quarta-feira, 2 de março de 2011

9501 - VIAJANTES ESTRANGEIROS NO BRASIL

OS RELATOS DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS NO BRASIL
OITOCENTISTA: POSSIBILIDADES HISTORIOGRÁFICAS
MOREIRA, Bruno Alessandro Gusmão1
Introdução
A vinda da família real em 1808 e a subseqüente abertura dos portos no mesmo
ano proporcionaram mudanças significativas para a história das explorações científicas
estrangeiras no Brasil. O Brasil anterior a este episódio estava significativamente
limitado pelas políticas comerciais do império português. Portugal visava até então
resguardar seu território da ambição das nações européias emergentes e manter o
monopólio em suas colônias. O acesso de estrangeiros ao país era dificultado por ir
contra os interesses colonialistas do império português.
Em função da postura do estado português frente às suas colônias o Brasil
permaneceu por muito tempo pouco conhecido às outras nações européias. Os estudos
científicos mais significativos sobre o país se deram até então em finais do setecentos2.
Contudo, estes se deram sob supervisão e custeio da coroa portuguesa. Empreendeu-se
deste modo a formação de uma rede informações sobre as possíveis potencialidades de
uso prático e, ou, econômico da colônia luso-americana. Tais estudos eram realizados
por cientistas formados em Portugal e pelos viventes das colônias: funcionários
administrativos da coroa, colonos portugueses, índios, etc. Em suma, o país permanecia
pouco acessível à exploração científica estrangeira.
Esta era até então a situação da colônia luso-americana em relação à entrada de
estrangeiros. Porém, questões de maior amplitude viriam afetar a pouca acessibilidade
estrangeira à colônia. A instabilidade política na Europa, devido às guerras napoleônicas
em andamento no início do XIX, implicou conseqüências substanciais no Brasil. Para
efetivar o bloqueio continental à Inglaterra, que tinha Portugal como aliado e porta de
entrada de seus produtos para a Europa, a França invade a península ibérica. A família
1 Graduando em História pela Universidade Estadual de santa Cruz (UESC)
2 Ver artigo de Ângela Domingues, “Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a
constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos”, In: História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 823-38, 2001.
real portuguesa foge para a colônia luso-americana com o apoio da aliada Inglaterra.
Dom João VI, rei de Portugal, leva consigo um grande contingente administrativo e
instaura na colônia a nova sede do governo. Novas medidas serão então tomadas em
relação à colônia para atender às necessidades da nova sede do aparato administrativo
lusitano.
Entre as medidas que dariam uma nova feição à colônia se enquadra a abertura
dos portos às “nações amigas”, em grande parte condicionada pelos interesses
comerciais da nação inglesa que se encontrava em dificuldades com o comércio europeu
devido ao bloqueio francês, e a contratação de estrangeiros para prestação de serviços à
coroa. O fato é que após os eventos de 1808 um grande fluxo de estrangeiros passou a
freqüentar os portos brasileiros, em especial o do Rio de Janeiro que serviu como porta
de entrada de grande parte dos viajantes estrangeiros. Em suma, a abertura dos portos e
a presença da família real portuguesa vieram a propiciar uma maior aproximação entre o
Brasil e o resto da Europa.
É constante a atenção especial com a qual a abertura dos portos é tratada pela
historiografia dos viajantes estrangeiros. De certo modo, o episódio de 28 de janeiro de
1808 toma conotação de “marco histórico” para o assunto que ora nos cabe.
Viagens e interesses
O desejo de conhecer o país “exótico” não perpassava apenas os meios
acadêmicos europeus, e muitos estrangeiros, cientistas ou não, escreveram suas
impressões acerca do Brasil. Os interesses que condicionavam a escrita dos viajantes
eram os mais diversos possíveis, variavam de questões pessoais a institucionais. No
plano pessoal destacamos, entre outros, os estudos para formação acadêmica, o turismo,
e questões profissionais e econômicas. No plano institucional destacamos que o vínculo
entre “as viagens e os órgãos públicos dos países envolvidos foi, antes de tudo, uma
contingência inevitável”, haja vista a diplomacia que envolvia as viagens. (LEITE,
1996, p.61)
O certo é que os viajantes perpassaram boa parte do território brasileiro e
produziram relatos de especial valia para os historiadores do Brasil do XIX. Escreveram
sobre suas vivências e observações em território brasileiro de acordo com suas
formações e interesses. Muitas das escritas de viagem foram editadas e tiveram boa
recepção no público editorial europeu (a possibilidade do mercado editorial também
pode ser identificada como um interesse presente na escrita de viagem). Deste modo se
condicionou a propagação de “visões do Brasil” em território europeu via publicação
das escritas de viagem. O esclarecimento dos interesses envoltos nas escritas de viagem
visa um uso mais consciente destas enquanto fonte histórica.
A escrita dos viajantes como fonte
A abordagem da escrita dos viajantes estrangeiros como foco de análise, e não
como fonte complementar, se faz válida pelo uso constante dessas fontes pelos
historiadores e, também, pelas múltiplas possibilidades historiográficas que estas
proporcionam.
Questão primeira e imprescindível para a abordagem dos relatos é tomar
consciência de que os homens que os produziram são sujeitos dotados de pré-conceitos
e referenciais culturais próprios, como qualquer sujeito sócio-cultural. Os viajantes
estrangeiros procediam de meios culturais diferentes dos existentes em território
brasileiro do século XIX. Suas percepções variavam, por exemplo, desde o pré-conceito
explícito a forte presença de “pessoas de cor”3 ao encanto com as belezas da natureza do
Brasil.
O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha numa parte estranha do mundo, é
sobretudo a turba variegada de negros e mulatos [...] A natureza inferior, bruta, desses homens
insistentes, meio nus, fere a sensibilidade do europeu, que acaba de deixar os costumes delicados
e as fórmulas obsequiosas das suas pátrias. (SPIX E MARTIUS, 1980, p.46)
Ora passarinhos de diversas cores, ora deslumbrantes borboletas, ora insetos de maravilhosas
formas, as pendentes casas de marimbondos e as dos cupins, ora plantas do mais lindo aspecto,
espalhadas pelo estreito vale e pela rampa suave do morro, seduziam a nossa vista. (SPIX E
MARTIUS, 1980, p.81)
Desse modo, é necessária a identificação dos possíveis fatores que
condicionaram as interpretações dos viajantes do, e no, Brasil oitocentista. Em suma, a
identificação do “olhar estrangeiro”.
3 Utilizo esse termo para assinalar as referencias que os viajantes fazem a negros e mulatos.
Levando em conta a premissa de que o “diferente” é o que desperta o interesse
de qualquer sujeito sócio-cultural e que os viajantes eram sujeitos de formação cultural
exterior ao meio brasileiro, é possível perceber a riqueza deste gênero documental. O
viajante se apresenta então enquanto explorador do exótico.
Os viajantes, enquanto sujeitos estranhos ao meio que interpretavam, se faziam
atentos a detalhes que aos viventes brasileiros eram menos passíveis de abordagem
direta, visto que muitos aspectos abordados na escrita de viagem eram comuns à vida
dos viventes do Brasil.
Deste modo, os relatos dos viajantes estrangeiros possuem a qualidade de, entre
outras coisas, abordar de maneira incisiva aspectos que passam de maneira involuntária,
ou até mesmo se fazem ausentes, em outros tipos de fontes. A seguir trataremos de
expor, brevemente, possíveis abordagens historiográficas na escrita de viagem.
Cultura Material e a questão do “desconforto”
Uma das possibilidades historiográficas que a abordagem dos relatos propicia é a
cultura material4. É necessário relembrar a procedência exterior dos viajantes. Estes
homens eram comuns a outros meios materiais e culturais, diferentes dos encontrados
em viagem. A observação de uma cultura material diferente a que lhe era comum lhe
possibilitou certa atenção a este aspecto. O desconforto frente aos ambientes
freqüentados é um interessante indício para um estudo de cunho material5.
Aqui pernoitamos uma vez, na miserável venda, que nos deu plena idéia dos incômodos, a que
teríamos de nos sujeitar, viajando para o interior. Como manjar, tivemos farinha de mandioca,
seca ao sol, carne de vaca; como pousada, um banco duro sem almofada nem coberta, pondo à
prova a paciência e aptidão de cada um (SPIX E MARTIUS, 1980, p.127).
Leite diz que os viajantes usavam o “referencial tecnológico como meio de
avaliação de mais ou menos”. A palavra “miserável” e a afirmativa que encerra a
citação acima demonstra uma insatisfação conseqüente do desconforto das condições
materiais de um estabelecimento no interior do Brasil. Esta seria talvez muito diferente
4 Entendo por cultura material o plano concreto de uma dada sociedade; objetos produzidos para atender
às suas necessidades e, ou, valores.
5 Ver artigo de Olivia Biasin Dias, “Viagens Oitocentistas: a hospedagem no interior do Brasil e na cidade
da Bahia”, In: Revista Eletrônica de Turismo Cultural, v. 1, p. 01-22, 2007.
das condições materiais encontradas em seus respectivos lugares de origem na Europa
ou nas primeiras estadias em terra brasileira na cidade do Rio de Janeiro.
De grande valia também é a riqueza dos silêncios de um discurso. Em uma
primeira leitura em “Viagem ao Brasil”, de Spix e Martius, percebe-se a atenção dado à
descrição dos utensílios de um ambiente freqüentado quando há o desconforto (no
trecho acima). Do contrário, nos primeiros momentos no Rio de Janeiro, em condições
materiais, talvez, mais dignas e comuns ao olhar estrangeiro, a atenção dada à descrição
minuciosa dos utensílios de acomodação se faz ausente frente a outros aspectos.
Quem chega convencido de encontrar uma parte do mundo, descoberta só desde três séculos,
com a natureza inteiramente rude, forte e não vencida, poder-se-ia julgar, ao menos aqui na
capital do Brasil, fora dela; tanto fez a influência da cultura da velha e educada Europa para
remover deste ponto da colônia os característicos da selvajaria americana, e dar-lhe o cunho da
mais alta civilização. Língua, costumes, arquitetura e afluxo dos produtos da indústria de todas
as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro feição européia. (SPIX e MARTIUS, 1980,
p.46)
Um estudo sobre as condições materiais no litoral e no interior do Brasil nos
relatos dos viajantes seria um trabalho interessante a meu ver, visto o referencial comum
ao viajante (os meios urbanos europeus) e o maior desenvolvimento e concentração
urbana no litoral brasileiro, porta de entrada dos viajantes, em relação ao interior.
O historiador consciente também deve estar atento aos riscos desse tipo de fonte.
A ênfase exagerada em situações de desconforto também pode ser identificada como
característica do gênero “literatura de viagem”6 haja vista uma possível intenção de dar
uma feição de epopéia à escrita de viagem visando o sucesso no mercado editorial
europeu.
É importante salientar que a descrição dos utensílios encontrados em viagem não
esteve restrita apenas a questões de desconforto. Outros fatores também propiciaram a
atenção à cultura material, em especial a admiração frente ao desconhecido.
6 Termo usado por Ilka Boaventura Leite, em “Antropologia da Viagem: Escravos e Libertos em Minas
Gerais no Século XIX”, para caracterizar esse tipo de fonte.
História Ambiental em “Viagem pelo Brasil” de Spix e Martius: relações entre a
natureza e o homem
A cultura material, se bem interpretada, tem muito a revelar sobre o
funcionamento de uma dada sociedade. Ela pode esclarecer, para além dos valores
estéticos, os meios pelo qual uma sociedade se relaciona e adapta ao ambiente em que
vive. Desse modo percebe-se não somente as ações do homem atuando no meio em que
vive, mas também o inverso. Serão brevemente abordadas a seguir possibilidades de
história ambiental na obra “Viagem pelo Brasil”, de Spix e Martius.
No caso dos dois naturalistas alemães citados acima, Spix e Martius, suas
formações científicas são bastante perceptíveis nos relatos. Percebe-se no trecho abaixo,
ao referirem-se a um hábito paulista, a erudição naturalista dos dois viajantes.
Em vez de grandes lâmpadas de vidro ou castiçais com vela de cera, campeia no meio da mesa
um lampião de latão, no qual se queima azeite de mamona (Ricinus Communis). (SPIX E
MARTIUS, 1980, p.148)
Além da erudição, cabe aqui relembrar a atenção dada, pelo viajante, a aspectos
que talvez o vivente do Brasil não percebesse. O próprio “lampião de latão”, que
suponhamos não tivesse um valor capital tão elevado, pode ser ausente em outros tipos
de documentos, como os testamentos, por exemplo, documentos de inestimável valor
para os estudiosos da cultura material.
O uso do azeite de mamona revela, por outro lado, um processo natural da
adaptação realizada pelo homem dos recursos do seu ambiente para a sua vivência.
Entre os historiadores que utilizaram os relatos dos viajantes com destreza cabe-nos
citar Sérgio Buarque de Holanda, grande expoente da historiografia brasileira.
Em comparação com o gênero documental “inventário”, a escrita de viagem
possui ainda outro ponto de especial valia para o historiador. Sua descrição, não raro,
vai além de descrições materiais dos objetos, como acreditamos que aconteça na
maioria dos inventários. Faz-se presente na escrita de viagem a descrição dos objetos
em usos. Para além de uma descrição material estática é possível observar a cultura
material em movimento.
Outras passagens da obra “Viagem pelo Brasil” permitem abordagens em outros
domínios da história ambiental, como as representações que a natureza assume no
imaginário, e os usos dos recursos naturais para fins e econômicos e, ou, práticos.
Entretanto, nas proporções presentes cabíveis, não nos cabe maiores extensões sobre o
tema.
Conclusão
A vinda da família real para o Brasil em 1808 produziu mudanças significativas
que proporcionaram uma maior acessibilidade ao território brasileiro pelos viajantes. O
início do século XIX presenciou a entrada de grande fluxo de estrangeiros no país, o
possibilitou uma maior aproximação entre o Brasil e a Europa.
Considerável número de viajantes perpassou o território brasileiro. Tais homens
produziram registros de viagens condicionados pelos mais diversos interesses. Estas
fontes são de grande valia para os historiadores do Brasil oitocentista e seu uso
enquanto fonte é constante. Desse modo, a análise crítica das escritas de viagem se faz
necessário e válido.
Para uma abordagem inteligente dos escritos de viagem é necessário a
consciência de que os homens que os produziram eram sujeitos sócio-culturais dotados
de pré-conceitos, interesses, e referenciais culturais próprios. A procedência exterior
desses sujeitos permitiu-lhes a atenção a aspectos que não se fazem presentes em outros
tipos de registros provindos dos viventes do Brasil.
Uma breve análise da escrita de viagem, em especial da obra “Viagem pelo
Brasil”, de autoria dos naturalistas alemães Spix e Martius, permite compreender o valor
desse gênero documental e, também, identificar múltiplas problemáticas passíveis de
abordagem pela via dos domínios da história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, O. B. . Viagens Oitocentistas: a hospedagem no interior do Brasil e na cidade da
Bahia. Revista Eletrônica de Turismo Cultural, v. 1, p. 01-22, 2007.
DOMINGUES, A.: 'Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a
constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos'.
História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. VIII (suplemento), 823-38, 2001.
DRUMMOND, J. A. L. . História Ambiental: Temas, Fontes e Linhas de Pesquisa.In:
Estudos Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. Iv, n. 8, p. 177-197, 1991.
LEITE, Ilka B. Antropologia da Viagem: Escravos e Libertos em Minas Gerais no
Século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
OBERACKER JUNIOR, Carlos H. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral da civilização brasileira. São
Paulo: Difel, 1962. Vol. 1 tomo 2.
SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Vol. I. 2ªed. São Paulo:
Melhoramentos, 1980.
WORSTER, Donald. Para Fazer História Ambiental. Tradução José Augusto
Drummond. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 199.

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