sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

8713 - HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA

cadernos pagu (5) 1995: pp. 109-130.
A NATUREZA IMAGINÁRIA DO
GÊNERO NA HISTÓRIA DA
ANTROPOLOGIA*
Mariza Corrêa**
Resumo
Tendo como pano de fundo uma pesquisa mais abrangente sobre a
história da antropologia no Brasil, este texto sugere que a trajetória de
algumas personagens femininas dessa história põem em xeque a suposta
impermeabilidade das categorias masculino/feminina no sistema de
classificações de gênero. Quando seres socialmente definidos como parte
da cena privada são encontrados na cena pública, a ambiguidade de sua
posição os coloca numa categoria anômala, como integrantes de uma
espécie de "natureza imaginária".
"Par cette forme toute à fait singulière de nomination que
constitue le nom propre, se trouve instituée une identité sociale
constante et durable qui garantit l'identité de l'individu
biologique dans tous les champs possibles où il intervient en
tant qu'agent, c'est-à-dire dans toutes ses histoires de vie
possibles."
(P. Bourdieu, "L'illusion biographique", Actes de la
recherche en sciences sociales, 62/63, juin 1986.)
1.que é um nome?
* Este texto é parte da introdução a uma pesquisa, Antropologia e antropólogas no Brasil, que venho
desenvolvendo com o apoio de uma bolsa de pesquisa do CNPq. Agradeço à Adriana Piscitelli suas
sempre pertinentes observações.
** Professora do Departamento de Antropologia do IFCH/UNICAMP.
A natureza imaginária do gênero
110
Durante quatro anos procuramos por Dina Lévi-Strauss
que, se não era uma celebridade na história da antropologia,
também não era uma desconhecida. Acho que o primeiro a
mencioná-la foi Egon Schaden, em seu depoimento, e depois
encontramos mais referências sobre ela no livro de Lélia Gontijo
Soares e Suzana Luz sobre a Sociedade de Etnografia e Folclore,
criada por Mario de Andrade e da qual ela foi secretária.1 Aí
estão reproduzidos em fac-simile os Boletins da Sociedade e fazse
menção a um livro de Dina - Instruções práticas para
pesquisas de antropologia física e cultural (1936) - e à sua
chegada: "...Dina Lévi-Strauss, professora agregée da
Universidade de Paris e egressa dos quadros do Museu do
Homem. Ela acompanha o seu marido, Claude Lévi-Strauss, no
Brasil, contratado como professor de sociologia da recém criada
Universidade de São Paulo." (cit.,p.7) Na enorme
correspondência de Mario de Andrade, ela raramente aparece, e
quando aparece é nas notas de seus interlocutores, subsumida na
categoria "o casal Lévi-Strauss", quando não simplesmente como
"a mulher de Lévi-Strauss". É assim também que se refere a ela
com frequência o filósofo francês Jean Maugué em sua
autobiografia: "Lévi-Strauss et sa femme".2 Numa carta de
agosto de 1938 a Mario de Andrade, Oneyda Alvarenga
menciona a razão de sua saída do país:"...você sabe que Mme.
Lévi-Strauss está quase cega e talvez venha mesmo a perder
totalmente a vista? Apanhou em Mato Grosso uma conjuntivite
purulenta, de que o marido escapou, me informaram, por usar
óculos (o que me parece besteira.) Não sei outros detalhes. Ela
está aqui,devendo voltar logo para a França. O Lévi-Strauss
continua atrás de índios."3
1 Mario de Andrade e a Sociedade de Etnografia e Folclore, 1936-1939, Funarte-Instituto
Nacional do Folclore-Secretaria Municipal de Cultura, São Paulo- Rio de Janeiro, 1983.
2 Les dents agacées, Bouchet-Chastel, Paris, 1982
3 Cartas Mario de Andrade- Oneyda Alvarenga, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1983.
Mariza Corrêa
111
Dina aparece também quase como um pé de página em
Tristes Trópicos e em De Près et de Loin - mas um olhar mais
atento não a descobriria na personagem Camila, da peça de
teatro que Lévi-Strauss imaginou em sua expedição? "Camila
rompeu com Cinna e essa ruptura traz a este a prova final de um
fracasso de que já se tinha persuadido." Cinna é "um exaltado
que só gosta de estar entre os selvagens" e que diz, à certa
altura, evocando a experiência presente do autor: "Comi
lagartos, serpentes e gafanhotos; e desses alimentos, cuja idéia só
provoca náuseas, eu me aproximei com uma emoção de neófito,
convencido de que ia criar um laço novo entre o universo firme e
eu." (Tristes Trópicos, cap.XXXVII) Cinquenta anos
depois,graças à persistência de Anne Marie Pessis, Dina foi
encontrada e entrevistada. É uma curta entrevista essa, com a
professora de filosofia Fernande Dina Dreyfus que
reiteradamente negava nossas lembranças do seu passado. Ela
não lembra ter filmado ou escrito sobre os Bororo (no mesmo
ano em que se comemoravam os 80 anos de Lévi-Strauss quando
várias homenagens foram prestadas ao etnólogo na França, entre
as quais uma exibição de seus filmes, feitos com Dina, no Brasil)
e é só depois de muita insistência da entrevistadora que
relembrará trechos de sua vida aqui, o nome de alguns amigos,
de Mariô...4
Conto essa pequena história porque ela expressa bem
duas questões que começaram a nos perseguir logo que
passamos a entender um pouco melhor a história que estávamos
tentando pesquisar.5 A primeira é a que chamei de 'notoriedade
4 A entrevista, em vídeo, faz parte do projeto mencionado na nota seguinte e foi feita por Anne
Marie Pessis com Dina Dreyfus em Paris, em 1988. Mariô é Mario de Andrade.
5 Trata-se do Projeto História da Antropologia no Brasil que, desde 1984, venho desenvolvendo no
Departamento de Antropologia da Unicamp, com o apoio da FAPESP, do CNPq, da FINEP e do
FAEP-Unicamp e com a colaboração de várias turmas de alunos da graduação e da pós-graduação
aos quais agradeço o empenho e o interesse ao longo desses anos.
A natureza imaginária do gênero
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retrospectiva' em outro texto, isto é, o modo como o renome
adquirido a partir de um certo momento, pode iluminar a vida
inteira de um personagem - o bom exemplo aqui sendo o jovem
professor de sociologia na USP nos anos trinta Claude Lévi-
Strauss. O reverso desse exemplo é o já citado Maugué,
lembrado e relembrado por seus alunos e sucessores como um
professor brilhante e que se define em sua auto-biografia como
um acadêmico raté.6 Sua auto-biografia parece ser também um
modo de se insurgir contra esse 'fracasso', de recuperar um
tempo em que sua presença acadêmica teve importância, daí seu
tom amargo.Outro exemplo pungente (pungente pelo afeto que
ele investiu num país no qual não podia viver) do reverso da
'notoriedade retrospectiva' é o do professor Donald Pierson,
lembrado publicamente quase que só pelos estudiosos da questão
racial no Brasil até que Thales de Azevedo sugeriu que
escrevêssemos a ele. O seu depoimento foi uma surpresa - como
continua sendo surpreendente descobrir as relações estabelecidas
por ele no país e sua atuação institucional, expressas nos
documentos de seu arquivo pessoal.7 Analisando essa
documentação, e a extensa lista de nomes ali lembrados,
começou a ficar claro que o que é chamado de personagem
secundário na literatura teve tanta, ou mais, importância na
construção institucional das ciências sociais no período
examinado do que os personagens principais - aqueles que por
seu destaque posterior pareciam os únicos a ocupar a cena.
Como diz Michael Pollak:"Distinguir entre conjunturas
favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de
6 Antonio Candido, entrevista à revista Transformação, 1974; e ARANTES, Paulo Eduardo:
"Certidão de Nascimento", IN Novos Estudos Cebrap, (23), março, 1989.
7 Ver CORRÊA, M. (org.): História da Antropologia no Brasil, vol.I, Testemunhos (Donald
Pierson e Emílio Willems), Editora da Unicamp/Editora Vértice, Campinas, São Paulo, 1987.
Mariza Corrêa
113
saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado."8 Isto
é, que é mais fácil esquecer daqueles que foram saindo de cena e
que, ao longo do tempo e no conjunto dos personagens,
passaram para segundo plano, ainda que tenham, por um breve
momento, sido personagens principais na história da
antropologia.
Mas é à segunda questão, quase derivada dessa que
quero dedicar mais espaço aqui: ao refletirmos sobre a
notoriedade retrospectiva de Lévi-Strauss e ao 'esquecimento' de
Dina, começamos a nos perguntar o que tinha sido feito das
pesquisadoras nessa história: personagens ainda mais secundárias
do que os exemplos antes mencionados. Salvo poucas exceções,
elas aparecem, naquele momento, como esposas - a esposa de
Donald Pierson, a esposa de Charles Wagley, a esposa de David
Maybury-Lewis, a esposa de Darcy Ribeiro, a esposa de Eduardo
Galvåo, a esposa de Robert Murphy, a esposa de Charles
Watson... a lista certamente poderia continuar. Todas elas
adotaram o nome do marido ao casar, a ponto de ser muito difícil
redescobri-las com seu próprio nome, mesmo quando
descasadas, como no caso de Dina. Todas estiveram no campo e
parecem ter sido auxiliares de pesquisa inestimáveis, segundo os
relatos de seus próprios maridos. Só em poucos casos, no
entanto, deixaram esse papel de auxiliares - caso de Yolanda
Murphy, por exemplo - ainda que tenham, em outros, assumido
quase o papel principal, como no 'romance do Brasil Central',
como David Maybury-Lewis chamou num certo momento a
expedição dele e de Pia entre os Xavante e os Xerente. 9
Parece apropriado lembrar aqui os padrões Xavante de
nominação:
8 POLLAK, Michael: "Memória, esquecimento, silêncio", IN Estudos Históricos/3, Rio de Janeiro,
Ed. Vértice, São Paulo, 1989.
9 Ver MAYBURY-LEWIS, David: O Selvagem e o Inocente, de 1969, Editora da Unicamp,
Campinas,1990.
A natureza imaginária do gênero
114
" Um menino Xavante não recebe nome ao
nascer.(..) Recebe seu primeiro nome por volta dos
cinco ou seis anos de idade (..). Um homem deve ter,
teoricamente,no mínimo quatro nomes.(..) As
mulheres, de acordo com o padrão Xavante, podem
crescer sem nome (..). Além disso, tenho certeza de
que algumas mulheres Xavante realmente não
sabiam seus próprios nomes."10 Pia, curiosamente,
recebeu dois nomes dos Xavante, e é personagem
tão presente na viagem e no texto que, mesmo em
sua ausência, o autor que o assina escreve 'nós'.
O que significa então um nome, senão renome? Uma
pessoa de renome estende a 'ilusão biográfica' para além do
momento em que o adquire - nós sucumbimos a essa ilusão ao
sair à procura de Dina Lévi-Strauss. Renome no duplo sentido
de nome famoso e de segundo nome, no caso das mulheres, com
frequência o que elas adquirem ao casar (no caso de alguns
homens, o escolhido por eles para seu nome público - como
Reginald Brown escolheu tornar-se Radcliffe-Brown em certo
momento).
Ao serem assim renomeadas essas mulheres se tornam
então esposas, e passam a ser assim também consideradas pelos
outros.11
Exemplos do primeiro caso,isto é, do assumir essa
transformação em esposa, são inúmeros. Depois da morte de
Victor Turner, Edith Turner escreveu uma comovente memória
10 MAYBURY-LEWIS, D.: A Sociedade Xavante, cap.VI, Livraria Francisco Alves editora, Rio
de Janeiro, 1984.
11 Ver a observação, à la Simone de Beauvoir, feita por Lévi-Strauss sobre o uso, entre os
franceses, de a viúva de alguém incorporar o termo veuve a seu nome.(LÉVI-STRAUSS, C.: O
pensamento selvagem, Cia. Editora Nacional/EDUSP, São Paulo, 1970 (1962):224).
Mariza Corrêa
115
sobre os anos felizes que passou com ele na África. Ela própria
uma antropóloga- o que só se descobre, neste livro, com alguma
atenção- assim descreve o propósito de seu livro:
"I would like to call it advocacy anthropology in
the female style, that is, speaking on behalf of a
culture as a lover or a mother. I decided to use all
the observations, knowledge, and field material that
I and Vic had collected, and form them - these
actual facts of fieldwork, not imaginary material -
into a coherent story, adding my own blood of
motherhood, as it were, to feed the embryo so that it
might grow in its own true way." E, bem mais
adiante:"What about my personal development in
the course of these experiences? Could it be said
that I was mastering my life? I was living a story in
order to tell it, which I am doing in this book. But
the reader will find that I've managed to entangle
myself into it without being able to get out.(..)I fall
into each one's life,just as I fell into Vic's life."12
Helen Pierson,mais de trinta anos depois de sua estadia
no Brasil,faz eco a essa observação:".. meu depoimento seria
12 ("Gostaria de chamá-lo de antropologia a favor no estilo feminino, isto é, advogar em defesa de
uma cultura como uma amante ou mãe. Decidi utilizar todas as observações, o conhecimento e o
material de campo que eu e Vic recolhemos -fatos reais do trabalho de campo, não material
imaginário - e transformá-lo numa história coerente, acrescentando, por assim dizer, meu próprio
sangue materno para alimentar o embrião, para que ele possa crescer da melhor maneira. (...) Que
dizer de meu desenvolvimento pessoal durante essas experiências? Poder-se-ia dizer que eu estava
me assenhoreando de minha vida? Eu vivia uma história para contá-la, o que faço neste livro. Mas
o leitor descobrirá que fui me envolvendo com ela, sem conseguir escapar. (..) Entrei na vida de
cada um, como entrei na vida de Vic.") TURNER, Edith: The spirit and the drum - a memoir of
Africa, The University of Arizona Press, 1987. Ênfase adicional. Comparar com a citação de Donna
Haraway (1989) de um conto de Octavia Butler (trata-se da fala de uma personagem várias vezes
operada para resolver problemas "biológicos"): "I suppose I could think of this as fieldwork, but
how the hell do I get out of the field?" ("Suponho que poderia encarar isso como trabalho de campo
mas como, diabos, escapo do campo?")
A natureza imaginária do gênero
116
apenas o de uma esposa de antropólogo social e sociólogo.
Aliás, sempre pensei do meu papel no Brasil como sendo o de
uma 'Girl Friday' (termo inglês), isto é (para inventar duas
palavras), 'facilitadora' e 'suplementadora'." (Carta pessoal,25 de
setembro,l989).Isso apesar de citar uma extensa lista de seus
afazeres que incluíam seu trabalho de datilografar a
correspondência do marido- continuado até sua morte, em 1994-
dar aulas de inglês aos alunos da Escola de Sociologia e Política ,
buscar livros e artigos na Biblioteca Municipal de São Paulo,
fazer levantamentos para as pesquisas de campo e preparar
questionários, com sugestões aos estudantes, para essas
pesquisas. Os trechos de seu diário de campo, de dezembro de
1947 a fevereiro de 1948, mostram sua intensa atividade como
'Girl Friday' mas também uma observadora perspicaz da vida
cotidiana no interior de São Paulo.
Exemplos do segundo caso,isto é, de consideração, por
parte de outros, das pesquisadoras como sendo apenas esposas,
são, em geral, implícitos, como se, sendo esposa, a parceira se
tornasse menos visível. Mas há alguns anos atrás, Richard Price
escreveu numa carta ao American Ethnologist,"...como
parceiro num time antropológico de marido e mulher (que
publicam em conjunto e separadamente), julgo apropriado
observar que Suriname Folk-lore (1936) - um livro com idéias
surpreendentemente modernas a respeito da música, da fala e do
estilo Afro-americano - foi de fato escrito em co-autoria com
Frances Herskovits. E minha própria leitura desse trabalho
sugere que ele é consideravelmente baseado mais em seu
trabalho de campo do que no dele (Melville Herskovits).E, de
fato, se o livro fosse publicado hoje, o nome de Frances
Herskovits bem poderia figurar como o do autor principal."
(AE,l2:4,1985) Observação tanto mais interessante por partir de
um marido.
De fato, na época aqui analisada (o período entre os anos
finais do século passado e os anos quarenta deste século), era
Mariza Corrêa
117
raro uma mulher em busca de renome,o mais frequente sendo a
existência de pesquisadoras dublés de esposas - ou vice-versa. O
que ajuda a explicar a má vontade com que alguns pesquisadores
locais receberam Ruth Landes quando ela esteve no Brasil para
fazer suas pesquisas sobre o candomblé da Bahia. O impacto
dessa má vontade sobre ela foi tão forte que ainda se refletia nas
suas lembranças do tempo que passou aqui quarenta anos depois.
Numa carta pessoal ela desabafa sobre a perseguição que teria
sofrido de dois pesquisadores, um brasileiro e um norteamericano
(um deles sendo Herskovits, o que empresta um toque
de ironia à citação acima), que chegaram a escrever a Gunnar
Myrdal, acusando-a de vender serviços sexuais aos negros,
apenas porque ela fazia pesquisa de campo nos candomblés da
Bahia -" uma jovem mulher de menos de trinta anos e
conspicuamente loura".Diz ela:"Their calumnies were symbolic
rape on me."
Landes registrou suas outras lembranças do período em
que esteve no Brasil num artigo13 no qual não menciona as
razões pelas quais não pode retornar à suas pesquisas no país.
Seu caso é uma confirmação das dificuldades encontradas por
mulheres sozinhas (com nome próprio ou em busca de renome)
de fazerem pesquisa de campo na época: um nome é também
sinônimo de reputação e a dela ficou marcada por esse ataque.14
13 (Suas calúnias eram um estupro simbólico.) Carta de 6 de abril de 1986.
A woman anthropologist in Brazil, em GOLDE, Peggy (ed.): Women in the field -
anthropological experiences,University of California Press, Berkeley e Los Angeles, 1986 ( 1970).
Sobre a experiência de Ruth Landes no Brasil, com ênfase no seu interesse pela relação entre raça e
gênero, ver HEALEY, Mark: "The sweet matriarchy of Bahia", IN Ruth Landes'ethnography of
race and gender. History Department, Duke Universitry, dezembro de 1995.
14 Talvez seja exagero, mas George e Alice Park concluiram que foi graças ao que chamaram de
"assassinato moral" de Arthur Ramos que Ruth Landes não obteve emprego na universidade nos dez
anos seguintes e nenhuma posição profissional por mais dez anos, até ser contratada por uma
universidade canadense em 1965. (Ruth Shlossberg Landes em Ute Gacs, Aisha Khan, Jerry
McIntyre e Ruth Weinberg, (eds.): Women anthropologists: selected biographies. Chicago,
University of Illinois Press. 1984.)
A natureza imaginária do gênero
118
As possibilidades que se ofereciam às mulheres, em sua
maioria estrangeiras, que desejassem levar adiante uma carreira
como pesquisadoras naquele tempo estavam assim reduzidas: ou
elas faziam parte de um time profissional com seus maridos, ou
corriam o risco de serem mal vistas pelos pesquisadores locais,
em sua maioria homens. Era ainda possível herdar, de certo
modo, o renome do pai, junto com seu nome, como no caso de
Heloisa Alberto Torres, ou dona Heloisa, como era mais
conhecida.
Seria possível falar aqui de uma dupla ilusão biográfica
(como se diz da 'dupla jornada de trabalho') no caso das
mulheres- mas não é só disso que se trata, pois em nossa história,
ao perdermos um nome, perdemos também um personagem.
Todas essas esposas, todas essas 'girl-fridays', estão de certa
forma sujeitas à desaparição, já que seu nome próprio é o nome
de outrem e, para elas, é impossível sequer manter a ilusão de
uma "identidade social constante e duradoura", da qual esse
nome é o fundamento.
2. identidade & afinidade
Começando, então, pela identidade, primeiro conceito a
interrogar se queremos prosseguir pensando nas antropólogas e
nas esposas de antropólogos dublês de pesquisadoras como se
pudessem ser um conjunto definido por alguma (qualquer)
característica comum. No seminário justamente famoso dedicado
ao assunto, Lévi-Strauss destoou um pouco dos outros
participantes ao concluir que a identidade tem uma existência
puramente teórica: "celle d'une limite à quoi ne correspond en
réalité aucune experiénce." Isso porque o que apreendemos com
nossa experiência é sempre uma parte de qualquer conjunto, um
todo descontínuo. A imagem que me ocorre ao ler isso é a de
uma teia rasgada: nunca seremos capazes de reconstituir todos
Mariza Corrêa
119
os fios que a completavam e por isso trabalhamos com indícios,
com rastros, com sinais. Isso não parece ser uma prerrogativa ou
maldição das ciências humanas: as assim chamadas ciências da
natureza também estão repletas de exemplos de falta de
continuidade nas suas demonstrações, continuidades em geral
preenchidas com muita imaginação pelo físico ou biólogo que
reconstrói a teia, qualquer teia.
Mas porque os integrantes das sociedades humanas, e
seus estudiosos, seriam então apaixonados pela busca de uma
identidade (étnica, sexual, de classe,nacionall)? Talvez
justamente para fazer sentido daquela teia rasgada, para,
recuperando os fios que faltam, integrar do melhor modo
possível o desconhecido no conhecido. A identidade seria assim
"uma espécie de foco virtual ao qual é indispensável nos
referirmos para explicar um certo número de coisas, mas sem
que nunca tenha uma existência real."15
Em inúmeras sociedades humanas, as mulheres parecem
ser excluídas mesmo desse foco virtual, socialmente construído
para alocar os agentes sociais; de certo modo pondo assim em
xeque a substancialidade dessa identidade - vimos acima o
exemplo dos Xavante e muitos outros podem ser citados.
Fiquemos com o dos chineses. Na sociedade chinesa tradicional,
como entre os Xavante, os homens tem vários nomes, dados ou
escolhidos ao longo de sua vida e que expressam a mudança de
estado, de criança a adulto, a profissional realizado, a cidadão
integrado em sua comunidade, a pessoa a ser venerada após a
morte. As mulheres recebem um nome provisório ao nascer e o
perdem ao casar - a partir daí elas serão referidas pela sua
relação com outros, especialmente sua família.16
15 LÉVI-STRAUSS, C. L'Identité. Grasset, Paris, 1977.
16 WATSON, Rubie S. "The named and the nameless: gender and person in Chinese society", IN
American Ethnologist, 13 (4), Novembro, 1986.
A natureza imaginária do gênero
120
Margery Wolf comenta: "Ao passo que o homem chinês
nasce numa comunidade social e espiritual que tem continuidade
não apenas em vida mas também após a morte, a mulher chinesa
nasce numa comunidade da qual ela é apenas uma residente
temporária e sua comunidade espiritual após a morte depende de
quem ela desposa ou, mais importante ainda, aos ancestrais de
quem ela dará a luz. (..) O trauma do casamento chinês, no qual
uma mulher muito jovem é transferida para uma aldeia distante
onde ela não conhece ninguém, nem mesmo seu marido, cria
para as mulheres uma crise de identidade que só é resolvida pela
aquisição gradual de um novo conjunto de espelhos nos quais ela
possa se identificar."17
Soa familiar, mas madrasta de Branca de Neve e Lacan à
parte, o que a observação da pesquisadora ocidental parece
expressar é uma angústia em relação aos nossos espelhos de
identidade. É como se essa troca sucessiva de espelhos a que as
mulheres chinesas estão, ou estavam, destinadas exacerbasse a
percepção da existência de espelhos deformantes em nossa
própria sociedade; como se essa ausência de nome enfatizasse a
desapropriação que sofremos de nossos nomes.
Não é de estranhar - a descrição dos modos de ser de
outras sociedades sempre fez com que acabássemos refletindo
sobre nossos modos de ser e à percepção daquela falta/ausência
poderíamos então, paradoxalmente, atribuir um ganho em termos
de reflexão. Mas, se os grupos de conscientização multiplicados
pelo feminismo dos anos 60 ajudaram a reforçar uma identidade
feminina, acentuando tudo o que havia de comum entre
mulheres, percebeu-se em seguida que a mulher era uma
identidade tão ilusória como qualquer outra.
17 WOLF, M.: A Thrice-told Tale: feminism, post-modernism and ethnographic responsibility.
Stanford University Press, 1992. No contexto deste texto o livro de Margery Wolf merece um breve
comentário: tendo iniciado sua carreira como esposa de antropólogo, a cena (três vezes recontada
aqui) que mais a impressionou naquela primeira experiência de campo foi a da falta de identidade
de uma mulher da comunidade estudada. O livro é também, curiosamente, uma defesa da identidade
da disciplina antropologia contra as incursões dilacerantes dos pós-modernos.
Mariza Corrêa
121
Se a principal característica do mundo no qual vivemos
hoje é a fragmentação das identidades e, portanto, a busca por
um substrato que lhes dê unidade está de antemão condenada ao
fracasso, onde ancorar lutas afins? Porque é de lutas que se trata
quando se trata de afirmar uma identidade: "O que se ganhou
com os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a
identidade é construída de forma situacional e contrastiva, ou
seja, que ela constitui resposta política a uma conjuntura,
resposta articulada com as outras identidades em jogo, com as
quais forma um sistema. É uma estratégia de diferenças."18
Donna Haraway, por exemplo, anotando as dificuldades
das lutas feministas, propõe substituir a procura por uma
identidade pela luta em torno de afinidades.
"Tornou-se difícil nomear nosso feminismo através
de um adjetivo único - e até insistir no substantivo
em qualquer circunstância. A consciência da
exclusão via nominação é aguda. As identidades
parecem contraditórias, parciais e estratégicas. O
reconhecimento arduamente conquistado de sua
constituição social e histórica impede que gênero,
raça e classe sejam a base da crença numa unidade
"essencial". Não há nada a respeito de ser
"feminina" que una as mulheres naturalmente. Nem
mesmo existe o estado de "ser" feminina, ela mesma
uma categoria altamente complexa, construída em
discursos científicos sexualizados e através de
18 CUNHA, Manuela C.: Negros, estrangeiros, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985. Talvez
tenhamos ganho algo parecido com os estudos feministas; compare-se esta com a definição de
gênero de J. Butler: " Gênero é uma complexidade cuja totalidade é permanentemente adiada, nunca
inteiramente o que é numa dada circunstância histórica. Isto é, uma coalizão aberta que afirmará
identidades alternadamente instituídas ou deixadas de lado de acordo com os propósitos do
momento; será um conjunto aberto que permite múltiplas convergências e divergências sem
obedecer a uma finalidade normativa de definições fechadas." (BUTLER: Gender trouble,
feminism and the subversion of identity, Routledge, Champman e Hall, N.Y., 1990).
A natureza imaginária do gênero
122
outras práticas sociais conflitivas. A consciência de
gênero, raça ou classe foi uma conquista a que
fomos forçadas pela terrível experiência histórica
das realidades sociais contraditórias do
patriarcado, do colonialismo e do capitalismo. E
quem é "nós" na minha própria retórica? Que
identidades estão disponíveis para sustentar um
mito político tão potente chamado "nós" e o que
motivaria o alistamento nessa coletividade? Uma
fragmentação pungente entre as feministas (para
não dizer entre as mulheres) em qualquer tipo de
alinhamento tornou a noção de mulher elusiva, uma
desculpa para a matriz da dominação de mulheres
por mulheres. Para mim - e para tantas que
compartilham uma situação histórica semelhante
como branca, profissional de classe-média, fêmea,
radical, norte- americana,de meia idade - as fontes
de uma crise de identidade política são inúmeras. A
história recente de boa parte da esquerda e do
feminismo nos Estados Unidos tem sido uma
resposta a esse tipo de crise através de infindáveis
fracionamentos e da busca por uma nova unidade
essencial. Mas tem havido também um crescente
reconhecimento de outra resposta a partir de
coalisões: afinidade, não identidade." 19
19 HARAWAY, D.: "A manifesto for cyborgs: science, technology and socialist feminism in the
1980's", IN Socialist Review/80, 1985. A citação seguinte está em HARAWAY, D.: "Situated
knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspectives", IN Feminist
Studies/14(3), 1988. Criticando a tendência de algumas feministas a desprezarem a ciência por seu
comprometimento com uma visão dominante do mundo, Haraway propõe uma re-leitura e uma reapropriação
dela a partir daquela "falta" exemplificada, em seu extremo, pela posição da mulher na
sociedade chinesa tradicional. Diz ela: " O olho ocidental tem sido fundamentalmente um olho
errante, uma lente viajante. Essas peregrinações frequentemente foram violentas e insistentes na
necessidade de espelhos para o conquistador - mas nem sempre. As feministas ocidentais também
herdam alguma habilidade ao aprenderem a participar da revisualização de mundos virados de
ponta cabeça em desafio à visão dos mestres e que transformaram o universo. Não é preciso
começar do nada. (..) A subjetividade é multidimensional; portanto, a visão também. O ser do
Mariza Corrêa
123
Afinidade (como gênero) deriva de nosso vocabulário
latino sobre família e parentesco e, etimologicamente, supõe
relação - ao contrário da origem da palavra identidade (idem)
que significa o mesmo20. Donna Haraway estava pensando em
relações entre mulheres quando escreveu aquelas linhas; Morgan
estava pensando em relações sociais mais amplas quando
escreveu Systems of consanguinity and affinity; gênero
pretende cobrir as relações construídas a partir de identificações
ou atribuições de masculinidade e feminilidade a todos os seres
humanos, isto é, entre "mulheres", entre "homens" e entre
"mulheres" e "homens" - se é que essas designações ainda podem
ser usadas num universo tão semioticamente carregado.
3. masculina\feminino feminina\masculino:
a natureza imaginária
A questão é antiga e, antes de as feministas terem
adotado o termo gênero para desvincular as relações entre e
definições de homens e mulheres de qualquer conotação
naturalizante, ou biologizante, a literatura já problematizara essas
identidades supostamente apoiadas no dimorfismo sexual.21 O
conhecimento é parcial em todas as formas que assume; nunca terminado, completo, estático e
original; é sempre construído e alinhavado imperfeitamente e, portanto, capaz de juntar-se a outro,
de ver com o outro, sem pretender ser outro. Essa é a promessa da objetividade: o cientista procura a
posição do objeto, não de identidade, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial."
20 Observe-se que enquanto na língua inglesa a palavra gender parece ter em primeiro lugar a
conotação gramatical , no dicionário brasileiro de Aurélio Buarque de Holanda, sete acepções são
apresentadas antes daquela. Para uma genealogia da noção seria instrutiva uma recapitulação da
história dos gêneros literários, desde Aristóteles e seus seguidores, que propunham uma
classificação naturalizada das obras literárias, atribuindo a cada gênero um estilo próprio e rígido,
até o romantismo, quando se rompem as fronteiras entre eles.
21 O próprio dimorfismo sexual estando também, no momento, sujeito a críticas e questionamentos.
Ver HARAWAY, D.: Primate visions - gender, race and nature in the world of modern science,
Routledge, N.Y. e London,1989.
A natureza imaginária do gênero
124
andrógino, uma das expressões do que metafísicos e teólogos
chamavam de coincidencia oppositorium, foi um objeto da
especulação literária com uma certa ressonância no século
dezenove.22
Virginia Woolf continuava assim uma tradição literária ao
afirmar que "É fatal ser homem ou mulher, pura e simplesmente;
é preciso ser masculinamente feminina ou femininamente
masculino." Ao fazer essa anotação numa conferência para
estudantes inglesas em 1928, Virginia Woolf certamente não
pretendia atribuir-lhe o estatuto de teoria embora seu texto - e o
romance Orlando, que o expressava em termos ficcionais- terem
tido uma repercussão que extrapolou os muros das escolas para
moças. 23
Usos literários à parte, um bom número dos trabalhos
que registraram exemplos do jogo do masculino/feminina em
sociedades não ocidentais era de autoria de antropólogos
ingleses que tentaram explicar esses jogos no contexto das
sociedades estudadas e recorrendo às teorias antropológicas de
22 Ver, por exemplo, Serafita, de BALZAC e Mademoiselle de Maupin, de Theófile GAUTIER,
ambos romances dos anos trinta do século passado. No contexto da discussão sobre a noção de
gênero, o comentário citado por Richard Gilman sobre o romance de Gautier é esclarecedor:
"Maxime du Camp said he had been the creator of a sort of imaginary nature." ("Maxime du
Camp observou que ele criara uma espécie de natureza imaginária".) - (GILMAN: Decadence, the
strange life of an epithet, Farrar, Straus e Giroux, N.Y., 1980). Sobre as origens religiosas da
noção de andrógino, ver ELIADE, Mircea: Mefistófeles e o andrógino, Livraria Martins Fontes
editora, São Paulo, 1991.
23 WOOLF, V.: Um teto todo seu, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1985. Comentário de
Camille Paglia: "Em toda a sua obra, Virginia Woolf torna o andrógino superior ao homem viril
comum, uma atitude que acho mesquinha e provinciana. O andrógino é um grande símbolo criativo,
mas não deve usurpar a autoridade de todas as demais personas sexuais." (PAGLIA: Personas
Sexuais, Cia. das Letras, São Paulo, 1992, p.292, ênfase adicional). Observação curiosa, já que seu
livro pode ser lido como uma história do andrógino através das artes e da literatura. Ver um resumo
das discussões entre as especialistas na obra de V.Woolf e seus herdeiros literários em MARCUS,
Jane: "Storming the toolshed", IN Feminist theory - a critique of ideology, ed. por Nannerl O.
Keohane,Michelle Z.Rosaldo e Barbara C.Gelpi.
Mariza Corrêa
125
sua época, ainda que, curiosamente, nenhum deles tenha
recorrido à figura do andrógino.24
Parte de uma tradição religiosa ou do imaginário literário,
o andrógino é uma figura interesante porque põe em questão os
limites do feminina\masculino, de certa forma poluindo essas
definições. Numa bela análise da noção de poluição,Mary
Douglas mostrou o perigo inerente "a separações simbólicas do
que deveria estar unido ou a uniões simbólicas do que deveria
estar separado."25
No Brasil, a especulação sobre a ambiguidade na
definição da identidade sexual também começou no século
dezenove. Médicos e literatos (alguns com formação médica)
empenharam-se em demonstrar, antecipadamente, o que Mary
Douglas e outros antropólogos analisaram depois: o perigo está
no indefinido, na quebra das definições; em suma, nos limiares.26
24 Conforme se ampliava a consciência ocidental sobre esses jogos em sua própria sociedade, a
descrição dos antropólogos também se tornava mais sofisticada: ver STRATHERN, M.: The gender
of the gift, problems with women and problems with society in Melanesia, University of California
Press, Berkeley-Los Angeles-London, 1988. Só mais recentemente esse olhar tem se desviado das
chamadas sociedades primitivas: ver, por exemplo, ROBERTSON, Jennifer: "The politics of
androginy in Japan: sexuality and subversion in the theater and beyond", IN American
Ethnologist/19 (3), 1992. Na cena brasileira, o termo ganhou uma certa popularidade nos anos
setenta a partir de seu uso pelo grupo teatral Dzi-Croquettes (ver LOBERT, Rosemary, A palavra
mágica Dzi: uma resposta difícil de se perguntar - a vida cotidiana de um grupo teatral.
Dissertação de Mestrado em Antropologia, Unicamp, 1976). James Boon faz uma bela analogia
entre androginia e cromatismo visual, tentando recuperar, textualmente, uma presença invisivel nos
relatos de pesquisa de um grupo de antropólogos em Bali (Between-the -wars Bali, em
STOCKING, G.: History of Anthropology, vol. IV, University of Wisconsin Press, 1986).
25 DOUGLAS, M.: Purity and danger, an analysis of concepts of pollution and taboo, Pelican
books, 1970. (Tradução brasileira de, Ed. Perspectiva, SP, 1976.)
26 Desenvolvo essa observação em minha tese de doutorado (CORRÊA, M.: As ilusões da
liberdade - a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, USP, 1982), analisando
especialmente o tratamento dado pelos médicos às consequências das relações raciais no Brasil: a
mulata como figura liminar perigosa, poluidora, tem uma longa história cujas origens se encontram
nessas análises médicas. Ver também SUSSEKIND, Flora: Tal Brasil, qual romance?, Achiamé,
Rio de Janeiro, 1984.
A belíssima análise de Pierre Bordieu sobre a sociedade kabila (em Esquisse d'une
théorie de la pratique, Librairie Droz, Genève, Paris, 1972), na qual a segregação entre homens e
mulheres é extrema, acentua justamente a importância atribuída aos limiares entre o mundo
A natureza imaginária do gênero
126
Essas definições são frequentemente implícitas, já que
fazem parte do repertório supostamente (re)conhecido por todos
os integrantes de uma sociedade dada e é só quando são postas
em questão que elas adquirem feição mais clara, isto é, que
mostram seu potencial como definições não estabelecidas, mas
em conflito por uma significação precisa. Assim como ocorria
com a noção de raça nos textos daqueles médicos, as noções de
masculino e feminina nos textos que vou analisar aqui são
sempre elusivas: em nenhum momento encontramos, lá, um
discurso direto que defina a raça ou, aqui, um discurso direto
que defina masculino ou feminina. E, como no âmbito das
discussões sobre relações raciais, também aqui é só quando as
fronteiras entre masculino e feminina são indevidamente
atravessadas que elas são tematizadas. Aparentemente, tudo se
passa como se as personagens femininas da história aqui
contada, fossem homólogas aos seus equivalentes masculinos na
história da antropologia: naturalistas, sertanistas, pesquisadores
de campo, administradores, professores... Aparentemente, se
atentarmos apenas para os registros mais superficiais de suas
carreiras: referências esparsas sobre suas atividades, biografias
curtas, necrológios. Isto é, em situações textuais em que elas são
o centro de um discurso sobre elas, o máximo que se pode inferir
das definições de masculino e de feminina na época de cada uma
é que elas eram vagamente excepcionais - dada a maior ou
menor explicitação de cada autor de sua admiração pelos feitos
de uma mulher. Olhando-as em conjunto, então,
retrospectivamente, o que temos à primeira vista é um grupo,
reduzido, de figuras femininas que pouco se distinguiriam de
seus colegas masculinos naquelas atividades antes mencionadas;
e a única identidade que lhes é atribuída é a de serem mulheres
profissionais - algumas nem isso - que viveram numa época em
que a maior parte dos profissionais eram homens.
masculino e o feminino e mostra como é necessário atribuir a cada objeto, a cada espaço, seu lugar
num desses mundos, para evitar a poluição de um pelo outro.
Mariza Corrêa
127
Colocando-as lado a lado com seus colegas, no entanto, e
analisando suas trajetórias no contexto da época de cada uma,
começam a emergir definições de feminina e de masculino
explicitadas em disputas pelo poder, pelo prestígio ou por
privilégios de vários tipos e pela atribuição, a elas, de um
estatuto ambíguo, como se se tratasse de seres andróginos a
quem é preciso conjurar, desmentir, redefinir tão logo essa
atribuição se expressa nos discursos a respeito de seus feitos
científicos. Movimento de estranhamento, primeiro (que faz essa
mulher num grupo de homens? Deve ser homem...), de realocação,
em seguida (mas vejam que belo chapéu...feminino),
logo de desqualificação (sendo mulher.. não poderia ser cientista
- ou vice-versa). Lidos de hoje, alguns desses movimentos
parecem tímidas estratégias de re-afirmação da impermeabilidade
das categorias homem e mulher, da rigidez das fronteiras entre
masculino e feminina. Vividos na época, devem ter parecido
cruéis estratégias de exclusão. A constante re-afirmação dessa
impermeabilidade e dessa rigidez é também o melhor indicador
de incerteza, de insegurança na definição das próprias categorias
(homem/mulher; masculino/feminino) na prática: quais seriam,
afinal, os elementos indiscutíveis de separação, de constituição
daquele traço que as separa, se um mísero item de vestuário
alterado (chapéu ou calças, no caso das pesquisadoras de
campo), um pequeno gesto não sintonizado ("adamado", no caso
dos naturalistas de museu) ou o simples estar lá num espaço
onde sua presença não era prevista, as punha em questão?
Tais definições se explicitam melhor quando comparamos
esse pequeno grupo de pesquisadoras, todas sem marido, às
esposas dos pesquisadores, em sua maioria estrangeiros, mas
alguns brasileiros, que acompanharam seus maridos ao campo.
Isto é, quando as colocamos num continuum que vai da mulher
só à mulher esposa.27 Aí, um dos atributos da condição feminina
27Esposa significando também mãe virtual: não por acaso, à sua função de mãe é que vão recorrer
os personagens que tentam dissuadir Leolinda Daltro de sua aventura como sertanista e é como com
A natureza imaginária do gênero
128
está presente de antemão e recobrirá quase inteiramente a
personagem: a esposa de deixa de ser uma referência e passa a
ser tanto o nome de cada uma das esposas, como o nome
genérico dessa categoria de parceiras etnográficas, passa a ser
sua identidade (atribuída) principal.28 A análise desse grupo
assim definido torna, por sua vez, mais claras as expectativas
sociais sobre mulheres em geral e mostra, por contraste, a
quebra dessas expectativas, implícita na atuação das personagens
do primeiro grupo.
Mas talvez seja ilusório pensar em encontrar padrões de
feminilidade ou masculinidade "de época" no interior de uma
mesma sociedade e à tão curta distância de nosso tempo; em
grandes traços, suas formas são muito semelhantes às de hoje, na
nossa sociedade: variam detalhes de conteúdo (não mais usamos
chapéus em cerimônias acadêmicas; o traje masculino numa
pesquisadora de campo não ameaça sua definição de gênero),
não as estratégias. Pois ainda é de lutas que se trata e que se
travam no campo semântico, assim como no campo político.
Talvez seja possível explicitar esses conteúdos tão variáveis e
essas formas mais permanentes recolocando essas personagens
cada uma em seu cenário próprio e tentando compreender a
leitura que seus interlocutores faziam de sua presença ali, e
comparando-as depois com personagens cuja presença quase não
era notada pelos interlocutores de seus maridos.
Tento assim compreender, primeiro, como aquela luta se
expressou em termos literários, isto é, em que sentido, ao lhe
roubarem a palavra, expressando eles o que esperavam que elas
expressassem na sua atuação, três escritores redefinem três de
nossas personagens, de certo modo exibindo mais claramente do
uma "mãe" que os jovens pesquisadores do Museu Nacional se relacionavam com Heloisa Alberto
Torres.
28 A parceria etnográfica não era um privilégio de casais: várias duplas de pesquisadores se
constituíram na mesma época, mas Eduardo Galvão, por exemplo, nunca foi chamado de "o
parceiro de Charles Wagley".
Mariza Corrêa
129
que o faziam seus contemporâneos na vida real, esse movimento
de re-alocação de figuras ambíguas a um universo feminino.29
Persigo, em seguida, as trajetórias dessas mesmas três
personagens, agora com seus nomes reais (Emilia Snethlage,
Leolinda Daltro e Heloisa Alberto Torres) como exemplos quase
do avesso do que era uma carreira bem sucedida de suas
contrapartidas masculinas. Uma naturalista, uma sertanista e uma
pesquisadora de Museu, figuras bastante comuns na história da
antropologia no Brasil e alhures, no que elas tornam diferentes
essas carreiras ao conjugá-las no feminino?30
Faço depois um contraponto desse grupo com o das
esposas, mostrando o modo como eram vistas -em pouquíssimos
exemplos se pode saber como elas se viam - as esposas dos
pesquisadores que começavam a chegar acompanhados ao país
na década de trinta, já que até então o mais comum era que os
viajantes, especialmente naturalistas, viessem sós. A criação
dessa nova categoria, a pesquisadora-esposa, parece ter afetado
também a categoria pesquisadora: as dificuldades encontradas
por algumas delas que vieram fazer pesquisa aqui
desacompanhadas sugere que na década de trinta e quarenta
deste século a função de pesquisadora estava mais claramente
definida como uma função masculina do que no final do século
passado ou no início deste, o que pode estar também relacionado
à uma definição mais precisa do campo da antropologia como
um campo profissional. Os textos no seu conjunto tentarão,
então, mostrar três personagens( Emilia, Leolinda e Heloisa)
entre dois mundos, duas circunscrições: o da ficção (nos
29 Ver o meu "Três heroínas do romance antropológico brasileiro", IN Primeira Versão (22),
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 1990.
30 Ver CORRÊA: "Os índios do Brasil elegante e a professora Leolinda Daltro", IN Revista
Brasileira de História (18), ANPUH/Editora Marco Zero, São Paulo, 1989; "A doutora Emilia e a
tradição naturalista", IN Horizontes Antropológicos (1), Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Pôrto Alegre, 1995; e "Dona Heloisa e a pesquisa de campo", a sair na Revista de
Antropologia.
A natureza imaginária do gênero
130
romances sobre elas) e o da realidade, não de suas biografias
singulares, mas da realidade aceita, ou aceitável, das mulheres
que cumpriam trajetórias semelhantes às suas, mas enquanto
esposas. Elas preenchem, assim, uma espécie de interregno nessa
galeria de figuras da história da antropologia, constituindo-se
como seres de natureza imaginária, por estarem fora de seu
espaço "natural", sem terem sido admitidas ao novo espaço
social que ocupam: nem homens nem mulheres, em termos
culturais, seres anômalos, aparentados antes aos monstros do
que à raça humana.31
_____________________________
THE GENDER IMAGINARY NATURE IN
ANTHROPOLOGY HISTORY
Abstract
Drawing information from a broader research about the history of
anthropology in Brazil, this article suggests that the life course of some
female personae of this history challenges the supposed imperviousness
of the masculine/feminine categories in the gender classificatory system.
Once beings socially defined as belonging to the private sphere are found
in the public sphere, the ambiguity of their position puts them in an
anomalous category, as part of a kind of "imaginary nature".
31 "Os monstros sempre definiram os limites da comunidade no imaginário do Ocidente. Os
Centauros e as Amazonas da Grécia antiga estabeleceram os limites da polis nuclear dos gregos
humanos e masculinos, disrompendo o casamento e poluindo as fronteiras entre o guerreiro, a
animalidade e a mulher. Gêmeos idênticos e hermafroditas eram o confuso material humano que
servia de base aos discursos médicos e jurídicos sobre o natural e o sobrenatural, os prodígios e as
doenças, nos primeiros anos da França da era moderna - elementos cruciais para o estabelecimento
da identidade moderna.". (D. Haraway,1985:99.)

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