quinta-feira, 19 de agosto de 2010

2610 -SÉCULO XVII

A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVII
Rui Moreira
Departamento de Física – Faculdade de Ciências
Universidade de Lisboa
Este pequeno texto tem como objectivo primordial evidenciar qual o cerne da chamada revolução científica do século XVII. Não nos estenderemos a referir detalhadamente todas as causas remotas ou mediatas: o crescimento da população europeia com o consequente crescimento das cidades, o aumento do comércio, os descobrimentos marítimos, a utilização e desenvolvimento da imprensa que permitiu um muito maior e mais rápido fluxo de ideias. Tudo isto foi importante e, sempre que necessário referi-lo-emos, mas o que nos preocupa neste texto é realçar o que de fundamental se passou para que o desenvolvimento científico assumisse duas velocidades claramente diferentes, antes e depois do século XVII.
De uma perspectiva estritamente cultural, a revolução científica do século XVII foi um processo muito complexo que se inicia titubeantemente nos finais da chamada Idade Média como início dos contactos com o saber da Grécia Clássica. O pensamento de Aristóteles foi dos primeiros a ser conhecido e os homens de então quiseram confrontar-se com ele. Isto provocou uma grave crise no pensamento europeu. Foi neste contexto que emergiu a posição averroista que lutava para que a razão pudesse libertar-se da verdade revelada defendendo que à verdade da razão se deveria conceder o direito de “cidadania” pois debruçava-se sobre problemas diversos daqueles com que a fé lidava. Esta teoria da “doppia verita” fez escola e já em pleno renascimento foi a bandeira dos humanistas do norte da península itálica. Foi esta uma das primeiras manifestações da vontade de libertar a razão da crença. Mas não foi apenas o pensamento de Aristóteles, que S. Tomás na sua Suma Teológica pretendeu “conciliar” com a fé cristã, que influenciou o pensamento europeu. Também as obras de Platão influenciaram, se bem que mais tarde, as mentes cultas de uma Europa a iniciar o chamado renascimento. Os humanistas adoptaram-no como contrapeso à escolástica que ensinava o Aristóteles de S. Tomás. Também os pré-socráticos como a escola pitagórica começaram a exercer a sua influência sobre alguns humanistas.
Também se iniciou o estudo da astronomia ptolomaica. A “Sintaxe Matemática” de Ptolomeu a que os árabes deram o nome de “Almagesto” começava nos finais do século XV a ser ensinada nas universidades do centro da Europa. Aí se contactava com as obras dos grandes astrónomos da antiguidade como Eudóxio, Aristarco, Hiparco e o próprio Ptolomeu.
As obras de helenistas como Euclides, Apolónio e Arquimedes estudavam-se também nas universidades e os europeus contactavam desta forma com a originalidade metodológica que permitira a Arquimedes chegar às primeiras leis matemáticas da física, a saber: a lei do equilíbrio das alavancas e a lei do equilíbrio hidrostático. Claro que se tratava de duas situações em que o movimento estava ausente. O problema que Arquimedes não abordara era o
problema do devir, da mudança. Mas para entendermos a causa disso é necessário recordar que Arquimedes aceitava o cosmos aristotélico dividido em duas partes ontologicamente distintas. Por um lado, o “mundo supra-lunar”, o “mundo inteligível” de Platão, um mundo que participava das ideias de circularidade e uniformidade, e por outro, o “mundo sub-lunar”, o “mundo sensível” de Platão, um mundo de acidentes e cujo devir não era passível de ser quantificado. Para os aristotélicos, e Arquimedes não podia deixar de sê-lo, não seria assim concebível uma qualquer descrição matemática do devir deste mundo sub-lunar.
De facto, a física de Aristóteles era uma física essencialmente qualitativa que pretendia, apesar de tudo, ser a matriz do entendimento humano desse “mundo sub-lunar”. Um mundo ontológica e epistemologicamente distinto do “mundo supra-lunar”. Era também uma física muito ambiciosa pois pretendia abarcar o conjunto de todos os fenómenos apreendidos pelos nossos sentidos. Ao afirmar que o devir era o acto do ser em potência enquanto em potência estava a abarcar tudo. Esta era a solução aristotélica para o problema do Ser e do Devir herdado dos pré-socráticos, herdado da escola eleata.
Quando Aristóteles respondia ao problema levantado pelo caso particular do movimento local, ou seja, a mudança de posição, definia como único estado, quer dizer, como algo que podia permanecer, não sofrer alteração, o estado de repouso. Qualquer substância tenderia a permanecer na sua posição natural. Como sabemos, Aristóteles tinha recuperado os quatro elementos de Empédocles, ou seja, a terra, a água, o ar e o fogo, que constituiriam o mundo sub-lunar. O elemento terra ocuparia a esfera interior desse mundo, o elemento água ocuparia a coroa esférica imediatamente a seguir, em seguida aparecia o elemento ar a ocupar a coroa esférica seguinte e finalmente o elemento fogo que ocuparia a coroa esférica limite do mundo sub-lunar. A terra ocuparia o centro do cosmos pois esse seria o seu lugar natural. Por essa razão também a Terra onde os homens existiam estaria no centro do cosmos em repouso.
Quanto aos movimentos locais, que seriam sempre situações transitórias entre dois estados de repouso, dividia-os em “naturais” e “violentos”.
“Naturais” seriam os movimentos de um corpo em procura do seu lugar “natural”. Seriam movimentos verticais em que o corpo, retirado do seu “lugar natural”, se deslocaria de baixo para cima se o corpo fosse “leve” como era o caso dos elementos ar e fogo ou de cima para baixo se o corpo fosse “pesado” como seria o caso dos elementos terra e água.
Os movimentos “violentos” seriam aqueles em que um corpo, necessariamente actuado (violentado) por algo exterior, se deslocaria contrariamente às suas “tendências naturais”. Era o caso de uma carroça que precisava que um animal de tiro a puxasse permanentemente para se deslocar na horizontal. Assim, para que um corpo se deslocasse numa trajectória não vertical era necessário que um “motor” actuasse permanentemente esse móvel.
Um caso mais complicado de se integrar nesta base conceptual era o movimento dos projécteis que, após deixarem o contacto com a mão ou a
funda no caso de uma pedra, ou o arco no caso de uma flecha, continuavam a mover-se sem, aparentemente, serem actuados por um “motor”. Aristóteles procurando obter coerência entre a sua física e a sua metafísica encontrou esse “motor” no próprio meio em que o projéctil se deslocava. Como, de acordo com ele, a natureza teria “horror ao vazio”, seria o próprio ar que ao ocupar o espaço deixado livre pelo projéctil em deslocamento iria empurrar esse mesmo projéctil.
Este era o elo fraco mais evidente da física aristotélica e não é de admirar que, desde cedo, os próprios aristotélicos procurassem outras explicações. Foi assim que surgiu a teoria do “impetus” que seria uma “virtude movente” impregnada pelo “motor” no projéctil enquanto estivera em contacto com este. Esse “impetus” impresso faria com que o projéctil continuasse a deslocar-se segundo um movimento não “natural”, enquanto não se exaurisse. Este era basicamente o quadro em que funcionava a física aristotélica.
Por outro lado, o postulado platónico de que os céus constituiriam o mundo inteligível o qual participaria das ideias de “circularidade” e “uniformidade” fez com que se iniciasse o primeiro programa de investigação científica no sentido que modernamente lhe damos. Esse mundo “perfeito” constituído pela “quinta essência” ou “éter” seria assim passível de ser “entendido”.
Mas essa crença residia, como sabemos hoje, num equívoco. Os nossos olhos, fracos detectores, tinham eliminado quase toda a informação sobre esse mundo e apenas nos permitiam observar um grande número de pontos luminosos (as estrelas e os planetas) e dois corpos de maiores dimensões mas também eles circulares (o Sol e a Lua), que sofriam uma única alteração: a mudança de posição. Mas uma mudança de posição muito peculiar associada aos conceitos de circularidade e uniformidade em que tudo, após um determinado intervalo de tempo regressava ao estado inicial.
Ora bem, admitindo que podemos observar a olho nu cerca de 1000 objectos desse mundo”supra-lunar”, 993 parecem seguir um único movimento circular e uniforme com um período de 24 horas. Isto é, 99,3% dos movimentos dos objectos observados podiam assim ser descritos facilmente. Estou, como é evidente, a referir-me às estrelas. Depois, as duas esferas de maiores dimensões, o Sol e a Lua, podiam ser descritos recorrendo à composição de apenas a dois movimentos circulares e uniformes, um com um período de 24 horas tal como as estrelas, e outro com um período de cerca de 365 dias para o Sol e de cerca de 27 dias para a Lua. Estavam resolvidos assim os movimentos de 99,5% dos objectos celestes. Restavam apenas cinco. Os planetas visíveis a olho nu: Mecúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. Estes apresentavam mais dificuldades pois evidenciavam movimentos peculiares, tais como retrogradações, isto é, deslocavam-se numa direcção e, em determinadas circunstâncias começavam a deslocar-se na direcção inversa voltando, após algum tempo a movimentar-se na direcção inicial e assim sucessivamente. Mas porque razão apenas 0,5% dos corpos celestes não obedeceriam ao programa de Platão para a astronomia? O que aconteceu foi que os astrónomos procuraram integrar estes
movimentos no quadro geral do programa de investigação científica em astronomia esboçado por Platão.
Eudóxio, seu discípulo, foi o primeiro a construir um modelo geométrico, o modelo das esferas homocêntricas, que pretendia descrever os movimentos dos objectos celestes. Um modelo sofisticado que, para os planetas usava quatro esferas. A exterior com um movimento circular e uniforme com um período de 24 horas, uma segunda esfera com um eixo de rotação solidário com a exterior que fazia um ângulo com o eixo de rotação da primeira relacionado com ângulo que o plano da órbita do planeta fazia com o equador celeste. Finalmente, as duas interiores rodavam em sentidos opostos e com um período relacionado com o intervalo entre duas retrogradações sucessivas para cada planeta. Estas últimas traçavam uma curva em forma de um oito que pretendia representar os movimentos de retrogradação. Era, como vemos, um modelo geométrico muito elaborado que, numa primeira aproximação, procurava prever as posições sucessivas dos astros nos céus. Este modelo foi adoptado por Aristóteles que lhe introduziu uma ainda maior complexidade.
Havia, no entanto, uma dificuldade que este modelo não conseguia ultrapassar. Os planetas não apresentavam o mesmo tamanho aparente indiciando que não se encontrariam sempre à mesma distância da Terra. Este facto é mais significativo para os planetas mais próximos da Terra: Marte e Vénus. De facto, Marte quando está mais afastado da Terra encontra-se a uma distância que é cerca de 5 vezes maior do que aquela a que se encontra quando está mais próximo da Terra. Isto significa uma variação do brilho do planeta muito evidente. No modelo das esferas homocêntricas os planetas estariam sempre à mesma distância da Terra.
Para ultrapassar esta dificuldade os helenistas criaram um novo modelo: o modelo do deferente e dos epiciclos. Muitas vezes eram também utilizados movimentos circulares em que o centro da órbita não coincidia com o centro da Terra a que se deu o nome de excêntricas. Este modelo dava conta de muitos dados das observações entre as quais a variação aparente do brilho dos planetas e os seus movimentos retrógrados. De facto, estes rodavam agora solidários com o equador de um círculo a que se dava o nome de epiciclo enquanto este rodava em torno de um ponto que, por sua vez, rodava ao longo de um outro círculo centrado ou não na Terra e a que se dava o nome de deferente. Poderíamos ser levados a crer que o deferente poderia ser a órbita do Sol (aparente para nós) em torno da Terra e que os epiciclos seriam as órbitas dos planetas em torno do Sol. Mas não era assim. Não havia qualquer relação entre o epiciclo e a órbita do planeta em torno do Sol nem entre o deferente e a órbita do Sol (aparente para nós) em torno da Terra. Era uma mera construção geométrica que pretendia apenas salvar os factos, mas era, antes do mais, uma manifestação da sofisticação atingida por esse programa de investigação científica em astronomia que Platão propiciara.
Quando, em 1543, Copérnico publica o seu “De Revolutionibus”, sabemos que foi compelido a fazê-lo mais por razões de índole filosófica que científica ou empírica. Foi mais uma tentativa de eliminar da astronomia
ptolomaica hipóteses que considerava, e bem, não respeitarem o postulado platónico da circularidade e uniformidade. De facto, quando Ptolomeu introduziu na teoria dos deferentes e epiciclos o ponto “equanto”, um ponto em torno do qual os movimentos circulares descreveriam ângulos iguais em tempos iguais e que não coincidia com o centro do deferente, o movimento deixara de ser simultaneamente circular e uniforme. O círculo seria percorrido mais depressa quando estava mais longe do ponto equanto e mais devagar quando estava mais perto desse ponto. Claro que Ptolomeu não tinha introduzido o ponto equanto sem um forte motivo para tal. Sabemos hoje que as órbitas são elipses e que as trajectórias dos planetas são percorridas não com velocidade uniforme mas com velocidade variável sendo mais elevada quando eles se encontram mais perto do Sol do que quando se encontram mais longe do Sol. Foi a constatação desta velocidade variável que levou Ptolomeu à introdução do ponto “equanto” que estaria em oposição à Terra em relação ao centro do deferente o qual seria neste caso excêntrico. Assim, considerando o movimento aparente do Sol, quanto mais longe do ponto “equanto” estivesse o Sol mais perto estaria da Terra e vice-versa. O resultado era aquele que se queria. Mas Copérnico, um neoplatónico, não podia aceitar esta hipótese suplementar introduzida na teoria. Ela colidia com o núcleo duro dessa mesma teoria, o núcleo duro criado por Platão. Esta razão e uma certa mística da luz levaram-no, qual aprendiz de feiticeiro, a colocar o Sol no centro do cosmos porque esse seria o único lugar digno de colocar essa “luminária” tal como o afirma no “De Revolutionibus”.
Nesta obra, uma obra fundamental na história da cultura humana, Copérnico não conseguia simplificar o modelo de Ptolomeu porque continuava a utilizar toda a parafernália de deferentes, excêntricas e epiciclos. Obtinha a possibilidade de medir as distâncias dos planetas ao Sol mas isso, viu-se uns anos depois, não era um resultado que se obtivesse unicamente num sistema heliocêntrico. O sistema geo-heliocêntrico de Tycho Brahe conseguirá fazê-lo também. Falaremos deste sistema daqui a pouco.
A grande objecção ao sistema heliocêntrico de Copérnico vinha do próprio campo da astronomia. Numa Terra em movimento dever-se-ia observar a paralaxe das estrelas, isto é, não deveríamos observar as estrelas sempre na mesma posição ao longo de um ano. A resposta de Copérnico foi a de que as estrelas estariam tão longe que essa paralaxe seria tão pequena que não a conseguiríamos observar. É a resposta correcta, sabemo-lo hoje, mas em pleno século XVI muito pouco convincente. Porque razão poríamos a Terra em movimento se, estando ela em repouso a não existência de paralaxe era uma consequência imediata. Agora, se aceitássemos o heliocentrismo teríamos de alargar desmedidamente as dimensões do cosmos. O bom senso, a que o critério de Occam obriga, levava naturalmente à aceitação do geocentrismo.
Os adeptos do heliocentrismo foram poucos, e quando digo poucos, digo que os poderíamos contar com o auxílio dos dedos de pouco mais de uma mão. Não cabe aqui falar de todos eles mas não poderemos deixar de referir Maestlin, o professor de astronomia de Kepler, Gianbattista Benedetti em
Itália que era um coperniciano mas sem conseguir extrair daí todas as consequências que mais tarde Galileu extrairá, e ainda Giordano Bruno que já nem sequer aceita o heliocentrismo e o conceito de cosmos, pois o Sol seria apenas mais uma estrela (centro do sistema solar) de um universo infinito pleno de sistemas semelhantes ao sistema solar.
Temos de referir novamente o nome do dinamarquês Tycho Brahe pois foi este meticuloso observador dos céus que mediu as posições das estrelas com um erro de 1’ e as posições dos planetas com um erro de 4’. Foi esta precisão que permitiu a Kepler, que entretanto se tornara seu discípulo, chegar às suas famosas leis sobre os movimentos dos astros em que os círculos de Platão foram finalmente abandonados e substituídos por elipses. As leis de Kepler foram importantes mais tarde, nomeadamente para Newton chegar à sua lei da gravitação universal, mas não o foram no desencadear da revolução científica em que Galileu representa o papel principal. Além disso, nem Galileu percebeu muito bem o que Kepler estava a fazer, nem Kepler percebeu muito bem o que Galileu fazia.
Tycho Brahe, enquanto meticuloso observador dos céus, verificou que um cometa entretanto aparecido tinha atravessado as órbitas de vários planetas, tendo, por isso, de ser considerado um fenómeno do “mundo supra-lunar” e não um fenómeno meteorológico. Também o aparecimento de uma “nova”, ou seja, de uma estrela que, a certa altura, se torna muito mais brilhante, seria um fenómeno celeste pois não se observava nenhuma paralaxe dessa “nova” ao longo do ano o que indicava que ela estava tão longe quanto as outras estrelas. Estas foram duas constatações importantes que indiciavam que o chamado “mundo supra-lunar” não seria assim tão imutável como até então se pensara.
Mas Tycho Brahe também se distinguiu por ter proposto um modelo alternativo ao de Copérnico e ao de Ptolomeu. Era, como dissemos atrás, um modelo geo-heliocêntrico no qual a Terra estaria parada no centro do cosmos, a Lua giraria em torno dela, o Sol giraria também em torno da Terra, mas os planetas girariam em torno do Sol. De certa maneira, este sistema vinha finalmente explicar o que seriam o deferente (órbita aparente do Sol em torno da Terra) e os epiciclos (trajectória dos planetas em torno do Sol). De um ponto de vista puramente cinemático este era um modelo equivalente ao de Copérnico, mas ao manter a Terra parada no centro do cosmos mantinha válida toda a física aristotélica e esta era mais uma razão para que este modelo fosse mais facilmente aceite que o de Copérnico.
Galileu constituiu uma excepção. Nunca aceitou o modelo de Tycho Brahe por razões que mais tarde se explicitarão. Galileu foi-se transformando ao longo da sua vida num coperniciano. Mas um coperniciano que conseguirá extrair todas as consequências que a aceitação do heliocentrismo implicava.
Galileu passou a sua infância entre Florença e Pisa. Foi em Pisa que, em vez de estudar medicina como a família pretendia, começou a embrenhar-se na física aristotélica, na astronomia ptolomaica, na matemática e nos trabalhos de Arquimedes que desde cedo o influenciaram fortemente.
Após ter conseguido o lugar de professor na Universidade de Pisa começou a ensinar aquilo que aprendera, mas lentamente foi descrendo da concepção aristotélico-ptolomaica e abraçando a proposta coperniciana.
A sua experiência seguinte teve-a como professor na Universidade de Pádua. Foram, segundo o próprio Galileu, os anos mais felizes da sua vida sentindo a liberdade de estudar e de discutir os problemas científicos que mais o preocupavam.
Sabemos, através de uma carta pessoal a um padre veneziano seu amigo de nome Paolo Sarpi, que Galileu já estava muito perto de atingir a sua lei matemática da queda dos graves em 1604. Nessa carta dá a entender que um grave ao cair percorre, em sucessivos intervalos de tempo, espaços que estão entre si como uma sucessão de números ímpares. Isto é equivalente a afirmar que um grave ao cair percorre espaços proporcionais ao quadrado dos tempos, que é a famosa expressão da lei da queda dos graves de Galileu.
Poderíamos ser levados a pensar que Galileu estaria em condições de publicar este resultado para o dar a conhecer nos meios cultos da Europa dessa época. Mas não foi isso que ele fez e é importante notá-lo.
Em 1609 soube que uns artífices holandeses construtores de lentes tinham descoberto que associando duas lentes a uma certa distância uma da outra podiam observar objectos longínquos como se estivessem mais perto. A primeira coisa que Galileu fez foi tentar construir uma luneta, pois era disto que se tratava, e à segunda tentativa conseguiu construir uma com a qual obtinha um aumento de cerca de trinta vezes. A segunda coisa que fez foi apontar a luneta para os céus e observá-los. Verificou que existiam muito mais estrelas no céus que aquelas que se observavam a olho nu. Que o Sol tinha manchas. Que a Lua possuía montanhas e vales. Que Júpiter arrastava consigo quatro “estrelas” que não eram mais que as suas quatro maiores “Luas” às quais deu o nome de estrelas Medicis em homenagem ao Grão-Duque da sua Toscânia natal. Verificou que a Via Láctea não era mais que um grande aglomerado de estrelas naquela região do céu. Foi tudo isto que Galileu contou no seu “Sidereus Nuncius” publicado em 1610. Este livro tornou Galileu famoso em toda a Europa de um momento para o outro.
Galileu continuou a observar os céus e verificou que o planeta Vénus evidenciava fases à semelhança da Lua. As características dessas fases constituíam um argumento decisivo para a refutação do modelo Ptolomaico, mas, e é importante frisá-lo, não constituía um argumento decisivo a favor do modelo heliocêntrico de Copérnico. Não nos esqueçamos que existia o modelo geo-heliocêntrico de Tycho Brahe que explicava tão bem como o de Copérnico as características das fases de Vénus. Muitas vezes isto é esquecido quando se discute a disputa entre os dois grandes sistemas do mundo, talvez porque o próprio Galileu desvalorizou o modelo de Tycho Brahe.
Mas é importante sublinhar que nenhuma das observações de Galileu com a luneta evidenciava que a Terra estava em movimento. Nenhuma delas constituía um argumento decisivo a favor de Copérnico. E, no entanto, Galileu ao publicar o “Sidereus Nuncius” iniciou uma enorme campanha de propaganda a favor do modelo coperniciano. A pergunta que cabe aqui fazer
é: Porquê? Não lhe bastaria publicar os resultados da sua investigação em física? Porque razão Galileu, que se calou temporariamente quando, após o seu primeiro processo, que assumiu um carácter sigiloso no qual o cardeal Belarmino o intimou a parar com essa campanha, nunca desistiu durante 28 longos anos de defender o copernicianismo?. Este cardeal Belarmino tinha sido o responsável pelo processo a Giordano Bruno que, como sabemos, acabou com a sua morte na fogueira no ano de 1600 em Roma,
Nada disto o impediu de publicar em 1623 o “Il Saggiatori”, um livro importante em que Galileu defende uma nova epistemologia, o livro em que aparece a célebre frase de Galileu onde é afirmado que “A filosofia está escrita neste grande livro, o universo, que permanece continuamente aberto à nossa contemplação. Mas este livro não poderá ser compreendido a menos que comecemos por compreender a linguagem e a ler as letras que o compõem. Ele está escrito em linguagem matemática, e os seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível compreender uma simples palavra; sem isto, vaguearemos num escuro labirinto”. Este é um livro importante porque se insere coerentemente nesta enorme campanha de propaganda do copernicianismo e da nova ciência em gestação.
Mas o auge dessa campanha deu-se quando, anos depois, Galileu se convenceu que o ambiente político na Cúria Romana se tinha desanuviado. O cardeal Belarmino morrera e o seu amigo humanista florentino Maffeo Barberini ascendera a Papa. Galileu pensou que tinha chegado a hora de finalmente convencer a Cúria Romana da verdade do copernicianismo. Resolveu publicar uma tremenda defesa desse sistema em 1632. Estou a referir-me à mais célebre obra de Galileu os “Diálogos em torno dos dois máximos sistemas do mundo” em que ele coloca em confronto o sistema aristotélico-ptolomaico e o sistema coperniciano.
Como sabemos Galileu enganou-se sobre a oportunidade dessa publicação e o resultado foi a instauração pela Inquisição do seu segundo processo, este já com carácter público. A Igreja católica queria ser exemplar no ataque às novas ideias. Galileu foi humilhado publicamente, obrigado a renegar o copernicianismo e a denunciar todos os que o defendessem.
Só em 1638 é que Galileu, então já em prisão domiciliária em Arcetri perto de Pisa, publicou, não em Itália mas na Holanda, através da editora Elsevier, o livro onde finalmente nos conta os resultados da sua investigação em física. Falamos dos “Discursos e demonstrações matemáticas em torno das duas novas ciências”. É neste livro que nos é dado a conhecer a lei da queda dos graves, a trajectória dos projécteis e a fundamental lei da inércia. Uma lei em que finalmente o movimento assumia o estatuto de estado, de algo que podia permanecer.
Mas a pergunta deve ser de novo feita. Porque razão Galileu, conhecendo em 1604 a lei da queda dos graves, esperou 34 anos para, apenas 4 anos antes de morrer, a dar a conhecer em conjunto com as duas outras leis, tendo gasto a maior parte desses anos numa enorme campanha de propaganda a favor do copernicianismo? A única resposta possível é: Para Galileu era
indispensável que se aceitasse o copernicianismo porque só depois disso se podia aceitar a sua nova forma de fazer física. Vejamos a razão disto.
A física aristotélica era uma física construída sobre uma determinada base ontológica. Um cosmos dividido entre dois mundos ontologicamente distintos. Por um lado o “mundo-supra lunar”, o “mundo inteligível”, um mundo passível de uma descrição matemática como, desde cedo, os gregos e os helenistas tinham ousado construir. Mas ousaram-no porque não o tinham conseguido apreender em toda a sua complexidade. A única alteração que se detectara nesse mundo era a mera alteração da posição dos astros. Mas, mesmo assim, uma alteração de posição que ao fim de um certo tempo permitia o regresso ao lugar inicial. Por outro lado o “mundo sub-lunar”, o “mundo sensível”, um mundo não passível de uma descrição matemática. Um mundo onde se aplicava a física aristotélica uma física ambiciosa mas que não matematizava o devir, ou seja, a mudança no sentido mais lato que Aristóteles lhe dava: o acto do ser em potência enquanto em potência. Este devir não era matematizável.
Como já afirmámos, Arquimedes tinha atingido leis matemáticas da física no III século A.C. e Galileu conhecia-as bem, mas eram leis que lidavam com situações estáticas, com situações de equilíbrio. Mas Arquimedes, para chegar à lei do equilíbrio das alavancas, não tinha olhado para uma balança real, tinha idealizado uma balança geométrica representada por uma linha recta apoiada num dos seus pontos interiores a que se dá o nome de fulcro, recta onde se penduravam pesos geometricamente simples, com centros de gravidade bem determinados a distâncias bem determinadas do fulcro, isto é, não tinha estudado uma balança física mas sim uma balança matemática.
Ora bem, Galileu estava consciente de que na antiguidade os astrónomos tinham ousado matematizar a mudança de posição dos astros nos céus. Mas tinham-no feito porque apenas tinham detectado essa mudança nesse mundo. Tinham sido os nossos sentidos que tinham “filtrado” toda a informação sensorial sobre esse mundo deixando passar apenas as posições dos astros e as variações destas, ou seja, o seu movimento local. Tinham, inadvertidamente, expurgado esse mundo de toda a mudança excepto essa.
Agora Galileu queria fazer o mesmo à superfície da Terra e para isso era-lhe indispensável mostrar que entre os dois mundos não existiam assim tão grandes diferenças. Era-lhe absolutamente necessário mostrar que essa distinção não fazia sentido. E havia apenas um único sistema que unificava os dois mundos. Que os unificava ontologicamente. Esse sistema era o sistema heliocêntrico de Copérnico, em que a Terra era agora apenas mais um planeta sem nenhum estatuto privilegiado. O sistema de Tycho Brahe, se bem que de um ponto de vista puramente cinemático, do ponto de vista da descrição dos movimentos dos astros, era equivalente ao de Copérnico, tinha a “maleita” de manter a distinção entre dois mundos ontologicamente diferentes. As observações relatadas no “Sidereus Nuncius”, o estudo recente da trajectória dos cometas, e a não observação de paralaxe das “novas” indiciavam que a distinção ontológica introduzida por Platão entre o “mundo supra-lunar” e o “mundo sub-lunar” não fazia sentido. Foi essa a razão que levou Galileu a desencadear essa enorme campanha de
propaganda em favor do sistema coperniciano. Galileu precisava desse sistema porque ele impunha uma unificação ontológica entre esses dois mundos. No sistema coperniciano não existiam dois mundos mas apenas um. Essa unificação ontológica arrastaria, inevitavelmente, atrás de si uma unificação epistemológica. Se só havia um mundo ontologicamente unificado, então o método para conhecer esse mundo era um único. Desta forma, Galileu podia agora utilizar o mesmo método que os antigos tinham utilizado para o estudo do movimento dos astros nos céus. Mas enquanto esses homens o tinham feito inadvertidamente, Galileu queria fazê-lo agora premeditadamente. Pretendia abstrair-se do devir, do movimento no sentido lato que os gregos lhe davam, e concentrar-se exclusivamente no movimento local, na mera mudança de posição. Podia assim começar a construir uma nova física, menos ambiciosa que a de Aristóteteles, mas que conseguia descrever matematicamente o movimento local à superfície da Terra. Toda a informação sensorial sobre o devir era agora deliberadamente eliminada pois só assim evidenciaríamos o caso particular de mudança passível de uma descrição matemática. O caso particular do movimento local.
Não me agrada o termo corte epistemológico. Podemos falar de corte epistemológico quando comparamos apenas a física aristotélica e a física galilaica, mas isso é amputar um processo muito mais geral em que a astronomia tem um papel fundamental. É muito mais adequado falar de unificação epistemológica. Foi isso que no fundo se deu e compreendê-lo é compreender em profundidade o que foi afinal a revolução científica do século XVII. Foi no fundo a matematização dos céus a descer à Terra ou melhor, a Terra a ascender a um mundo matematizável pelo menos parcialmente. Os seus movimentos locais eram-no.
Esta preocupação de Galileu torna-se evidente quando olhamos para a lei de inércia a que Galileu chegou. Esta lei, como já referi atribui o estatuto de estado, de ser, ao movimento local. Este é um ponto importante. Mas o que gostaria de realçar foi um equívoco em que Galileu caiu. Galileu associou ao conceito de inércia, não o movimento rectilíneo e uniforme que, depois de Descartes e Newton, se aceitou, mas sim o movimento circular e uniforme. Galileu chegou ao movimento rectilíneo e uniforme inicialmente mas substituiu-o pelo movimento circular e uniforme quando estudou um movimento inercial de dimensões comparáveis às da Terra. Foi um erro de Galileu, mas foi um erro interessante e, se me permitem, bonito. Este erro permite-nos, mais uma vez, realçar a sua defesa intransigente de uma unificação ontológica, pois este movimento inercial circular e uniforme de Galileu não era mais do que a ascensão da Terra aos movimentos circulares e uniformes dos céus. Este erro constituiu uma confissão de Galileu da sua preocupação em unificar ontologicamente o mundo. A inevitável unificação epistemológica consequente levar-nos-ia a descobrir que as mesmas leis se aplicavam a todo esse mundo.
Quando Descartes, um contemporâneo de Galileu, escreve o seu “Discurso do método”, nos anos 30 do século XVII, com as suas leis para bem conduzir o espírito, não poderia deixar de afirmar que devemos dividir o
problema em tantas partes quantas as necessárias até encontrarmos o nosso objecto de estudo. Mostrava que aprendera bem a lição de Galileu.


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