos quiere ser el adalid de la globalización y su
máximo beneficiario. Desde su perspectiva e interés, para apropiarse
del mundo hay que asaltarlo y todo está permitido: usando
ilimitadamente la fuerza militar y reconfigurando el orden
internacional en función de sus propios intereses. Los recursos deben
estar a su disposición, sean los que sean y estén donde estén.23 Lo
mismo ocurre con el mundo entero: científicos, personal técnico
altamente cualificado, petróleo, gas, minerales, agua, oxígeno,
biodiversidad... Para convencer, legitimar y ganar, la batalla también
se da en el mundo de las ideas y la cultura, ambas subsumidas y
volcadas en la racionalización del “capital humano” y el “capital
natural”.24
22 Ídem, p. 15.
23 Esta arrogante pretensión es la que informa una serie de iniciativas estadounidenses, como el Area de Libre
Comercio para las Américas (ALCA), el Plan Puebla Panamá (PPP), el Plan Colombia y los diversos tratados de libre
comercio (TLC) que Estados Unidos impulsa negociar/imponer bilateralmente con diversos países. Ello ha quedado
muy claro en las palabras del Secretario de Estado, Colin Powel: Nuestro objetivo con el ALCA es garantizar a las
empresas estadounidenses el control de un territorio que va del Polo Norte hasta el Antártico, el libre acceso sin
ningún obstáculo o dificultad para nuestros productos o servicios, tecnología y capital en todo el hemisferio.
24 Se trata del fundamentalismo mesiánico del mercado cuya estrategia se basa en cuatro ejes: a) el acceso a recursos
naturales y humanos por medios económicos; b) el uso del poder militar; c) el asalto al poder mundial, el
reordenamiento y la pacificación del mundo; y d) un mesianismo conservador, que se muestra como representante
del bien y que lucha contra el mal. Ídem, p. 13. Sobre el asalto al poder ver HINKELAMMERT, Franz, “La guerra de
Iraq: el asalto al poder sobre el mundo”, en Pasos, nº 107, pp. 17 y ss.
50 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
En ese sentido, teniendo en cuenta el marco estructuralinstitucional
(socioeconómico y jurídico-político) establecido por la
economía de mercado, llegamos a la conclusión de que el sistema de
protección de propiedad intelectual establecido en el ADPIC resulta
un claro ejemplo de la forma en que el capital transnacional pretende
extender su zona de influencia y control sobre espacios de la vida
hasta hace poco no colonizados. El afán de las empresas
transnacionales de adueñarse de las bases mismas de la vida se
plasma en una nueva forma de monopolización universal del material
biológico (biomasa).
La alimentación, la salud, la propia vida, son la materia prima
de los nuevos negocios. Por tanto, la mayor peculiaridad que presenta
esta versión de la globalización es la de ser el principal instrumento
que sintetiza la tendencia tanto del proceso de subsunción del trabajo
conceptual, como de la conversión de la naturaleza y de la humanidad
en forma de capitales naturales y capitales humanos. La economía
neoliberal pretende, pues, cruzar la línea introduciendo en el
mercado las propias bases de la vida y su capacidad reproductiva.
Asimismo, reduce la diversidad de la naturaleza a “recurso genético”
sobre los que reclama derechos de explotación exclusiva.25 Para ello
utiliza el recurso jurídico del ADPIC que, como instrumento jurídico
con objetivos comerciales, genera derechos monopólicos en favor de
las organizaciones privadas de investigación y las empresas más
poderosas.
De esta forma se hace evidente como, por un lado, la ciencia, en
tanto inversión, se nutre del capital y pasa a ser un cuerpo
formalizado de conocimientos supeditados a aquél, siempre que su
acción en los laboratorios genere procesos de manipulación genética
útiles para obtener monopolios en el campo de la agricultura, la
acuicultura, la ganadería, la industria farmacéutica, etc.: herbicidas,
pesticidas, productos transgénicos animales y vegetales, etc. La
biogenética, la biotecnología y sus ingenieros forman parte de los
centros de trabajo donde se innova y se diseñan procesos productivos
y bienes nuevos por medio de la aplicación tecnológica (talleres de
progreso o laboratorios de investigación y desarrollo, I+D).26 En fin, la
mente del científico se convierte en el nuevo escenario de inversión
del capital.
Por otro lado, se pierde la riqueza en biodiversidad, la
complejidad interactiva de las especies, la integralidad de los
51 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
25 Cfr. BERMEJO, Isabel, “Introducción” en SHIVA, Vandana, Biopiratería..., p. 9.
26 Cfr. HINKELAMMERT, Franz J. y MORA, Henry, Coordinación..., pp. 212-213.
organismos y su capacidad de generación de vida, pues ahora,
mediante un mecanismo de reducción y engaño, sólo se le reconocen
estos atributos a la ciencia (subordinada al capital) y a su capacidad
de invención y de manipulación. Es más, los seres vivos son tratados
como si fueran máquinas, negándoles su capacidad de
autoorganización y reproducción;27 incluso se los reduce a material
genético tecnológicamente manipulable.28 Por consiguiente, el capital
y sus empresas terminan por considerar que la vida puede ser objeto
de apropiación privativa, porque la actividad científica (por supuesto:
de su ciencia) es el único lugar que puede construirla y mejorarla.
En ambos casos, con esa única forma de conocimiento (la
ciencia del capital) el capital transnacional pretende monopolizar las
bases de la vida, devaluando otros saberes, como los tradicionales y
los de una ciencia independiente del capital, como no susceptibles de
producir innovaciones y conocimiento. No se reconoce, entonces, el
papel clave del conocimiento tradicional ni los derechos legítimos de
los agricultores, de los pueblos indígenas y comunidades locales
cuando, paradójicamente, son éstos los principales productores de
conocimiento e innovación con relación al uso sostenible de los
recursos biológicos.29 Asimismo, la propiedad intelectual sólo protege
la innovación y el conocimiento que genera ganancia, desestimándose
cuando cumplen una función social. Ni la seguridad alimentaria, ni
la salud, ni el ambiente, ni en general la calidad de vida humana y
natural importan. Simplemente se los considera como costes
colaterales que, por lo mismo, no son tenidos en cuenta.
Al respecto, Franz Hinkelammert y Henry Mora tienen una
peculiar y muy provocadora manera de describir esta política por
medio de la actitud del principal actor difusor y defensor del mercado:
el empresario. Hablan del cálculo empresarial y de la semejanza que
tiene con el cálculo del pirata.30 El primero es un cálculo fragmentario
dirigido, igualmente, al uso fragmentario de las técnicas productivas.
Lo destacable de esto está en que estas acciones se dirigen a una
parte seleccionada de la realidad (fragmento), haciendo abstracción
del resto. Ese resto del que se prescinde en este tipo de cálculo
incluye un hecho empírico básico: la realidad es interdependiente, en
forma de red de dependencias y retroalimentaciones mutuas. Por
consiguiente, desde esa perspectiva parcial y sesgada del empresario
52 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
27 Cfr. KHOR, Martín, El saqueo del conocimiento, Icaria, Barcelona, 2003, pp. 75 y ss.
28 Cfr. SHIVA, Vandana, Biopiratería..., pp. 44-45
29 Cfr. KHOR, Martín, op. cit., p. 11.
30 Cfr. HINKELAMMERT, Franz J. y MORA, Henry, op. cit., pp. 294 a 296.
no se divisan las repercusiones negativas que la actuación económica
y tecnológica tiene sobre la realidad compleja.
El empresario capitalista considera irrelevantes las
consecuencias indirectas que su acción pueda ocasionar y las valora
como costos externos. Por su parte, el cálculo del pirata, que se basa
en el pillaje, es similar. Los esclavistas y colonizadores europeos,
entre los siglos XV y XIX, no se preocupaban por los costos materiales
e inmateriales ocasionados por sus acciones. Ni la destrucción de
pueblos enteros y sus modos de producción, ni la destrucción de toda
una cultura y la pérdida inmensa de vidas humanas eran
pertinentes. Para el esclavista, por ejemplo, sólo contaban los gastos
del capital fijo, como las armas y los barcos, y del capital variable, el
sustento de sus mercenarios. La ganancia la obtenía de la venta de
esclavos. Incluso el cálculo del pirata o conquistador estaba
concebido como un cálculo de guerra, pues se suponía que la
aventura bélica tendría continuidad y se seguiría financiando si
resultaba rentable, es decir, mientras los resultados de la guerra
proporcionaran oro, plata y tesoros.31
En fin, el cálculo empresarial es una forma específica del
cálculo del pirata y/o del cálculo de guerra, porque excluye todos los
costos que no sean costos de guerra. Todavía más, en las ocasiones
en que se fija en esos otros costos los llama costos externos, y en ellos
incluye, además de los atinentes a las necesidades humanas, todos
aquellos referentes a la preservación de las bases naturales de su
acción. Los cambios climáticos, el deterioro del ambiente, la
deforestación, etc., no son costos para el ganador de la guerra
comercial.
Curiosamente, no sorprende que haya una continuidad en el
móvil, las actuaciones y los medios utilizados por el capitalismo
presente respecto de las estrategias de ese cálculo del pirata, que fue
la base del capitalismo en sus inicios. No hay mucha diferencia entre
ellos, salvando las peculiaridades históricas. Por esta razón Vandana
Shiva ha llegado a identificar al GATT como una versión secular de la
Bula Papal de Alejandro VI, en la cual el Pontífice autorizaba a las
potencias cristianas a apropiarse de las tierras americanas
“descubiertas”, que no estuvieran ocupadas por rey o príncipe
cristiano. Si los títulos territoriales concedidos por el Papa
constituyen el primer antecedente de los títulos de patente, el ADPIC
realiza una versión actualizada y perfeccionada de ellos. En ese
53 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
31 Ídem.
sentido, el ADPIC es la autorización actual para el pillaje que en el
pasado fuera realizado por los colonizadores.
De esta forma, hasta la estrategia discursiva que pretende
legitimar este estado de cosas es una edición actualizada del antiguo
argumento con el que se justificaban las acciones de conquista y
colonización. En aquel momento la conquista y colonización de los
nuevos territorios se hacían presuntamente para liberar a aquellos
pueblos conquistados de sus condiciones primitivas y de barbarie.
Asimismo, eran asumidas como un “derecho natural” del colonizador,
argumentación que termina siendo perfeccionada por John Locke y
es la que informa las tendencias del capitalismo moderno el cual, a
través de la biopiratería, pretende establecer un “derecho natural” de
las empresas transnacionales, so pretexto de que su acción y
privilegios están en orden al desarrollo de los países y comunidades
pobres del Tercer Mundo.
Este “derecho” queda plasmado en el GATT y en su normativa
de patentes.32 Dice Vandana Shiva: La biopiratería es el huevo de
Colón, 500 años después de Colón. Las patentes siguen siendo un
medio para proteger el derecho de las potencias occidentales a ejercer
la piratería sobre las riquezas de las gentes no occidentales... Las
patentes y la ingeniería genética están permitiendo labrar nuevas
colonias. Las tierras, los bosques, los ríos, los océanos y la atmósfera
han sido ya colonizados, erosionados y contaminados. El capital tiene
ahora que buscar nuevas colonias que invadir y explotar para
continuar con el proceso de acumulación.33 Por consiguiente, los
espacios vitales de las especies vegetal, animal y humana son las
nuevas colonias del capital, la terra nullius del presente.
En definitiva, teniendo en cuenta el complicado marco general
de desarrollo del capitalismo y de su capacidad de homogeneización
de todas las esferas de lo real, nos encontramos con el reto de
enfrentar las nuevas colonias del capital. Éstas son
instrumentalizadas por medio del sistema de propiedad intelectual
(patentes, marcas, licencias, etc.), que expresa y refleja de manera
directa tanto las posibilidades, las artimañas y los propósitos, como
las virtualidades, las deficiencias y las carencias de ese orden
destructivo que, al priorizar las relaciones mercantiles sobre el
conjunto de las necesidades humanas y del espacio social, acaba
distorsionando el equilibrio que el ser humano tiene consigo mismo y
con la naturaleza. Entonces, humanidad y naturaleza podrán ser
54 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
32 Cfr. SHIVA, Vandana, Biopiratería..., pp. 19 y ss.
33 Ídem, p. 23.
sacrificadas por cuanto resultan prescindibles frente al capital que se
concibe imprescindible. De esta forma, este sistema, que valora y
subordina todos los elementos de la realidad en función de la
obtención del máximo beneficio, termina por articular de manera
consistente una red de tramas sociales, políticas, económicas y
jurídicas en torno a dinámicas de imperio, dominación, explotación,
exclusión y marginación.
4. DERECHOS HUMANOS Y PATRIMONIO COMÚN DE LA
HUMANIDAD. CONTRIBUCIONES PARA LA
ELABORACIÓN DE ALTERNATIVAS.
El papel del derecho, dentro de un contexto determinado, hay
que abordarlo teniendo en cuenta su carácter reversible, puesto que
puede interpretarse y aplicarse tanto en un sentido emancipador, en
función de los seres humanos y los pueblos, como en un sentido
arbitrario de hegemonía y jerarquía, que favorece a los más poderosos
y a las mediaciones que les son más beneficiosas (p.e. aquellas
propias del mercado). Esto resulta ser una cuestión importante para
obtener (o no obtener) acciones institucionales conformes (o
contrarias) a nuestros proyectos de justicia.
Por otra parte, pensamos que no hay que quedarse únicamente
en un nivel formalista de interpretación de las normas. Debido a una
excesiva y exclusiva confianza que, tanto los profesionales y
operadores del derecho como la gente de la calle, tienen del ámbito
normativo-positivo de los ordenamientos jurídicos, muchas veces
olvidamos e ignoramos otras dimensiones fundamentales y que
deben ser siempre tenidas en cuenta: el contexto estructural, las
relaciones de fuerza y los procesos sociales en donde se sitúa el
derecho. Esta ausencia es uno de los grandes defectos sobre los que
se asientan los dogmas y/o creencias de nuestra cultura jurídica.
Por esta razón, queremos remarcar lo siguiente: el paradigma o
los criterios sobre los que se asienta el derecho nacional e
internacional de los derechos humanos, en el marco de la
globalización, no resultan operativos en las condiciones y lógicas que
imponen hoy en día las economías y sociedades dominantes. Es más,
incluso como contrapartida, los sistemas normativos e
institucionales establecidos tanto por la lex mercatoria, como por la
OMC, dentro de los cuales se sitúa el ADPIC, incrementa la
marginalidad de los elementos eficazmente garantistas de las
55 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
constituciones nacionales y de los tratados internacionales de
protección de los derechos humanos. Asimismo, su fuerza operativa
es tan grande que sus directrices y/o sus normas acaban siendo
cumplidas por los estados, antes de que éstos se preocupen por hacer
eficaces las reclamaciones populares y ciudadanas reconocidas por
sus respectivas normas fundamentales. Las normas de la OMC
acaban situándose por encima de las normas de protección de los
derechos humanos. Los sistemas de protección de propiedad
intelectual referidos a la salud, la alimentación, la biodiversidad y las
creaciones culturales, bajo una concepción exclusivamente
privatista, tutelan los intereses del mercado, no los intereses de las
comunidades locales, los pueblos y los seres humanos.
Aparte de los límites y las carencias internas del derecho de la
cultura moderna,34 la concepción monista asentada en el patrón del
estado como único creador y garante de las normas jurídicas
(directamente a nivel nacional, indirectamente a nivel trasnacional),
contrasta con la presencia de otros sistemas normativos, que quedan
mejor visualizados a través del prisma del pluralismo jurídico.
Resulta que el derecho internacional de los derechos humanos es una
de las diversas formas jurídicas que acompañan a la globalización.
Coexiste e interacciona con otras juridicidades contradictorias, con
distintas racionalidades, ritmos, directrices, objetivos y niveles de
eficacia. Dentro de este panorama de policentrismo normativo,35 la lex
mercatoria y el “nuevo constitucionalismo” representan el
instrumental jurídico del capital transnacional para avanzar hacia la
mayor privatización y mercantilización posibles, hasta el último
recoveco de la existencia, tal como en su momento explicamos.
Mediante este conjunto de normas e instituciones se incrementa el
empuje de ampliación del espacio para la actividad y el beneficio
económicos, dotándole de un respaldo vinculante. El derecho, junto
con la ciencia, se ponen abiertamente al servicio del proceso de
subsunción real de la sociedad y la naturaleza en el capital.36
34 En este sentido, ver el espléndido trabajo de MEDICI, Alejandro, “Ocho propuestas sobre la necesidad de recuperar
los derechos humanos como concepto crítico en el contexto de la globalización neoliberal” (mimeo) y también
GALTUNG, Johan, Direitos humanos. Uma nova perspectiva, Instituto Piaget, Lisboa, 1998, p. 47 y ss.
35 MÉDICI, Alejandro, “Ocho propuestas...”.
36 Boaventura de Sousa Santos ya destacó el trayecto paralelo de funcionalización de la ciencia junto con su
tranformación en principal fuerza productiva del capitalismo, durante el momento de convergencia y posterior
fagocitación de la modernidad por aquel. En ese periodo (siglo XIX), el derecho moderno en su tarea de asegurar
el orden exigido por el capitalismo, y como racionalizador de segundo orden de la vida social, actúa como sustituto
de la cientifización de la sociedad. Para ello se convirtió él mismo en científico y se apegó al molde estatal que
acabó por hacerse hegemónico. Ver SOUSA SANTOS, Boaventura, Crítica de la razón indolente, Desclée de Brouwer,
Bilbao, 2003, pp. 133-134. Actualmente, el uso de la ciencia y el derecho por parte de la economía de mercado no
es más que otra vuelta de tuerca hacia esa utopía trascendental de capitalización total de la existencia y que,
simultáneamente nos está llevando por un periodo de transición paradigmática, mientras el colapso del sistema
sólo sea parcial y no total.
56 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
Mientras que la lex mercatoria, asentada sobre un derecho
informal, consuetudinario y flexible, fruto de las prácticas del mundo
de los negocios, se encarga de agilizar el comercio y maximiza las
ganancias, a la par que reduce los costos transaccionales sociales,
ambientales y fiscales de la producción, el nuevo constitucionalismo
brinda estabilidad y seguridad a la movilidad del capital por medio de
instituciones, formas jurídicas y tratados multilaterales que obligan
a los estados. Ambos bloques normativos plantean un paradigma
jurídico opuesto al paradigma del constitucionalismo global
cimentado en el estado de derecho y en los derechos humanos.
Pugnan por hacerse hegemónicos y, así, mediante la forma jurídica
presionan para asegurar, consolidar y utilizar la lógica de la
globalización neoliberal.37 Hasta tal grado tienen esa capacidad de
obligar que el propio Alejandro Médici habla del “diferencial de
eficacia” entre cada una de estas juridicidades: la fuerza vinculante y
la eficacia de los procedimientos de resolución de disputas de la OMC
y su capacidad sancionadora, es mucho mayor que la eficacia de los
mecanismos de protección de los derechos humanos del derecho
internacional. Incluso tiene poder de activar y desactivar zonas
enteras de ese sistema constitucional garantista, principalmente de
aquellas materias que constituyen distorsiones u obstáculos a la
acumulación y a la libertad del capital bajo las actuaciones de las
corporaciones transnacionales. Por esta razón, no es que exista una
inconmensurabilidad entre dichos conjuntos normativos, sino que
hay interferencias entre la cadena normativa del constitucionalismo
de los negocios y la del constitucionalismo de los derechos
humanos.38 Aparte de condicionar el primero al segundo, también la
economía de mercado se aprovecha de los límites, las debilidades y
las carencias del derecho nacional e internacional de los derechos
humanos.
En otro orden de cosas, las posibilidades de tomar medidas que
pongan freno a la virulencia multidireccional del empuje neoliberal
antes de que llegue a su colapso total, pasa por la adopción de
múltiples políticas de transformación en todos los niveles. No basta
con quedarse en un único ámbito, menos pensar que el derecho
puede ser la panacea de todas las soluciones. Lo jurídico hay que
integrarlo en un marco más general. Por ello pensamos que lo mismo
37 Cfr. MÉDICI, Alejandro, “Ocho proposiciones...”. Véase también su trabajo “Garantismo global de los derechos
humanos vis a vis globalización neoliberal. O de las condiciones de posibilidad del discurso jurídico garantista en
el contexto de la globalización”, en SÁNCHEZ RUBIO, David, HERRERA FLORES, Joaquín y CARVALHO, Salo, Anuário
Iberoamericano de direitos humanos (2001/2002), Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002, pp. 3 a 40.
38 Ídem.
57 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
que resulta necesario implantar una nueva racionalidad jurídica,
basada en la alteridad y el bien común, se debe articular un nuevo
paradigma económico alternativo, que no reduzca el valor de las cosas
a simple precio de mercado ni la actividad humana a mero comercio.
Para conseguir la transformación de los sistemas económico y
jurídico, de corte neoliberal, hay que actuar paramétrica y
estratégicamente, adoptando desde todos los ámbitos, espacios y
lugares sociales, medidas a corto, medio y largo plazo, de carácter
tanto local, nacional e internacional como de intensidad media y alta,
dada la capacidad de expansión y regeneración del capital. Las
actuaciones en busca de alternativas no deben ser sólo jurídicas, sino
también económicas, políticas, culturales, etc., a todos los niveles
(como ejemplo están los pueblos indígenas y su capacidad de
movilización jurídica y de presión política). En la medida de lo
posible, movimientos sociales, ONG, intelectuales, sindicatos,
pueblos indígenas, comunidades de vecinos, países empobrecidos,
etc., respetando sus particularidades y autonomías, deberían adoptar
acciones más o menos coordinadas y de convergencia, tal como
sucede con el Foro Social de Porto Alegre y otros foros de carácter
continental y local.39
Independientemente del grado de intensidad de las diversas
actuaciones de lucha y resistencia, uno de los frenos más
importantes para detener la expansión del capital se manifiesta en el
principio y pilar axiológico (parámetro) que prohibe la patentabilidad
de la vida, mucho menos en aquella faceta vinculada con la salud, la
alimentación y la biodiversidad. Por este motivo, hay que rechazar el
ADPIC, ya que, entre otras situaciones conflictivas, con su artículo
27,3b permite expresamente el patentamiento de determinados
organismos y la manipulación genética. Como contrapartida, se
deben crear otras normas que favorezcan el reconocimiento y la
protección de espacios no susceptibles de ser comercializados.
Detener el proceso de invasión de la globalización neoliberal, en todos
los aspectos de la vida y la naturaleza, implica defender que muchas
dimensiones del mundo social, cultural y económico deben estar
fuera del alcance del mercado, sobre todo aquellos aspectos que
permiten el mantenimiento y el desarrollo de nuestras condiciones de
existencia: el aire, el agua, las variedades de plantas y especies
39 En este sentido ver HOUTART, François, “La convergencia de movimientos sociales: un ensayo de análisis” (mimeo).
Sobre las alternativas de corto, medio y largo plazo, ver HOUTART, François y POULET, François, El otro Davos.
Globalización de resistencias y de luchas, Plaza y Valdés, México, 2000; también sobre las alternativas económicas
ver VV.AA., Alternativas a la globalización económica, Gedisa, Barcelona, 2003; y, en general, el monográfico de la
revista Alternativas Sur, nº 1, vol. I (2002) y titulado “A la búsqueda de alternativas ¿otro mundo es posible?”.
58 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
animales, los genes de todas las criaturas, las reservas de
conocimiento humano, semillas para el cultivo sostenible y
tradicional, etc. Nada que sea básico para la supervivencia
humana puede ser objeto de monopolio y de privatización.
Para poder realizar este principio, tanto la figura de los
derechos humanos como los denominados “bienes comunes”,
“comunes globales” y/o “herencia o patrimonio común de la
humanidad”, desempeñan un papel fundamental. No obstante, hay
que evitar el uso de estos conceptos desde marcos categoriales,
concepciones y líneas ideológicas que les dotan de un significado
supeditado a la lógica del capital transnacional. Sobre los derechos
humanos, en el marco de las sociedades capitalistas, es válido
apuntar que son, preponderantemente, derechos del propietario, del
poseedor de riqueza, es decir, de bienes jurídicos que se ubican
dentro de un mundo pensado a partir del mercado, siendo la relación
mercantil su centro.
Por lo anterior, resulta imposible o sumamente difícil reclamar
derechos humanos, para seres humanos concretos y vivos, frente a la
institución del mercado capitalista, que se asume como mercado
total. En vez de adoptar una posición de defensa de los derechos de
las personas humanas, corporales y necesitadas, hasta se llega a
dotar a simples categorías colectivas (como las empresas) de la
posibilidad de tenerlos y ejercerlos. Como contrapartida, frente a un
ordenamiento interpretado en el contexto del mercado y en función
del mercado, hay que apostar por la articulación de una concepción
compleja, integral y solidaria de los derechos humanos, que no sea
mercado-céntrica, formal, abstracta e individualista, sino abierta y
vinculada con los procesos de lucha (sociales, económicos, culturales,
políticos y jurídicos), mediante los cuales los seres humanos y las
colectividades reivindican su particular concepción de dignidad.40 De
ahí la importancia que tiene la apertura de espacios de confluencia
intercultural, para que los derechos colectivos de comunidades y de
pueblos indígenas (derechos de los pueblos), también sean
reconocidos como derechos humanos.
Finalmente, en la misma línea, resulta paradójico que la figura
de “patrimonio común de la humanidad” sea utilizada como
estrategia de los países industrializados, al atribuir el estatuto de res
communis a bienes como el patrimonio genético o la biodiversidad. El
propósito no es otro que hacerlos susceptibles de libre acceso y
utilización, para que de esta manera puedan ser libremente
40 Ver HERRERA FLORES, Joaquín, (edit.), El vuelo de Anteo...
59 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
apropiados, como res nullius, y así obtener el monopolio de su uso.41
Como ejemplo, el Foro Internacional sobre Globalización señala: las
corporaciones globales insisten en que las pequeñas comunidades no
deben reservarse este valioso material genético, sino que todo el
mundo debe tener acceso a él. En efecto, las empresas emplean el
lenguaje de los comunes globales hasta el momento en que confirman
su patente monopolista sobre el material. En este punto, se abandonan
todos los argumentos en defensa de los comunes. En su lugar, las
grandes empresas dicen que se les debe permitir reservarse esos
materiales genéticos mediante las patentes, con el fin de tener la
posibilidad de recuperar la inversión hecha en investigaciones, en
beneficio de toda la humanidad.42
Tradicionalmente ha habido aspectos de la vida que, desde
tiempos remotos, han quedado al margen del proceso de
mercantilización y, más recientemente, de subsunción real del
capital. Determinados bienes se han aceptado como de propiedad
colectiva, o como el patrimonio común de todos los pueblos y
comunidades que existen para que todos los compartan. Ambos
grupos de bienes se denominan “comunes”, aunque los
pertenecientes al primer tipo se consideran “comunes de la
comunidad”: espacios públicos, las tierras comunales, los bosques, la
dotación genética, los conocimientos locales innovadores sobre
plantas medicinales, y las semillas de las comunidades desarrolladas
desde tiempos ancestrales. El segundo bloque, en cambio, se llaman
los “comunes globales”: la atmósfera, los océanos, el espacio exterior,
la Luna, la Antártida. Unos y otros coinciden en una característica
clave: pertenecen a todos y nadie tiene un derecho exclusivo sobre
ellos.43
No obstante, no es igual defender un uso común de un bien
reduciéndolo a su simple libre acceso, que se hace excluyente cuando
se administra y utiliza privativamente, que exigir la regulación de ese
uso común del bien en beneficio de todos, con la preocupación de
preservarlo también para todos. Para alejar a estos “comunes” de una
dimensión patrimonialista y posesiva, hay que reformular el principio
de libre utilización de bienes o espacios comunes, articulándolos
desde la aceptación de usos confluentes y administración
compartida, y el rechazo de usos excluyentes y no distributivos.
41 Cfr. PUREZA, José Manuel, El patrimonio común de la humanidad, Trotta, Madrid, 2002, p. 363.
42 VV.AA., Alternativas a la globalización económica, p. 112.
43 Ídem, pp. 107-108.
60 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
En ese sentido, el jurista lusitano Boaventura de Sousa Santos
habla incluso de un derechos de la humanidad (jus humanitatis)
referidos a entidades naturales y materiales que pertenecen a toda la
humanidad, respecto de los cuales todos los pueblos tienen derecho
a opinar y participar en el manejo y la distribución de los recursos.
Expresa la aspiración a una forma de dominio de los recursos
naturales o culturales que, dada la extrema importancia de estos para
la sostenibilidad y la calidad de vida sobre la tierra, debe ser
considerada como propiedad global y manejada a favor de la
humanidad como un todo, tanto presente como futura.44
Dicha propuesta implica, además, una lucha por un nuevo
patrón de desarrollo y de sociabilidad, que incluirá un nuevo contrato
social con la tierra, con la naturaleza y con las generaciones futuras.
La humanidad no es concebida como una comunidad de propietarios,
sino como una comunidad universal de participación entre seres
humanos. No obstante, este marco de socialización será modulado, es
decir, se construirá desde la diversidad de espacios sociales y
culturales para su gestión. Habrá momentos en los que la
administración de determinados bienes será local (p.e. conocimientos
tradicionales sobre productos medicinales o alimentarios), y en otros
se administrará desde el ámbito nacional o por toda la comunidad
internacional. En todos los casos, siempre con la intención
panorámica y redistributiva en el reparto equitativo de los recursos y
los beneficios que se obtengan. Se trata de establecer una especie de
régimen de condominio que beneficia a toda la humanidad, pero
controlado no sólo por los estados sino, principalmente, por las
propias comunidades locales y los propios pueblos indígenas. Desde
esta perspectiva, el sistema de propiedad intelectual no es el mejor
instrumento de protección y garantías de la biodiversidad y del
derecho de los pueblos.
Entre Sevilla y Alajuela, septiembre de 2003
44 SOUSA SANTOS, Boaventura, La globalización del derecho, ILSA/Universidad Nacional d
61 Nuevos colonialismos del capital. Propiedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos
62 David Sánchez Rubio
Norman J. Solórzano Alfaro
– PARTE 02 –
TUTELA JURÍDICA DA APROPRIAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E
AS TRÊS DIMENSÕEÓES DA PROPRIEDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51
(Cristiane Derani)
1. Meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem Jurídico . . . . . . . . . . . . . . .51
2. Apropriação e os direitos de propriedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53
3. Formas de apropriação dos bens ambientais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55
4. Direitos de Acesso como terceira dimensão da apropriação juridicamente tutelada . .61
5. Direito de acesso: titular e direitos gerados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65
6. Direitos de propriedade e o ingresso do conhecimento tradicional no mercado . . . .69
OS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS E OS DIREITOS DE
PROPRIEDADE INTELECTUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77
(Fernando Antonio de Carvalho Dantas)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77
1. Direitos indígenas: povos, territórios e reconhecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .80
2. As terras indígenas: espaços de vida concreta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83
3. O conhecimento tradicional indígena e o secular processo de domesticação
da natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .89
4. Conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético e
propriedade intelectual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .92
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .110
POLÍTICAS PÚBLICAS E ESTRATÉGIAS DE SUSTENTABILIDADE URBANA . . . . . . .115
(Solange Teles da Silva)
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115
1. Políticas públicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .116
1.1 Espaço geográfico da realização de programas de ação governamental:
as cidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .117
1.2 Transformações das modalidades de ações governamentais:
as políticas públicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .119
2. Concretização das políticas públicas no meio ambiente urbano . . . . . . . . . . . . . .121
2.1 Objetivos e metas das políticas públicas: sustentabilidade urbana . . . . . . . . .122
2.2 Estratégias de sustentabilidade urbana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129
REFERÊNCIAS: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131
BIOPIRATARIA: UM PROBLEMA(QUASE) SEM SOLUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .135
(Ozório J. M. Fonseca)
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
Tutela Jurídica da Apropriação
do Meio Ambiente e as Três
Dimensões da Propriedade
Cristiane Derani1
1. MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
COMO BEM JURÍDICO
Aquestão dos direitos de propriedade está no cerne
da definição de políticas ambientais. De fato, o
tratamento jurídico dos bens ambientais passa fundamentalmente
pela opção de como o direito regulará as múltiplas relações entre os
sujeitos e as coisas. Em outras palavras, como o direito disciplina as
diversas relações estabelecidas entre o seres humanos e o ambiente.
A Constituição da República denomina, impropriamente, de
bem ambiental o “meio ambiente ecologicamente equilibrado
indispensável à sadia qualidade de vida” (art. 225). A impropriedade
está em chamar de “bem” aquilo que na verdade expressa um
coletivo, conjunto de objetos, corpóreos e incorpóreos, protegidos pelo
direito. Tomados isoladamente, estes objetos, que constituem o “meio
ambiente ecologicamente equilibrado”, podem já receber uma tutela
jurídica em razão de sua apropriação por um sujeito de direito, por
exemplo as áreas de florestas, o bem cultural, que respondem a um
específico regime dominial. Dentro desta definição pode haver
1 Professora Associada da Faculdade de Direito da USP. Professora Participante do Programa de Mestrado em Direito
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professora Titular do Mestrado da Universidade Católica de
Santos. Coordenadora da linha de pesquisa sobre Biodiversidade do Gedim - Programa Most da Unesco.
65 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
também objetos que, até o momento de sua inserção no conceito de
meio ambiente, não recebiam proteção do direito, como, por exemplo,
o ar, o peixe no rio, a paisagem, a luz solar. De fato, os elementos que
constituem o “meio ambiente ecologicamente equilibrado,
indispensável à sadia qualidade de vida” encontram-se em grande
parte tutelados por direitos de propriedade constituídos
juridicamente.
Segundo a lei nº 6.938/81, meio ambiente é “o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Esta definição, contudo, é incompleta, porque não contempla o ser
humano que age constrói e modifica o ambiente. As ações humanas
são definidoras do ambiente, sem elas definimos apenas parcialmente
o meio ambiente, que é visto idealmente como um conjunto exterior
independente da ação humana, um dado da natureza, que se define
como patrimônio natural.
Os seres humanos integram o ambiente. O conceito de meio
ambiente não se reduz a ar, água, terra, mas deve ser definido como
o conjunto das condições de existência humana, que integra e
influencia o relacionamento entre os homens, sua saúde e seu
desenvolvimento. O conceito de meio ambiente e, conseqüentemente,
a proteção do meio ambiente só podem ser pensados e articulados
dentro da base social onde se desenvolve a relação homem-natureza.
Assim, os caminhos para a construção de uma política de
conservação das bases naturais devem ser buscados e encontrados
no interior da sociedade industrial-tecnológica moderna,
reformulando seus pressupostos, num processo de conscientização,
como processo cultural de reestruturação das atividades de produção
e transformação de riquezas2
Em síntese, meio ambiente ecologicamente equilibrado é
patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais que se
interrelacionam. Os objetos que o constituem encontram-se, em sua
maioria, já inseridos em relações de propriedade tuteladas pelo
direito. Há também objetos materiais e imateriais indispensáveis para
a construção orgânica do ambiente juridicamente protegido, que não
se encontram inseridos em direitos de propriedade, e passam a ser
tutelados pelo direito exclusivamente por serem constitutivos do meio
ambiente ecologicamente equilibrado indispensável à sadia qualidade
de vida, isto é, recebem proteção jurídica enquanto inseridos na
dinâmica integrada do meio ambiente vivo.
2 Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo, Max Limonad, 1997, P. 71, 73 e 74.
66 Cristiane Derani
2. APROPRIAÇÃO E OS DIREITOS DE PROPRIEDADE
Os elementos do patrimônio ambiental são apropriáveis. A
apropriação é a ação humana de tomada de um objeto para satisfação
de uma necessidade, ou de uma vontade, ou desejo. Esta apropriação
não significa necessariamente inserção do objeto no âmbito de um
poder individualizado, excludente, isto é, na forma de propriedade
privada. Há diversas formas de apropriação que geram ou não
direitos de propriedade. A apropriação pela posse segundo o Código
Civil é a forma mais antiga de apropriação tutelada pelo nosso direito
privado, oriunda da codificação napoleônica. Esta apropriação será
privada ou pública gerando os bens privados ou públicos:
A propriedade é um direito real, assim como o é o uso (art.
1.225 CC). O Código Civil define propriedade pela descrição das
possibilidades de ação do proprietário:
Art.1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e
dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha.
§ 1o. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a
flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e
das águas.
§ º2. São defesos os atos que não trazem ao proprietário
qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção
de prejudicar outrem.
Interessante remarcar que a propriedade do solo exclui a
apropriação privada de outros bens que nele se encontram:
Art. 1.230 A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas
e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os
monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais.
Mesmo a posse no seu tratamento pelo CC é vista de maneira
individualizada. Não se concebe uma posse em que os sujeitos
detentores não são identificados:
Art. 1.196 – Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato
o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à
propriedade.
Art. 1.204 Adquire-se a posse desde o momento em que se
torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes
inerentes à propriedade. (grifei)
67 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
A expressão “em nome próprio”, é fundamental para
compreensão da estrutura do direito de propriedade privada.
A apropriação pelo sujeito de direito público também tem a
mesma estrutura, isto é, resulta em direito individualizado sobre um
objeto. O bem público encontra-se definido no próprio instituto de
direito privado, como uma exceção ao domínio privado. São bens
públicos, em conformidade com o Art. 98, do Código Civil, “os bens
do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito
público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a
pessoa a que pertencerem (grifei).
O Código Civil, em seu Art. 99, classifica os bens públicos em:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares,
estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos
destinados a serviço ou estabelecimento da administração
federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de
suas autarquias;
III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas
jurídicas de direito público, como objeto de direito
pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se
dominicais, os bens pertencentes às pessoas
jurídicas de direito público a que se tenha dado
estrutura de direito privado.
A concepção privatista da propriedade é adotada também para
a propriedade pública que é determinada como exceção ao campo de
ação do poder privado, numa clara submissão do público ao privado.
Não é por descuido que a classificação do bem público encontra-se no
corpo de leis sobre a atividade privada. Neste espaço, encontra a
definição da propriedade pública o seu lugar como contraposição,
porque é pela sua delimitação que se garante o amplo espaço de
atuação privada. Assim, pela concepção civilista, os direitos de
propriedade gerados são individualizados em razão dos sujeitos
titulares, que poderão exercer o seu poder sobre a coisa e exigir o
respeito de todos a esta relação jurídica.
Genericamente, entretanto, a apropriação é um gênero ao qual
pertencem os direitos de propriedade, uma espécie de apropriação.
68 Cristiane Derani
Portanto, é necessário verificar que a tutela jurídica das relações de
apropriação tem na forma de direito de propriedade privada uma
resposta a uma definição histórica do poder individualizado, oriundo
da revolução francesa especificado no Código de Napoleão.
Nas relações de apropriação que os sujeitos estabelecem com
seu meio, algumas gerarão direitos de propriedade, classificados em
privados, públicos ou coletivos, segundo as características dos
sujeitos que exercem a apropriação tutelada especialmente na forma
de direitos de propriedade pelo ordenamento jurídico3. Além disto, há
outras relações de apropriação que se estabelecem em relação ao
meio que não gerarão direitos de propriedade, não obstante gerarem
outras formas jurídicas de tutela da apropriação.
É fundamental estabelecer a diferença entre apropriação e
propriedade. Apropriação é o termo utilizado para designar a ação
concreta do sujeito sobre um objeto. Este ato pode ser tutelado pelo
direito que, definindo um poder individualizado do sujeito sobre o
objeto, terá estabelecido uma espécie de tutela jurídica consistente
em direitos de propriedade. Assim, apropriação é o ato genérico, e
direitos de propriedade uma forma específica de tratamento jurídico
deste fato. Cabendo não esquecer, portanto, que outras formas
jurídicas podem ser estabelecidas para a tutela do mesmo fato,
considerando o direito uma criação social fruto de um processo
ideológico de organização das ações realizadas em sociedade.
Exemplificando, a apropriação de um imóvel rural é regulada
pelo direito no seu modo de aquisição e nas suas formas de
manutenção e transação, configurando o direito de propriedade e sua
tutela jurídica. A apropriação do ar no ato de respirar, ou da água do
rio para matar a sede não geram direitos de propriedade, muito
embora sejam efetivamente a tomada de um objeto para a satisfação
do sujeito.
3. FORMAS DE APROPRIAÇÃO DOS BENS AMBIENTAIS
Os bens ambientais, independente de serem públicos ou
privados, revestem-se de um interesse que os faz ter um caráter
3 McKean distingue seis tipos diferentes de propriedade: recursos de livre acesso (ex. Atmosfera); b)propriedade
pública (ex. parques nacionais); c) proprieade do Estado (prédios governamentais); d) propriedade privada possuída
conjuntamente, onde as quotas podem ser vendidas sem consulta (sociedade por ações, condomínios residenciais);
e) propriedade comum (common property), propriedade privada possuída conjuntamente, onde os co-proprietários
não podem vender suas cotas; f) propriedade privada possuída individualmente.
DIEGUES, Antonio Carlos. “Etnoconservação da Natureza: Enfoques Alternativos” in Etnoconservação: Novos Rumos
para a Proteção da Natureza nos Trópicos. São Paulo, Hucitec, NUPAUB, USP, 2000, p.14.
69 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
público diferente. Mesmo sob domínio privado tem nele subjacente o
interesse da coletividade. A Constituição os denomina “bem de uso
comum do povo”. Esta característica não é o que significa para o
direito administrativo a expressão bem de uso comum do povo.
Infelizmente empregou-se uma expressão que já tem um sentido
específico no direito brasileiro para designar um outro conteúdo. Não
é possível simplesmente declarar a impropriedade da expressão, ou –
o que é pior – procurar adaptar o sentido original da expressão ao seu
novo contexto. Indispensável se faz a determinação do seu novo
sentido.
Segundo a doutrina do direito administrativo, bens de uso
comum são espécies de bem público, portanto, sob o domínio do
poder público. São constituídos por coisas móveis ou imóveis
pertencentes ao Poder Público destinadas ao uso indistinto de todos,
sem formalidades, como mares, ruas, estradas, praças etc.. Como o
nome indica, devem ser utilizados em concorrência igualitária e
harmoniosa por todos os administrados, conforme sua destinação e
atendidas as condições que não impliquem em sua sobrecarga,
transtorno ou impedimento à concorrente utilização de terceiros.
Para esta utilização ordinária, não há necessidade de qualquer ato
administrativo que a faculte ou mesmo o dever de comunicar
previamente à autoridade a intenção de utilizá-los, não havendo, em
geral, cobrança pela mesma4. Entretanto, qualquer utilização
anormal, como o uso de uma praça para a realização de um comício,
deverá ser previamente informada à autoridade competente,
havendo, igualmente, necessidade de autorização, permissão ou
concessão, conforme o caso, para seu uso privativo, como a
instalação de uma banca de revistas em uma esquina.
Na expressão constitucional bem de uso comum do povo para
qualificar o conteúdo jurídico do meio ambiente ecologicamente
equilibrado está a idéia de um patrimônio cuja apropriação, embora
se faça por seus elementos e no mais das vezes de maneira
individualizada interessa a toda coletividade, que, de alguma forma,
tem direito de fruição sobre aquele bem. Portanto, a disciplina
jurídica da apropriação dos bens ambientais tem de conter um
equilíbrio entre apropriação para fruição individualizada e o direito de
fruição de toda coletividade. Não pode haver destruição dos aspectos
ambientais de um bem com a sua apropriação por um sujeito, pois
70 Cristiane Derani
4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 14a. ed., São Paulo, Malheiros, 2002, pp. 769,
780 e 781; GASPARINI, Diógenes Direito Administrativo, 7ª ed, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 673.
isto fere o direito dos demais. O conteúdo da referida expressão traz
a negação da exclusividade sobre fruição de um bem.
De fato, a consideração dos bens ambientais como bens de uso
comum do povo, implica na imposição do princípio da função social
da propriedade sobre os bens ambientais que se inserem no campo
do direito privado5 e, com base neste valor, sobre estes bens nasce um
novo direito que se sobrepõe ao antigo direito individual já existente.
O princípio normativo da função social da propriedade é uma norma
que incide sobre o modo como o titular do direito de propriedade fará
uso da coisa e sobre a finalidade a que será destinada esta coisa,
devido à importância que o objeto tem perante a sociedade em que se
insere. O princípio da função social da propriedade surge no
ordenamento jurídico positivo, respondendo a um outro estágio das
relações sociais que demandam fixação de valores e finalidades, uma
vez que a alta complexidade social impossibilita a definição completa
das condutas. É o direito pós-convencional, nas palavras de
Habermas.
A aplicação do referido princípio depende de ações do
proprietário no exercício de seu poder. A ação decorrente do direito de
propriedade deverá conter o valor funcional apresentado pelo
princípio. O objeto, então, liga-se ao proprietário em razão de sua
utilidade e de seu valor econômico e ligar-se-á à sociedade em função
da utilidade que ela representa para a coesão e satisfação da
coletividade.
A fruição pela coletividade imposta como concretização do
princípio da função social da propriedade deve ser compatibilizada
com a detenção do bem, conteúdo do direito de propriedade. Neste
sentido, pode-se afirmar que o bem se apresenta na sociedade numa
dimensão concreta aproveitada por sujeitos individualizados e numa
dimensão axiológica que extravasa a relação individual, na medida
em que os valores que ele representa devem ser apropriados por toda
a coletividade, de forma difusa, que passa a ter direitos ou no mínimo
interesse sobre ele. Assim, pelo valor ambiental, cultural, produtivo
de um bem, este objeto é apropriável pela coletividade que tem direito
de fruição fundado nas características coletivas destes objetos sob
domínio privado.
Com base nesta nova dimensão do direito de propriedade,
surgem normas infraconstitucionais de proteção da natureza ou do
meio ambiente, criando direitos a todos os cidadãos - direitos
5 Cf. DERANI, Cristiane. A Função Social da Propriedade na Constituição de 1988, in Revista de Direito Ambiental, São
Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, n. 27, 2002.
71 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
coletivos ou difusos – que se impõem juntamente com os direitos
individuais. Este novo direito da coletividade pode ser traduzido como
o direito de todos de terem protegido o ambiente. Limites ao exercício
do direito individual de propriedade e os parâmetros para as práticas
dos proprietários são impostos, a fim de que a ação de apropriação
não se vincule exclusivamente à vontade do sujeito detentor da coisa,
porque deve compreender os valores de fruição a que tem direito a
coletividade. Pelo princípio da função social da propriedade, são
estabelecidos direitos de todos sobre coisa alheia, que não obstante
continuam sob o domínio do detentor legítimo.
Sem se opor à categoria de bens privados ou públicos, a tutela
ambiental impõe aos bens envolvidos na construção do meio
ambiente ecologicamente equilibrado (bens naturais e culturais) um
novo valor jurídico, cuja titularidade é de toda coletividade. Há, então
uma outra dimensão jurídica sobreposta à dimensão de exercício do
poder individualizado já existente. Esta dimensão é a de fruição pela
coletividade do conteúdo ambiental do bem.
Carlos Marés de Souza Filho, buscando explicar esta
bidimensionalidade do tratamento jurídico do bem ambiental afirma:
A definição deste direito, portanto, é um aprofundamento dos
institutos de direito público, limitação administrativa e função social
da propriedade, e dos institutos de direito civil, propriedade
intelectual e obrigação de prestação de fato negativa. É, na verdade,
uma mistura de todos eles, porque limita administrativamente o bem,
impõe-lhe uma função social diferenciada, cria sobre ele uma
propriedade imaterial e coletiva e lhe constrange a uma obrigação de
prestação de fato negativa 6.
A primeira relação gera direitos de propriedade individualizados
tutelados pelo direito civil. A segunda relação, entretanto, não gera
direito de propriedade, como um direito de exercício de poder por
sujeitos determinados, mas gera direitos de apropriação. Isto é, a
tutela jurídica do patrimônio ambiental consagra o princípio da
função social da propriedade e garante direitos de fruição dos
aspectos ambientais dos bens, independentemente das relações
dominiais preexistente, e sem que deste direito de fruição decorra um
poder de detenção exclusiva.
Procurando uma melhor distinção pode-se dizer que:
72 Cristiane Derani
6 SOUZA Filho, Carlos Marés. Bens Culturais e Produção Jurídica, P. 30.
Direito de propriedade, como detenção do domínio, vincula-se a
um valor econômico diretamente relacionado com o objeto sobre o
qual se exerce a propriedade. Nesta relação jurídica, a apropriação
por terceiro depende da vontade do sujeito detentor do direito de
propriedade. No entanto, o direito de apropriação da coletividade
fundado no princípio da função social da propriedade é um direito de
fruição. Este direito de fruição relaciona-se com o direito de todos em
perceber os efeitos positivos do bem que contribuam para a vida em
sociedade. O proprietário do bem tem o dever de faze-lo útil e de certa
forma fruível pela sociedade.
A propriedade é dinâmica. O clássico direito de propriedade
tutelado pelo Código Civil tem sua formatação completa com o
advento do Código de Napoleão em 1806. É a forma jurídica de tutela
da apropriação de um objeto que se imporá durante o século XIX.
As revoluções e o aprofundamento da desigualdade produzidas
por esse século levou à modificação da tutela jurídica da propriedade,
acrescendo a este poder exclusivo um campo de fruição coletivo,
refletindo a origem social da relação de propriedade. O individual
jamais funda a prática social. Por tal motivo, não é possível realizar
uma sociedade calcada em justaposição de direitos exclusivos.
O direito de propriedade do século XX transforma a antiga visão
individualista, pela prescrição do princípio da função social da
propriedade, que encontra nas Constituições do México, 1917, e de
Weimar, 1919, suas primeiras manifestações. Esta gênese, há de se
ver, não foi aleatória. O que havia em comum no México de 1917 e na
Alemanha de 1919 era a forte ameaça de um choque social
desintegrador das relações de propriedade instituídas, respectivamente
pelos movimentos Zapatista e operários-socialistas que se
opunham ao egoísmo legalizado e à exclusão dos indivíduos da
sociedade em fruir de um patrimônio que, embora sob domínio
privado, são bens que referenciam uma sociedade e concorrem para
a formação de sua identidade.
O direito de propriedade continua evoluindo e, sobre essas duas
dimensões de apropriação, surge uma terceira que passa a se impor
sobre o bem, sem eliminar as relações pré-instituídas. O bem, além
de receber a tutela jurídica definidora de domínio e receber a
imposição normativa para a fruição coletiva de determinados
aspectos de seu conteúdo, passa a ter regulado o acesso às
informações que o constitui. Trata-se de uma apropriação imaterial,
porque é apropriação do conhecimento, que não atinge a integridade
do bem, e que, efetivamente, não exclui outras formas de
73 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
apropriação. Além do mais, a coleta de informações sobre um objeto
não exclui a possibilidade de outros sujeitos exercerem igualmente
esta apropriação.
O direito passa a regular paralelamente esta forma de
apropriação, por um direito de acesso, definindo as regras de acesso
às informações, atribuindo, inclusive, poderes de exclusividade
àqueles que venham a exercer este acesso. É o direito de acesso,
portanto, a terceira dimensão de apropriação tutelada pelo direito,
revelando-se como a dimensão do direito de propriedade do século
XXI.
O direito de acesso, como obtenção de informação sobre o bem,
independe da detenção do domínio concreto e de sua fruição. Um
aspecto imaterial do bem pode ser transmitido e transferido sem que
se altere o domínio e não se interfira na fruição.
Sinteticamente temos o seguinte quadro:
Tutela jurídica da apropriação
DETENÇÃO FRUIÇÃO CONHECIMENTO
direito de propriedade princípio da função social Direito de acesso
da propiedadeireito
Pelo exposto, embora tenhamos três dimensões de apropriação
de um objeto tuteladas pelo direito, nem todas geram direitos de
propriedade individualizados. Por sua natureza, a apropriação das
características ambientais de um bem é incapaz de gerar direitos de
propriedade, porque se resume à fruição pela coletividade de
determinados aspectos do bem ambiental. Não há demarcação de
sujeitos titulares, o que impede a definição de direito de propriedade,
e não há determinação de aspectos de exclusividade na fruição deste
direito. A fruição exclusiva está circunscrita às utilidades que podem
ser extraídas do objeto de maneira privada.
A concretização do princípio normativo da função social da
propriedade pressupõe a propriedade privada. Esse princípio se
aplica, exigindo a composição do interesse privado de utilidade e
fruição econômica com o interesse da coletividade de apropriação dos
aspectos ambientais do bem privado inserido no patrimônio
ambiental. A propriedade privada é o substrato material e jurídico do
princípio da função social da propriedade. A realização do princípio
da função social necessita de uma prévia relação individualizada com
um bem, atingindo-o para suavizar o peso da exclusividade e do
74 Cristiane Derani
egoísmo dentro da sociedade, impondo, por força da norma, a
solidariedade e o compartilhamento do bem e das utilidades retiradas
do bem.
Num terceiro momento do desenvolvimento de formas jurídicas
de tutela da apropriação, o direito passa a tutelar o acesso a
informações de um objeto. A apropriação do conhecimento sobre o
bem passa a ser tratada como uma terceira forma jurídica de
apropriação que se destaca do próprio bem. O direito regulará quem
poderá acessar as informações de um bem e como se realizará este
direito, sua onerosidade e exclusividade. Este direito de apropriação
do novo século é chamado de direito de acesso, numa síntese do
direito de acessar informações contidas em um bem. Assim, é
possível que este direito de acesso gere direitos de propriedade
individualizado, podendo, sem risco de conflito ou sobreposição,
falar-se em direitos privados de propriedade sobre um bem, tutelado
pelo Código Civil e direitos privados de propriedade às informações
contidas naquele bem, tutelado pela propriedade intelectual
pertencentes a titulares distintos.
4. DIREITOS DE ACESSO COMO TERCEIRA DIMENSÃO DA
APROPRIAÇÃO JURIDICAMENTE TUTELADA
No direito brasileiro, o direito de acesso encontra-se previsto
pela MP 2.186-16/01, que trata da tutela do acesso ao patrimônio
genético e ao conhecimento tradicional associado, art. 1o, § 1o :
O acesso a componente do patrimônio genético para fins de
pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção
far-se-á na forma desta Medida Provisória, sem prejuízo dos direitos
de propriedade material ou imaterial que incidam sobre o componente
do patrimônio genético acessado ou sobre o local de sua ocorrência.
Percebe-se, já pelo texto, a dissociação entre direito de acesso e
os direitos de propriedade. Também é clara esta distinção no projeto
de lei nº 306/95 de autoria da Senadora Marina Silva:
“art.2o. Os recursos genéticos e produtos derivados são
considerados bens públicos de uso especial da Nação brasileira, e os
contratos de acesso a eles se farão na forma desta lei sem prejuízo
dos direitos de propriedade material e imaterial relativos:
75 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
I aos recursos naturais que contêm o recurso genético ou
produto derivado;
II às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ao usufruto
exclusivo, por eles, das riquezas nessas terras existentes;
III à coleção privada de recursos genéticos ou produtos derivados;
IV aos conhecimentos tradicionais das populações indígenas e
comunidades locais associados a recursos genéticos ou
produtos derivados;
V aos cultivos agrícolas domesticados e semi-domesticados no
Brasil.
De imediato cabe remarcar que nos parece equivocada a
classificação dos recursos genéticos e derivados como bens públicos
de uso especial. Segundo Bandeira de Mello, bens de uso especial são
as coisas móveis ou imóveis “afetados a um serviço ou
estabelecimento público, como as repartições públicas, isto é, locais
onde se realiza a atividade pública ou onde está à disposição dos
administrados um serviço público como teatros, universidades,
museus e outros abertos à visitação pública”7. Nas palavras de
Diógenes Gasparini, são os bens destinados à execução dos serviços
públicos e usáveis somente pelo Poder Público, seu proprietário (ex.:
os edifícios onde estão instalados uma cadeia, um museu, uma
escola etc). O uso e gozo desses bens são, em tese, das pessoas que
detêm a sua propriedade (pessoas jurídicas de direito público), não se
exigindo, para tal uso, qualquer formalidade, o que somente ocorre
quando facultada a utilização por terceiro (uso da escola pelos
alunos, uso do museu pelos visitantes) 8.
O patrimônio genético não integra o patrimônio do Estado. É
passível de ser apropriado por sujeitos de direito privado, que podem
explora-lo a bem de seu interesse particular, inserindo-o no processo
produtivo voltado com a finalidade de obtenção de lucro. A utilização
da classificação “bem de uso especial” para o patrimônio genético,
dificulta ainda mais seu entendimento e enquadramento jurídico por
uma impropriedade da lei9.
7 Opus cit., p.769
8 Opus cit., p. 674
9 Compartilhamos a douta opinião de Márcia LEUZINGER, professora de Direito Administrativo do Centro de Estudos
Universitários de Brasília, que entende que o patrimônio genético, assim como os recursos naturais, sejam bens de
interesse público, jamais bens de uso especial ou bens de uso comum do povo, no sentido que lhes é conferido
pelo Direito Administrativo. Essa classificação não se aplica a eles, pois não se constituem em propriedade do
Estado, muito embora sua utilização deva sofrer restrições ou condicionamentos a que não estão sujeitos os bens
privados ou mesmo os bens públicos em sentido estrito, na medida em que expressam um valor diferenciado a toda
a sociedade.
76 Cristiane Derani
É relevante no artigo, contudo, a preocupação em explicitar as
diversas outras possibilidades de propriedade que não incluem o
direito de acesso, um direito independente sobre um bem que já se
encontra sob o domínio de um proprietário, seja ele um sujeito
privado, público ou coletivo. Por ser um direito que se desvincula do
proprietário do bem, é possível inclusive determinar um outro sujeito
como outorgante do direito de acesso, numa explícita afirmação de
que o conhecimento sobre o bem não se vincula ao proprietário.
Emerge desta dissociação uma peculiaridade relativa ao poder
de transmitir e transacionar sobre o direito de acesso. Como já dito,
não se transaciona o bem, mas o seu conteúdo informativo. Poder-seia
pensar que logicamente este conteúdo estaria sob o poder do
detentor do bem, como imanente à propriedade ou como a ela
acessório, na hipótese mais frágil. Ocorre que nenhuma destas
formas tradicionais é pensada no caso do direito de acesso. Nem o
conhecimento é um acessório da propriedade do bem, nem
necessariamente o detentor do bem é detentor do conhecimento.
Quem detém o bem não detém necessariamente o conhecimento,
assim como as informações sobre um bem independem da relação de
domínio material do bem.
É a Convenção sobre Diversidade Biológica que já delimita este
espaço. Ela disciplina a utilização sustentável de componentes da
Diversidade Biológica (aspecto material do bem ambiental), artigo X,
e disciplina o acesso a recursos genéticos (aspecto informativo sobre
o bem ambiental), art. XV.
Art. X Cada parte contratante deve, na medida do possível e
conforme o caso:
a. incorporar o exame da conservação e utilização sustentável de
recursos biológicos no processo decisório nacional;
b. adotar medidas relacionadas à utilização de recursos biológicos
para evitar ou minimizar impactos negativos na diversidade
biológica;
c. proteger e encorajar a utilização costumeira de recursos
biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais
compatíveis com as exigências de conservação ou utilização
sustentável,
d. apoiar populações locais na elaboração e aplicação de medidas
corretivas em áreas degradadas onde a diversidade biológica
tenha sido reduzida; e
77 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
e. estimular a cooperação entre suas autoridades governamentais
e seu setor privado na elaboração do método de utilização
sustentável de recursos biológicos.
Art. XV
1. Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre
seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso
a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está
sujeita à legislação nacional.
2. Cada parte Contratante deve procurar criar condições para
permitir o acesso a recursos genéticos para utilização
ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não
impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.
3. Para os propósitos desta convenção, os recursos genéticos
providos por uma parte contratante, a que se referem este
artigo e os artigos 16 e 19, são apenas aqueles providos por
Partes Contratantes que sejam países de origem desses
recursos ou por Partes que os tenham adquirido em
conformidade com esta Convenção.
4. O acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo e
sujeito ao disposto no presente artigo.
5. O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao
consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante
provedora desses recursos, a menos que de outra forma
determinado por essa Parte.
6. Cada Parte Contratante deve procurar conceber e realizar
pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos providos
por outras Partes Contratantes com sua plena participação e,
na medida do possível, no território dessas Partes Contratantes.
7. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas,
administrativas ou políticas, conforme o caso e em
conformidade com os Arts. 16 e 19 e, quando necessário,
mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos arts. 20 e
21, para compartilhar de forma justa e eqüitativa os resultados
da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os
benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra
natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos.
Essa partilha deve dar-se de comum acordo.
78 Cristiane Derani
5. DIREITO DE ACESSO: TITULAR E DIREITOS GERADOS
Se não é o titular do domínio do bem o detentor
necessariamente do domínio da informação, a primeira questão que
se coloca, querendo definir-se um sujeito titular do direito do acesso,
é a relativa a quem pode permitir o acesso?
Havendo interesse de mercado sobre o conhecimento, não será
o detentor do bem, necessariamente, o titular da transação e nem o
definidor do valor de mercado. A Medida Provisória n º 2.186-16/01
prevê que a autorização para investigação sobre as informações do
patrimônio genético provém da União, precisamente do Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético. No caso de utilização deste
patrimônio para fins comerciais, o contrato e o valor serão em última
análise supervisionados pelo CGPG com a subscrição de
representantes da coletividade detentora do conhecimento e contarão
com a sua anuência, mais uma mostra da independência do regime
jurídico do direito de acesso à informação sobre um bem perante o
direito de propriedade sobre o mesmo objeto.
Neste sentido também se coloca o texto do art. 2o. da MP 2.186-
16/01, que define a necessidade de autorização da União para acesso
ao patrimônio genético existente no país:
O acesso ao patrimônio genético existente no País somente será
feito mediante autorização da União e terá o seu uso, comercialização
e aproveitamento para quaisquer fins submetidos à fiscalização,
restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições
estabelecidas nesta medida provisória e no seu regulamento.
A segunda questão que deve ser respondida é sobre quais os
direitos que o acesso pode gerar?
Em primeiro lugar há de se distinguir direito de acesso e direito
de propriedade intelectual. O direito de propriedade intelectual pode
ser atribuído àquele que tem o direito de acesso, porém nem todo
direito de acesso gera direito de propriedade intelectual. A Medida
Provisória, aliás, antes de disciplinar as autorizações como
formalização ao acesso, reconhece um direito de acesso preexistente,
que é o direito das comunidades indígenas e comunidades locais no
uso e exploração do conhecimento que detêm sobre o patrimônio
genético. Embora este acesso seja reconhecido pelo direito, a ele não
se outorga um direito de propriedade. O direito de acesso destes
sujeitos é protegido por outras formas prescritas no capítulo III da MP
79 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
sob o nome da “Da Proteção ao Conhecimento Tradicional Associado”,
arts. 8o e 9o, onde a norma reconhece um fato anterior a ela e o
institucionaliza, incorporando-o ao direito. Como conseqüência, um
conjunto de direitos, garantias e limitações passa a se impor sobre
esta relação dada tradicionalmente.
Por ser uma modalidade de apropriação, a tutela jurídica do
acesso assemelha-se aos elementos constitutivos do direito de
propriedade. A norma define titular, direitos decorrentes do acesso,
garantias contra terceiros e valores sociais que devem estar
contemplados nesta relação de acesso, agora como prática
juridicamente conforme.
Os titulares iniciais do direito de acesso são reconhecidos pelo
Estado como as comunidades indígenas e comunidades locais,
atribuindo-se a elas o poder “para decidir sobre o uso de seus
conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do
País, nos termos desta Medida provisória e de seu regulamento” (art.
8o, §1o).
A estes titulares iniciais são também garantidos direitos
específicos expressos no art. 9o:
Art. 9º. À comunidade indígena e à comunidade local que
criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:
I ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em
todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações;
II impedir terceiros não autorizados de:
a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados
ao conhecimento tradicional associado;
b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que
integram ou constituem conhecimento tradicional associado;
III perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros,
direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado,
cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta
Medida Provisória.
Parágrafo único: Para efeito desta Medida Provisória, qualquer
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético
poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas
um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse
conhecimento.
80 Cristiane Derani
Na verdade, aquilo que está expresso no inciso II como direito é
garantia contra terceiros, que também se desenrola no caput do art.
8o, que, de maneira estruturalmente incorreta, segundo nosso ponto
de vista, inicia o tratamento jurídico desta modalidade de acesso pela
garantia contra terceiros, antes de qualquer outra delimitação. Diz o
texto:
Fica protegido por esta Medida Provisória o conhecimento
tradicional das comunidades indígenas e das comunidades locais,
associado ao patrimônio genético contra a utilização e exploração
ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo Conselho de
Gestão de que trata o art. 10, ou por instituição credenciada.
Os poderes e direitos acima expostos são decorrentes de uma
situação jurídica que se reconhece e legitima, qual seja, a de ser
possível sujeitos deterem, originariamente, de forma comunal,
direitos de apropriação sobre informações contidas num bem. A
apropriação das informações genéticas e das suas propriedades por
coletividades, uma vez reconhecidas pelo direito, ganham a forma
jurídica de direito de acesso, cujo sujeito detentor não pode ser
individualizado.
Esta é uma espécie de direito de acesso reconhecida pelo
direito, o qual prescreve também a conversão deste direito de acesso
comum em direito de acesso privatizado, pela sua transmissão.
Por ser uma terceira dimensão de apropriação de um bem, o
exercício do direito e acesso não pode prejudicar os direitos relativos
às demais dimensões. Por exemplo, o conhecimento sobre o uso
medicinal de uma erva não autoriza a invasão de propriedade alheia
para colhê-la. O valor social dos bens hão de ser também respeitados,
pela imposição da observância do princípio da função social da
propriedade no exercício do direito de acesso. Assim se pronunciam
os parágrafos 2o. e 3o. do art. 8o:
“§ 2o. O conhecimento tradicional associado ao patrimônio
genético de que trata esta Medida Provisória integra o patrimônio
cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser
o Conselho de Gestão ou legislação específica”.
§ 3o. A proteção outorgada por esta Medida Provisória não
poderá ser interpretada de modo a obstar a preservação, a utilização
e o desenvolvimento de conhecimento tradicional de comunidade
indígena ou comunidade local.”
81 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
O parágrafo segundo distingue o valor de uso daquele que
detém o conhecimento e o valor social do conhecimento propriamente
dito. A MP tutela o uso e a disposição sobre o conhecimento por seu
titular, e assegura ao mesmo tempo a proteção deste conhecimento
como um aspecto do patrimônio cultural brasileiro, assegurando seu
cadastramento segundo reza o decreto n º 3.551 de 4 de agosto de
2000, que dispõe sobre a proteção da propriedade imaterial que
constitui patrimônio cultural brasileiro.
O parágrafo terceiro limita a interpretação do direito de acesso
ao valor ambiental e propriamente ao exercício da propriedade da
coletividade detentora do bem, explicitando as três tutelas da
apropriação: direito de acesso, princípio da função social da
propriedade, direito de propriedade.
Além de determinação dos titulares, de assegurar direitos a
eles, garantias contra terceiros e poder de ação, além de delimitar o
campo de ação do direito de acesso perante os demais direitos
relativos à apropriação como o direito de propriedade e o princípio da
função social da propriedade, há ainda, de maneira tímida a distinção
destes perante o direito de propriedade intelectual.
Um pouco perdido, sem conteúdo, encontramos a prescrição do
§ 4o. do art. 8o:
A proteção ora instituída não afetará, prejudicará ou limitará
direitos relativos à propriedade intelectual.
Ora, a proteção apresentada, justamente se caracteriza por ser
um reconhecimento a uma situação dada, prévia à regulamentação
jurídica. É certo que direitos de acesso podem gerar direito de
propriedade intelectual, porém, seu momento é posterior ao da
produção cultural tradicional. Portanto, o que se sublinha é o
equivocado enquadramento desta prescrição, que turva sua
compreensão e pertinência, ao inverter causa e conseqüência. A
proteção ao conhecimento tradicional é pressuposto para uma
possível atribuição de direito de propriedade intelectual, como
conseqüência de transação do direito de acesso comunal para um
sujeito individualizado.
O direito de propriedade intelectual é previsto no caso de uso
econômico do conhecimento acessado. Só se justifica o DPI para uso
de mercado, isto é, para gerar valor de troca. O conhecimento como
valor de uso prescinde da atribuição de direito de propriedade, basta
82 Cristiane Derani
ao direito resguarda-lo e assegurar o seu uso definindo, seus titulares
e correlatos poderes.
6. DIREITOS DE PROPRIEDADE E O INGRESSO DO
CONHECIMENTO TRADICIONAL NO MERCADO
O direitos de propriedade são indispensáveis para que se
desenvolvam as relações de mercado. O bem que possui valor de
mercado encontra-se sob o domínio de um sujeito. O mercado
pressupõe a propriedade privada, sujeitos proprietários aptos a
realizarem contratos. No mercado, sujeitos, pessoas generalizadas
pelo seu papel comum de atores do intercâmbio, desprezados em
suas características ontológicas, históricas ou culturais, trocam
direitos de propriedade.
Lógica individualista e privatista entra em choque quando
objetos não são e nem podem ser de apropriação exclusiva e quando
sujeitos não se comportam perante objetos como seus senhores e
prontos a aliena-los.
O mercado tem uma lógica, que não traduz o caminho das
demais relações na sociedade. Nas relações de mercado, os sujeitos
envolvidos são necessariamente proprietários. Sem direitos de
propriedade não se participa destas relações produtivas. A lógica do
mercado é expansiva e exige constante inovação, provocando em seus
agentes uma crescente e inerentemente insatisfeita necessidade de
crescimento e aprimoramento, indispensáveis para manter o livre
jogo das forças produtivas. Conseqüência desta lógica é o domínio do
tempo e espaço histórico e social que devem se submeter às
ansiedades de expansão e de satisfação insaciável.
Na transformação do direito de acesso reconhecido às
comunidades locais e comunidades indígenas em direito privado de
propriedade, ocorre a inserção do processo de apropriação do
conhecimento no mercado. O direito de acesso não tem
necessariamente um valor de mercado, até o momento em que ele
passa a se submeter à lógica do mercado, no que tange o tempo, o
espaço e as intenções dos sujeitos titulares desse direito.
O mercado expande-se para além das fronteiras nacionais e
para além dos seus ambientes e sujeitos. Por onde passa, o mercado
transforma o valor das coisas, precificando-as, isto é, reduzindo-as a
um equivalente comum. Com esta dinâmica, o mercado arrasa com
as diferenças culturais e despreza qualquer medida social e histórica
83 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
de tempo e espaço, na medida que transforma em relação de
intercâmbio mediada por equivalente monetário os gostos, desejos,
cultura, informações, dentro de um espectro mundial. O mercado não
segue qualquer critério moral ou estético senão o criado pelo seu
próprio movimento – moral é negociar, belo é o traduzido pela
mercadoria e por sua publicidade.
Nesta atividade expansionista, ocorre o confronto entre
movimento de criação cultural nas sociedades tradicionais e o
movimento de incorporação e mercantilização das culturas que se
desenvolvem com outro tempo. Deste confronto, a submissão da
cultura à lógica do mercado é a colonização da cultura pelo mercado.
A colonização como processo de adaptação de culturas e
recursos a uma determinada dinâmica produtiva e a um específico
regulamento sobre ela é historicamente presente no desenvolvimento
das relações de mercado, decorrente do movimento expansionista da
produção. Tempo e espaço são submetidos a uma lógica produtiva.
O direito desempenha um papel fundamental no
desenvolvimento desta colonização da cultura pelo mercado, na
medida que consagra sob a forma de um conjunto formalmente
coerente de regras oficiais e, por definição, sociais, universais, os
princípios práticos do estilo de vida simbolicamente dominante10.
Segundo Bourdieu, o efeito de normalização vem redobrar o efeito de
autoridade social que já exercem a cultura legítima e seus detentores
para dar toda sua eficácia prática à coação jurídica11.
A contratação como forma de integração de uma cultura a
outra, disciplinada pelo direito de acesso privado ao conhecimento
tradicional é uma expressão colonialista porque não estabelece um
equilíbrio, gera dominação, ao reduzir idealmente e formalmente as
diferenças efetivas no momento do contrato, transformando
diferenças materiais que se tornam hipoteticamente equivalentes.
No processo de assimilação do direito de acesso comunitário ao
direito privado de propriedade intelectual, com valor de mercado, sem
a construção de uma base estrutural sólida que permita a
reconstrução da cultura, reproduz-se a ciranda do subdesenvolvimento.
O direito de acesso quando incorporado ao processo de
desenvolvimento valoriza a cultura e as relações humanas locais,
enquanto gera riqueza de mercado. A transferência do direito de
acesso reconhecido pelo direito para terceiros, transporta esta forma
10 Cf. BOURDIEU, Pierre. Poder, Derecho y Clases Sociales. Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S. A, 2000, p. 213.
11 IDEM
84 Cristiane Derani
de apropriação em mercadoria, que se não devidamente inserida no
mercado perpetua e aprofunda as diferenças entre os povos.
Segundo J.M. Cardoso de Mello, “três elementos caracterizam a
periferia subdesenvolvida: a natureza dinamicamente dependente do
sistema produtivo; a fragilidade monetária e financeira externa; a
subordinação político-militar. Estes são os traços determinantes da
condição periférica e não, propriamente, a produção de alimentos e
matérias-primas”12.
Como já explicado, o acesso à informação é uma forma de
apropriação que passa a ser protegido pela MP 2186-16/01, que
inicialmente reconhece uma relação de apropriação preexistente, o
direito de acesso por comunidades tradicionais, para depois regular
as formas de sua transferência para terceiros. A transferência
onerosa, do direito de acesso, entra na dinâmica da liberalização do
mercado e na busca incessante de se incorporar novas mercadorias
às práticas de intercâmbio globalizada, a exemplo do que ocorreu com
os serviços públicos.
As formas de liberalização e desregulamentação trabalhadas na
rodada do Uruguai apresentaram uma nova maneira de construir
valores (especialmente na forma de direitos de propriedade
intelectual), transformando-os em mercadorias negociáveis. Onde
chega a apropriação privada, deve desaparecer o acesso livre,
incorporados em negociações das poderosas corporações transnacionais
voltadas à biotecnologia13.
Os teóricos do mercado neoliberal modelam suas teorias para
um mundo sem tempo nem espaço, isto é, sem história, sem cultura;
onde o dinheiro acima de tudo neutro, não oferece qualquer restrição.
Na realidade, entretanto, o mercado mundial oferece grande
resistência a esta expansão monetária, quais sejam sociais,
ecológicas e mesmo econômicas.
Os anos 90 aprofundaram as diferenças sociais nos países e ao
mesmo tempo o fosso entre os países ricos e pobres e entre as regiões
mais abastadas e menos prósperas. Ao invés de levar adiante mais
proteção ambiental pública e responsabilidade social, a globalização
conduziu à concepção de um ambiente que somente é visto como um
‘busisness opportunity’.
12 MELLO, João Manuel Cardoso de. “A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição
crítica latino-americana”; in Tavares, Maria da conceição e Fiori, José Luís (org.). Poder e dinheiro - Uma
economia política da globalização. Rio de Janeiro, Vozes, 1997, P. 18.
13 ALTVATER, Elmar; Mahnkopf, Birgit Grenzen der Globalisierung, Münster,
Verlag Westfalisches Dampfboot, 1997
85 Tutela Jurídica da Apropriação do Meio
Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade
A tomada do tema ambiental pela agenda do Mercado, onde
nada além do crescimento acumulativo é notado aprofundou ainda
mais a separação nefasta entre questões ambientais e sociais14.
O capital intelectual é a força propulsora da nova era, e muito
cobiçada. Conceitos, idéias e imagens – e não coisas – são verdadeiros
itens de valor na nova economia. A riqueza já não é mais investida no
capital físico, mas na imaginação e na criatividade humana. Deve-se
ressaltar que o capital intelectual raramente é trocado. Em vez disso,
é detido pelos fornecedores, alugado ou licenciado para terceiros,
para uso limitado15. Rifikin fala em “Commodities culturais”16, para
expressar o valor de mercado das expressões oriundas do
desenvolvimento cultural.
Na década de 80 e 90, a desregulamentação das funções e dos
serviços do governo foi a moda na política. Em menos de vinte anos,
o mercado global absorveu, com sucesso, grande parte do que antes
era a esfera pública – incluindo o transporte coletivo, serviços de
utilidade pública e telecomunicações – no âmbito comercial. Agora, a
economia voltou sua atenção para a última esfera independente
remanescente da atividade humana: a cultura. Ritos culturais,
eventos comunitários, reuniões sociais, as artes, esportes e jogos,
movimentos sociais e engajamentos cívicos estão ocupando a esfera
comercial. A grande questão nos próximos anos é se a civilização
poderá sobreviver com um governo e uma esfera cultural
extremamente reduzidos e onde apenas a esfera comercial é deixada
como o mediador básico da vida humana17.
Apesar da colonização operada pelo mercado sobre o espaço
público, há um limite de expansão do mercado que necessita de
relações fora-do-mercado, para sobreviver. Jeremy Rifikin anota com
perspicácia:
É importante frisar que a esfera comercial sempre derivou da
esfera cultural e dependeu dela. É por isso que a cultura é a fonte
eterna da qual normas de comportamento de aceitação geral são
estabelecidas. São essas regras de conduta, por sua vez, que criam um
ambiente confiável dentro do qual o comércio e as negociações
ocorrem. Quando a esfera comercial começa a devorar a esfera
14 ACSELRAD, Henri. “Die ökologische Herausforderung zwischen Markt, Sicherheit und Gerechtigkeit”; in Görg, Christoph
(org.). Mythen Globalen Umweltmanagements. Münster, Verlag Westfälisches Dampfboot, 2002, p. 56.
15 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso. São Paulo, Makron Books, 2001, p.4.
16 idem, p.6.
17 RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso. São Paulo, Makron Books, 2001, p. 8, 9.


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