terça-feira, 17 de maio de 2011

10657 - ESTUDO PSIQIÁTRICO; ENTRE A LOUCURA E A RAZÃO: UM TÊNUE FIO DE SEPARAÇÃO

ENTRE A LOUCURA E A RAZÃO: HISTÓRIAS
AUSENTES RESGATADAS POR NÁDIA WEBER
Talitta Tatiane Martins Freitas*
Universidade Federal de Uberlândia – UFU
talittatmf@gmail.com
Em geral, gostamos de chamar de insanidade
aquilo que não entendemos.
Jung
Geralmente associamos loucura a tudo aquilo que nos é novo ou simplesmente
diferente. Fazemos isto, sem ao menos conhecer e/ou questionar, porque é mais fácil
conferir um rótulo do que evidenciar a existência de outros pontos de vista. Assim,
muitas vezes, identificamos como “estranhas” pessoas ou idéias que não correspondem
a padrões pré-estabelecidos. Em outros termos, todos aqueles que ultrapassam a
fronteira são classificados como “insanos”. Porém, qual é a fronteira?
Nádia Maria Weber, com a intenção de demonstrar o quanto este limite é
tênue, recordou algumas situações. Uma delas remonta a reminiscências familiares e a
seu avô materno, adepto de idéias não convencionais como, por exemplo, o
“naturalismo”. Apesar de ter sido uma pessoa produtiva e constituído família, pela
defesa intransigente de seus princípios, que motivaram, inclusive, algumas atitudes
violentas, foi considerado “louco”, mesmo sem sofrer algum tipo de internação. Por
outro lado, meninas no despertar da sexualidade foram afastadas do convívio social e
internadas em hospitais psiquiátricos.
* Graduanda do curso de História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista de Iniciação
Cientifica – FAPEMIG –, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Rosangela Patriota Ramos. Integrante do Núcleo
de Estudos da História Social da Arte e da Cultura (NEHAC).
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Diante da complexidade do tema e respaldada em sua sólida formação
profissional, como historiadora e psiquiatra, Nádia mergulhou no mundo simbólico e no
imaginário de “alienados mentais” em seu livro História de Vidas Ausentes: a tênue
fronteira entre a saúde e a doença mental (Passo Fundo: UPF, 2005), por intermédio de
internações no Hospício São Pedro, hospital psiquiátrico da cidade de Porto Alegre –
RS, no período de 1937 a 1950.
Considerando não somente o ponto de vista do saber médico institucionalizado,
Nádia entra em contato com outras variáveis: as motivações dos familiares para
enviarem seus parentes à instituição e o entendimento deles sobre o que vem a ser
loucura, além da visão dos pacientes acerca da própria “doença”. Para tanto, os
prontuários médicos tornaram-se a principal fonte de pesquisa, pois neles eram anotados
os motivos das internações, os diagnósticos e os “eventos comemorativos” do paciente
(fatos ocorridos com o paciente e que podem explicar o estado atual da psicose).
Instrumentalizada pela conceituação de “doença” empregada pelo psiquiatra
suíço Carl Gustav Jung, a autora parte “do pressuposto de que o ser humano é
constitucionalmente saudável inclusive do ponto de vista psicológico”.1 Neste sentido, a
“psique é um órgão” que, como todos os outros, pode ficar doente e, como os demais,
tem a possibilidade de cura, pois possui uma grande capacidade de regeneração e autoregulação,
na medida em que a “psicose” é desencadeada com a finalidade de
restabelecer o equilíbrio quebrado por alguma situação extrema, ou por um momento de
crise.
De posse das reflexões de Jung, Nádia introduz o leitor em seu universo de
pesquisa. É dado a ele conhecer o recorte espaço/temporal, o corpus documental
selecionado e fundamentalmente como eles serão interpretados pelas noções de
representação, símbolo e imaginário sob uma perspectiva da História Cultural. Neste
momento, emerge o grande diferencial deste livro: o profícuo diálogo interdisciplinar
entre Psiquiatria e História. A partir dele, buscou-se compreender como, ao longo do
tempo, os homens foram capazes de perceber a si próprios e ao mundo, bem como por
meio de quais símbolos (imagens e discursos) representam o real. Nas palavras da
autora:
1 SANTOS, Nádia Maria Weber. Pretexto para escrever esse livro. In: ______. História de Vidas
Ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 25.
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Através do simbólico percebem-se indícios e enigmas a serem
revelados, surgindo (ou podendo surgir) diversas (re)-interpretações
do real. É a possibilidade que o símbolo traz em seu cerne de contar a
história partindo não de um pressuposto de segurança sobre o que
aconteceu, mas a história podendo ser uma versão do que se passou,
uma re-apresentação do real.2
Para isso, é de suma importância percorrer a via da inconsciência, isto é, a
fantasia do próprio doente. Para além das técnicas chamadas “biológicas” de tratamento
psiquiátrico, há de se considerar (e muito) o conteúdo psicológico, fruto do imaginário
do paciente, que constitui um dos motivos desencadeadores da doença, e que, muitas
vezes, não era levado em consideração no momento do tratamento.
Neste procedimento, a própria postura médica deve ser observada dentro de
uma lógica maior, isto é, em um efetivo diálogo com a sociedade na qual está inserida.
Por isso, Nádia percebeu a necessidade de historicizar o local/período desses
interlocutores, não simplesmente como uma questão metodológica posta para a
elaboração de um trabalho científico, mas como ponto fundamental para a compreensão
desses sujeitos históricos ambientados em Porto Alegre entre os anos de 1937 a 1950.
Ao fazer esse movimento, observa-se um espaço urbano marcado por uma
organização política e cultural que, em nome de uma assepsia da urbe, encarcera os
“elementos” considerados marginais e alienados, isto é, não somente os “loucos”, mas
todos os “improdutivos subalternos” (bêbados, prostitutas, negros, etc.). As
explicitações desta política urbana fornecem importantes subsídios para compreender as
condições históricas em que se dão as internações, sobretudo como forma de se
apreender os elementos internos (simbólicos) daquelas pessoas, porque a doença do
“louco” é também fruto de um imaginário dado pela época. Este concretiza-se na
doença mental crônica que acomete o paciente quando submetido a técnicas terapêuticas
“alienantes”, destrutivas e a uma definitiva exclusão de seu próprio espaço psicológico.
Ao realizar esse “retorno” histórico, Nádia Weber viu-se defronte a uma lógica
científica pautada sobremaneira nos preceitos da eugenia e do positivismo. Apoiando-se
em pesquisas anteriormente realizadas,3 constatou que o “poder” da medicina já estava
sendo construído ao longo dos século XIX. Entretanto, a partir da década de 1920 e
intensificando-se com a ascensão de Getulio Vargas à presidência da República, a
2 SANTOS, Nádia Maria Weber. Pretexto para escrever esse livro. In: ______. História de Vidas
Ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 30.
3 WEBER, Beatriz. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na República Riograndense
– 1889/1928. Tese (Doutorado em História) – Unicamp, Campinas, 1997.
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concepção eugenista inseriu-se nos discursos dos governantes. Em termos gerais, havia
a perspectiva de utilizar esses preceitos na prática higiênica, moralizadora e disciplinar
da população.
Na psiquiatria brasileira, a eugenia esteve presente nas bases da formação da
Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), fundada no Rio de Janeiro, em 1923, pelo
psiquiatra Gustavo Riedel. Uma das principais preocupações dessa Liga era demonstrar
que “a doença mental era um predicado dos indivíduos não brancos (negros, árabes,
japoneses, chineses, etc.) ou dos brancos menos respeitados pelos psiquiatras, como os
portugueses”.4
[...] a crença que esses psiquiatras tinham na “verdade eugênica” não
era um produto de suas convicções subjetivas. Era mais que isso. A
eugenia baseava-se em fundamentos racionais, que a psiquiatria
organicista endossava. Tornava-se óbvio que, se a doença mental era
transmitida por herança genética, a única prevenção possível
(logicamente possível) era o extermínio físico ou a esterilização
sexual dos indivíduos doentes.5
Neste processo, a trajetória do Hospício São Pedro foi, sem sombra de dúvida,
marcada por essa construção da “autoridade médica”, principalmente a partir das duas
gestões do doutor Jacintho Godoy – a primeira de 1926-1932, e a segunda de 1937-
1950. Com as intervenções no urbano, durante o Estado Novo, centenas de pessoas
foram enviadas para o HPSP com o propósito de “limpar” a cidade e,
consequentemente, dar legitimidade ao discurso da cidade de Porto Alegre em constante
progresso. Criou-se o imaginário em torno de tudo o que diz respeito a essa civilidade,
como forma de se redefinir a identidade coletiva, pautada em novos parâmetros.
Essas reformas, entretanto, foram realizadas sem um prévio estudo sóciocultural
e provocou um crescimento descontrolado com a conseqüente proliferação de
vilas marginais em torno da urbe, pois o poder hipnótico da cidade promoveu diversas
correntes migratórias do campo para cidade, ocasionando um déficit de empregos e um
empobrecimento dos que ali chegavam. Segundo a autora, juntos estes diversos fatores
predispuseram, num certo sentido, ao desequilíbrio psíquico de uma parte dessa
população.
4 COSTA, apud, SANTOS, Nádia Maria Weber. O “espaço crítico” do alienado: fora e dentro de simesmo.
In: ______. História de Vidas Ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental.
Passo Fundo: UPF, 2005, p. 79.
5 SANTOS, op. cit., p. 80.
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Nesse período, de acordo com a documentação disponível, o número de
pacientes aumentou consideravelmente, seja por motivos psíquicos, seja por uma
alternativa de se retirar das ruas aqueles que maculam a imagem do progresso. Porém,
independente desses fatores, as técnicas utilizadas nos tratamentos retiraram a carga
subjetiva desses pacientes, isto é, desconsideraram-se os motivos de tais desequilíbrios
psicológicos, em nome de uma ciência dita universal, decorrente da importação de
técnicas estrangeiras (principalmente a psiquiatria organicista), que leva em
consideração somente os distúrbios orgânicos (físicos) apresentados pelos pacientes.
Não houve uma individualização nos tratamentos, o que, em última instância, significou
não considerar a história dos “alienados mentais”, o que seria de grande proveito, uma
vez que por meio desse histórico poder-se-ia recolher indícios do porquê desse estado
psicológico.
Estas práticas aliadas ao discurso de modernização, tanto da estrutura física
quanto das técnicas aí utilizadas, possibilitaram ao diretor do hospital, Jacintho Godoy,
desconsiderar o lado humano do tratamento e privilegiar e, até mesmo, exaltar técnicas
como malarioterapia, convulsoterapia, eletrochoque, penicilinoterapia, dentre outras.
Todavia, esses tratamentos não seguiam sequer uma lógica, pois pacientes com
sintomas diferentes eram submetidos a tratamentos iguais, provocando, em diversos
casos, até mesmo a morte. “A distribuição [dos comprimidos] seguia o critério de: se o
paciente estava agitado, davam-se dois comprimidos, se estava calmo, somente um.”6
O contato com diversos casos de internos evidenciou o negligenciamento
quanto ao imaginário dos pacientes no diagnóstico da “doença” e em seu tratamento.
Neles, observou-se um pré-julgamento que relegou o discurso do paciente ao nível do
“simples devaneio”, desconsiderando-o como realidade concreta ou simbólica. Neste
sentido, todas as análises realizadas pela autora, serviram para demonstrar como o
quadro de delírio dos pacientes estava, na verdade, ancorado numa experiência histórica
real, que é desconsiderada em todas as etapas do procedimento médico.
Evidentemente todas estas variantes de análise não estão contidas nos
prontuários consultados.7 Nestes termos, reafirmando a premissa de que a história se faz
6 SANTOS, Nádia Maria Weber. O “espaço crítico” do alienado: fora e dentro de si-mesmo. In: ______.
História de Vidas Ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: UPF,
2005, p. 110.
7 A maioria dos prontuários encontrados somente contém compilações sintéticas, como: idade, sexo,
profissão, a primeira avaliação do médico, quantidade de medicamento, sintomas, técnicas utilizadas,
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com documentos, a autora, de posse de um ficha médica singular, realizou um estudo de
caso que permitiu um refinamento de sua análise.
O resultado deste feliz encontro entre documento e pesquisadora está quando
Nádia Weber apresenta TR, um homem casado e “pai de família” com 34 anos,
internado no HPSP por quatro meses (a pedido de seu pai), devido suas “idéias de
grandeza, absurdas e extravagantes, insônia”. Gostava de escrever e ler sobre filosofia,
política e religião, apesar da desaprovação da família quanto a esses hábitos (“isto era
loucura”). Havia contraído sífilis e gonorréia aos 24 anos, tendo feito tratamento
adequado com “injeções”. Não se denominava católico, estabelecendo com a Igreja um
sentimento de amor e ódio: “Apaixonado por vós, vos odeio, porque pregais na igreja o
cúmulo da imperfeição-perfeita”.8
De posse deste material, a autora voltou seus esforços com a intenção de
apreender o imaginário do paciente, isto é, a forma como ele exterioriza seus conflitos
psicológicos por meio da escrita. Neste processo, desvela um dos mais íntimos segredos
do paciente, confessado a Hitler: ter sido molestado sexualmente por um padre, e,
talvez, ter se apaixonado por ele.
Fica explícita, nesse momento, a relação que ele e o padre mantiveram
e sua dualidade de amor e ódio. O jogo de poder e submissão, típico
do nazismo, instalou-se dentro dele. Por essa confissão e as que se
seguem na carta, fica parecendo que ele, de alguma forma, gostara do
padre. Talvez seja esse o verdadeiro (o fato histórico) motivo de sua
doença, de sua “cisão psíquica.9
Todavia, esses e outros tantos aspectos foram desconsiderados durante o
tratamento. Ao invés de se buscar uma lógica para o atual estado psíquico de TR,
privilégio-se a homogeneização das técnicas, enfatizando a sífilis como fator a ser
combatido, possivelmente, por meio da malarioterapia. Esses dois saberes, no entanto,
não deveriam se tornar partes opostas e excludentes: de um lado o conhecimento e, de
outro, a compreensão. Ao contrário, deveriam ser considerados aspectos
complementares por meio de uma “via dupla de pensamento: fazer uma coisa sem
perder a outra de vista”.10
“ficha comemorativa”. Todavia, além de serem feitas de forma reduzida, um grande número se
encontra com parte dos dados incompletos.
8 Carta 3, endereçada ao arcebispo metropolitano dom João Bechker, disponível em: SANTOS, Nádia
Maria Weber. A tênue fronteira entre saúde e doença mental. In: ______. História de Vidas Ausentes:
a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 139.
9 Ibid., p. 162.
10 JUNG, C. G. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1988, p.5 apud SANTOS, op. cit., p. 166.
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Diante de todas estas singularidades, História de Vidas Ausentes mostra-se um
trabalho revelador sobre a interlocução dos sujeitos históricos e a sociedade em que
viveram. Mais ainda, por meio da História Cultural, Nádia Weber encontrou um terreno
fértil para compreender o imaginário de uma época sobre a loucura, ao mesmo tempo
em que resgatou as histórias de pessoas esquecidas nos hospitais psiquiátricos, e
demonstrou, de maneira sensível e inspiradora, que por trás de uma “realidade social
empírica há também uma face da realidade que não é racional e que nela não podemos
chegar a não ser pela via simbólica”.11
11 SANTOS, Nádia Maria Weber. A tênue fronteira entre saúde e doença mental. In: ______. História de
Vidas Ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 174.UM

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