segunda-feira, 26 de julho de 2010

2218 - ASGRANDES ABADIAS COPISTAS NA IDADE MÉDIA

Web hosting Custom Email SiteBuilder




clique para imprimir este documento

O Mosteiro de Alcobaça e a regularidade cisterciense



Fernanda Conrado
O recurso à bibliografia existente sobre Alcobaça mostra uma série dde afirmações repetidas de geração em geração de estudiosos, sendo, curiosamente, um monge de Cister - Dom Maur Cocheril - o único autor a basear as suas afirmações na observação directa do monumento e na sua vivência pessoal, embora recorra a outros autores para apoiar a sua análise. No entanto, este investigador da arquitectura de Cister não ousou tirar conclusões dos dados que recolheu sobre Alcobaça, deixando pistas que eu retomei e desenvolvi.

A austeridade e o ascetismo eram marca dominante da Ordem de Cister que impunha o trabalho, o silêncio absoluto e um completo domínio do espírito sobre o corpo.

O silêncio apenas era interrompido pela leitura em voz alta no refeitório ou no claustro da leitura, pelos ofícios litúrgicos, ou por algum problema comunicado ao Abade no Parlatório ou em Capítulo. As trocas de impressões mais rotineiras faziam-se por meio de gestos codificados e comuns a todas as abadias.

A Regra, que era de clausura, determinava que as abadias deviam situar-se isoladas das cidades ou castelos e em locais onde os monges pudessem bastar-se a si próprios " sem andarem por fora". Assim era necessário, visto que o trabalho dos monges era interrompido sete vezes por dia para se reunirem nos ofícios religiosos. Inicialmente, este trabalho consistia em dirigir as obras de construção da Abadia, enquanto os copistas desenhavam os livros sagrados a fim de divulgar as bases da fé cristã, e outros orientavam os trabalhos de secagem e preparação dos terrenos pantanosos de Alcobaça, transformando-os num dos solos mais ricos do território português, até aos nossos dias. Por esse motivo se rodearam de frades conversos que os ajudavam nos trabalhos campestres e se distinguiam dos monges pelo hábito castanho, barba crescida e um menor rigor litúrgico. Com a iniciação à fé Cristã, esses conversos podiam ascender a noviços e, com tempo e austeridade sempre crescentes, tornar-se monges.

No caso de Portugal, os primeiros monges tiveram também uma acção evangelizadora e cultural, visto que lhes foi doado um vasto domínio de "terras de ninguém", escarsamente habitadas por gente muito primitiva que formou o núcleo dos primeiros conversos.

Os monges de S. Bernardo adoptaram o hábito branco, de pano crú, em sinal de humildade, enquanto os monges de Cluny continuavam a usar o hábito negro.

Nos primeiros tempos, quando o trabalho manual era essencial para a expansão da Ordem, os conversos tornavam-se indispensáveis para trabalhar os terrenos mais afastados e apascentar os rebanhos, pelo que viviam em granjas afastadas das abadias. Só os noviços e monges habitavam as abadias, mas havia normas rigorosas que separavam monges, noviços e conversos, na igreja, refeitório, dormitórios, e mesmo nos claustros.

A austeridade cisterciense reflectia-se não só na rotina quotidiana dos monges, mas também na própria lógica racionalidade da articulação dos espaços arquitecturais e no despojamento de elementos decorativos, quer na arquitectura, quer nos manuscritos:

"Nos mosteiros não haverá pinturas nem esculturas, apenas cruzes de madeira(...) As portas serão pintadas unicamente de branco (...). Os calígrafos escreverão apenas numa côr, e as letras sem pinturas(...) Não se farão torres de pedra para os sinos, nem de madeira demasiado altas."

É sabida a maneira ardilosa como os monges-escribas contornavam a proibição cromática, escrevendo cada letra com sua côr, e desenhando as letras capitulares com uma só côr, mas pintando e ornamentando os espaços deixados entre as linhas.

Os edifícios cistercienses eram erguidos segundo uma planta-padrão que respondia às exigências de funcionalidade e economia de espaço e de movimentos, abolindo todo o supérfluo e apenas admitindo soluções de pormenor segundo os locais geográficos, os materiais disponíveis e as tradições culturais existentes. A planta-padrão destinava-se a articular a vida dos monges, noviços e conversos que, vivendo em conjunto, tinham obrigações distintas, horários e regime alimentar diferentes, com instalações separadas.

A igreja devia ficar sempre no ponto mais elevado e orientada, no verdadeiro sentido da palavra.

Mesmo na igreja, monges, noviços e conversos tinham coros separados. Os refeitórios eram separados pela cozinha, pois que a dieta dos monges era muito mais rígida do que a dos noviços ou dos conversos.

Os restantes edifícios eram erguidos do lado sul da igreja, por ser o que apanha mais horas de sol, e as diferentes dependências eram articuladas em volta do claustro, de acordo com as deslocações normais dos monges e com as necessidades de luz e calor. Assim, os refeitórios, cozinha e sala de trabalho deviam ficar anexos à galeria sul do claustro, enquanto o dormitório ficava virado a Este, para ter sol logo de manhã, e o celeiro virado a Oeste, apanhando apenas o sol fraco do entardecer. A corrente de água era condição obrigatória na escolha da localização da Abadia e devia passar primeiro pela cozinha e refeitórios, escorrendo depois para as latrinas situadas abaixo dos dormitórios.

Foi precisamente esta necessidade de concordância com a orientação da corrente de água, a par da configuração do terreno de Alcobaça, que determinou que a planta-padrão aqui ficasse invertida em relação aos pontos cardeais, no que consistiu a primeira "irregularidade".

Na época medieval era de Regra que, quando uma Abadia se tornava demasiado populosa, saíam nove monges para filiar ou fundar uma nova Abadia num local não cristianizado e mais ou menos isolado. No caso de uma fundação, como foi o de Alcobaça, no início da nacionalidade, os monges-construtores levavam consigo um desenho da planta-padrão que lhes servia de base à nova construção. Mas eles não eram arquitectos, nem no período românico havia uma grande preocupação com o rigor arquitectónico que o equilíbrio das forças do gótico nascente exigia. Deste modo, as medições e marcações do terreno eram feitas com uma corda, sem grande controle de esquadrias nem de pontos de descarga das abóbadas. Por outro lado, se na França, de onde vieram os primeiros nove monges, já se construíam igrejas góticas, em que as coberturas ogivais descarregavam as suas forças sobre arcos-butantes permitiam abrir as paredes em largos vitrais, em Portugal existia ainda um grande apego à solidez românica das igrejas-fortaleza, e um desconhecimento técnico que não permitia introduzir novas formas. Os monges eram pobres e tinham de construir com a mão-de-obra disponível, pelo que a Abadia primitiva foi construída com paredes românicas de grossos contrafortes, coroadas por ameias, embora as coberturas já fossem ogivais.

No entanto, numa nação em plena expansão cristã, os monges revelaram-se úteis ao domínio Real, tendo sido muito protegidos, pelo que o edifício da Abadia rapidamente foi alargando as suas instalações para acolher o crescente número de monges e noviços. Por outro lado, a construção do mosteiro foi iniciada num período de transição artística, pelo que, tendo sido começada com técnicas e formas românicas, com as demoras da construção acabou por assimilar as formas góticas e, mais tarde, as renascentistas. No apogeu da vida do edifício, quando Alcobaça chegou a ser Casa-Mãe da Ordem de Cister, o Barroco também ali deixou as suas marcas, fazendo letra-morta da austeridade da Regra, tanto no rigor da vida monástica como na austeridade das formas.

Como o costume determinava que durante o mesmo dia não se podia celebrar missa duas vezes no mesmo altar, inicialmente abriam-se duas a seis capelas no transepto, e por fim optaram por um deambulatório com capelas irradiantes. Ainda hoje se percebem as marcas da cabeceira primitiva, e as coberturas das capelas irradiantes, em abóboda de berço, não são adequadas à planta trapezoidal das capelas, revelando um desconhecimento das soluções de cobertura mais adequadas a cada planta.

Os próprios tramos das naves laterais e central não têm forma regular, apresentando diferenças de vários centímetros nas distâncias entre os pilares, o que acusa uma distorção na descarga das forças apenas possível devido à robusta estrutura românica das paredes que suportam as abóbadas. Tendo feito a medição dos espaços entre os pilares, verifiquei que os tramos não são quadriláteros regulares, mas sim a trapézios escalenos.

Havia um alçado de madeira, ou "Teia" que separava o coro dos monges do dos noviços, e este do dos conversos. Com o rápido aumento dos monges e noviços (que chegaram a ser 999), a nave foi-se alongando à medida das necessidades, deixando marcas das várias fases de construção nos diferentes formatos das consolas dos pilares a que se adossavam os cadeirais.

No braço do transepto adjacente ao claustro , uma porta baixa ligava à sacristia, e uma escada dava acesso directo ao dormitório dos monges, para os ofícios noturnos. No outro braço do transepto havia a porta que ligava ao cemitério.

Junto ao transepto encontra-se a galeria do claustro que dá acesso às dependências exclusivas dos monges: sacristia, capítulo, parlatório e sala de trabalho ou scriptorium.

Os claustros tinham quatro galerias construídas ao longo de vários séculos, começando pela galeria adjacente à nave da Igreja, e que crescia com ela, o que deixou marcas na irregularidade formal e ritmo das arcadas e até na sua assimetria, visto que as arcadas medianas foram ficando deslocadas em consequência do alongamento das galerias, de acordo com a necessidade de maiores dormitórios, sala do capítulo e refeitórios. As arcadas do famoso claustro de D. Diniz apresentam arcos de volta inteira, ogivais e trilobados, sendo umas de três luzes, outras de duas luzes, e outras ainda de abertura única, com diferenças formais e rítmicas ao longo de uma mesma galeria. Até a austeridade decorativa que ditava um exclusivo de folhagem e figuras geométricas deu lugar a uma maior permissividade patente nos capitéis com figuras fantásticas de grifos, carrancas e dragões.

O Scriptorium era uma larga sala com o chão em degraus, como um anfiteatro académico, onde um monge ditava um livro sagrado enquanto numerosos monges-copistas escreviam novos exemplares e os mais habilidosos desenhavam as letras capitulares. Porque os dedos enregelavam nesta minuciosa tarefa, visto que a sala estava virada a Norte, e não a Sul, como era de Regra, na sala anexa - o calefactorium - havia um fogão a lenha para aquecer as mãos e misturar os pigmentos das tintas com o aglutinante, a qual servia também para encebar as sandálias para que não se encharcassem, de inverno. Com o advento da imprensa, estas salas deixaram de ser usadas para este efeito e, como estavam orientadas a Norte, o scriptorium passou a servir de adega e celeiro, enquanto o calefactorium foi transformado na grande cozinha que hoje vemos.

Ao contrário da regularidade de formas repetidamente exaltada pela maioria dos investigadores de Alcobaça, as condições rudimentares e a lentidão da construção inicial provocaram irregularidades na traça do mosteiro. O rápido crescimento do número de monges e correspondente adaptação dos edifícios que cresceram como um corpo orgânico, bem como a própria evolução dos gostos artísticos e relaxamento dos princípios de austeridade levaram a que, ainda no final da Idade Média (para não mencionar as grandes alterações decorativas introduzidas no período Barroco), o Mosteiro de Alcobaça não fosse, de modo nenhum, um exemplo de regularidade arquitectónica, a não ser na racional distribuição das dependências, mesmo essas em posição invertida em relação ao movimento solar.

É apenas nessa distribuição das dependências que podemos considerar que a "regularidade cisterciense" está presente em Alcobaça, apesar das transformações operadas nos antigos scriptorium e calefactorium, e das novas ocupações dos monges-copistas, que passaram a monges-barristas, vivendo numa casa onde a mesa era mais farta do que a do próprio Palácio Real.

Mas nem por isso o edifício deixa de ser um exemplo admirável de funcionalidade e de adaptação racional à rotina diária e às condições do terreno, qualidades que foram apanágio da arquitectura cisterciense.



web hosting • domain names
web design • online games





COPYRIGHT AUTOR DO TEXTO

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contador de visitas