quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

8548 - HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

In: Olho da História No. 3 Página Principal




RODRIGUÉ, E.
"Sigmund Freud: o século da psicanálise (1895-1995)".
São Paulo, Editora Escuta, 1995. 1282Xp. 3v.

Resenhado por Ricardo Neves



"Para um psicanalista, historizar Freud significa futucar Freud; significa deitá-lo no divã. Trata-se de aplicar um instrumental para desvelar a personalidade última do herói. Pretende-se furar sua pele manifesta, escrutar seu corpo biográfico, passar o pente fino à procura de piolhos existenciais. Os escritores desse gênero são impiedosos. O biógrafo nato é um sujeito cruel, ávido por anedotas. Eu sou um deles!"
(Emilio Rodrigué)



Escrito o título, reinicia-se o drama. O drama para mim que estou como o escritor. A página, quase em branco, pois, maculada por um ato já feito, a inserção do título. O título funciona, neste caso, como uma defesa contra-fóbica. Um desvirginamento já efetuado mas, como toda defesa, parcialmente eficaz. "Uma coisa posso dizer a você: não saio desta o mesmo".

A frase acima, sobre a impossibilidade de se sair o mesmo, tem a originalidade de um dia já vivido e não entendido, todo, pois que a Psicanálise nos ensina que tudo, o velho e o novo, eternamente, são novos em infinitas ressignificações.

A memória é uma eterna construção baseada em imagens do passado.

Mas sigamos adiante, àna medida em que a fobia se dissipa e a escrita mais ou menos automática se instala. Vamos ao novo, à tentativa de resenhar algo que me agrada e encanta pelo conteúdo e estilo. Reinicio o texto com uma afirmação que já estáa implícita. Não sou um leitor neutro em relação ao texto; aliás, para mim, a dita neutralidade analítica é uma "conversa para boi dormir". Um analista não pode ser isento de afeto, pois seria um sujeito, em larga escala, lesionado neurologicamente, fato que, por si só, levaria a um desinteresse pelo ofício ou, melhor dizendo, pela arte.

Saber do afeto, sim! Esta percepção é que pode fazer do sujeito um analista. Mas vamos tentar, de novo, pôor ordem na casa.

Emilio, no seu primeiro capítulo, como todo bom histérico, revela-se como um conteúdo manifesto, diz tudo, e tudo o que diz remete a um lugar e a um dito que quer dizer outras coisas ...

Ora, sabemos que nunca poderemos saber a verdade de cada um, sabemos o que é conveniente para nós, e, no fim, saberemos um pouco mais sobre nós mesmos. Então, posso deduzir que ler sobre o Freud de Emilio é ler um pouco sobre o autor e sobre nós mesmos. Cada escritor, então, faz ,de certa forma, um strip ao escrever os seus textos?

Mas, como diz Emilio, não saio desta o mesmo, principalmente após a descoberta do parágrafo anterior ...

Toda análise é modificadora do sujeito, pois, ao nos ouvirmos e nos lermos, vemos um outro, que brota de nós. Esta imagem especular, constituída na linguagem do escritor, do analisante ou do leitor, tem um efeito sobre a nossa vida, freqüentemente, não consciente.

Será que um psicanalista é um camaleão da sua própria linguagem? Ou será esta uma característica do ser humano?

O início foi tão difícil quanto o início da vida sexual de um neurótico. Medos, angústias e se posso dizer algo mais, não comecei com um papel em branco, mas com uma tela de computador em frente, na qual, por três vezes, para minha "tranqüilidade", apareceram os tubarões do protetor de tela.

Não tenhamos ilusões. Mergulhar nos textos destes três volumes, de 1.282 páginas e 42 capítulos, é uma viagem. Uma viagem agradável, instrutiva e questionadora. Saio desta leitura com novas idéias e questões teóricas.

A minha Psicanálise é diferente, o meu Freud é diferente, após esta leitura. Mas posso dizer muito mais. A humanidade de Freud é vista, espiada, criticada e, sobretudo, apresentada por alguém que posso chamar de um verdadeiro psicanalista. Alguém que aceita a humanidade do outro, suas pulsões e suas neuroses, sem deixar de ver a sua genialidade e fraqueza. Aquele que se propõe a biografar e a biografar-se, até por sabedoria, deve relativizar e compreender a sua própria humanidade.

O parágrafo que se segue refere-se ao conto de abertura do livro:. "A BahiAfrica é rica em ritmos e mitos. O Cone Sul produz e recebe banhos de cultura e sabedoria das histórias dos mais antigos".

Voltemos ao texto, que é o pretexto deste escrito. Assumo aqui, um pouco, o papel de biógrafo daquele que biografou.

Quando do lançamento do livro em Salvador, Bahia, Brasil, terra de arqueiros de poucas, únicas e nenhuma flecha, foi organizada uma Jornada de Psicanálise, como nesta terra não tinha ainda sido feita, jornada intitulada de O Século da Psicanálise. Elisabeth Roudinesco, psicanalista e eminente biógrafa da psicanálise francesa e de Jacques Lacan em particular, iniciava a sua fala. Profere algumas palavras e, neste momento, subitamente, Emilio inicia uma crise incontrolável de tosse. Roudinesco pára, a platéia observa; duzentos, talvez quatrocentos analistas fitam a cena. Uma cena de sexo explícito?

Retrocedo ... Roudinesco tinha terminado de dizer algo que tento aqui reproduzir: "A minha sensação é ambígua, pois desejava e tinha planos de fazer um livro sobre Freud como o que Rodrigué o fez".

Como comentador do episódio, acredito que este talvez seja o maior elogio que um escritor pode receber de outro artesão da palavra. Dizendo de forma analítica e inspirado na leitura do texto, um literal investimento sexual. Um desejo de se apossar do outro. Como diz Murilo Mendes, "as minhas idéias àas vezes valem mais que os meus testículos".

Um desejo e uma ameaça de possível e não realizada castração?

O efeito do dito ... Roudinesco parada, com a sua branqueza de inverno parisiense, em plena Salvador de trópicos, nem sempre tristes, observa ... O que pensou?

Emilio levanta-se e abandona a sala repleta de silêncio analítico, sempre tossindo. Ao sair da sala, ainda tossindo, é "socorrido" por uma vendedora da livraria ou alguém da recepção — não sei bem quem — que lhe arranja um copo de água. As lágrimas, poucas, estão em volta dos olhos, algumas mais tossidas, e lhe pergunto: "Emilio, o que aconteceu?" Ele responde: "Um ataque histérico."

Deste fato, ocorrido na Jornada O Século da Psicanálise, e da leitura dos três volumes, vem-me, por associação, a lembrança da cirurgia de Freud, a sua primeira, não aquela da ligadura do deferente, na ilusão de aumentar a potência, mas a cirurgia do suposto câncer. O enredo que antecede o fato, escabroso quanto à escolha do local, atitude médica, familiar e cuidados cirúrgicos, é apresentado com maestria, principalmente quanto à presença do "baixinho providencial" que talvez tenha salvo a vida de Freud ao providenciar socorro para a sua hemorragia. O local é sinistro para a relação Freud-Fliess e Ema Ekstein. Ou Irma.

O livro nos traz outras cirurgias como a de Marie Bonaparte para tentar tratar a sua frigidez, mudando a posição do seu clitóris. Marie Bonaparte, figura de peso no fim de vida de Freud. Com ela, retorna a idéia do trauma na etiologia das neuroses. A cena primária, ocorrida na sua vida e esclarecida, dá um alento a este ponto de vista. Vale a pena ler para compreender.

O livro é uma deliciosa leitura em que estão fundidas as visões de vários biógrafos associadas a uma apresentação apurada da teoria psicanalítica. O estilo de escrita de Emilio Rodrigué — um analista de mais de cem mil horas de escuta em análise, que continua a sua análise com o bom humor de alguém que sabe e pode aceitar as contradições do ser humano — é relaxante, sem perder a seriedade e a profundidade.

Um ponto alto deste tratado de Psicanálise é a história da construção da teoria psicanalítica.

Posso inferir, a partir desta leitura, um Freud ciumento, fóbico frente à teorização e à agudeza crítica de Tausk; a atitude política frente a Lou Andreas Salomé em se tratando de freqüentar as suas reuniões e as reuniões de Adler. Que freqüente, mas silencie! A manipulação da análise de Tausk, realizada com Helene Deutsch — por Freud orientada a ser analista de Tausk e sob a sua supervisão — ... no fim, o suicídio de Tausk após a interrupção da análise. A teorização de Tausk sobre a psicose será uma das bases para Freud pensar a paranóia.

O triângulo Freud, Lou Andreas e Tausk dá o que falar e pensar, mas, muito mais que um triângulo, seria uma outra estrutura geométrica necessária a evocar, pois Nietzsche participou deste, vindo de um passado vivido com Lou. Freud desconhecia a teorização de Nietzsche? Sabemos que não, por seus comentários acerca do Isso de Groddeck que ele atribui a um plágio de Nietzsche. Felix Deutsch, médico clínico de Freud e marido de Helene, participava também desta relação. Criou a primeira clínica de organoneurose na universidade em Viena.

A transferência e o inconsciente estavam, como sempre estão, escrevendo a história de cada um deles.

A história da teoria psicanalítica passa com grande força e nova dimensão ao lermos a influência de Breuer na sua clínica e na visão que Freud terá da sua cria, a Psicanálise, bem como a relação pessoal destses homens. O abandono do patrocinador e benfeitor do início de carreira.

Jung, uma conquista cobiçada pela teoria própria e pela posição política, escapa do controle, se é que algum dia o controle ocorreu. O feitiço vira contra o feiticeiro. Divergências e acréscimos à teoria ocorrem com Ferenczi, Groddeck, Adler, Reich, Abraham e Melanie Klein. Situações terríveis são criadas e vividas por este criador. Em alguns momentos um parricídio?

A relação Jones-Ferenczi, que é triangular com Freud, é uma delas. Aliás, quadrangular ou pentangular, com relações incestuosas em relação à Ana Freud, que é analisada por seu próprio pai que deseja ter Ferenczi em um momento como genro, mas ... não deseja Jones como tal e o encaminha para uma análise com Ferenczi e, posteriormente, manda a sua correspondência com Ferenczi para Jones para que ele a leia, tendo partes do pensamento de Ferenczi sobre a sua visão de Jones. Amor e ódio caminham juntos na história da Psicanálise e sua teoria. Teria sido a partir deste ponto que surgiu a versão de que Ferenczi havia enlouquecido no seu fim de vida e, como conseqüência, a censura auto- imposta por Balint sobre os textos de Ferenczi, em uma Londres eminentemente jonesiana?

É diferente na vida de Freud ou de cada um de nós? Talvez, a diferença maior seja uma menor capacidade para podermos reunir e usufruir da inteligência de tantos. Alguns citados, outros não.

A biografia de Emilio-Freud, pois sabemos que toda obra fala do sujeito que a escreve, tem a possibilidade de nos ajudar a entendermos uma época criativa e de criação de um novo conceito do sujeito humano. O sujeito vivido pelo Isso, na visão Groddeckiana que, junto com Tausk, contribuiu para a criação do que se chamou a "segunda tópica psicanalítica". Talvez estivéssemos frente a outra tópica se Freud conseguisse terminar o seu texto, O esboço da psicanálise. Ou quem sabe teríamos uma quarta ou quinta tópica se o seu criador, como um herói mitológico, tivesse o dom da imortalidade.

Emilio nos diz: "Fui um jovem analista do tempo velho e agora sou um velho analista do tempo jovem". Para deleite meu, ao copiar a citação, escrevi: "fui um jovem analista do tempo velho e agora sou um jovem analista do tempo jovem". O inconsciente e seus desejos se manifestam, e, por falarmos em Psicanálise, por que não apresentá-los?

Fica a história do desejo do jovem analista, nem tão jovem quanto gostaria, mas aprendendo com um senhor jovem, que me atendeu de bermuda e sandália em sua casa no bairro de Itapuã, que conversou na barraca Mar del Plata ao comer ostras e tomar chope. Alguém que se diz um neto de Abraham, filho de Melanie Klein e então analista da sua própria filha, já que analista da neta de Melanie Klein, com supervisão da própria avó. Ao analisar a sua filha, não seria uma incorporação simbólica do pai da horda, um retorno à Freud?

Mas retornar à Freud não será retornar à Heinroth que, na sua observação clínica, cria o termo "Psicossomática" para falar das paixões sexuais na gênese da tuberculose e do câncer, em 1818.? Ora, nesta data, o pai de Freud tinha então vinte anos. Ou de Hipócrates e sua medicina, ao dizer que "é mais importante saber que tipo de pessoa tem a doença, do que saber que tipo de doença tem a pessoa".

Retornar a Freud e ao seu projeto para uma Psicologia científica, que antecede às descobertas dos neurônios com as suas membranas, em três anos, não é poder entender a teoria dos circuitos cerebrais inatos e adquiridos, que são modificados pela palavra e experiências, traumas do dia- a- dia?.

No terceiro milênio que se anuncia, esta jovem ciência artesanal, a Psicanálise, e a sua irmã jovem, a Neurobiologia, podem caminhar de mãos dadas, pois o objeto tratado será o mesmo?

Posso imaginar que um neurobiologista consistente como Antônio Damásio, de certa forma, investe o seu tempo para fazer uma tentativa de um novo projeto para uma Psicologia científica?

Continuamos a nos perguntar: o que somos; de onde viemos; para onde vamos?

Colocar Psicossomática, Neurobiologia e Psicanálise para serem repensadas e revistas sob uma visão monista é um desafio e tanto. Acredito que Groddeck tinha razão. E você, Emilio? O que diz da sua proposta de um retorno à Groddeck, que foi o primeiro a dizer que era necessário Freud retornar ao Freudismo do inconsciente e se afastar de um Freudismo da ego psicology?

Na modernidade, podemos pensar que Lacan, a partir do seu Seminário 24, adentra este caminho por você apontado?

E no Hemisfério Sul, perto de Mar del Plata, não a barraca, mas na Argentina, Chiozza se mantém nesta linha de pesquisa?

Estamos nós, como freqüentadores eventuais de Mar del Plata, a barraca, homenageada na abertura do seminário O Século da Psicanálise, a viver e a pensar na teoria.

O livro dá o que pensar ...

Ricardo Neves é clínico, endocrinologista, psicanalista e professor da Faculdade Baiana de Medicina.

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